CONTRATO DE MÚTUO
ENTREGA DA COISA
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário

Sumário:
I-O contrato de mútuo é, pela sua própria natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa com a entrega (empréstimo) da coisa.
II-O acordo de vontades no que toca aos elementos integradores de um contrato de mútuo, ainda que inclua o valor a mutuar e os termos e condições em que se irá processar a sua restituição, é insuficiente para a conclusão do contrato de mútuo e para a constituição da obrigação que dele emerge para o mutuário (de restituição da quantia mutuada), exigindo-se ainda a efectiva entrega da quantia mutuada ao mutuário.
III- O documento junto aos autos (no qual se baseia a execução), ainda que contenha os elementos integradores de um contrato de mútuo, ali designado como crédito clássico, não configura, só por si, um verdadeiro acordo de vontades, porquanto, como decorre das condições gerais dele constantes, o mutuante, após a recepção da minuta, reservava-se ainda o direito de confirmar ou recusar a concessão do crédito, ali se referindo expressamente que o contrato apenas se considerava concluído com a comunicação pelo mutuante da autorização de utilização do crédito.
IV-Não existe titulo executivo quando a Executada não ficou obrigado, com a assinatura do aludido documento, a pagar ao mutuante os valores que viesse a utilizar. Em primeiro lugar, porque, para que essa obrigação se constituísse era ainda necessário (como resulta expressamente das condições gerais) que o mutuante aceitasse a proposta de celebração do contrato do mútuo e, em segundo lugar, porque era necessário que a quantia em causa fosse efectivamente disponibilizada e entregue ao mutuário.
V- O documento dado à execução não contém qualquer declaração de aceitação da proposta por parte do mutuante que permita concluir pela efectiva formação e conclusão de um acordo de vontades a propósito dos elementos integradores do contrato de mútuo e não contém qualquer indicação de que o valor nele mencionado– ou qualquer outro – tenha sido, efectivamente, disponibilizado ao Executado e, como tal, o aludido documento é insuficiente para determinar a constituição da obrigação pecuniária que, por via da presente execução, se pretende exigir ao Executado.
VI-O documento em causa não importa a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação pecuniária da responsabilidade da Executada, pelo que, face ao disposto no art. 46º, nº 1, c), do anterior CPC, não constitui título executivo bastante para a persente execução

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:
No exercício da sua actividade, o BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. celebrou com AA e BB, em 11 de Março de 2010, um contrato de crédito, o qual junta como DOC. 3.
Alega o exequente que,
Nos termos do contrato descrito supra, foi efectivamente entregue aos mutuários a quantia de 17.055,96€ (dezassete mil e cinquenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos), a qual estaria prevista ser reembolsada em 60 (sessenta) prestações mensais e sucessivas de igual montante, à Taxa Anual Nominal de 19,300%, eventualmente acrescido, em caso de mora, de uma taxa de 4,000%.
Sucede que os Mutuários incumpriram os termos contratados, tendo entrado em incumprimento definitivo em 26 de Abril de 2013 e, como tal, foi o contrato sido resolvido com esse fundamento, com o consequente vencimento das prestações remanescentes e exigibilidade do montante total contratualizado ainda em falta, o qual se cifrava àquela data em 8.621,27€ (oito mil seiscentos e vinte e um euros e vinte e sete cêntimos).
Desta forma, persiste ainda em dívida, no âmbito desta responsabilidade, o montante de 32.198,01€ (trinta e dois mil cento e noventa e oito euros e um cêntimo), ao qual ainda acrescerão juros de mora até efectivo e integral pagamento, à taxa contratada, sendo o montante calculado da seguinte forma:
• Capital: 8.621,27€ (oito mil seiscentos e vinte e um euros e vinte e sete cêntimos)
• Juros Vencidos: 23.576,74€ (vinte e três mil quinhentos e setenta e seis euros e
setenta e quatro cêntimos).
Operou-se a favor do NOVO BANCO, S.A., nos termos das supra referidas actas, a transferência de direitos (e activos) e obrigações do Banco Espírito Santo, S.A. a favor deste banco de transição que, para os devidos efeitos legais e contratuais, sucedeu ex lege nos direitos (e activos) e obrigações daquele mais ficando investido na posição de credor de cada um dos créditos anteriormente detidos pelo Banco Espírito Santo, S.A.
Por contrato de cessão de créditos celebrado em 22 de Dezembro de 2018, o NOVO BANCO, S.A. e BEST – BANCO ELECTRÓNICO DE SERVIÇO TOTAL, S.A., cederam a favor de LX INVESTMENT PARTNERS II, S.À.R.L. diversos créditos, bem como todas as garantias e acessórios a ele inerentes, cfr. DOC. 1, ora junto, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Posteriormente, os créditos cedidos àquela entidade foram integralmente cedidos a favor da ora Exequente Scalabis-Stc, S.A., por Contrato de Cessão de Créditos, datado de 31 de Março de 2021, conforme documento que ora junta como DOC. 2 e aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos
os efeitos legais.
Ao abrigo dos contratos foi transmitido o crédito e todas as garantias associadas, cujo
cumprimento coercivo é peticionado nos presentes autos.
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Em sede liminar, foi proferido o seguinte despacho:
O título executivo dado à execução é um documento não autenticado datado de 2010, ou seja, anterior ao Código de Processo Civil de 2013, aplicando-se, por conseguinte, em matéria de títulos executivos, o regime em vigor à data da celebração do documento. Convida-se a exequente a vir, no prazo de dez dias, explicitar em que cláusula consta o reconhecimento da dívida, bem como comprovar a integração em PERSI e extinção desse procedimento, pronunciando-se, no mesmo prazo, sobre a falta de título executivo e falta da condição de procedibilidade respeitante ao PERSI.
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A Exequente SCALABIS – STC, S.A. veio responder, alegando que o Contrato junto aos autos é um Contrato de Mútuo, naturalmente, assinado pela Executada. O Contrato em questão prevê a quantia mutuada (efectivamente entregue) de 17.055,96€ (dezassete mil e cinquenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos).
Quanto à questão da integração em P.E.R.S.I., a mesma foi integrada conforme comunicação que ora se junta e se dá por integralmente reproduzida, para todos os efeitos legais – DOC. 1.
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Foi proferido novo despacho, com o seguinte teor:
A qualificação do contrato não vincula o intérprete. Para haver um contrato de mútuo tem de estar previsto no contrato a entrega efetiva do capital mutuado e/ou confissão de dívida. O regime do PERSI impõe que se prove o envio das missivas, bem como a notificação da extinção o que não foi junto aos autos. Assim, renovo o despacho anterior, concedendo o mesmo prazo de dez dias para a exequente se pronunciar sobre a falta de título executivo e da condição de procedibilidade inominada de falta de integração e extinção em PERSI.
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A Exequente não respondeu ao despacho que antecede.
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Foi então proferido o seguinte despacho:
O artigo 734.º do Código de Processo Civil determina que o juiz possa conhecer oficiosamente da questão da exequibilidade dos títulos. «O juiz pode conhecer oficiosamente […] das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo». Ora, entre as questões que poderiam ter determinado o indeferimento liminar, está a manifesta falta do título executivo — cf. artigo 726.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil. Em sentido similar, vide, por todos, ponto 28 do Ac. do STJ de 30.01.2025, processo n.º 1280/23.9T8VNF-B.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Por requerimento executivo de 17.01.2025, Scalabis - Stc, S.A. vem instaurar execução para pagamento de quantia certa contra AA. Deu à execução um documento particular denominado de “crédito ao consumo”, que aqui se dá por integralmente reproduzido. Nesse contrato, a executada não emitiu qualquer confissão de dívida. Na verdade, somente a última página vem assinada, não gozando as restantes de qualquer indício de ser o contrato firmado pela executada. As declarações escritas para valerem têm de estar assinadas. Mais, resultando da alegação da exequente que o contrato em causa foi um mútuo, teria de resultar do contrato ou de documento complementar que o capital mutuado foi efetivamente entregue à mutuária o que não sucede. Por seu turno, os créditos ao consumo, na medida em que estamos perante uma pessoa singular e não resulte que o crédito foi pedido para o exercício de atividade profissional, têm de ser previamente integrados em PERSI e extinto esse procedimento. Trata-se de atos que encerram declarações receptícias que carecem de ser demonstradas, mormente o seu envio quando são missivas escritas — cf.o Ac. do TRE de 16.01.2025, processo n.º 5372/18.8T8STB.E1, disponível em www.dgsi.pt. Isto é, no caso das comunicações previstas no Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro, estamos em presença de declarações negociais que só se tornam eficazes quando chegam ao poder dos destinatários ou deles são ou podiam ser conhecidas (artigo 224.º n.º 1 e 2 do Código Civil). Daí que se tenha convidado, por duas vezes, a exequente a juntar documentação em que houvesse confissão da dívida e se comprovasse o envio das referidas missivas. Igualmente se facultou à exequente o contraditório quanto à falta de título executivo e da condição de procedibilidade inominada de falta de integração e extinção em PERSI. A exequente nada veio alegar não tendo procedido à junção dos referidos documentos. Assim, é patente, salvo melhor opinião, que não se verifica título executivo para efeitos da alínea c) do artigo 46.º do Código de Processo Civil na redação anterior a 2013, bem como se verifica a condição de procedibilidade inominada de falta de integração e extinção em PERSI.
Face ao exposto, absolve-se a executada da instância por falta de título executivo e, subsidiariamente, por verificação da condição de procedibilidade inominada de falta de integração e extinção em PERSI.
Custas pela exequente, fixando-se o valor da ação no montante indicado no requerimento executivo como estando em dívida — artigo 297.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
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Inconformado com o teor da decisão, dela interpôs recurso a exequente, concluindo da forma seguinte:
A.O presente recurso de apelação tem por objeto o despacho proferido em 25 de Fevereiro de 2025, no processo que corre termos pelo Juízo de Execução do Funchal - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, que indeferiu liminarmente o Requerimento Executivo apresentado pelo Recorrente, considerando inexistir título executivo.
B. Primeiramente, o Recorrente considera nula a decisão que, com base no art.º 726.º, n.º 2, a), erroneamente, determinou o indeferimento liminar do Requerimento Executivo.
C. Efectivamente, do alegado no Requerimento Executivo não resulta, de forma indubitável, a inviabilidade da acção, a ineptidão do Requerimento Executivo, ou qualquer outra falta de pressupostos processuais que se afigure insanável.
D. Desse modo, não se afigura, em face do alegado e da documentação junta, que seja manifesta a ausência de título.
E. Ainda que assim não se entendesse, tão-pouco é lícito concluir-se, sem mais, pela inexistência de título, contrariamente ao que decidiu o Tribunal a quo.
F. Com efeito, em face da alegação dos factos constitutivos da obrigação exequenda, a junção do próprio título executivo, pode ser (ou deveria ser), pelo menos, equacionada a (grande) probabilidade de haver sido efectivamente entregue a quantia mutuada, se é que já não o é em face do título, como, aliás, entendemos. Todos os factos invocados (pelo menos), indiciam nesse sentido.
G. Ainda assim não se absteve o Tribunal a quo de decidir pelo indeferimento liminar do Requerimento Executivo.
H. Conclui, sem mais, que, inexistindo menção expressa à efectiva disponibilização da quantia mutuada, inexiste título executivo.
I. E, portanto, em violação do disposto nos artigos 411.º e 726.º, n.º 4, ambos do C.P.C., por não ter o Tribunal a quo diligenciado suficientemente pela descoberta da verdade material, dentro dos poderes que lhe são conferidos.
J. Como tal, está em causa a nulidade da decisão tomada, com base no art.º 195.º, também do C.P.C., conjugado com o disposto nos artigos mencionados no ponto antecedente.
K. Os normativos violados impõem que o Juiz desenvolva todas as diligências tendentes à boa decisão da causa, tendo sempre por referência a verdade material, privilegiando a substância da decisão, sobre aspectos formais.
L. Impunha-se, assim, no mínimo e segundo os normativos invocados, um convite ao aperfeiçoamento (a letra do próprio art.º 726.º, n.º 4 do C.P.C. o refere) dirigido ao Recorrente, no sentido de densificar os factos que permitem concluir pela entrega do montante mutuado, comprovando-o, sanando, assim, as dúvidas suscitadas no Tribunal a quo, ao invés de proceder ao indeferimento liminar do Requerimento Executivo, considerando a inaplicabilidade, neste caso, do art.º 726.º, n.º 2, b) do C.P.C.
M. Com efeito, se o que pretende o Tribunal a quo é que deveríamos encontrar-nos perante um título complexo, tendo sido junto o próprio Contrato, poderia e deveria ter diligenciado junto do Recorrente pela junção da demais documentação a este respeito, entendendo que a que foi junta esteja incompleta.
N. Não tendo dado cumprimento a tal, forçoso é, uma vez mais, concluir pela nulidade da decisão, de acordo com o artigo 195.º do C.P.C.
Acresce que,
O. Julga também a Recorrente terem sido incorrectamente valorados os factos alegados em sede de Requerimento Executivo, que em circunstância alguma, em nosso entendimento, poderiam ter conduzido à decisão tomada.
P. Ora, a verdade é que o despacho parece configurar a questão levantada como um problema de inexistência de título.
Q. O Contrato em questão constitui título executivo, atendendo à data de celebração do mesmo, na vigência da norma preceituada no art.º 46.º do C.P.C. de 1961, tendo sido declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da aplicação da norma constante do art.º 703.º do N.C.P.C. aos títulos executivos constituídos anteriormente à data da sua entrada em vigor.
R. Decisão motivada pela necessidade de tutela da confiança e segurança jurídica pela parte dos Credores que, à data, dispusessem de título executivo a seu favor e que, por força da alteração legislativa, veriam os Contratos celebrados até então arredados da categoria de títulos executivos.
S. A aplicação retroactiva da alteração legislativa, nos moldes em que foi realizada, a Contratos (documentos particulares) já constituídos à data da sua entrada em vigor (e que, portanto, eram títulos executivos), determinaria uma restrição injustificada e até inconstitucional, como se veio a decidir, dos direitos dos Credores.
T. Todos os elementos que permitem aferir pela existência e validade do título constam do próprio, designadamente, resulta claro o reconhecimento de constituição duma obrigação por parte dos Recorridos, obrigando-se ao reembolso do capital mutuado, mediante o esquema contratual acertado pelas partes e, bem assim, a disponibilização do capital mutuado.
U. Ainda que não constassem, ou constassem apenas indirectamente em face do título, a verdade é que todos esses elementos resultam elencados em sede de Requerimento executivo, estando concretizados os factos essenciais constitutivos da relação jurídica que funda o Contrato de Mútuo e, por isso, a existência, validade e suficiência deste enquanto título executivo
V. Note-se, aliás, a menção no Requerimento Executivo de que a quantia mutuada foi efectivamente entregue.
W. Tais factos aliados ao reconhecimento claro da constituição de tal obrigação, não podemos aderir a tese prestada pelo Tribunal a quo.
X. Por outro lado, todos os factos indiciam, ainda que tacitamente, no sentido da disponibilização, ou entrega efectiva da quantia mutuada aos Recorridos, como seja o facto do contato haver vigorado durante cerca de três anos e terem sido realizados, durante esse período, pagamentos, o que se evidencia, ainda que de forma indirecta, por haver sido abatidos montantes ao capital mutuado.
Y. Continuando, também, salvo melhor opinião, não é correcta a exigência de rúbricas em todas as páginas do Contrato.
Z. Quanto à forma dos Contratos de Mútuo, regem os artigos 1143.º do C.C. e a norma única do Decreto-Lei 32765, de 29 de Abril, sendo certo que nenhuma dispõe no sentido dessa particular exigência, apenas exigindo que o Contrato seja reduzido a escrito, naturalmente, assinado pelo Mutuário.
AA. No caso dos autos, apesar da falta de rubricas todas as folhas que o constituem integram o mesmo Contrato que se encontra assinado no campo próprio.
BB. Pelo que se conclui que, também neste aspecto, o Contrato é completamente regular.
CC. Já quanto ao P.E.R.S.I., contrariamente ao decidido, verifica-se o cumprimento do disposto no Decreto-Lei 227/2013.
DD. Efectivamente, consta dos autos a integração em P.E.R.S.I. em 15 de Janeiro de 2013.
EE. Sendo certo que, conforme é possível pela análise do documento, o mesmo foi enviado por correio simples massificado, com a aposição do código de leitura óptica, aquando do envio, pelos CTT.
FF. Lógico se torna, pois, concluir que tal comunicação foi efectivamente enviada pelo Cedente.
GG. O Decreto-Lei 227/2012 apenas exige que as comunicações em cada processo individual de P.E.R.S.I. conste de suporte duradouro (como constam).
HH. Não sendo exigido o envio por uma forma particular de correio, como parece exigir o Despacho recorrido, nomeadamente, registado, com aviso de recepção.
II. Por outro lado, o art.º 20.º, n.º 2 do já amplamente citado Decreto-Lei, dispõe que as instituições de crédito devem manter a documentação constante de cada processo individual pelo prazo de cinco anos, após a extinção do P.E.R.S.I.
JJ. Considerando que a integração se deu em Janeiro de 2013 e não foi possível chegar a qualquer acordo, no prazo previsto de noventa dias, extinguindo-se o procedimento com tal fundamento, já se encontra decorrido, há muito, o prazo de cinco anos durante os quais é exigível à instituição manter a documentação em apreço.
KK. Pelo que, de todo o modo, ainda que pudessem tais comunicações haver sido remetidas por correio registado com aviso de recepção, tais registos poderiam já não constar do lote de documentação do Cedente, quanto a este crédito em particular, desde logo por já não ser exigível que o conservasse em seu poder.
LL. Assim, é justo afirmar que existem fortes indícios, ou, pelo menos, princípios de prova quanto ao cumprimento do regime imposto pelo Decreto-Lei 227/2012, pelo que não deveria ter ocorrido o indeferimento liminar do Requerimento Executivo, também com esse fundamento.
Nestes termos e nos demais de Direito, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá obter provimento o presente recurso e, em consequência, revogada o Despacho do qual ora se recorre, substituindo-se este, por decisão que venha ordenar o prosseguimento da execução.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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QUESTÕES A DECIDIR:
-Da nulidade da decisão nos termos do art.195º do CPC.
-Da falta do titulo executivo.
-A existir titulo executivo, da falta de integração no PERSI-Consequências.
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FUNDAMENTAÇÃO:
A)-DE FACTO:
Os factos que constam do relatório supra.
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DE DIREITO:
A Apelante vem arguir a nulidade da decisão recorrida, por ter sido proferida sem prévio despacho de aperfeiçoamento solicitando os documentos em falta.
Desde logo, a nulidade a que se refere o art.195º do CPC é uma nulidade processual que que resulta do desrespeito pelo princípio do contraditório ou da preterição de outras formalidades que a lei prescreve, e que visa evitar as chamadas decisões-surpresa, garantindo a todos os intervenientes a possibilidade de exercer o seu direito de defesa e de pronunciar sobre factos e fundamentos de facto e de direito.
Como refere o brocado latino das decisões recorre-se e das nulidades arguem-se no processo para visar obter uma decisão, esta sim objecto de recurso.
Dai que não se vislumbre que a decisão em causa viole o disposto no art.195º do CPC.
Quanto ao alegado recurso a um despacho de aperfeiçoamento, na senda da jurisprudência indicada pela Apelante, cabe referir que o Sr. Juiz do Tribunal a Quo foi cauteloso e proferiu dois despachos de aperfeiçoamento, visando justamente permitir à exequente sanar qualquer vicio e evitar uma decisão surpresa.
Estas oportunidades não foram aproveitadas pelo que é extemporâneo vir agora solicitar a este tribunal de recurso que ordene ao tribunal de 1ª instância a prolação de despacho de aperfeiçoamento no sentido de permitir à Apelante juntar os documentos em falta.
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Conforme preceitua o art. 45º do anterior CPC –diploma aqui aplicável, na senda do decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015 que declara com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, - toda a execução tem, por base um título, através do qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.
E, enunciando os documentos que podem servir de base à execução e que, como tal, constituem título executivo, dispõe o art. 46º, nº 1, na sua alínea c) – única que releva aqui por ser evidente que o documento aqui em causa não se integra em nenhuma das outras alíneas – que podem servir de base à execução “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.
O documento dado à execução é, indiscutivelmente, um documento particular que está assinado pela Executada (pretensa devedora) e, portanto, o que importa saber é se esse documento importa ou não o reconhecimento ou a constituição de uma determinada (ou determinável) obrigação pecuniária.
O aludido documento é um contrato de crédito ao consumo que, numa das páginas, contém as respectivas condições gerais, sendo que noutra página e a propósito daquilo que se designa por “condições particulares do crédito clássico”, alude ao montante do crédito ( 17. 055,96€ (dezassete mil e cinquenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos), a qual estaria prevista ser reembolsada em 60 (sessenta) prestações mensais e sucessivas de igual montante, à Taxa Anual Nominal de 19,300%, eventualmente acrescido, em caso de mora, de uma taxa de 4,000%.
Além da data, do nº do contrato, do nº do parceiro, ali se mencionam os dados do cliente, contendo ainda o nº conta de depósitos à ordem e a assinatura final da Executada no sentido de aceitar o contrato, conhecendo as respectivas condições gerais.
Como vem sendo entendido e como se refere, designadamente, no Acórdão do STJ de 25/01/2011, proferido no processo nº 4033/05.2TVLSB.L1.S1 e disponível em http://dgsi.pt “…o mútuo é, pela sua própria natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa com a entrega da coisa…” sendo que o legislador, mantendo-se fiel à doutrina romanista, “…continua a considerar a tradição como um elemento constitutivo do próprio contrato real em si, e não apenas como condição de eficácia do contrato já existente, não se tratando da execução do acordo, do cumprimento da obrigação, mas antes da existência do próprio contrato”.
Isso mesmo referem Pires de Lima e Antunes Varela quando dizem, in Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed. Revista e Actualizada, pág. 680 que “…o mútuo é, de sua natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa pela entrega (empréstimo) da coisa”, pronunciando-se no mesmo sentido Inocêncio Galvão Telles, in Manual dos Contratos em Geral, 3ª ed., 1965, págs. 380 e 381.
Significa isto, portanto, que o acordo de vontades no que toca aos elementos integradores de um contrato de mútuo, ainda que inclua o valor a mutuar e os termos e condições em que se irá processar a sua restituição, é insuficiente para a conclusão do contrato de mútuo e para a constituição da obrigação que dele emerge para o mutuário (de restituição da quantia mutuada), exigindo-se ainda a efectiva entrega da quantia mutuada ao mutuário.
Com efeito, caracterizando os contratos reais, diz Inocêncio Galvão Telles, in Ob. Cit., pág. 380., que “…são aqueles para cuja validade se exige, além dos requisitos comuns a todos os contratos, outro que consiste na transferência da posse – na datio rei. Sem essa transferência o contrato não está constituído: não é válido e, portanto, não produz efeitos”, acrescentando mais adiante que “na definição legal destes contratos, mais ou menos nitidamente, transluz a ideia constante de que é necessária à sua válida formação a transferência da posse, de um contraente para outro, do objecto respectivo”. De facto – diz o citado autor – impõe-se ao mutuário a obrigação de restituir mas não se impõe à outra parte a obrigação de entregar, como teria que acontecer se o contrato se formasse antes e independentemente da entrega e, portanto, se a entrega da quantia mutuada não se dá no cumprimento de uma obrigação que a lei não consigna como efeito do contrato, ela operará necessariamente como requisito de validade ou eficácia do acordo celebrado.
Assim, porque a obrigação a cargo do mutuário só existe se e quando a coisa mutuada lhe for entregue e porque a obrigação de entrega a cargo do mutuante não está definida na lei como obrigação decorrente do contrato, ter-se-á que concluir que o contrato de mútuo apenas se considera concluído com a entrega da coisa ao mutuário e que a obrigação de restituição a cargo deste apenas se constitui no momento em que a coisa lhe for entregue, sendo, para tanto, insuficiente o acordo de vontades relativamente aos elementos integradores do negócio.
O documento junto aos autos (no qual se baseia a execução), ainda que contenha os elementos integradores de um contrato de mútuo, ali designado como crédito clássico, nem sequer chegará a configurar, só por si, um verdadeiro acordo de vontades, porquanto, como decorre das condições gerais dele constantes, o mutuante, após a recepção da minuta, reservava-se ainda o direito de confirmar ou recusar a concessão do crédito, ali se referindo expressamente que o contrato apenas se considerava concluído com a comunicação pelo mutuante da autorização de utilização do crédito. Dizendo-se expressamente nas aludidas condições gerais que “esta proposta é válida pelo prazo de 30 dias desde a data da sua assinatura pelo Mutuário e poderá converter-se em contrato nos termos seguintes:…”, parece claro que o aludido documento configura apenas uma proposta de contrato que o mutuante poderia aceitar ou recusar, proposta essa que só se converteria em contrato, com a respectiva aceitação por parte do mutuário que seria corporizada na comunicação de autorização de utilização do crédito e a partir da qual o contrato se consideraria concluído (como se diz expressamente nas aludidas condições gerais).
Na cláusula 15 das condições gerais, pode ler-se o seguinte:
Efeitos do contrato:
15.1. O contrato está sujeito à condição suspensiva da verificação final dos documentos de instrução do Crédito por parte dos serviços competentes do BES, tornando-se eficaz na data em que o Crédito venha a ser disponibilizado na conta D/O.
15.2.O presente Contrato está sujeito ao termo resolutivo da não efectivação do Crédito na Conta D/O após o decurso de 20 dias sobre a data da sua assinatura por parte do cliente, ou de 30 dias, caso o presente Contrato tenha sido celebrado através do telefone.
Perante tais condições, e não resultando de qualquer documento a efectiva disponibilização do montante referido na conta de D/O, não se pode dizer que o documento em causa configure a efectiva conclusão de um acordo de vontades das partes envolvidas –sendo insuficiente para que se considere concluído o contrato de mútuo e para que se considere constituída a obrigação – a cargo do mutuário – de restituir o valor mutuado, já que, como referimos supra, para que tal acontecesse, era ainda necessário que o mutuante entregasse efectivamente ao mutuário a quantia em causa.
O documento em causa não contém qualquer indicação no sentido de essa quantia ter sido já disponibilizada à mutuária (aqui Executada) e, ainda que indique o número e o valor das prestações através das quais a mutuária iria proceder à restituição, não contém sequer a data em que teria início o pagamento dessas prestações (o que, aliás, está em conformidade com as condições gerais a que acima aludimos, das quais resultava que o mutuante ainda teria que aceitar a proposta – tendo, naturalmente, a possibilidade de a recusar –, autorizando a utilização do crédito).
Com efeito, a referência ao dia 25 como data de pagamento não pode reportar-se ao momento inicial, atento o indicado prazo de 20 dias configurado na condição resolutiva e o facto de o contrato ter sido assinado em 11/3/2010.
Conjugando estas duas datas, o pagamento não poderia suceder antes do dia 31 de Março.
Logo, o dia 25 ali referido é uma indicação genérica da data do pagamento, não configurando a data inicial do pagamento das prestações.
Assim, ao contrário do que sustenta a Apelante, a Executada não ficou obrigado, com a assinatura do aludido documento, a pagar ao mutuante os valores que viesse a utilizar. Em primeiro lugar, porque, para que essa obrigação se constituísse era ainda necessário (como resulta expressamente das condições gerais) que o mutuante aceitasse a proposta de celebração do contrato do mútuo e, em segundo lugar, porque era necessário que a quantia em causa fosse efectivamente disponibilizada e entregue ao mutuário. Refira-se que, ao contrário do que afirma a Apelante, nas suas alegações, o documento em causa não evidencia e nem sequer faz presumir que o capital tenha sido entregue à Executada no momento da assinatura do contrato, porquanto o que dele resulta – designadamente das condições gerais – é que, após essa assinatura, a mutuante ainda teria que aceitar (ou recusar o contrato) e que, só com essa aceitação, seria autorizada a utilização do crédito.
O documento dado à execução não contém qualquer declaração de aceitação da proposta por parte do mutuante que permita concluir pela efectiva formação e conclusão de um acordo de vontades a propósito dos elementos integradores do contrato de mútuo e não contém qualquer indicação de que o valor nele mencionado– ou qualquer outro – tenha sido, efectivamente, disponibilizado ao Executado e, como tal, o aludido documento é insuficiente para determinar a constituição da obrigação pecuniária que, por via da presente execução, se pretende exigir ao Executado.
Neste sentido se decidiu, aliás, no Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2000, Com o nº convencional JTRP00031057, disponível em http://www.dgsi.pt em cujo sumário se lê que “um contrato de crédito ao consumo em que não conste que o montante do crédito concedido tenha sido efectivamente entregue ao vendedor não pode servir de título executivo”, bem como no Acórdão da Relação de Coimbra de 17/12/2014 proferido no processo nº 295/13.0TBPNI-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt e no Acórdão da Relação de Guimarães de 15/09/2014 proferido no processo nº 1380/12.0TBEPS-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt..
E, se é certo que o aludido documento não incorpora, só por si, a constituição de qualquer obrigação pecuniária a cargo do Executado, é igualmente certo que não foi junto aos autos qualquer outro documento que, conjugado com o primeiro, permita concluir pela efectiva constituição da obrigação que está aqui a ser exigida.
Importa notar, por outro lado, que, além de não importar – pelas razões que aduzimos – a efectiva constituição de uma obrigação pecuniária a cargo do Executado, o documento em que se fundamenta a execução também não incorpora uma qualquer declaração deste que possa ser entendida como reconhecimento da existência de tal obrigação (e nem faria sentido que existisse tal declaração, porquanto, como decorre claramente do aludido documento e, designadamente, das condições gerais que nele são exaradas, no momento em que o Executado apôs a sua assinatura, o valor mutuado ainda não lhe havia sido entregue, na medida em que a conclusão do contrato estava ainda dependente de aceitação do mutuante e da autorização que este haveria de conceder para a utilização do crédito).
(Em sentido próximo, cfr o Ac. da RC de 1-12-2015, Proc. nº 325/12.2TBTBU.C1, Relatora Catarina Gonçalves, publicado in www.dgsi.pt).
Refere a Apelante que todos os factos indiciam, ainda que tacitamente, no sentido da disponibilização, ou entrega efectiva da quantia mutuada aos Recorridos, como seja o facto do contato haver vigorado durante cerca de três anos e terem sido realizados, durante esse período, pagamentos, o que se evidencia, ainda que de forma indirecta, por haver sido abatidos montantes ao capital mutuado.
Não é o facto de a Exequente vir peticionar um montante inferior ao constante do aludido contrato de crédito ao consumo que permite concluir pela plenitude dos efeitos deste.
Na verdade, a aposição no requerimento executivo do valor em divida de 8.621,27€ de capital, desacompanhado de outros documentos, não permite concluir no sentido desejado porque se trata de uma mera referência da Exequente.
Tal como a referência no requerimento executivo à entrega da quantia acordada, sem estar acompanhada de qualquer suporte documental.
Concluímos, portanto, que o documento em causa não importa a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação pecuniária da responsabilidade da Executada, pelo que, face ao disposto no art. 46º, nº 1, c), do anterior CPC, não constitui título executivo bastante para a persente execução.
Em face da decisão supra fica prejudicada a apreciação da excepção inominada da falta de falta de integração no PERSI.
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DECISÃO:
Nos termos vistos, acordam os Juízes da 8ª Secção em julgar improcedente a apelação, mantendo o despacho recorrido.
Custas a cargo da Apelante.
(Esta decisão foi elaborada pela Relatora e por ela integralmente revista)

Lisboa, 11 de setembro de 2025
Amélia Ameixoeira
Ana Paula Duarte Olivença
Maria Teresa Lopes Catrola