DECISÃO SINGULAR
RECLAMAÇÃO
Sumário


I. A natureza urgente do processo penal decorre de um dos crimes do concurso que constituem o seu objeto ter essa natureza.
II. O prazo para a interposição de recurso em processo no qual o arguido foi condenado por crime de violência doméstica corre todos os dias da semana e também nas férias judiciais.

Texto Integral


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I - Relatório:

O arguido AA foi condenado em 1.ª instância pela prática, em concurso efetivo, dos seguintes crimes: -----

- um crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), e n.ºs 4 e 5, do CP, na pena de 3 anos de prisão, bem como na pena acessória de proibição de contacto com a BB, pelo período de 3 anos.

- dois crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2 do DL 2/98 de 03.01, na pena de 6 meses de prisão, por cada um.

E, em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 4 anos de prisão, declarando-se perdoado 1 ano de prisão, a incidir sob a pena única aplicada.

Não se conformando, recorreram o Ministério e o arguido para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 12 de março de 2025, julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido e parcialmente procedente o recurso do Ministério Público, decidindo:

“1. Determinar a alteração da matéria de facto provada e não provada (…)

2. Revogar o acórdão recorrido condenando o arguido AA pela prática:

- como autor material, de um crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º n.º 2, al. a) em 5 (cinco anos) de prisão;

- como autor material, pelo um crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º n.º 1 e n.º 3 do CP, em 2 (anos) e 6 (seis) meses de prisão;

- em cúmulo jurídico, entre estas penas e aquelas em que foi condenado no Acórdão Recorrido – pela prática dos crimes de violência doméstica (…) e de condução sem habilitação legal (…) – condenar o arguido na pena única de 7 (sete) anos de prisão efetiva e na pena acessória de proibição de contactar com a BB, pelo período 3 (três) anos.”

Inconformado, interpôs o arguido AA recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Recurso que não foi admitido por despacho de 15 de maio de 2025, que se reproduz:

“O prazo para interposição de recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação do acórdão – art.º 411.º, n.º 1 e 425.º do Código de Processo Penal.

Ora, o acórdão em causa foi notificado ao arguido por carta registada enviada em 13/3/2025 - cfr-. Fls. 508-, presumindo-se realizada a 17/3/2025.

Diz-nos o artigo 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro que:

“1 - os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos”.

2 - a natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do CPP.”

Desta forma como o recurso só deu entrada no dia 27/4/2025, mostrava-se esgotado o prazo de 30 dias do art.º 411.º, n.º 4, do CPP.

Por conseguinte, o recurso foi interposto fora de tempo.”

O recorrente apresentou reclamação do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, invocando, em síntese, que o fundamento do não recebimento do recurso foi a intempestividade da sua interposição, considerando-se ultrapassado o prazo de 30 dias úteis previsto no artigo 411.º, n.º 1 do CPP, padecendo o despacho reclamado de erro de julgamento quanto ao cômputo do prazo.

Mais refere, que a natureza urgente dos processos por violência doméstica é reconhecida nos termos do artigo 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, não eliminando tal urgência a contagem dos prazos em dias úteis para efeitos de recurso, afastando apenas a suspensão dos prazos durante as férias judiciais e feriados, nos termos do artigo 103.º, n.º 2 do CPP, obedecendo ao regime do artigo 411.º, n.º 1 do CPP, ou seja, 30 dias úteis a contar da notificação do acórdão.

Acrescenta que, a notificação se presumiu realizada em 17 de março de 2025, e começando a contagem a partir de 18 de março de 2025, o 30.º dia útil, corresponde ao dia 27 de abril de 2025 precisamente o dia em que o recurso foi interposto, pelo que a sua apresentação foi tempestiva.


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Cumpre decidir

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II - Fundamentação:

1. No caso em apreço, a questão que vem posta prende-se com a tempestividade do recurso interposto, e apenas dela cabe aqui conhecer.

Dispõe o artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que “os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos”, e no n.º 2 do mesmo artigo estabelece-se que “a natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do CPP”.

O artigo 103.º, n.º 2 do CPP estabelece o regime da prática dos atos urgentes no processo penal, decorrendo que se praticam todos os dias da semana e também durante as férias judiciais. Completando o art.º 104.º n.º 2 do CPP que correm em férias os prazos relativos a processos urgentes-

Destarte, o prazo para interpor recurso em processo penal por crime de violência doméstica “corre” durante o período de férias judiciais, face ao disposto no preceito adjetivo citado conjugado com o artigo 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.

O vertente processo tem, ex lege, natureza urgente em que os prazos para a prática de quaisquer atos processuais são contínuos, correndo também nas férias judiciais - artigo 28.º da referida Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e artigo 193.º n.º 2 al.ª h) do CPP. que decorre da circunstância de um dos crimes que constituem o seu objeto ser um crime de violência doméstica. Assim, os atos processuais que no mesmo se tenham de praticar consideram-se, por determinação legal expressa, de natureza urgente, correndo os prazos continuadamente, mesmo nas férias judiciais.

Assim:

2. O acórdão recorrido, datado de 12 de março de 2025, foi notificado à mandatária do arguido por via eletrónica no dia seguinte (13 de março).

De acordo com o disposto no artigo 113.º, n.º 12, do CPP, a notificação presume-se efetuada no 3.º dia útil posterior ao do envio, quando seja útil, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja; daí que, no caso, se considere efetuada no dia 17 de março.

Assim, como o prazo para a interposição de recurso é de 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, contados a partir do dia 17 de março, verifica-se que o mesmo terminou no dia 16 de abril de 2025, tendo em conta que o prazo para a interposição do recurso não se suspendeu durante o período de férias judiciais da Páscoa.

Um dos pressupostos formais da admissão de qualquer recurso é a apresentação do requerimento de interposição – que tem de conter a motivação - no prazo legalmente estabelecido ou, quando previsto, no judicialmente concedido.

No caso, como o requerimento de interposição de recurso foi apresentado em 27 de abril de 2025, decorre que a sua apresentação foi intempestiva, com consequente inadmissibilidade do recurso interposto.


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III - Decisão:

3. Pelo exposto, indefere-se a reclamação, deduzida pelo arguido AA.

Custas pelo reclamante fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.

Notifique-se.


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Lisboa, 4 de julho de 2025

O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Nuno Gonçalves