I. O critério de admissibilidade do recurso ordinário para o STJ reporta-se à pena concretamente aplicada ao arguido na decisão recorrida.
II. Com fundamento nos erros-vício e nulidades não sanadas, não se admite recurso de acórdãos da Relação, proferidos em recurso.
III. Não admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, acórdão da Relação que, em recurso, revoga a suspensão da execução da pena única de prisão, não superior a 5 anos, de que o arguido vinha condenado.
I - Relatório:
Nos presentes autos, foi proferido acórdão em 1.ª instância que efetuou o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas nestes autos e nos processos n.ºs 217/22.7..... e 109/21.7....., no qual se decidiu condenar o arguido AA na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na execução por igual período, subordinada a regime de prova que contemple, além do mais que for tido por necessário, o tratamento ao alcoolismo e à toxicodependência.
O arguido foi ainda condenado nas seguintes penas acessórias: -----
- Proibição de contactos com BB e seu agregado familiar, incluindo afastamento da residência sita no Monte ..., pelo período de 3 anos;
- Obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica;
- e na sanção acessória de inibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 1 ano e 6 meses.
O Ministério Público não se conformando com o assim decidido recorreu para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 20 de maio de 2025, julgando verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, decorrente da falta de especificação de elementos relativos a uma das condenações englobadas no cúmulo jurídico e respeitantes aos antecedentes criminais do arguido, que supriu nos termos nele determinados, concedeu provimento ao recurso, , revogando a decisão recorrida, na parte em que decidiu suspender a execução da pena única de 3 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido.
Inconformado, interpôs o arguido AA recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Recurso que não foi admitido por despacho de 30 de junho de 2025, com fundamento nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, tendo em conta que o acórdão do Tribunal da Relação proferido em recurso revogou a decisão de cúmulo jurídico proferida pela 1.ª instância, não suspendendo a pena de 3 anos e 6 meses de prisão imposta aplicada ao arguido.
O recorrente apresentou reclamação para a conferência do despacho que não admitiu o recurso, rematando com as seguintes conclusões: ----
“ 1º - O ordenamento processual penal assenta num princípio geral de recorribilidade com fundamento constitucional na ampla e efectiva garantia de defesa assegurada ao arguido (artigo 18.º, n.º 2 e 32.º, n.º 1 da CRP).
2º - No caso do Acórdão condenatório proferido pela Relação, em recurso, que reverte uma decisão de suspensão da execução da pena de prisão proferida em 1ª instância, é evidente que ao arguido tem de ser concedida garantia de defesa, materializada na recorribilidade dessa decisão quer quanto à matéria de Direito quer quanto à matéria de facto e, neste caso, em sentido amplo, de impugnação da matéria de facto julgada provada e não apenas restrito à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou ao erro notório na apreciação da prova.
3º - O que significa dizer que, por força da alteração legislativa à norma da al. e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça tem, necessariamente, de assumir amplos poderes de cognição da matéria de facto, seja com fundamento em erro de julgamento seja em sede revista alargada.
4º - O entendimento ora sufragado pelo Despacho reclamado conduz a uma injustificada desigualdade e desproporcionalidade dos direitos do arguido na medida em que permitirá que, em 1.ª instância, o arguido possa recorrer da generalidade das decisões proferidas ao longo do processo, nos termos do artigo 399.º do CPP e não possa sindicar, com a amplitude necessária ao exercício do seu direito de defesa, uma decisão condenatória em pena privativa da liberdade, em reversão de anterior suspensão da execução da pena de prisão, por ser proferida em sede de recurso interposto para os Tribunais da Relação apenas porque, tendencialmente, o Supremo Tribunal de Justiça conhece, apenas, de Direito.
5.º- Em consequência, o artigo 400.º, n.º 1, al. e) do CPP deve ser interpretado no sentido de o arguido poder impugnar a matéria de facto julgada provada pelo Tribunal da Relação, cabendo ao STJ proceder ao reexame da prova produzida e decidir, em conformidade, sob pena de interpretação diversa, que restrinja o recurso do Arguido, neste caso, às hipóteses das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP ser inconstitucional por violação do disposto no artigo 18.º n.º 2 e 32.º, n.º 1 da CRP.
6º - No presente caso, estando em causa a sindicância de uma decisão que revoga um juízo de suspensão da execução da pena de prisão, condenando, inovadoramente, em segunda instância, o arguido em pena de prisão efetiva não superior a 5 anos, sobre o qual nunca teve o Recorrente a possibilidade de se pronunciar, deverá ser conferida a possibilidade de sindicar os vícios descritos no artigo 410.º n.º 2 do CPP, quanto à apreciação inovadora do Tribunal Recorrido, sob pena de não se garantir ao Recorrente um segundo grau de jurisdição quanto a parte da matéria decisória em causa nestes autos.
7º - Assim, o entendimento perfilhado com o Douto Despacho reclamado deve se declarado inconstitucional na senda da conjugação das normas contidas nos artigos 434.º e 432.º n.º 1 alínea b), ambos do CPP, quando interpretadas no sentido de que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º do CPP, e que tenham condenado o arguido em pena de prisão efetiva pela primeira vez, invertendo uma decisão de condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, apenas pode visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, não podendo ter como fundamento os vícios do artigo 410.º n.º 2 do CPP, por violação do direito do recurso do Arguido (artigo 32.º n.º 1 da CRP),
do princípio da presunção de inocência (artigo 32.º n.º 2 da CRP), e do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP).
8 - Tendo o ora reclamante sido condenado, de forma inovadora, em segunda instância, caso se viesse a julgar inadmissível a sindicância de pena de prisão efetiva (pena privativa da liberdade não superior a cinco anos) que lhe foi agora, inovadoramente imposta, tal entendimento é materialmente inconstitucional, à luz das garantias de defesa do arguido em processo penal, mormente, por arredar de forma irredutível e insuperável, o seu direito ao recurso (no sentido de ser um recurso pleno, cabal e efetivo e que respeite as referidas garantias – ex vi do artigo 32.º n.º 1 da CRP), do princípio da presunção de inocência (ex vi do artigo 32.º n.º 2 da CRP), e do princípio da igualdade (ex vi do artigo 13.º da CRP), ao criar uma manifesta situação de desigualdade entre os arguidos condenados em primeira e segunda instância.”
Ainda na Relação foi proferido despacho onde foi entendido que o meio adequado para reagir contra o despacho que não admitiu o recurso é a reclamação do artigo 405.º do CPP, determinando-se que siga os termos aí previstos.
1. Apesar de a reclamação vir incorretamente dirigida, face à simplicidade da questão, e ao princípio do aproveitamento dos atos processuais e tendo em conta que o reclamante pretende impugnar o despacho que não lhe admitiu o recurso interposto, considera-se a reclamação dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 405.º do CPP.
2. No que é relevante, para o conhecimento da reclamação, por acórdão proferido em 1.ª instância que efetuou o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas nestes autos e nos processos n.ºs 217/22.7..... e 109/21.7....., o arguido foi condenado na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução.
Em recurso do Ministério Público, o Tribunal da Relação revogou a decisão recorrida na parte em que suspendeu a execução da pena, condenando o arguido na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão efetiva.
3. O critério de admissibilidade do recurso para o STJ reporta-se à pena concretamente aplicada, ou seja, à pena em que o arguido foi condenado na decisão recorrida.
A recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432.º do CPP, dispondo a alínea b) do n.º 1 que se recorre “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.
Deste preceito destaca-se a alínea e) do n.º 1 que consagra a irrecorribilidade dos “acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1ª instância”.
No caso, não se verifica a exceção prevista na parte final do preceito transcrito. O arguido foi condenado em 1ª instância. E o acórdão recorrido mantendo a pena única aplicada revogou a suspensão da sua execução.
Assim sendo, tendo em conta que o arguido foi condenado em pena não superior a 5 anos de prisão, o recurso é inadmissível, ao abrigo das referidas disposições legais.
4. Por outro lado, o artigo 410.º do CPP invocado tem como epígrafe “Fundamentos do recurso”. Entre os quais se incluem os erros-vício (n.º 2) e as nulidades insanáveis (n.º 3).
No respeitante aos erros-vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, era jurisprudência uniforme e sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça que, na redação do art.º 434º do CPP que que vigorou até 20 de março de 2022, os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, não podiam fundamentar recurso para o mais Alto Tribunal da ordem judiciária comum.
Com a alteração operada pela Lei n.º 94/2021 de 21712, que entrou me vigor um 21 de março de 2022, os erros-vicio e a nulidades previstos e referidas no artigo 410 n.ºs 2 e 3, do CPP podem legitimar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça mas apenas quando em recurso é de decisão da Relação proferida em 1ª instância (portanto, em recurso em 1º grau para o Supremo, em que poderá/deverá conhecer de facto e de direito) e que no recurso per saltum, de acórdãos de tribunal coletivo de 1.ª instância contanto tenha aplicado pena de prisão em medida superior a 5 anos.
Com fundamento nos referidos erros-vicio e nulidades não sanadas, não se admite recurso de acórdãos da Relação, tirados em recurso.
5. Quanto às inconstitucionalidades invocadas (pontos 5, 7 e 8 das conclusões), a única que aqui importa, é a deduzida no ponto 5, onde argumenta que o artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, deve ser interpretado no sentido de poder impugnar a matéria de facto julgada provada pelo Tribunal da Relação, cabendo ao STJ proceder ao reexame da prova produzida e decidir, em conformidade, sob pena de interpretação diversa, que restrinja o recurso, neste caso, às hipóteses das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP ser inconstitucional por violação do disposto no artigo 18.º n.º 2 e 32.º, n.º 1 da CRP.
Mas sem razão.
Não pode considerar-se infringido o artigo 18.º, n. 2, da CRP, porquanto o direito que o reclamante considera restringido seria o do recurso, especificamente previsto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP que inscreve o direito ao recurso como uma garantia de defesa do processo criminal, impondo que seja assegurado ao arguido o direito ao reexame por uma instância superior de qualquer decisão judicial contra ele proferida no processo penal.
O Ministério Público recorreu peticionando, o agravamento da condenação do arguido, peticionando, que fosse determinada a não suspensão da pena de prisão aplicada.
Ao arguido foi facultado o contraditório que exerceu, respondendo a pugnar pela improcedência do recurso do Ministério Público.
Foi-lhe, pois, garantida a facultade de esgrimir os argumentos que entendeu em defesa da sua tese e também em defesa da confirmação da condenação decretada em 1ª instância.
Teve, pois, possibilidade de se defender como entendeu da reversão da pena suspensa em pena de prisão efetiva. Com o que ficou assegurado no processo o seu direito constitucional e legal de defesa incluindo o direito de recurso.
6. Incidindo sobre questão similar, o Tribunal Constitucional, na decisão sumária n.º 375/2019, confirmada pelo acórdão n.º 104/2020, invocado no despacho reclamado, motivando o julgamento da não inconstitucionalidade, expendeu: “no caso de recurso de decisão de primeira instância condenatória, que tenha aplicado pena não privativa da liberdade e em que o recorrente Ministério Público e/ou Assistente pugnem perante a Relação pelo agravamento daquela, o objeto do recurso encontra-se perfeitamente delimitado, balizando-se a possível decisão do mesmo dentro de apertados limites: (…).
Nestes casos, existe uma efetiva reapreciação do segmento da decisão condenatória relativo às consequências do crime, cujos termos, âmbito e consequências, são perfeitamente antecipáveis pelo arguido. O objeto do recurso e os assinalados limites intrínsecos e extrínsecos à decisão a tomar pelo tribunal superior no julgamento daquele, permitem concluir que a faculdade de responder ao recurso, prevista no artigo 413.º do Código de Processo Penal, assegura um efetivo exercício do direito de defesa, permitindo ao arguido expor perante o tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa, em termos idóneos a persuadir o julgador da sua justeza e a influenciar o curso do seu processo decisório.”
Reafirma-se na decisão em citação “que o respeito pelo direito ao recurso não significa que o legislador esteja constitucionalmente vinculado a assegurar a impugnabilidade pelo arguido de todas as decisões condenatórias proferidas em recurso, mesmo quando imponham reação sancionatória privativa da liberdade e imediatamente exequível. Constitui entendimento consolidado do Tribunal que o direito ao recurso, assegurado pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, não garante ao arguido um segundo grau de recurso em matéria penal, assistindo ao legislador democrático margem de liberdade na modelação do acesso por via de recurso ao tribunal judicial supremo, enquanto via de prossecução de outros direitos e interesses constitucionalmente tutelados, como sucede com a própria eficácia do sistema penal, que tem como condição a emissão de um julgamento final e definitivo em tempo razoável”.
Concluindo-se: “é certo que o julgamento do recurso comportou um agravamento da posição processual do arguido relativamente ao antes decidido, mas daí não decorre uma situação de indefesa do sujeito processual, constitucionalmente proibida. No âmbito do recurso da decisão condenatória proferida em 1.ª instância, ciente da pretensão de modificação da reação penal e da natureza fundamentalmente substitutiva do julgamento proferido pela 2.ª instância, pôde o arguido, para além de refutar os argumentos do recorrente, perspetivar as eventuais consequências sancionatórias - à semelhança com o que acontece frequentemente no momento da apresentação na 1.ª instância da contestação e rol de testemunhas (artigo 315.º do CPP), ou nas alegações orais proferidas em audiência de julgamento (artigo 360.º do CPP) - e desse modo influenciar decisivamente o julgamento do recurso.
No quadro em presença, a limitação das garantias de defesa, na dimensão do exercício do direito ao recurso e do acesso a um terceiro grau de jurisdição, não se mostra desrazoável ou desproporcionada, em atenção ao interesse público relevante prosseguido pelo legislador democraticamente legitimado, impondo-se afastar a violação do artigo 32.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, ou outros parâmetros de constitucionalidade”.
7. Decisão em linha com a jurisprudência daquele Tribunal. Incidindo sobre a aplicação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, a caso como o dos autos, no acórdão n.º 101/2018, de 21 de fevereiro, decidiu “não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, interpretado no sentido de ser irrecorrível o acórdão proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação que aplique pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, revogando a suspensão da execução de pena de prisão decretada pelo tribunal de primeira instância.”
III - Decisão:
8. Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida pelo arguido AA.
Custas pelo reclamante fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.
Notifique-se.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Nuno Gonçalves