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CONTRATO DE MÚTUO
CONTRATO VERBAL
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
DEVER DE RESTITUIÇÃO
Sumário
O contrato de mútuo celebrado por acordo verbal relativo à verba de € 80.000,00 é nulo, implicando a obrigação de restituição de tudo o que foi prestado. (Sumário da Relatora)
Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual a A. peticionou a condenação dos RR. a pagar-lhe solidariamente a quantia de € 70.000,00 (setenta mil euros), acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde a citação e até ao integral pagamento.
Alegou, para tanto, ter emprestado aos RR., seus pais e a pedido destes, a quantia global de € 80.000,00 (oitenta mil euros), valor que estes se comprometeram a devolver, em prestações mensais de € 500,00 (quinhentos euros), até que fosse concretizada a venda de um terreno sito em Santarém de sua propriedade, destinando-se a referida quantia a completar o preço de uma moradia sita na Rua das (…) – Urbanização (…), em Portimão, que os RR. adquiriam, nela fixando a respetiva residência. As prestações de reembolso apenas foram realizadas até outubro 2022, perfazendo o montante de € 10.000,00 (dez mil euros), recusando-se a R. mulher, após a rutura conjugal, a cumprir o acordado.
Mais alegou que, em face da nulidade do contrato de mútuo por falta de forma, deve ser restituído o remanescente da verba que foi prestada.
Regularmente citados os RR., apresentou-se a R. mulher a contestar, pugnando pela improcedência da ação. Sustentou que aceitou a oferta da A. de pagamento do diferencial do preço no pressuposto de que esse montante seria entregue em troca do auxílio que ambos os RR. iriam prestar-lhe na empresa desta e no apoio aos netos, e que, não tendo solicitado qualquer empréstimo à autora, não é devedora de qualquer quantia, nada tem a restituir, não tendo sido do seu conhecimento os reembolsos feitos pelo Réu.
II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando a ação totalmente procedente, declarando a nulidade do contrato de mútuo, condenando os Réus a restituírem, solidariamente, à Autora a quantia de € 70.000,00 (setenta mil euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, contabilizados, sobre tal importância à taxa legal em vigor para os juros civis, desde da citação até integral restituição.
Inconformada, a Ré apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que julgue a ação totalmente improcedente. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«A. A Recorrente foi confrontada com a decisão que julgou procedente a presente ação, declarando:
“(…) a nulidade do contrato de mútuo que foi celebrado entre as partes, e, condeno os réus (…) e (…) a restituírem, solidariamente, à Recorrida a quantia de € 70.000,00 (setenta mil euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, contabilizados, sobre tal importância, à taxa legal em vigor para os juros civis, desde da citação dos demandados, até integral restituição da mencionada importância.”
B. A Ré e aqui Recorrente não se conforma com o conteúdo da douta decisão proferida, pelo que da mesma vem recorrer.
C. Os factos dados como provados nos concretos pontos 1), 2), 3), 6 do segmento “Factos Provados” da douta Sentença, não se encontram corretamente julgados.
D. Os factos dados como provados nos concretos pontos 1), 2), 3), 6 do segmento “Factos Provados” da douta Sentença, não se encontram corroborados, nomeadamente com o depoimento de parte do Réu, uma vez que do mesmo não se extrai de que forma é que foi acordada a devolução da quantia que a Recorrida alega ter emprestado aos Réus, pelo que não podiam os mesmos ter ficado consignados no segmento decisório como factos provados, mas sim como “Factos Não Provados”.
E. O Réu refere ter realizado transferências para a conta bancária da Recorrida, porém em momento algum confirma que esses pagamentos foram realizados com o conhecimento da Ré, aqui Recorrente, nem nenhuma outra prova foi produzida nesse sentido.
F. Aliás, o Réu até refere que: “Os pagamentos foram feitos por transferência por mim. Para a conta da minha filha”.
G. Não ficou provado, de que forma a Ré aqui Recorrente tinha, e se tinha e como tinha, acesso às contas bancárias, se é que tinha, comprovação que não ocorreu.
H. Sendo o litisconsórcio necessário, como no caso concreto, a confissão isolada do Réu marido não tem qualquer valor, por cada um, por si só, não poder dispor do direito.
I. Pelo que, não pode a confissão do Réu ser eficaz, nos termos do artigo 353.º, n.º 2, do Código Civil, produzindo efeitos contra a Ré.
J. As declarações de ambas as partes, aquando da sua produção, devem ter o mesmo valor probatório, tendo resultado do depoimento da Ré aqui Recorrente que a mesma nunca solicitou qualquer empréstimo à sua filha, aqui Recorrida, não tinha acesso às contas bancárias conjuntas com o ex-marido Réu e que nem a Recorrida nem o Réu tinham falado em empréstimo à Ré aqui Recorrente.
K. Desconsiderou o douto Tribunal as declarações da Ré e de todos os depoimentos que se mostravam favoráveis à sua versão e considerou apenas os depoimentos da Autora, com total interesse na procedência da ação e do Réu, que também tem interesse na procedência da ação, uma vez que conseguirá dividir a responsabilidade com a Ré de uma alegada dívida que apenas o Réu contraiu e que apenas o Réu tinha conhecimento.
L. Enferma a presente ação, toda ela, de falta de produção de prova positiva, que é fundamental para a existência de um contrato de mútuo, prova da qual o ónus recaia sobre a Recorrida.
M. Nenhuma outra testemunha corroborou as declarações de parte da Recorrida ou as declarações de parte do Réu.
N. Também o depoimento da testemunha (…), na qual a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo se baseia para a procedência da ação, não permite, conforme supra identificadas as transcrições que das mesmas se possa extrair o que foi vertido na douta Sentença recorrida.
O. A referida testemunha apenas refere ter ouvido telefonemas entre a sua avó e a sua prima, a Autora aqui Recorrida, sendo manifestamente uma prova indireta.
P. O depoimento da testemunha (…) corrobora completamente a versão da Ré.
Q. Face ao supra exposto e uma vez que os depoimentos supra indicados impõem decisão diversa da ora recorrida deverão os factos dados como provados 1), 2), 3) e 6) serem julgados como não provados.
R. Conforme referido na douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo em Questões a decidir: “As questões suscitadas nos presentes autos, e de que cumpre decidir, consistem em saber: se entre a autora e os ora réus foi celebrado o mencionado contrato de mútuo e, sendo o caso, o respetivo objeto e se tal contrato se encontra ferido de alguma causa de invalidade.”
S. Quem recorre a juízo tem de fazer prova dos factos que constituem fundamento da sua pretensão.
T. A Recorrida tinha que ter feito prova inequívoca da existência de um contrato de mútuo, pois que, de acordo com o ónus da prova, nos termos do artigo 342.º do Código Civil, os factos constitutivos são os factos que, segundo a lei substantiva se mostram capazes a fundamentar o direito que a Recorrida pretende fazer valer contra a aqui Recorrente, ou seja, os factos de cuja prova depende a procedência da ação.
U. Neste caso incumbia à Recorrida fazer prova dos factos que constituem fundamento da sua pretensão.
V. Não logrou a Recorrida provar, quer através da prova documental que juntou, quer através da prova testemunhal, que fora celebrado qualquer contrato de mútuo entre Recorrida e a Recorrente.
W. Não tendo a Recorrida conseguido provar de forma inequívoca a titularidade do direito de que se arroga titular, a questão deverá ser contra si decidida – artigo 346.º do Código Civil.
X. Sendo a causa de pedir da Recorrida a declaração de nulidade do alegado contrato de mútuo, tinha a mesma que ter demonstrado e provado a existência desse contrato (porventura nulo), mas provar que houve efetivamente um encontro de vontades em contratar, aquele especifico contrato de mútuo.
Y. Não tendo sido produzida prova capaz de subsumir os factos ao conceito do artigo 1142.º do Código Civil, fica prejudicada a apreciação da nulidade por falta de forma do alegado contrato de mútuo.
Z. Para que se esteja perante um contrato de mútuo e para que este seja concluído de forma perfeita, são necessários dois elementos constitutivos: a entrega de uma coisa fungível ou de dinheiro por parte do mutuante, sendo que sem essa entrega (datio rei) por parte do mutuante não será possível ter; -se como existente o contrato de mútuo típico, mas quando muito uma promessa de mútuo; a obrigação de restituir outro tanto do mesmo género do que foi recebido, nomeadamente, quando está em causa o mútuo de dinheiro, a mesma quantia que foi entregue.
AA. Cabia à Recorrida a prova da entrega da quantia à Recorrente, mas também provar e convencer que a Recorrida tinha conhecimento e que se obrigou a restituir tal quantia, decorrente de um alegado contrato de mútuo e provar os elementos e termos do alegado contrato de mútuo.
BB. E foi este, também, o entendimento seguido no citado Acórdão da Relação do Porto de 24/09/2018, onde se pode ler: “(…) não basta que o demandante, invocando como causa petendi da sua pretensão, um mútuo ou empréstimo, prove apenas a entrega de determinado montante pecuniário; Incumbe-lhe ainda demonstrar a obrigação de restituição a cargo do demandado, pois que só assim se perfecciona o contrato de mútuo que lhe serve de fundamento. (…) não basta ao demandante demonstrar a deslocação patrimonial, sendo ainda mister demonstrar que nos termos convencionados essa deslocação patrimonial tinha que ser revertida, isto é, que o demandado estava obrigado a restituir a quantia mutuada, acrescida da eventual remuneração pela disponibilidade do capital.”
CC. Em idêntico sentido refere o Acórdão do STJ de 19.02.2009 que: “a falta de prova da celebração de um contrato de mútuo impede a condenação na restituição do capital com fundamento em nulidade por falta de forma.”
DD. No caso sub judice, não resultou de forma inequívoca, provado que as invocadas deslocações patrimoniais, transferências bancárias, tivessem subjacente a existência de um acordo mediante o qual os Réus, e mais concretamente a Ré/Recorrente, ficaram obrigados a restituir igual quantia pecuniária.
EE. Tendo única conclusão, a de que não resultou provado ter sido firmado o invocado mútuo, pelo que não é possível à Recorrida fazer apelo à inobservância de forma legal de tal contrato e à restituição que caberia fazer nessa situação, não podendo ser outra a consequência se não ser a douta Sentença recorrida revogada e substituída por outra que julgue a presente ação totalmente improcedente por não provada.
FF. Não pode colher a tese do Tribunal a quo de que: “a responsabilidade solidária da ré pela restituição do remanescente do capital mutuado radica, desde logo, no facto de a mesma ter participado, no estado de casada, na celebração do negócio nulo, o qual é causa da dívida – cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil”.
GG. Ora, dispõe o artigo 1691.º do Código Civil que: “1. São da responsabilidade de ambos os cônjuges: a) As dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro”.
HH. Por sua vez, dispõe o artigo 1692.º, alínea a), do Código Civil, sob a epígrafe “Dívidas da Responsabilidade de Um dos Cônjuges” que: “São de exclusiva responsabilidade do cônjuge a que respeitam: a) As dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, por cada um dos cônjuges sem o consentimento do outro, fora dos casos indicados nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo anterior”.
II. Da prova produzida, resulta à saciedade que a Recorrente, não só não deu o seu consentimento para que o Réu contraísse dívida, como também não tinha sequer conhecimento de qualquer empréstimo concedido pela Autora aqui Recorrida.
JJ. Devendo ser considerado para todos os efeitos, tendo em conta o já expendido acerca dos factos dados indevidamente como provados e à luz do citado normativo legal, artigo 1692.º, alínea a), do Código Civil, que a ter existido um contrato de mútuo, este contrato foi apenas celebrado entre o Réu e a Autora e só ao Réu impende a responsabilidade da dívida, por não ter obtido o devido consentimento junto da Recorrente.
KK. Não operando aqui a presunção do proveito comum do casal, aflorada na douta Sentença recorrida.
LL. E assim, face a todos os argumentos supra expendidos deve a Ré ser absolvida in totum do pedido, devendo a douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a presente ação totalmente improcedente por não provada.»
A Recorrida apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, por acertada.
Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
ii) da falta de fundamento para condenar a R. a pagar à A. a quantia de € 70.000,00.
III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1) A autora entregou aos réus, seus progenitores, a quantia de € 80.000,00 (oitenta mil euros), a qual lhes foi disponibilizada através de duas transferências bancárias, no valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros) cada, que foram realizadas pela autora a 6 e a 12 de abril de 2021, respetivamente, para a conta n.º (…), sedeada no Banco (…).
2) Valor esse que os réus se comprometeram a restituir, mediante a realização de pagamentos parciais de € 500,00 mensais e também com a posterior entrega, à autora, do produto da venda de um terreno de que são donos e que projetavam alienar.
3) A quantia referida em 1) foi entregue pela autora aos seus progenitores para que estes pudessem suportar na íntegra o preço, no valor de € 320.000,00 (trezentos e vinte mil euros) que pagaram pela aquisição do prédio urbano denominado de Lote n.º (…) – Sítio do (…), localizado no (…), freguesia e concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão, sob o n.º (…), da referida freguesia e inscrito na matriz sob o artigo (…), da mesma freguesia, valor esse ao qual acrescia ainda o preço do próprio recheio de tal imóvel.
4) Sendo que o prédio referido em 3), como sucedeu com o seu recheio, foi adquirido por ambos os réus, através de escritura pública que foi formalizada no dia 15 de abril de 2021, no Cartório Notarial de Portimão.
5) Os réus adquiriram o prédio identificado em 2), e o respetivo recheio, para aí fixarem a sua residência permanente, tendo a aquisição do referido imóvel sido registada a favor de ambos os demandados pela ap. n.º (…), de 14/04/2021.
6) Foram restituídas à autora, por meio de transferências realizadas pelo réu, com conhecimento da ré, a partir de contas da titularidade de ambos os demandados, com vista a operar a restituição, que fora acordada do valor referido em 1), as seguintes quantias, nas datadas que infra se indicam:
6.1. em 30/07/2021, a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), referente aos meses de abril a julho de 2021;
6.2. em 08/12/2021, a quantia de € 3.000,00 (três mil euros), referente aos meses de agosto a dezembro de 2021;
6.3. em 22/03/2022, a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), referente aos meses de janeiro a março de 2022;
6.4. em 11/07/2022, a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), referente aos meses de abril a junho de 2022;
6.5. em 12/10/2022, a quantia de € 1.000,00 (mil euros), referente aos meses de julho e agosto de 2022;
6.6. em 12/12/2022, a quantia de € 1.000,00 (mil euros), referente aos meses setembro e outubro de 2022.
7) Através de cartas registadas com aviso de receção, datadas de 10 de abril de 2023, e que foram rececionadas pela ré a 14/04/2023 e pelo réu a 10/04/23, a autora, tendo invocado que o empréstimo era nulo, reclamou de ambos os demandados a restituição, no prazo de 30 dias, do remanescente ainda em dívida e que se fixava no montante de € 70.000,00 (setenta mil euros), nada tendo, contudo, os réus liquidado após o pagamento a que se reporta o ponto 6.6.
8) Os réus contraíram matrimónio, sem convenção antenupcial, no dia 07 de novembro de 1976, o qual foi dissolvido por divórcio decretado por sentença datada de 07 de dezembro de 2023, transitada a 04 de março de 2024, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Família e Menores de Portimão - J2.
9) Os réus (…) e (…) foram citados para os termos da presente ação em 31/10/2023 e em 30/10/2023, respetivamente.
B – As questões do Recurso
i) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
O regime atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto consta enunciado no artigo 640.º do CPC. O seu acionamento despoleta a reapreciação do julgamento realizado em 1ª Instância com vista a apurar se os factos concretos submetidos à instrução, factos esses objeto de decisão que se mostra impugnada em sede de recurso, foram incorretamente julgados, impondo-se decisão diversa da recorrida. A Relação deve alterar a decisão se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa da recorrida – cfr. artigos 640.º n.º 1, alíneas a) e b) e 662.º, n.º 1, do CPC.
A Recorrente sustenta que a factualidade versada nos n.ºs 1, 2, 3 e 6, na parte em que refere que tinha conhecimento dos reembolsos efetuados pelo Réu, deve ser julgada não provada.
Vejamos.
A entrega de € 80.000,00 pela Autora ao Réu mediante transferências bancárias encontra-se comprovada pelos documentos juntos com a p.i..
A aquisição pelos Réus de imóvel pelo preço e € 320.000,00 encontra-se documentada pelo requerimento junto pelo Réu a 10/12/2024.
Da contestação apresentada pela Recorrente consta, designadamente, o seguinte:
«… como estava a terminar o prazo dos três anos para reinvestirem o valor das mais valias provenientes da venda do imóvel que haviam vendido em (...), Sintra, aceitou a oferta da Autora de pagar o diferencial, ou seja, o montante de € 80.000,00, entre o valor que o casal havia obtido pela venda da moradia que tinham em Sintra acrescido e outras poupanças e o desta moradia» – artigo 10.º.
Conjugada a prova documental produzida no processo com o teor da contestação apresentada pela Recorrente, é manifesto que não merece qualquer reparo a decisão que julgou provada a factualidade inserta nos n.ºs 1 e 3 dos factos provados.
A alegação em contrário pela Recorrente, atento o teor da contestação apresentada, raia a litigância de má-fé.
Nos n.ºs 2 e 6 está em causa a vinculação dos Réus à restituição da quantia recebida da Autora assim como o conhecimento da Recorrente dos reembolsos mensais de € 500,00 feitos entre abril de 2021 e outubro de 2022 pelo Réu.
A Recorrente invoca que o Tribunal de 1ª Instância valorou o depoimento da Autora e do Réu, não dando credibilidade ao seu depoimento, cujo valor probatório não pode ser relegado.
Afigura-se, contudo, ser de acompanhar o juízo lavrado na sentença recorrida.
Na verdade, a Ré fez constar na contestação que aceitou os € 80.000,00 da Autora, sua filha, no pressuposto de que a entrega era em troca do auxílio que os pais lhe iam prestar, pois não seria necessário contratar uma pessoa para a empresa e para ir buscar os filhos às atividades extracurriculares.
Já em sede de audiência de julgamento afirmou, sob juramento, não ter tido conhecimento de a Autora ter entregado a verba de € 80.000,00, só soube quando o marido começou a não frequentar a casa, e que, “segundo eles dizem agora”, o dinheiro serviu para comprar a casa, do que não tinha tido conhecimento; não sabia de nada, perguntou ao marido porque é que ele estava a tirar valores tão grandes das contas.
Como é bom de ver, a forma como a Recorrente se apresenta em juízo não permite se tome a sua versão dos acontecimentos (qual delas?) como boa, não é de molde a alicerçar a convicção firme e segura de que os factos se passaram do modo como refere (na contestação ou na audiência?) nem sequer é de molde a abalar a convicção que resulta dos demais meios de prova enunciados na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto.
Termos em que se conclui pela inexistência de fundamento que implique se tome como errada a decisão proferida em 1ª Instância relativamente à referida factualidade.
ii) Da falta de fundamento para condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 70.000,00
A Recorrente sustenta que a Autora não logrou provar ter sido celebrado um contrato de mútuo e que, ainda que assim não se entenda, não tendo tido conhecimento do empréstimo nem tendo dado o seu consentimento, não tem o dever de responder por essa dívida contraída pelo então seu marido.
Está provado o seguinte:
1) A autora entregou aos réus, seus progenitores, a quantia de €80 000 (oitenta mil euros), a qual lhes foi disponibilizada através de duas transferências bancárias, no valor de €40 000 (quarenta mil euros) cada, que foram realizadas pela autora a 6 e a 12 de abril de 2021, respetivamente, para a conta n.º (…), sedeada no Banco (…).
2) Valor esse que os réus se comprometeram a restituir, mediante a realização de pagamentos parciais de € 500,00, mensais e também com a posterior entrega, à autora, do produto da venda de um terreno de que são donos e que projetavam alienar.
Factualidade que configura um acordo no sentido da celebração verbal de um contrato de mútuo – cfr. artigo 1142.º do Código Civil.
O mútuo é, de sua natureza, um contrato real e implica a transferência de propriedade devido ao facto de a translatio dominii ser indispensável ao gozo da coisa que se visa proporcionar ao mutuário, dada a natureza fungível dela. «O direito de propriedade do mutuante transforma-se, pelo empréstimo, num simples crédito (restituição) cuja realização depende da solvabilidade do mutuário.»[1]
Nos termos do disposto no artigo 1143.º do CC, na redação dada pelo DL n.º 116/2008, de 04/07, sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a (euro) 25000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a (euro) 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário.
Em caso de não observância da forma legalmente prescrita, o negócio está ferido de nulidade (artigo 220.º do Código Civil), com todas as consequências decorrentes deste tipo de invalidade. Deste modo, estamos diante de uma formalidade ad substantiam em que a forma é necessária para a própria existência da declaração ou seja, o documento, enquanto escrito que exprime uma declaração de vontade, é indispensável à realização do ato jurídico. Constitui uma formalidade ad substantiam do ato, é essencial à sua validade e não se destina apenas a facilitar a prova, em virtude da precisão, segurança e certeza que se considera essencial imprimir à celebração do negócio.
No caso em apreço, atento o valor a que ascende a verba que a Autora disponibilizou aos Réus e que estes se comprometeram a restituir, não constando ter sido outorgada escritura pública ou exarado documento particular autenticado, é patente a nulidade do contrato de mútuo por falta de forma.
O que implica deva ser restituído tudo o que tiver sido prestado, em atenção ao disposto no n.º 1 do artigo 289.º do CC, não se aplicando o instituto do enriquecimento sem causa, dado o seu carácter subsidiário, sem embargo de, se o mutuário estiver de má fé (e a partir do momento em que se encontre nesse estado por ter conhecimento que está a lesar o direito de outrem) lhe ser exigido, para além da quantia mutuada, a restituição dos frutos produzidos até ao termo da posse, respondendo pelo valor dos que um proprietário diligente poderia ter obtido (artigos 559.º e 1271.º, aplicável ex vi do artigo 289.º, n.º 3, do CC).
A nulidade do contrato de mútuo implica que não produza ab initio os efeitos a que tendia e que eram pretendidos pelas partes. Há de ser restabelecido o status quo ante à celebração do contrato devendo, para tal, cada uma das partes restituir as prestações feitas em execução do negócio inválido. Este é um efeito legal que resulta da nulidade e donde nasce, retroativamente ao momento da celebração do contrato nulo, a obrigação de restituir, sendo certo que «a prova da prestação para efeito da obrigação de restituir pode ser feita por qualquer dos meios de prova admitidos em geral pela lei.» [2]
Considerando a quantia que foi disponibilizada pela Autora aos Réus e o montante que foi já reembolsado, cumpre concluir que nenhuma censura merece a sentença recorrida.
Uma vez que ambos os Réus assumiram a qualidade de mutuários no acordo que firmaram com a Autora sobre ambos recai a obrigação de restituição do remanescente do que foi prestado, não sendo de chamar à colação o regime atinente às dívidas dos cônjuges.
As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º/1, do CPC.
Sumário: (…)
IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 25 de junho de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Mário Branco Coelho
Cristina Dá Mesquita
__________________________________________________
[1] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. II, 3.ª edição, pág. 681, em anotação ao artigo 1142.º do Código Civil.
[2] Mota Pinto, in Teoria Geral de Direito Civil, 1967, pág. 365.