I. Não admite recurso acórdão da Relação proferido em recurso que, diminuindo o número de crimes por que o arguido vinha condenado, confirma e aplica penas parcelares e única não superior a 5 anos de prisão.
II. Nulidades de acórdão da Relação proferido em recurso não são pressuposto de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
III. As nulidades imputadas ao acórdão que não seja recorrível arguem-se perante o próprio tribunal que o proferiu.
I - Relatório:
O arguido AA foi condenado em 1.ª instância pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, dos seguintes crimes:
- um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelo artigo 171.º, n. º 3, alínea b), do Código Penal, na redação da Lei 59/2007, de 04.09, na pena de 10 meses de prisão.
- um crime de coação agravada tentada, p. e p. pelo artigo 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 11 meses de prisão.
- duzentos e vinte crimes de pornografia de menores agravado, p. e p. pelo artigo 176.º, n. º 1, alínea b) e n.º 5, do Código Penal, na pena de 11 meses de prisão por cada.
E, em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 5 anos de prisão.
Não se conformando recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 9 de Abril de 2025, revogou a sentença recorrida na parte referente à condenação do arguido em 220 crimes de pornografia de menores, condenando-o: --------
- na pena de 9 meses de prisão pela prática de um crime de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4 do Código Penal (na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro);
- na pena de 11 meses de prisão por cada um dos 7 crimes de pornografia de menores p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do Código Penal;
- na pena de 10 meses de prisão por cada um dos 4 crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do Código Penal.
E, em cúmulo jurídico destas penas com as penas de 10 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado e de 11 meses de prisão, pela prática de um crime de coação agravada tentada, o arguido ficou condenado na pena única de 5 anos de prisão.
Notificado do acórdão, o arguido AA apresentou requerimento em 6 de maio de 2025, arguindo nulidades por alegada omissão de pronúncia, invocando a existência de contradições e de obscuridades do acórdão.
E, inconformado, interpôs também o arguido AA em 23 de maio de 2025 recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Recurso que não foi admitido por despacho de 27 de maio de 2025, com fundamento na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, referindo-se que no acórdão impugnado se consignou:
“(…) Não obstante a alteração operada quanto ao número de crimes de pornografia de menores, o substracto fáctico agora a considerar é coincidente com aquele que foi tido em conta na sentença recorrida, sendo que nesta a pena de prisão imposta foi fixada em 5 anos, atendendo à competência do tribunal e face à limitação imposta pelo n.º 4 do artigo 16.º do Código de Processo Penal. (…).”
Por acórdão de 4 de junho de 2025, procedeu-se a uma correção do acórdão anteriormente proferido, indeferiu-se a arguição de nulidades e julgou-se não verificadas e improcedentes as suscitadas incorreções e obscuridades.
O recorrente apresentou extensa reclamação do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, manifestando a sua discordância com o acórdão recorrido, invocando jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça, referindo que o Tribunal da Relação, apesar de ter revogado a condenação na parte relativa a 220 crimes, manteve a pena única, e não alterou o máximo que poderia aplicar de 5 anos, visto tratar-se de processo julgado em tribunal singular, lembrando que a pena devia ser reduzida e que a mesma deveria ser suspensa na sua execução.
No que respeita à admissibilidade do recurso invoca, em síntese, que o recurso é admissível porque não existe dupla conforme, uma vez que foi condenado em 1.ª instância na pena única de prisão de 5 anos de prisão, tendo a Relação revogado parcialmente essa sentença, na parte que condenava o arguido por 220 crimes de pornografia de menores agravado, condenando-o nos mesmos 5 anos de prisão efetiva, não obstante o muito menor número de crimes, as penas parcelares mais baixas, o menor grau de dolo e de culpa, o tempo decorrido, a ausência de registo criminal, violando os princípios da proporcionalidade, legalidade e justiça, liberdade e os direitos fundamentais do arguido, bem como a Constituição.
- Acrescenta que sobre as condenações em pena de prisão efetiva não superior a 5 anos, desde 2015 a jurisprudência e a doutrina, têm vindo a entender que há situações em que não se aplica a irrecorribilidade dos acórdãos penais proferidos pela Relação para o STJ, invocando jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.ºs n° 595/2018 e 100/2021).
- Mais refere, que o despacho reclamado é nulo por manifesta falta de fundamento, de facto e de direito.
1. Face aos termos da reclamação, nota-se que as questões apreciadas em recurso pelo Tribunal da Relação, não têm, por si, relevância para efeitos de recorribilidade da decisão para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na verdade, a aplicação dos critérios de admissibilidade do recurso é anterior à consideração das questões relativas à definição do objeto do recurso e, consequentemente, dos poderes de cognição do tribunal ad quem.
Tais questões são já de conhecimento do recurso, e autónomas da questão da admissibilidade, que apenas tem por referência os critérios objetivos sobre a pena concretamente aplicada.
Os poderes para decidir a pertinência e os limites do objeto do recurso, são questões que não tem que ver com a admissibilidade em si mesma, mas já com o juízo a proferir nos poderes de cognição do tribunal ad quem.
2. A reclamação destina-se a sindicar a decisão que não admitiu o recurso, sendo que a mesmo só é censurável se a não admissão contrariar norma, que no caso concreto permita a intervenção/julgamento pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Assim:
3. O critério de admissibilidade do recurso para o STJ reporta-se à pena concretamente aplicada, ou seja, à pena em que cada um dos arguidos foi condenado na decisão recorrida.
A recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432.º do CPP, dispondo a alínea b) do n.º 1 que se recorre “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.
Deste preceito destaca-se a alínea f) do n.º 1 que estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.
No caso, não afasta a dupla conformidade o arguido ter sido condenado em 2.ª Instância, além do mais, pela prática de 12 crimes de pornografia de menores: um na pena parcelar de 9 meses de prisão, sete nas penas parcelares de 11 meses de prisão e quatro nas penas parcelares de 10 meses de prisão, diferentemente dos duzentos e vinte crimes de pornografia de menores agravado, pelos quais tinha sido condenado em 1.ª instância, nas penas parcelares de 11 meses de prisão.
A pena única de 5 anos de prisão aplicada na 1.ª instância ao arguido foi mantida pelo acórdão da Relação.
Havendo dupla conformidade, como resulta diretamente das normas adjetivas citadas, o acórdão da Relação, tirado em recurso, só admite recurso ordinário para o STJ se tiver sido aplicada ao recorrente, pena superior a 8 anos de prisão.
Não sendo esse o caso dos autos, resulta não ser recorrível em mais um grau, o acórdão confirmatório, conforme decorre do disposto nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), ambos do CPP.
4. Ainda que não houvesse dupla conformidade o acórdão da Relação, também não admitiria recurso.
Nos termos dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos “acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância.”.
No caso, não se verifica a exceção prevista na parte final do preceito transcrito.
O arguido foi condenado em 1ª instância e a pena única aplicada não é superior a 5 anos de prisão.
5. O reclamante invoca os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 595/2018 e 100/2021.
Ora, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018, de 13 de Novembro proferido em Plenário, declarou “com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efectiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição”.
Mas, no caso, o arguido foi condenado em 1.ª instância, não tendo havido qualquer decisão absolutória, daí não fazer sentido o apelo a esta jurisprudência.
E o 2.º acórdão invocado pela reclamante não tem tem quaisquer efeitos na ordem jurídica e judiciária por, na procedência de recurso do Ministério Público, ter sido revogado pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 524/2021, de 13 de julho, proferido em Plenário, tendo decidido: --------------------
“a) Não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e), e 432.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condenem os arguidos em pena de prisão não superior a cinco anos, suspensa na sua execução;
b) Revogar o Acórdão n.º 100/2021 (…)”.
6. Cumpre salientar que o conhecimento de eventuais nulidades do acórdão da Relação não constitui, pressuposto de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Não se podendo entender que a simples invocação de nulidades de um acórdão que a lei considera irrecorrível, transforme esse mesmo acórdão em decisão recorrível para este Supremo Tribunal.
Com efeito, as nulidades do artigo 379.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do CPP, ou qualquer outra violação de norma procedimental da qual decorra nulidade da decisão, só podem ser conhecidas oficiosamente pelo STJ, se tiver de julgar recurso de acórdão da Relação que seja recorrível nos termos do disposto nos artigos 432º n.º 1 alínea b) e 400.º n.º 1 do CPP.
A via de reação contra as nulidades imputadas ao acórdão da Relação que não seja recorrível é a arguição perante o próprio tribunal que proferiu a decisão visada.
Aliás, o reclamante arguiu nulidades do acórdão perante o Tribunal da Relação sobre as quais recaiu o acórdão de 4 de junho de 2025, que as desatendeu.
7. Por fim, o reclamante invoca a nulidade do despacho reclamado por manifesta falta de fundamento, de facto e de direito.
Não há que conhecer autonomamente desta questão.
Uma vez que o âmbito de conhecimento da reclamação, face aos poderes de cognição previstos no artigo 405.º, n.º 1, do CPP, cinge-se à confirmação ou revogação da decisão sobre a não admissibilidade ou a retenção do recurso. Quaisquer outras questões, incluindo a própria fundamentação da decisão que não admitiu o recurso, estão à margem da finalidade e do âmbito da reclamação. A decisão judicial que não admitiu ou reteve o recurso não admite recurso. A única via de reação é a reclamação. A confirmação da não admissão do recurso fecha definitivamente a via do recurso ordinário.
8. Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida pelo arguido AA.
Custas pelo reclamante fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.
Notifique-se.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Nuno Gonçalves