Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
I. Proferida a sentença ou acórdão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ou melhor, quanto ao objeto da dita sentença ou acórdão (n.º 1 do art.º 613.º do CPC).
II. Porém, é lícito ao tribunal retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença/acórdão, nos termos previstos na lei (n.º 2 do art.º 613.º do CPC, artigos 614.º, 615.º e 616.º do CPC).
III. O indeferimento da reclamação deduzida contra acórdão do STJ com base nos fundamentos referidos em II não justifica a aplicação do instituto da litigância com má-fé, pese embora a improcedência desses fundamentos seja manifesta, na medida em que se deva objetivamente ajuizar que no caso em análise a reclamação não ultrapassou manifestamente os limites da utilização legítima dos instrumentos processuais proporcionados pela lei às partes (sem prejuízo do decaimento dos reclamantes).
IV. É pressuposto da aplicação da taxa sancionatória excecional, nos termos do artigo 531º do CPC, que sejam apresentadas pretensões manifestamente infundadas, abusivas e reveladoras de violação do dever de diligência, e que deem azo a uma atividade processual inútil.
V. Desde que o instrumento de impugnação utilizado esteja previsto na lei e seja habitual na prática judiciária, não há lugar à aplicação desta taxa, reservada para o recurso a instrumentos anómalos e patológicos, fora do desenrolar normal do processo.
VI. No caso a que se reportam estes autos, está-se perante reclamação de acórdão do STJ que, embora manifestamente improcedente, ainda se enquadra na habitual praxis forense, de recurso aos meios processuais disponíveis para, em última ratio, tentar obter um ganho processual que, de alguma forma, sirva os interesses, ainda legítimos, da parte atuante. Trata-se de atuação adjetiva que, não sendo merecedora do juízo incriminatório de litigância de má-fé, também não se reveste da especial censurabilidade pressuposta pela aplicação da taxa sancionatória excecional.
I. RELATÓRIO
1. Vieira Fonseca & Associados – Sociedade de Advogados, RL (1.ª R.) e AA (2.º R.), notificados do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 17.6.2025, que julgou improcedente a revista (principal) interposta pelos RR., e parcialmente procedente a revista (subordinada) interposta pela A. Habiserve – Investimentos Imobiliários, Ld.ª, vieram, invocando, como base legal, o disposto nos artigos 195.º, 615.º n.º 1 al. d) e 616.º n.º 2 al. a), do CPC, “arguir nulidades processuais, a nulidade desse acórdão por omissão de pronúncia e, se assim não se entender, requerer a sua Reforma.”
Terminaram pedindo “a revogação do Acórdão sub judice e, consequentemente:
a. Relativamente às nulidades processuais que ficaram invocadas por violação do princípio do contraditório (supra, nºs. 4.1, 12 e 19), deverão os Recorrentes ser notificados para se pronunciarem sobre os fundamentos decisórios sobre os quais não tiveram oportunidade de se pronunciarem, proferindo-se depois decisão sobre essas questões;
b. Quanto às nulidades do Acórdão sub judice por omissão de pronúncia (nºs. 6/7), deverão depois ser proferidas decisões sobre as respetivas questões;
c. No âmbito do art. 616º, nº 2, a), do CPC, requer-se a este Venerando Supremo Tribunal que decida nos termos peticionados (nºs. 4.2 e 4.3 e 14)”.
2. A A. pronunciou-se contra tal requerimento, pugnando pela sua inadmissibilidade e improcedência. Mais alegou que o dito requerimento consubstanciava má-fé processual, requerendo que os RR. fossem como tal condenados, em multa e indemnização à A.. Subsidiariamente, requereu que fosse aplicada taxa sancionatória, nos termos do art.º 531.º do CPC.
3. Os RR. responderam à alegação de má-fé processual e ao requerimento de taxa sancionatória, batendo-se pela sua improcedência.
4. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Reportando-se ao acórdão supramencionado, os reclamantes invocam:
a) A ocorrência de nulidades processuais consubstanciadas na violação do princípio do contraditório;
b) Nulidade por omissão de pronúncia;
c) E propugnam a reforma do acórdão.
Vejamos.
2. Proferida a sentença ou acórdão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ou melhor, quanto ao objeto da dita sentença ou acórdão (n.º 1 do art.º 613.º do CPC).
Porém, é lícito ao tribunal retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença/acórdão, nos termos previstos na lei (n.º 2 do art.º 613.º do CPC, artigos 614.º, 615.º e 616.º do CPC).
a) Violação do princípio do contraditório (primeira arguição – Parte A da reclamação)
Pode ocorrer que o tribunal profira uma decisão que surpreenda as partes, na medida em que assenta numa análise factual ou jurídica com a qual não podiam contar. Nos termos do n.º 3 do art.º 3.º do CPC, o juiz “deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Uma sentença ou um acórdão que seja proferido sem que o tribunal ouça previamente as partes sobre uma questão nova, não debatida no processo, que influa no desfecho do litígio, atenta contra o princípio do contraditório, vertido no n.º 3 do art.º 3.º do CPC.
Contra a prolação de sentença na qual indevidamente se dispensou a audição prévia das partes cabe, se houver, recurso (cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 183; Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, pp. 507 e 508).
Numa outra perspetiva, defendida por Miguel Teixeira de Sousa, poderá dizer-se que o tribunal a quo, ao conhecer de mérito sem (ainda) o poder fazer, incorre em nulidade por excesso de pronúncia, nos termos previstos no art.º 615.º n.º 1, al. d), parte final, do CPC (vide, v.g., posts de 21/12/2015, Jurisprudência (250); de 28/01/2019, Jurisprudência 2018 (163) e de 07/06/2021, Jurisprudência 2020 (227), todos in Blog do IPPC).
In casu, estaria em causa a circunstância de este STJ ter considerado que determinadas afirmações efetuadas pela 1.ª instância na audiência final e na sentença (afirmação no sentido de que o pleito não assumia a índole de uma “ação de honorários”) não tinham força de “caso julgado”, não dispensando os RR. de demonstrarem quais os serviços forenses que haviam sido prestados em favor da A., para assim puderem brandir contra a A. um crédito que poderiam, nomeadamente, compensar com o crédito da A.
A questão do crédito dos RR. perante a A. e a forma da sua quantificação foi introduzida pelos RR. na sua contestação, em termos que, a seu próprio ver, as dispensava de concretizarem os serviços prestados, pois os valores a que se julgavam ter direito se deveriam calcular, na sua perspetiva, em termos da antiga “avença”. E os RR., segundo afirmam, dispensados ficaram de fazerem prova acerca dos concretos serviços prestados à A., após a cessação da primitiva avença. E para sustentarem essa posição invocaram as afirmações, já mencionadas, do senhor juiz, proferidas na fase inicial da audiência e, depois, na sentença.
Este STJ, chamada a sua atenção para o que se passara na audiência final (de que os RR. transcreveram trechos), procedeu à sua análise crítica, como podia e devia. E daí extraiu, pelas razões que indicou, que nenhum caso julgado havia, e, bem assim, que nada constava nos autos que demonstrasse que os RR. haviam sido coibidos ou tolhidos na apresentação dos seus meios de prova, em linha com a tese apresentada, desde logo, na contestação.
A sentença foi alvo de recurso pela A. e, depois, o acórdão da Relação foi alvo de recurso pelas RR. e, subordinadamente, pela A., pelo que é claramente temerário invocar o caso julgado quanto ao propalado juízo qualificativo desta ação como “ação que não é de honorários”, com as consequências que dele se pretendem retirar acerca do objeto da causa e da prova.
De resto, veja-se o que se exarou no acórdão sub judice (pág.66): “Note-se que, na sentença, expressamente se considerou que, na enunciação dos temas da prova, o quinto tema (“Acordo de pagamento de quantias devidas por prestação de serviços do réu à autora após cessação da avença e até janeiro de 2015”) incluía a questão “relativa aos serviços de consulta e representação jurídica efetivamente prestados pelos réus às sociedades do grupo económico em que se insere a autora, após suspensão da avença e até ao final da relação contratual” (pág. 14 da sentença)”.
O que pressupõe via aberta para as partes produzirem prova acerca da concreta realização de serviços jurídicos e forenses por parte dos RR..
Tudo isso se encontra bem explicado no acórdão deste STJ, não cabendo proceder a mais explanações. As discordâncias e críticas que, a respeito, os RR. expõem no seu requerimento, não tem como objeto verdadeiras nulidades, mas mera exposição daquilo mesmo (discordâncias e críticas).
Em suma, o acórdão sub judice foi proferido com estrito respeito pelo princípio do contraditório e sem qualquer violação de um suposto caso julgado.
b) Quanto à alegada omissão de pronúncia (Parte B da reclamação)
Existe omissão de pronúncia quando o tribunal omite apreciação sobre questões, atinentes à pretensão do autor ou à defesa do réu, sobre as quais deveria emitir um juízo, por terem sido alegadas pelas partes ou por serem de conhecimento oficioso (artigos 615.º n.º 1 al. d), 608.º n.º 2 do CPC).
Segundo os RR., o STJ omitiu pronúncia, ao nível do ónus da prova, acerca da circunstância de o pedido reconvencional dos RR. ser um pedido de simples apreciação negativa, o que teria consequências em matéria de ónus da prova e, consequentemente, rebateria a decisão de facto a que chegou a Relação.
Os RR. confundem omissão de pronúncia sobre uma questão, com eventual irrelevância dada a argumentação oferecida pela parte para contrariar o juízo impugnado.
Como bem referem os RR., o acórdão ora reclamado pronunciou-se acerca da impugnação dos RR. face à apreciação da fixação da matéria de facto por parte da Relação.
Neste acórdão reproduziu-se parte do exarado pela Relação a este respeito e, depois, acrescentou-se:
“Conforme bem se aduziu no acórdão recorrido, era sobre os RR. que recaía o ónus da prova do alegado crédito, face à A., pelos serviços prestados, enquanto matéria de exceção perentória alegada contra a pretensão da A. (art.º 342.º n.º 2 do Código Civil) e, também, enquanto facto constitutivo do pedido reconvencional deduzido (art.º 342.º n.º 1 do Código Civil) tendo em vista a extinção da pretensão da A. por força da compensação com o alegado crédito dos RR. face à A. (cfr. artigos 847.º e 854.º do Código Civil; art.º 266.º n.º 2 alínea c) do CPC)”.
Mais não seria preciso, cremos, para arredar a pretendida (pelos recorrentes RR.) inversão do ónus da prova por um pretenso (e inexistente) pedido de simples apreciação negativa.
Improcede, por conseguinte, a alegação da nulidade por omissão de pronúncia.
Sendo certo que, mais uma vez, do que se trata é de manifestar discordância com o sentido, desfavorável aos reclamantes, do acórdão sub judice.
c) Violação do princípio do contraditório (segunda arguição – Parte C da reclamação)
Os reclamantes entendem que no acórdão reclamado, ao questionar-se uma suposta (pelos reclamantes) confissão de que o primitivo contrato de avença tinha ficado suspenso (e não cessado), violou-se o regime da força probatória da confissão, e violou-se o contraditório, por se introduzir no julgamento uma questão nova.
Quanto à apreciação da forma como a Relação fixou os factos, este STJ não vai repetir o já aduzido no seu acórdão, esgotado que está o seu poder jurisdicional.
Quanto à suposta violação do contraditório, é patentemente inexistente, na medida em que tanto na sentença, como na apelação interposta pela A., como, depois, no acórdão da Relação, é unânime o entendimento de que a primitiva avença cessou consensualmente, não tendo sido alvo de uma mera suspensão. Não existindo, pois, qualquer confissão da A. que obstasse a esse juízo. Sendo certo, aliás, que na sua contra-alegação à apelação interposta pela A. os RR. nem sequer consideraram relevante a mencionada contraposição “cessação/suspensão da avença (cfr. pág. 5 da contra-alegação da apelação).
Tendo, na sua revista, os RR. invocado a questão da força probatória de uma suposta confissão sobre esta matéria, este STJ apreciou-a, como é evidente, não se enxergando em que termos e a que propósito é que este STJ deveria, antes de decidir, ouvir primeiramente as partes.
d) Violação do princípio do contraditório (terceira arguição – Parte D da reclamação)
Nesta parte da reclamação os reclamantes insurgem-se contra a circunstância de este STJ não ter determinado a baixa do processo para ampliação da matéria de facto. Afirmam os reclamantes que, ao assim decidir sem ouvir primeiramente as partes, este Tribunal violou o princípio do contraditório.
Não se descortina sobre que mais deveria este STJ ouvir as partes. Basta-nos reiterar o já supra exposto para rejeitar a existência de qualquer omissão de audição prévia das partes, por este Tribunal.
e) Nos termos do n.º 2 do art.º 617.º do CPC, não cabendo recurso da decisão é lícito a qualquer das partes requerer a reforma desta quando, “por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”.
Não se verifica, face a tudo o supra exposto, qualquer dos fundamentos de reforma do acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça.
Pelas razões também supra expostas, e contrariamente ao asseverado pelos reclamantes, o acórdão suprarreferido não ofende a Constituição, nomeadamente o disposto no n.º 4 do art.º 20.º, o art.º 202.º ou o art.º 2.º da CRP.
A reclamação é, pois, improcedente.
3. Litigância de má-fé dos reclamantes.
A A./reclamada defendeu que, com o requerimento apresentado, os RR. litigam de má-fé, pretendendo tão só retardar o trânsito em julgado da decisão. Pretende, por isso, que os RR. sejam condenados em multa e em indemnização.
Os RR. contestaram tal pretensão.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art.º 542.º n.º 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A atual redação do preceito, introduzida no anterior CPC pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 (onde era o art.º 456.º), visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
Como se recorda no acórdão do STJ de 16.5.2019 (processo n.º 6646/04.0TBCSC.L1.S2 – consultável, bem como os restantes indicados, em www.dgsi.pt)), a litigância de má-fé é um instituto que visa sancionar e, portanto, combater a “má conduta processual”. A conduta sancionada consubstancia-se na dedução de pretensão ou oposição cuja falta ou fundamento não podia ser ignorada, na alteração ou omissão da verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, na omissão grave do dever de cooperação ou no uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
In casu, os reclamantes reiteram, na reclamação, a argumentação proposta na revista para fundar a revogação do acórdão proferido pela Relação, tendo em vista a repristinação da sentença. Mais apontam ao acórdão reclamado vícios de que, patentemente, ele não padece.
Estar-se-á, então, na presença de litigância de má-fé?
A aplicação de multa por litigância de má-fé visa punir um comportamento que se tem por contrário ao direito, por ser contrário aos fins do processo e da Justiça. Conforme nota Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado, volume II, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 269) a aplicação da respetiva sanção visa, como é próprio de toda a pena, punir o delito cometido (função repressiva) e evitar que o mesmo ou outros o pratiquem no futuro (função preventiva).
Segundo a avaliação de Menezes Cordeiro, os nossos tribunais normalmente abordam de forma excessivamente tímida e prudente a atuação das partes no processo à luz dos parâmetros consignados no art.º 542.º do CPC (cfr. a obra Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito e Culpa “In Agendo”, 3.ª edição aumentada e atualizada, à luz do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2014v.g. pp. 23-28, 62, 71, 75 a 77).
Essa visão prudente perpassa, por exemplo, no acórdão do STJ, de 11.12.2003 (processo 03B3893 – www.dgsi.pt), onde se expendeu o seguinte: “O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do artº 456º, CPC [atual art.º 542.º], nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a e b, do nº2. Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico - sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual.”
Essa abordagem do referido instituto é reiterada igualmente, por exemplo, nos acórdãos do STJ de 28.5.2009 (09B0681), 21.5.2009 (09B0641), 26.2.2009 (09B0278).
Um ponto de vista quiçá mais exigente para com as partes é expressado, porém, no acórdão do STJ, de 02.6.2016 (1116/11.3TBVVD.G2.S1):
“Entre nós, antes da reforma processual introduzida pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, era entendimento constante da jurisprudência e da doutrina que o art.º 456º do Cód. de Proc. apenas sancionava as condutas dolosas. Após a revisão processual de 1995, o quadro normativo em matéria de litigância de má fé passou a ser bem mais exigente, impondo a repressão e punição não só de condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes (anterior art.º 456º, n.º 2, e actual 542º, n.º 2, do CPC).
No entanto, deve continuar-se a ser cauteloso, prudente e razoável na condenação por litigância de má fé, o que só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com grave negligência, com o fito de impedir ou a entorpecer a acção da justiça.
Mas se tal é certo, não se pode olvidar uma outra, diferente, perspectiva ou vertente. É que as partes (e não só) têm o dever de cooperar e concorrer para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (art.º 7º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil) e devem também, agir de boa fé (art.º 8º do Cód. de Proc. Civil), ou seja, não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias.
No caso, afigura-se-nos ser manifesta e evidente a postura desleal e nada proba do Recorrente BB ao avançar com o recurso de apelação, nele reiterando a invocação da prescrição, questão que já antes fora decidida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em anterior recurso tendo por objecto precisamente tal excepção peremptória (cfr. acórdão de fls. 215 a 222, 2º volume). E também se apresenta óbvia a responsabilidade pessoal e directa da sua Mandatária, subscritora de tal peça processual, na medida em que ao elaborá-la não podia ignorar que a anterior decisão do Tribunal da Relação de Guimarães havia transitado em julgado e era já imodificável.
Refuta-se, assim, e não se acolhe a retórica argumentativa tecida pelos Recorrentes tendente ao afastamento da sua responsabilidade pelo arrastamento do processo, repristinando questão já definitivamente decidida. É que também na lide processual as partes devem comportar-se como é de esperar de uma pessoa honrada, de uma pessoa de bem, o que não sucedeu com o Recorrente BB.
Na verdade, em vez de assumir a sua responsabilidade pelo reembolso das quantias suportadas pelo Fundo de Garantia Automóvel, por ter omitido a sua obrigação de transferir para qualquer Seguradora a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros, com a circulação do seu veículo, avançou com o processo para recurso, protelando, por um lado, a execução desse reembolso e, por outro, sobrecarregando desnecessariamente o aparelho judiciário com a reapreciação da questão da prescrição já antes debatida e decidida, com trânsito em julgado.
Essa sua atitude encerra óbvio comportamento desvalioso e entorpecedor da realização da justiça, merecendo ser sancionado como litigante de má fé, como ajuizou o Tribunal da Relação de Guimarães.”
Sem renunciar à perspetiva de exigência de seriedade, pelas partes, no exercício do seu direito de acesso aos tribunais, tanto enquanto demandantes como enquanto demandadas, pensamos que é de manter o entendimento, versado no acórdão do STJ, de 06.7.2023, processo n.º 2186/18.9T8STS-A.P1.S1, de que “má-fé não se confunde com a improcedência do pedido por diferente interpretação e aplicação dos preceitos legais aos factos em análise, nem pode ser entendido como litigância de má-fé a defesa convicta e séria de determinada interpretação das normas legais ainda que essa posição não convença nem seja, no entendimento do julgador, a mais correcta juridicamente”.
Também não olvidamos o que se ponderou no acórdão do STJ, de 09.3.2021, processo n.º 528/16.0T8VNG.S1.P1.S1: “os instrumentos processuais utilizados pela recorrente (o recurso de revista e a reclamação para a conferência) estão previstos na lei e a circunstância de o recurso de revista não ser admissível e de a reclamação ser indeferida, por falta de fundamentos, não dá lugar automaticamente a uma condenação por litigância de má fé. A litigância de má-fé exige que quem pleiteia tenha a consciência de não ter razão, embora não se exija o conhecimento efetivo, mas apenas que seja exigível o conhecimento da falta de fundamentação da sua pretensão. A defesa convicta de uma perspetiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do artigo 542.º do CPC, admitindo a lei uma vasta amplitude ao direito de ação ou de defesa”.
Revertendo ao caso destes autos, poderá dizer-se, com razoável certeza, que com esta reclamação os reclamantes deduziram pretensão cuja falta de fundamento não podiam ignorar, assim desviando este alto tribunal da apreciação de litígios legitimamente solicitada por outras partes, fazendo protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão final da ação?
Pensamos que este caso se encontra no limiar da postura processual que, (aqui se reproduzindo os termos utilizados pelo STJ no acórdão de 26.11.2019, processo n.º 7413/14.9T8LRS.S1) se pode “reconduzir apenas a uma elevada insatisfação e inconformismo, com idêntico nível de litigiosidade, dentro de um quadro de normalidade em caso de litígio judicial”.
Em suma, entendemos que a reclamação ora em análise não ultrapassa manifestamente os limites da utilização legítima dos instrumentos processuais proporcionados pela lei às partes (sem prejuízo do decaimento dos reclamantes) – pelo que não se condena os reclamantes como litigantes de má-fé.
4. Subsidiariamente à condenação dos reclamantes por litigância de má-fé, a reclamada requereu a condenação dos reclamantes em taxa de justiça sancionatória, nos termos do art.º 531.º do CPC. Os reclamantes responderam, rechaçando tal pretensão.
O art.º 531.º do CPC tem a seguinte redação:
“Taxa sancionatória excecional
Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excecionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a ação, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida”.
Como se afere no acórdão do STJ, de 18.01.2022, proc. n.º 2600/17.0T8LSB-B.L1.S1, “É pressuposto da aplicação da taxa sancionatória excecional, nos termos do artigo 531º do CPC, que o processado revele a presença de pretensões formuladas por um sujeito processual que sejam manifestamente infundadas, abusivas e reveladoras de violação do dever de diligência, e que deem azo a uma atividade processual inútil”.
Nesse quadro, nos termos da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, por exemplo, do Acórdão de 18.12.2019 (proc. n.º 136/13.8JDLSB.L2-A.S1), “III - Somente em situações excepcionais em que o sujeito aja de forma patológica no desenrolar normal da instância, ao tentar contrariar ostensivamente a legalidade da sua marcha ou a eficácia da decisão praticando acto processual manifestamente improcedente é que se justifica a aplicação da taxa sancionatória – por isso chamada – excepcional. IV – A taxa sancionatória excepcional poderá/deverá ser aplicada somente quando o acto processual praticado pela parte seja manifestamente infundado, tendo ainda a parte revelado nessa prática falta de prudência ou de diligência, a que estava obrigada, assumindo o acto um carácter excepcionalmente reprovável, por constituir um incidente anómalo, um desvio acentuado e injustificado à tramitação regular e adequada do processo”.
Assim, justificar-se-á o excecional agravamento da taxa de justiça se, por exemplo, os recorrentes interpõem recurso de apelação de um despacho que não admite recurso nem é impugnável pelas partes, nos termos do artigo 641.º, n.º 5, do CPC e pretendem continuar a discutir no Supremo Tribunal de Justiça uma questão que manifestamente não pode ser objeto de recurso de revista - nesse caso, estão a utilizar um instrumento processual anómalo, patológico e manifestamente improcedente, violando regras de diligência ou de prudência básicas, adotando um comportamento processual que, mesmo que não revele má fé, deve ser objeto de censura, por implicar uma atividade judiciária inútil (cfr. citado acórdão do STJ, de 18.01.2022).
Ou seja, em contraponto, o STJ tem entendido que “desde que o instrumento de impugnação utilizado esteja previsto na lei e seja habitual na prática judiciária, não há lugar à aplicação desta taxa, reservada para o recurso a instrumentos anómalos e patológicos, fora do desenrolar normal do processo, conforme se decidiu nos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 18-01-2022 (proc. N.º 2600/17.0T8LSB-B.L1.S1) e de 07-06-2022 (proc. N.º 922/15.4T8PTM.E1.S1), mas não já na mera reclamação para a Conferência ainda que indeferida (Acórdão de 09-02-2021, proc. N.º 359/10.1TVLSB.L1.S1)” – citámos o acórdão do STJ, de 25.10.2022, processo n.º 22640/18.1T8LSB.L1.S1.
No caso a que se reportam estes autos, está-se perante reclamação de acórdão do STJ que, embora manifestamente improcedente, ainda se enquadra na habitual praxis forense, de recurso aos meios processuais disponíveis para, em última ratio, tentar obter um ganho processual que, de alguma forma, sirva os interesses, ainda legítimos, da parte atuante. Trata-se de atuação adjetiva que, não sendo merecedora, como acima se expôs, do juízo incriminatório de litigância de má-fé, também não se reveste da especial censurabilidade pressuposta pela aplicação da taxa sancionatória excecional.
Decide-se, pois, não aplicar aos reclamantes taxa sancionatória excecional.
III DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a reclamação improcedente.
Condena-se os reclamantes nas respetivas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 527.º n.º 1 e 2, tabela II do Regulamento das Custas Processuais).
Lisboa, 30.9.2025
Jorge Leal
António Magalhães
Henrique Antunes