1 – O animus da posse consiste, não na convicção de que se é titular do direito real nos termos do qual se possui, mas sim na intenção de agir como titular daquele direito, independentemente da convicção que se tenha acerca dessa titularidade.
2 – As circunstâncias em que foi celebrado o contrato-promessa de compra e venda, o conteúdo deste e o comportamento ulterior das partes inculcam que estas operaram, desde logo, nos termos da alínea b) do artigo 1263.º do CC, a transmissão da posse, nos termos do direito de propriedade, sobre o prédio, dos promitentes vendedores para a promitente compradora.
3 – As mesmas circunstâncias, conteúdo e comportamento inculcam que, independentemente da transmissão referida em 2, a posse aqui referida sempre teria sido adquirida, pela promitente vendedora, através da prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, nos termos da alínea a) do artigo 1263.º do Código Civil.
4 – A inversão do título da posse constitui uma forma de aquisição da posse por quem já detinha a coisa mas não era possuidor. Pode resultar de um acto praticado apenas pelo próprio detentor ou do concurso de um terceiro que, com o detentor, pratique um acto idóneo para transferir a posse.
(Sumário do Relator)
Os autores alegaram, em síntese, que são comproprietários, em conjunto, de ½ do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 55, com a área de 10.686 m2, inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…), concelho de Grândola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o registo n.º (…), sendo a ré a proprietária do restante ½, e que não desejam permanecer na indivisão.
A ré contestou, alegando ser a única proprietária do prédio e deduzindo o seguinte pedido reconvencional: declaração da sua propriedade exclusiva sobre o prédio, ordenando-se, em conformidade, o cancelamento do registo predial a favor dos autores; em consonância, deverá ser julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa dos autores, dando lugar à absolvição instância, nos termos do n.º 2 do artigo 576.º do CPC; caso assim não se entenda, deverá a acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada.
Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade dos autores.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou o pedido reconvencional improcedente, por não provado, dele tendo absolvido os autores / reconvindos.
A ré interpôs recurso da sentença, tendo formulado extensas conclusões, que assim se resumem:
1 – A sentença padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, porquanto nela se concluiu que os recorridos adquiriram a posse sobre o prédio sem se ter dado como provado qualquer facto que sustente tal conclusão;
2 – Os pontos C, Z e HHH do enunciado dos factos provados (EFP) devem ser corrigidos;
3 – Devem ser aditados três novos factos ao EFP;
4 – Caso não seja aditado o último dos factos referidos em 3, deverá ser corrigido o ponto QQ do EFP;
5 – Caso não seja corrigido, nas circunstâncias referidas em 4, o ponto QQ do EFP, deverá ser aditado um outro facto ao EFP;
6 – Toda a factualidade posterior a 1967 demonstra que a posse, nos termos do direito de propriedade, sobre o prédio, foi transferida, para a ré, por acordo com os anteriores proprietários e possuidores;
7 – A ré adquiriu essa posse em 1968 ou, o mais tardar, em 1970, ano em que foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda com os anteriores proprietários e possuidores;
8 – Os factos posteriores à celebração do contrato-promessa de compra e venda confirmam a transmissão da posse sobre o prédio para a recorrente, nos termos da alínea b) do artigo 1263.º do Código Civil;
9 – Está provado que a ré exerce, desde os anos 40 do século XX e, de forma mais expressiva desde 1970, o poder de facto sobre o prédio objecto dos autos, pelo que tem, a seu favor, a presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 1252.º do CC, que inverte o ónus da prova quanto à existência do animus da posse, assente na prova de que existe detenção;
10 – Nos termos do n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil, cabia aos recorridos, que se arrogam proprietários, provar que a recorrente, detentora do prédio, não é possuidora, o que não aconteceu;
11 – A recorrente tem, a seu favor, a presunção de que a posse continua em nome.
Factos provados.
D) Os autores não pretendem permanecer na indivisão.
E) O imóvel em questão corresponde a um prédio urbano térreo de construção regular, composto por 1 armazém e 4 arrecadações, que foram, outrora, afectos à indústria de cortiças.
F) Encontra-se vedado por muros e portões.
G) (…) foi um industrial que, entre outras actividades, dedicou-se, à compra, transformação e exportação de cortiça, detendo um vasto património (nomeadamente imóveis e sociedades).
H) Através da ré e sociedades por si detidas, fez laborar actividade corticeira em várias fábricas, nomeadamente no …, …, … e … (onde se situa a Fábrica de ...).
I) Foi nos anos 40, 50, 60 e 70 o maior empregador do Concelho de Grândola; (…) morreu no dia 1 de Março de 1978.
J) Teve dois filhos herdeiros, a saber: o sr. (…) e a sra. D. (…).
K) Os sobreditos herdeiros celebraram um acordo de partilha no dia 26 de Fevereiro de 1980, junto como doc. 2 com a contestação/reconvenção e que aqui se dá por reproduzido e que nos seus próprios termos «tinha em vista possibilitar (1) a divisão entre os outorgantes dos bens herdados por morte dos seus pais e dos bens imóveis de que são comproprietários; (2) a divisão entre os outorgantes das sociedades principais em que directa ou indirectamente ambos são interessados – (…) e Estabelecimento (…), SARL – de forma a que não fiquem, directa ou indirectamente, contitulares de participações na mesma sociedade».
L) Consta ainda do mencionado acordo, designadamente na cláusula 4.ª, que «Independentemente do disposto nas cláusulas anteriores sobre a fixação do texto final da escritura que titula o contrato de transacção, estão já definitivamente acordados os pontos constantes das cláusulas seguintes, que por isso, constarão obrigatoriamente da mesma escritura, e cujo conteúdo material não poderá ser alterado pelos árbitros.»
M) Lê-se na cláusula oitava do mencionado acordo que «Em contrapartida das atribuições constantes da cláusula 5.ª a 7.ª e do excesso de valor do lote que lhe ficará a pertencer na divisão dos bens herdados dos seus pais, o segundo outorgante (…) transmitirá á primeira outorgante (…) ou à pessoa singular ou colectiva que ela indique a quota que possui em Cortiças (…), Lda. e a totalidade das acções que o primeiro outorgante é proprietário em Estabelecimentos (…), SARL bem como aquela que transmitiu a terceiros conforme impugnação judicial pendente, e que atingem um total de 6050 e ainda renuncia a receber quaisquer acções de empresa que eventualmente constem dos bens deixados por morte dos seus pais, as quais serão, na totalidade, atribuídos á primeira outorgante».
N) Resulta ainda da cláusula décima quinta do mencionado acordo que «os restantes bens da herança dos pais dos outorgantes serão por ele divididos da forma seguinte: (2) as verbas 15 a 20 da relação de bens (Fábrica do …, direito ao arrendamento por 300 anos de um prédio, prédio do …, … e …) serão divididos em lotes e sorteados entre os outorgantes. Caso lhe interesse, a primeira outorgante pode reservar para si o lote que integre a Fábrica do (…).»
O) À data da apresentação da contestação/reconvenção, grande parte das participações sociais da ré pertencem à sociedade (…) – Lisboa, (…) Turismo, S.A.), que, por sua vez, pertence na sua totalidade ao sr. Dr. (…), um dos dois filhos da sra. D. (…).
P) Pela Ap. …/20220127 – Fusão e aumento de capital – a Estabelecimento (…) foi incorporada por fusão na (…) – Lisboa, (…) Turismo, S.A..
Q) Pela Ap. …/20220127 – cancelamento de matrícula – procedeu-se ao cancelamento da matrícula da Estabelecimentos (…) – Compra e venda de Propriedades Lda..
R) A Fábrica de (...) era estritamente necessária à prossecução da actividade comercial da ré e sua subsidiária, onde até aos anos 80 do século passado trabalharam cerca de uma centena de trabalhadores.
S) Naquelas edificações a ré manteve, durante décadas, uma actividade corticeira que era levada a cabo por uma sociedade por si dominada (a Cortiças …, Lda.).
T) Por acção intentada por (…) em 1996, que correu termos no então Tribunal de Círculo de Santiago do Cacém, Processo n.º 32/96, contra (…), (…), (…), (…) e (…) e marido (…), peticionou este que «A) Deve a presente acção ser julgada procedente por provada e o Autor e a sua referida irmã serem declarados donos, por usucapião, de todo o imóvel identificado. B) Ser o registo a que corresponde a descrição predial n.º (…), a fls. 117 do Livro B4 da referida, rectificado a favor do Autor e da sua irmã, eliminando-se as actuais descrições n.º …, …e ….»
U) Em 30.01.1998 foi proferida sentença, que decidiu: «declaro o autor (…) e a sua irmã (…) donos por usucapião do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º (…), a fls. 117 do Livro B-4 e inscrito na matriz sob o artigo (…), localizado a nascente da Vila de Grândola em transversal à Av. (…), actualmente denominado Rua (…), com o n.º 55 de policia, composto por um prédio urbano térreo de construção regular, destinado ma indústria de cortiça composto de armazém e quatro arrecadações com a área coberta de 2189 m2 e que confronta a norte e poente com azinhagas públicas, sul com o Bairro (…) e nascente com a rua pública; Consequentemente e em conformidade com o decidido em A), deve o registo a que corresponde a descrição predial n.º …, a fls. …, do Livro …, da Conservatória do Registo Predial de Grândola ser rectificado a favor do Autor e da sua irmã, eliminando-se as actuais descrições n.º (…) e (…).»
V) Na mencionada acção, (…) invocou que o prédio era propriedade de seu pai, que o adquiriu por compra e que após a sua morte a posse transmitiu-se para si e para a sua irmã Ivone, tal como desde 1946 vinha acontecendo com os antepassados das pessoas que o venderam ao pai do autor.
W) Nenhum dos réus contestou a acção, sendo que alguns foram citados editalmente e representados pelo Ministério Público.
X) A sra. D. (…) só veio a ter conhecimento da existência da acção após receber notificações da AT para proceder ao pagamento do IMI relativo ao prédio, muito após o trânsito em julgado da sentença.
Y) (…) foi administrador da ré.
Z) O prédio era um activo da sociedade ré Estabelecimento (…).
AA) A ré foi constituída na década de 40 do século passado.
BB) Em 1970, a ré denominava-se Estabelecimentos (…), SARL.
CC) Em Outubro de 1986, a ora ré foi transformada numa sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, passando a denominar-se Estabelecimentos (…) – Compra e Venda de Propriedades, Lda. e tendo o seguinte objecto social: fabrico, exportação de cortiças, construção civil, exploração agrícola, compra e venda de propriedades, agência de fabricantes nacionais e estrangeiros, importações e exportações.
DD) A ré foi proprietária da sociedade Cortiças (…), Lda. até meados dos anos 80 quando se procedeu à sua liquidação.
EE) Na década de 40 do século passado, a ré tomou de arrendamento (um arrendamento de longa duração), aos proprietários de então, o prédio.
FF) Nos anos 40 do século passado, a ré, a suas expensas, mandou ali construir uma fábrica de transformação de cortiças, a Fábrica de (…).
GG) Ali fez laborar a actividade corticeira de uma das suas subsidiárias: a já referida Cortiças (…), Lda..
HH) Tendo realizado diversas construções ao longo dos anos 40, 50, 60 e 70.
II) Em 29 de Outubro de 1968, através do conhecimento da SISA n.º 182/3348, do ano de 1968, a ré pagou o imposto municipal da SISA devido pela aquisição dos prédios identificados no contrato-promessa.
JJ) Por contrato-promessa de compra e venda de 9 de Junho de 1970 que subscreveu na qualidade de segundo outorgante e promitente compradora a Estabelecimentos (…), SARL, os proprietários prometeram vender «(1) terreno onde se encontra implantada a Fábrica da (…), Lda., com área de 11130 m2, descrito na Conservatória sob o n.º … (2) terreno onde se encontravam implantados os edifícios de garagem, escritório e depósito da referida Fábrica (…), Lda,, com a área de 659 m2 (…) (3) terreno sito em frente ao local onde se encontra implantada a fábrica referida nas alíneas anteriores, com área de 6.780 m2 confrontando a Norte com terrenos arrendados a (…) e (…), descrito na Conservatória sob o n.º (…) todos a destacar a da Herdade da (…)».
KK) Previa-se no mencionado contrato de compra e venda (1) o pagamento de 200.000$00 no dia da assinatura do contrato promessa (Cláusula 3ª); (2) pagamento do remanescente – 70.430$00 – na data da escritura (Cláusula 6ª); (3) A escritura seria marcada pelos promitentes vendedores (Cláusula 4ª).
LL) Desde então, a ré deixou de pagar qualquer renda aos anteriores proprietários do prédio.
MM) Em meados da década de 80 do século passado, a ré tentou, por diversas vezes, interpelar pessoalmente os promitentes vendedores para a realização da escritura que cabia aos promitentes vendedores marcar.
NN) Fê-lo, nomeadamente, através de uma acção judicial de fixação de prazo.
OO) Uma das rés (promitente vendedora no contrato de 1970), a sra. (…), contestou a acção invocando a ilegitimidade passiva por não ser proprietária do prédio.
PP) Desde a década de 40 do século passado, a ré vem exercendo a posse do prédio de uma forma pacífica, pública, reiterada e sem qualquer interrupção ou oposição de quem quer que seja e à vista de toda agente.
QQ) E exerce tal posse com a convicção de que o prédio é seu desde, pelo menos, 1985, data em que ficou claro para a ré que os promitentes vendedores no contrato celebrado em 1970 tinham, pura e simplesmente, abdicado da realidade relativa ao prédio.
RR) Entretanto, em 1991, estando numa situação financeira difícil, a ré veio solicitar processo de recuperação especial de empresa (processo n.º 9489/1991).
SS) Em 14 de Fevereiro de 1994, por sentença proferida nos referidos autos, veio a ora ré a ser declarada em estado de falência.
TT) No âmbito desse referido processo, em 5 de Abril de 1994, foi realizado um auto de apreensão de bens, a favor da massa insolvente, do qual consta o prédio.
UU) Entretanto, no ano de 2004, a ré foi reabilitada, deixando de estar em situação de falência.
VV) Por volta do ano de 2000, o prédio foi dado em comodato ao sr. (…), por ordem do sr. Dr. (…) e (…).
WW) Situação de facto que, entretanto, vem sendo formalizada através de sucessivos contratos escritos de comodato, do qual é exemplo o denominado «Contrato de Comodato», celebrado no dia 20 de Maio de 2016.
XX) O sr. (…) tem, durante todos estes anos, cuidado do prédio que lhe foi dado em comodato (tendo ali depositados diversos instrumentos de trabalho e armazenando produtos).
YY) Ali apascenta os seus caprinos, as suas galinhas e os seus patos.
ZZ) E até há poucos anos, ali armazenava os seus produtos que comprava no produtor para posteriormente vender a várias mercearias existentes em Grândola.
AAA) Em Setembro de 2021, (…) e (…) afirmaram perante o sr. (…), serem netas do sr. (…) pediram ao sr. (…) para entrar no prédio.
BBB) Disseram, para além do mais, que estavam ali por ordem dos seus advogados.
CCC) E, após uma pequena conversa e uma colocação de cadeados, acabaram por se retirar.
DDD) O legal representante da ré nunca deixou de reclamar junto de (...) a propriedade do prédio, fazendo-o como o fez na missiva que lhe remeteu a 1 de Agosto de 2014, que foi junta como doc. 22 que aqui se dá por reproduzida e onde, além do mais, fez constar que «O terreno em Grândola, denominado Fábrica da (…), era um activo da firma Estabelecimentos (…), Compra e Venda de Propriedades, Lda. e tocou à parte da minha mãe no acordo de partilha entre esta e o mesmo tio. O seu marido e meu tio (…), sabendo desta realidade, fez uma justificação notarial, aproveitando-se de um momento de falência da empresa. (…) Se de facto há arrependimento em relação ao acto cometido, estou disponível para pagar as contribuições prediais (IMI) já pagas por vós, assim como todos os custos inerentes ao acto notarial e advogados para que seja devolvido o bem em causa à firma Estabelecimentos (…), Compra e Venda de Propriedades, Lda.».
EEE) Em resposta àquela carta, o sr. Advogado Dr. (…), por carta datada de 10 de Setembro de 2014, refere o seguinte: «(…) o sr. (…) aceita vender à referida sociedade a metade que lhe pertence, desde que seja reembolsado de todas as despesas que tem feito com a mesma, designadamente com impostos (cerca de € 7.000,00) e com os custos da acção de usucapião e com os notários e advogados. (…) Não foram feitas contas de pormenor, mas calculo em € 60.000,00 o total despendido até regularização do imóvel de forma a poder ser vendido. Embora há alguns anos tenha chegado a haver propostas de compra e venda do total do imóvel por cerca de dois milhões de euros, o sr. (…) está disposto a vender a metade pelos referidos € 60.000,00.»
FFF) Também em carta datada de 2 de Fevereiro de 2017 (na sequência das anteriores), remetida pela ré aos Srs. (…) e (…), refere-se, entre outras coisas, o seguinte: «Estamos a enviar em anexo as últimas cartas que nos enviaram assim como a do V/advogado. O conteúdo dessas cartas era no sentido da devolução do bem que nos foi subtraído e que estava no acordo de partilha entre si e a mãe do signatário D. (…). Aproveitou-se V. Exa. de uma desatenção nossa para registar a propriedade em seu nome numa atitude de esbulho, como sabe.»
GGG) Por escritura de doação de 29-11-2005, (…) doou à ré a metade indivisa do prédio urbano identificado em A).
Da Réplica
HHH) As construções existentes no prédio foram relacionados nas Finanças por óbito dos bisavós dos requerentes nas relações de bens que foram apresentadas por óbito de (…) e esposa (…), nos seguintes termos: «um prédio urbano, composto de casa térrea, com área de 632 m2, destinado a garagem, armazém e escritório de uma fábrica da cortiça, inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Grândola sob o artigo (…), implantado em terreno alheio (…) e sob a verba 55 edifícios destinados a fábrica da cortiça, inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Grândola sob os artigos (…), (…), (…), (…) e (…), implantados em terreno alheio, pelo qual paga a renda anual de 36$00».
III) A Câmara Municipal de Grândola várias vezes interpelou o avô dos requerentes acerca da necessidade de proceder à limpeza dos terrenos.
Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:
1) A ré não obteve sucesso com a acção referida em NN).
2) A ré foi reabilitada por força dos constantes suprimentos que a sociedade (…) – Lisboa, (…) Turismo, S.A. foi concedendo, ao longo dos anos 90 do século passado e início do século XXI, à ré – no valor de cerca de € 4.000.000,00 (quatro milhões de euros).
3) O sr. (…) todos os anos manda a um tratorista gradar a terra e, logo de seguida, procede à sementeira de diversas culturas, nomeadamente de aveia, que posteriormente serve de alimento aos seus animais.
4) O sr. (…) tem mantido a propriedade da ré, nomeadamente arranjando os seus portões.
5) Por determinação da ré o sr. (…) possui (em exclusivo) as chaves dos cadeados que fecham os dois portões existentes no prédio – que representam as únicas duas formas de aceder ao prédio.
6) Até porque o sr. (…) vive numa moradia ao lado do prédio.
7) Tal como o avô dos requerentes e, após a doação que lhe foi feita, os requerentes têm pago os IMI´s da sua parte na propriedade dos autos.
8) O sr. (…) referiu o sr. (…) e o próprio avô dos requerentes, (…), eram pessoas que lhe mereciam grande consideração, acrescentando ainda que estava ali porque os srs. (…) o tinham autorizado, permitindo-lhe que fizesse a exploração de alguma parte agrícola para que a propriedade não ficasse abandonada.
9) O avô dos Requerentes foi fazendo alguns, designadamente com o sr. (…), em 2007, que naturalmente chegou a estar no local com animais, a igualmente proceder ao uso dele para efeitos de conservação.
10) Ao fim de pouco tempo e por uso da força, mediante ameaças, foi levado o referido sr. (…) a abandonar a parte que tinha exploração, uma vez que não queria entrar em confusões.
A recorrente sustenta que a sentença padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, porquanto nela se concluiu que os recorridos adquiriram a posse sobre o prédio sem se ter dado como provado qualquer facto que sustente tal conclusão.
A tese da recorrente parece ser a seguinte: o artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, estabelece que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; logo, cada conclusão a que o tribunal chegue em sede de fundamentação de direito terá de encontrar fundamento em um ou mais factos provados; se uma dessas conclusões jurídicas carecer de suporte factual, estar-se-á, nesse segmento, perante uma absoluta falta de fundamentação de facto, que preenche a previsão daquela norma legal.
Estamos perante uma tese engenhosa, mas errada.
Na parte que agora nos interessa, o artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, tem em vista a globalidade da fundamentação de facto de uma sentença. É isso que se pretende significar quando ali se fala na nulidade da sentença que não especifique os seus fundamentos de facto. Tem-se em vista as hipóteses em que a sentença não contém, de todo, os fundamentos de facto da decisão[1], e não também aquelas em que apenas uma das conclusões jurídicas em que esta última assenta carece de tal fundamentação. Estas últimas são precisamente o oposto de uma global ausência de fundamentação de facto: são lacunas pontuais da fundamentação de facto, que de forma alguma cabem na previsão da norma legal que vimos referenciando.
Além de errada, a tese do recorrente carece de correspondência com os termos da sentença. Nesta, o tribunal a quo concluiu que o avô dos recorridos adquiriu a posse sobre o prédio por via da procedência da acção referida nos pontos T a X do EFP. Esta conclusão pode ser juridicamente errada, mas encontra-se factualmente sustentada, no sentido de que o tribunal a quo indicou a matéria de facto provada com base na qual a ela chegou. Estaremos, quando muito, perante um erro de direito, que não determina a nulidade da sentença.
2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
2.1. O ponto C do EFP tem a seguinte redacção:
«A propriedade dos autores da sua parte adveio-lhes por doação de seu avô (…), feita através de escritura pública de 27.09.2019, outorgada no Cartório Notarial da Dra. (…), em Lisboa.»
A recorrente pretende expurgar, deste ponto do EFP, o reconhecimento, que nele é feito, de que os recorridos são comproprietários do prédio, por entender que tal não corresponde à realidade.
A recorrente tem razão. Discutindo-se neste processo se os recorridos são comproprietários do prédio ou se, em vez disso, o direito de propriedade sobre este é da exclusiva titularidade da recorrente, não é admissível que o tribunal responda a essa questão num ponto do EFP, como se de um mero facto, susceptível de prova, se tratasse. É evidente que não estamos perante um facto, mas sim perante uma conclusão jurídica, a sustentar em sede de fundamentação de direito.
Terá, pois, o ponto C de ser redigido de forma descritiva e não conclusiva, nos seguintes termos:
«Através de escritura pública de 27.09.2019, outorgada no Cartório Notarial da Dra. (…), em Lisboa, (…), avô dos autores, declarou doar-lhes o prédio descrito em A».
2.2. O ponto Z do EFP tem a seguinte redacção:
«O prédio era um activo da sociedade ré Estabelecimento (…).»
A recorrente pretende a alteração do tempo verbal, por forma a que passe a constar daquele ponto que o prédio é um activo seu. Porém, a mesma razão que determinou a alteração do ponto C, impõe a manutenção do ponto Z. Saber se a totalidade do direito de propriedade sobre o prédio continua a ser um activo da recorrente, constitui uma questão central deste processo e tem manifesta natureza conclusiva, pelo que não pode ser resolvida mediante a deslocada e prematura inclusão dessa conclusão num ponto do EFP.
2.3. O ponto HHH do EFP tem a seguinte redacção:
«As construções existentes no prédio foram relacionados nas Finanças por óbito dos bisavós dos requerentes nas relações de bens que foram apresentadas por óbito de (…) e esposa (…), nos seguintes termos: «um prédio urbano, composto de casa térrea, com área de 632 m2, destinado a garagem, armazém e escritório de uma fábrica da cortiça, inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Grândola sob o artigo (…), implantado em terreno alheio (…) e sob a verba 55 edifícios destinados a fábrica da cortiça, inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Grândola sob os artigos (…), (…), (…), (…) e (…), implantados em terreno alheio, pelo qual paga a renda anual de 36$00».
A recorrente pretende que passe a ter a seguinte redacção:
«Umas construções, entretanto desaparecidas em virtude de um incêndio ocorrido no prédio em 1967, foram relacionados nas Finanças por óbito dos Bisavós dos Requerentes nas relações de bens que foram apresentadas por óbito de (…) e esposa (…), nos seguintes termos: “um prédio urbano, composto de casa térrea, com área de 632 m2, destinado a garagem, armazém e escritório de uma fábrica da cortiça, inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Grândola sob o artigo (…), implantado em terreno alheio (…) e sob a verba 55 “edifícios destinados a fábrica da cortiça, inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Grândola sob os artigos (…), (…), (…), (…) e (…), implantados em terreno alheio, pelo qual paga a renda anual de 36$00”I. O sr. (…) requereu a eliminação desses artigos junto do serviço de finanças no dia 9 de Outubro de 1968.»
Não divisamos qual pudesse ser a relevância da alteração que a recorrente pretende para a decisão da causa. Estando em discussão saber se se verificaram os pressupostos da aquisição, pela recorrente, do direito de propriedade sobre o prédio por usucapião, e, nesse contexto, quando se iniciou a posse daquela, não vemos em que medida a alteração proposta pudesse influir na resposta a dar a estas questões.
Sendo assim, em cumprimento do disposto no artigo 130.º do CPC, que proíbe a prática de actos processuais inúteis, não conheceremos da impugnação da decisão do tribunal a quo sobre o ponto HHH do EFP.
2.4. A recorrente pretende que seja aditado, ao EFP, o seguinte:
«Relativamente ao prédio objecto dos autos, foi apresentado no serviço de finanças de Grândola, em 19 de Maio de 1970, a Declaração Modelo n.º 129 para inscrição do prédio urbano, como novo, em nome da Ré, dando origem ao artigo (…)que hoje corresponde ao artigo matricial (…).»
Não o faremos, pela razão que indicámos em 2.3. Não vemos em que medida o aditamento pretendido pela recorrente pudesse influir na decisão da causa.
2.5. A recorrente pretende que o ponto 10 do enunciado dos factos não provados (EFNP) seja incluído no EFP. É ele o seguinte:
«Ao fim de pouco tempo e por uso da força, mediante ameaças, foi levado o referido sr. (…) a abandonar a parte que tinha exploração, uma vez que não queria entrar em confusões.»
Este facto surge desgarrado no EFNP, não tendo qualquer enquadramento no EFP, onde o referido «sr. (…)» nunca é, sequer, mencionado. Daí que a sua inclusão no EFP, de forma completamente descontextualizada, como a recorrente pretende, não fizesse qualquer sentido, nem tivesse qualquer utilidade para a decisão da causa.
2.6. A recorrente pretende que seja aditado o seguinte ao EFP:
«A posse da ré sobre o prédio objecto dos autos é exercida de uma forma pacífica, pública, reiterada e de boa-fé e sem qualquer interrupção ou oposição de quem quer que seja, à vista de toda agente e com a convicção de que o prédio é seu, pelo menos, desde o dia 9 de Junho de 1970.»
Estamos perante matéria de natureza puramente conclusiva. Sintomaticamente, a recorrente formula esta pretensão na sequência, não da invocação de concretos meios de prova, mas de uma longa exposição de argumentos que, no seu entendimento, conduzem à referida conclusão.
A sede própria para enunciar conclusões de natureza jurídica é a fundamentação de direito e não o EFP. Consequentemente, não procederemos ao aditamento da matéria em questão.
2.7. Subsidiariamente ao referido em 2.6, a recorrente pretende que, do ponto QQ do EFP, passe a constar que a sua posse sobre o prédio é de boa-fé. Não o faremos, pois trata-se de matéria conclusiva. Damos por reproduzido quanto afirmámos em 2.6.
2.8. Subsidiariamente ao referido em 2.7, a recorrente pretende que seja aditado o seguinte ao EFP:
«E exerce tal posse de boa-fé com a convicção de que o prédio é seu desde, pelo menos, 2000, data em que a ré entregou o prédio objecto dos autos em comodato ao sr. (…)».
Não vemos que utilidade poderia ter este aditamento, face ao teor dos pontos QQ e VV do EFP.
Sendo assim e atento o disposto no já citado artigo 130.º do CPC, esta pretensão da recorrente não será atendida.
2.9. Concluindo, a única alteração a introduzir na decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto é a referida em 2.1.
Assim, o ponto C do EFP passa a ter a seguinte redacção:
«Através de escritura pública de 27.09.2019, outorgada no Cartório Notarial da Dra. (…), em Lisboa, (…), avô dos autores, declarou doar-lhes o prédio descrito em A».
3 – Verificação dos pressupostos da usucapião a favor da recorrente:
3.1. O tribunal a quo julgou não verificados os pressupostos da usucapião a favor da recorrente, com fundamentação que assim se resume:
- A recorrente é detentora do prédio desde, pelo menos, a década de 1940, inicialmente como arrendatária e, desde 09.06.1970, com base num contrato-promessa de compra e venda;
- A recorrente não adquiriu o animus da posse em 09.06.1970, pois tinha consciência da necessidade de realizar a escritura de compra e venda;
- Apenas em 1985, com o posicionamento dos réus da acção de fixação judicial de prazo, no sentido de não se considerarem proprietários do prédio, a recorrente passou a exercer, sobre este, uma verdadeira posse, com corpus e animus;
- Em 30.01.1998, foi proferida sentença declarando o avô dos recorridos e sua irmã, (…), como donos do prédio, por usucapião;
- Embora não se tivesse provado exactamente em que data a recorrente tomou conhecimento dessa sentença, provou-se que, por escritura de doação celebrada em 29.11.2005, (…) lhe doou a metade indivisa do prédio cuja titularidade lhe fora judicialmente reconhecida;
- É, pois, inequívoco que, pelo menos desde 29.11.2005, a recorrente sabe que um terceiro (o avô dos recorridos) se arrogava de comproprietário do prédio, actuando como tal, o que se traduz numa «inversão do título da posse à posse anteriormente exercida pela ré»;
- Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 1267.º do CC, a posse perde-se pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano;
- Desde então, qualquer acto da recorrente sobre o prédio considera-se praticado no exercício do seu direito de compropriedade.
Concluiu, assim, o tribunal a quo que «Ainda que se admitisse que a Ré exerceu uma posse em condições de lhe permitir validamente adquirir o prédio por usucapião (posse com corpus e animus, pública, titulada, pacífica e de boa-fé) desde 1985, a sentença judicial de 30-01-1998 da qual inequivocamente teve conhecimento em 29-11-2005 que reconheceu o direito de propriedade a (…) e (…), interrompeu e fez cessar tal posse, nos termos dos artigos 1257.º, n.º 1, alínea d) do n.º 1 do artigo 1267.º, ambos do Código Civil, por consubstanciar a mesma uma inversão do título da posse.»
Não acompanhamos o entendimento do tribunal a quo. A matéria de facto provada demonstra, de forma exuberante, que se verificaram os pressupostos da aquisição, pela recorrente, do direito de propriedade sobre o prédio por usucapião. Passamos a justificar esta afirmação.
3.2. A afirmação, feita na sentença recorrida, de que a recorrente não adquiriu o animus da posse, nos termos do direito de propriedade, em 09.06.1970, porque tinha consciência da necessidade de realizar a escritura de compra e venda, inculca que o tribunal a quo considera que o animus consiste na convicção, por parte do possuidor, de que é ele o titular do direito em cujos termos exerce a posse. Tendo o agente consciência daquela necessidade, ficaria logicamente afastada esta convicção e, por essa via, o animus.
Não é assim.
O animus não consiste na convicção, por parte do possuidor, de que é ele o titular do direito em cujos termos exerce a posse. Desde logo, o possuidor de má fé, que é aquele que exerce a posse sabendo que lesa o direito de outrem, ainda é possuidor (artigos 1258.º e 1260.º do CC) e, como tal, pode adquirir o direito real em cujos termos exerce a posse mediante usucapião, embora, para este efeito, a lei estabeleça, em regra, prazos mais longos que para o possuidor de boa fé [artigos 1294.º, alínea b), 1295.º, n.º 1, alínea b), 1296.º, 1298.º e 1299.º do CC].
O animus consiste na vontade de exercer, sobre uma coisa, os poderes que integram o conteúdo do direito real nos termos do qual a posse é exercida, ainda que o agente saiba que não é o titular desse direito. Por outras palavras, consiste na intenção de agir como titular daquele direito, independentemente da convicção que tenha acerca dessa titularidade[2].
Esta precisão reveste enorme importância, pois permitir-nos-á uma abordagem da matéria de facto provada completamente diversa daquela a que o tribunal a quo procedeu.
3.3. Resulta da matéria de facto provada que a recorrente sempre actuou sobre o prédio com a convicção de que, ao fazê-lo, não lesava o direito de outrem, fosse dos seus antigos senhorios, fosse do avô dos recorridos.
A actuação da recorrente é linear: passou de arrendatária a promitente compradora, pagou então a SISA porque tinha o prédio em seu poder e pretendia comprá-lo, pagou imediatamente cerca de ¾ do preço acordado com os seus antigos senhorios e promitentes vendedores, deixou de pagar a renda, diligenciou repetidamente no sentido de o contrato prometido ser celebrado, exerceu, de forma pública, os poderes de um proprietário sobre o prédio ao longo de décadas e, quando confrontada, já neste século, com a pretensão do avô dos recorridos sobre o prédio, defendeu, perante este, aquilo que considerava ser o seu direito. Claramente, a recorrente quis adquirir o direito de propriedade sobre o prédio aos então titulares desse direito, actuou nesse sentido em conformidade com a lei e apenas não logrou celebrar o contrato de compra e venda por falta de colaboração daqueles.
Consequentemente, a posse que a recorrente adquiriu (adiante veremos quando isso aconteceu) e vem exercendo sobre o prédio deve ser qualificada como de boa fé, nos termos do n.º 1 do artigo 1260.º do Código Civil.
A relevância desta qualificação é evidente: nos termos do artigo 1296.º do CC, o prazo de usucapião é de 15 anos.
3.4. Estamos, agora, em condições de analisar em que momento a recorrente adquiriu, sobre o prédio, uma posse correspondente ao direito de propriedade que pretende ter adquirido por usucapião, e se essa posse se prolongou pelo tempo legalmente exigido, que é, como concluímos em 3.3, de 15 anos.
Na década de 40 do século XX, a recorrente tomou o prédio de arrendamento e, a suas expensas, aí mandou construir uma fábrica de transformação de cortiça, que passou a explorar através de uma sociedade por si detida. Ao longo das décadas de 40, 50, 60 e 70 do século XX, a recorrente realizou diversas construções no prédio.
Em 09.06.1970, a recorrente celebrou, com os seus senhorios, um contrato-promessa de compra e venda do prédio. Foi estipulado o preço de Esc. 270.430$00, por conta do qual a recorrente pagou imediatamente Esc. 200.000$00. O remanescente deveria ser pago aquando da celebração do contrato prometido. A partir de 09.06.1970, não mais a recorrente pagou qualquer renda relativa ao prédio.
Menos de 2 anos antes, em 20.10.1968, a recorrente pagara a SISA correspondente à compra do prédio.
Em meados da década de 80 do século XX, a recorrente tentou, repetidamente, interpelar pessoalmente os promitentes vendedores para a realização da escritura, que a estes cabia marcar. Inclusivamente, a recorrente propôs uma acção de fixação judicial de prazo contra os promitentes vendedores, na qual um destes excepcionou a sua ilegitimidade por já não ser proprietário do prédio. Não obstante, a escritura nunca chegou a realizar-se.
Para se perceber o que se passou em 09.06.1970, estes factos têm de ser interpretados no seu conjunto. Não pode atentar-se, meramente, na denominação dada pelas partes ao contrato nessa data celebrado, para concluir, de forma simplista, que a celebração de um mero contrato-promessa de compra e venda não é idónea para investir o promitente comprador na posse da coisa prometida vender nos termos de um direito de propriedade. A realidade com que nos deparamos é bem mais complexa.
A iniciativa da recorrente de, em 20.10.1968, efectuar o pagamento da SISA correspondente à compra do prédio, inculca que, já nessa data, existia uma firme intenção daquela e, ao que tudo indica, dos então proprietários do prédio, de efectuar a compra e venda deste. Ninguém se apresenta a pagar um imposto devido por uma compra e venda numa circunstância diversa da descrita.
Porém, só quase 2 anos depois a recorrente e os proprietários do prédio celebraram um contrato visando a concretização daquela intenção. Pior, não se tratou do almejado contrato de compra e venda, que transmitisse desde logo o direito de propriedade, mas de um mero contrato-promessa de compra e venda. Nada legitima a suspeita de que alguma das partes tivesse vacilado na intenção de comprar ou de vender o prédio. Ao invés, tudo aponta para que, como era e continua a ser vulgar, dificuldades burocráticas impedissem a imediata realização da escritura pública de compra e venda.
Nestas circunstâncias, a recorrente e os então proprietários do prédio celebraram o contrato que lhe era possível celebrar. Os termos em que o fizeram corroboram a ideia, que já resultava da exposição anterior, de que, com essa celebração, uma e outros quiseram, na realidade, transferir o domínio do prédio, uma vez que a recorrente pagou imediatamente cerca de ¾ do preço, o que é muito mais que o valor habitual de um mero sinal.
Corrobora a mesma ideia o facto de, a partir do momento em que o contrato-promessa de compra e venda foi celebrado, a recorrente ter deixado de pagar a renda devida como contrapartida pelo gozo do prédio.
Anos depois, ocorreu um novo facto corroborador da ideia de que, com a celebração do contrato-promessa de compra e venda, a recorrente e os então proprietários do prédio quiseram transferir, desde logo, o domínio deste. Na acção de fixação judicial de prazo proposta pela recorrente, um dos promitentes vendedores excepcionou a sua ilegitimidade, alegando já não ser proprietário do prédio. Trata-se de um elemento da maior importância para a interpretação da vontade das partes do contrato-promessa de compra e venda aquando da celebração deste, inculcando que a intenção de todas elas foi a de operar a transferência imediata do domínio sobre o prédio, constituindo a ulterior realização da escritura pública de compra e venda uma formalidade meramente confirmativa dessa transferência.
Como qualificar a situação descrita em termos possessórios?
Até ao dia 09.06.1970, é seguro que a recorrente, como arrendatária do prédio, era uma mera detentora ou possuidora precária deste, nos termos da alínea c) do artigo 1253.º do CC. Limitava-se a exercer uma posse em nome dos proprietários e senhorios. Eram estes os verdadeiros possuidores do prédio nos termos do direito de propriedade.
No dia 09.06.1970, tudo mudou. As partes celebraram um contrato-promessa de compra e venda, mas a sua real vontade foi a de transferir, desde logo, a posse que os promitentes vendedores vinham exercendo para a recorrente. Daí os promitentes vendedores terem recebido imediatamente cerca de ¾ do preço estipulado, terem deixado de receber renda da recorrente como contrapartida pelo gozo do prédio e nunca mais terem desenvolvido qualquer actuação material sobre o prédio. Os promitentes vendedores desinteressaram-se, em absoluto, pelo prédio. Inclusivamente, um deles, quando demandado pela recorrente com o objectivo de ser fixado um prazo para a realização da escritura pública, excepcionou a sua ilegitimidade alegando já não ser proprietário. A recorrente, por seu turno, passou a actuar como se fosse a única proprietária do prédio, deste retirando todas as utilidades que o mesmo lhe proporcionava sem pagar qualquer contrapartida fosse a quem fosse e nele continuando a fazer investimentos. E tem-no feito com a evidente intenção de actuar nesses termos, sem qualquer limitação.
Perante isto, impõe-se concluir que, no dia 09.06.1970, a recorrente adquiriu a posse sobre o prédio nos termos do direito de propriedade. Essa posse foi-lhe transmitida pelos anteriores possuidores, nos termos da alínea b) do artigo 1263.º do Código Civil. Independentemente desta transmissão, a mesma posse sempre teria sido adquirida pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, nos termos da alínea a) do mesmo artigo.
Sendo assim, o prazo de usucapião, de 15 anos, completou-se no dia 09.06.1985. Nesta data, a recorrente adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio mediante usucapião. Muito tempo antes de o avô dos recorridos propor, contra os anteriores proprietários do prédio, a acção descrita nos pontos T a X do EFP. E ainda mais tempo antes da doação descrita no ponto C do EFP. A inscrição no registo predial, a favor dos recorridos, que é referida no ponto A do EFP, feita com base na sentença proferida naquela acção, não tem correspondência com a realidade, pelo que se encontra ilidida a presunção estabelecida no artigo 7.º do Código do Registo Predial.
Aqui chegados, já é possível concluir que o recurso procede. Não obstante, deixaremos algumas notas acerca da suposta inversão do título da posse que é referida na sentença recorrida.
3.5. O tribunal a quo entendeu que se verificou uma inversão do título da posse que a recorrente exercia sobre o prédio, decorrente de o avô dos recorridos, em acção por si proposta contra os anteriores proprietários, ter sido judicialmente declarado como comproprietário daquele. A este propósito, escreveu-se, na sentença recorrida, o seguinte: «Ainda que se admitisse que a Ré exerceu uma posse em condições de lhe permitir validamente adquirir o prédio por usucapião (posse com corpus e animus, pública, titulada, pacífica e de boa-fé) desde 1985, a sentença judicial de 30-01-1998 da qual inequivocamente teve conhecimento em 29-11-2005 que reconheceu o direito de propriedade a (…) e (…), interrompeu e fez cessar tal posse, nos termos dos artigos 1257.º, n.º 1, alínea d) do n.º 1 do artigo 1267.º do Código Civil, por consubstanciar a mesma uma inversão do título da posse.»
Não é assim. Nem a propositura, pelo avô dos recorridos, da acção descrita nos pontos T a X do EFP, nem a prolação de sentença a ele favorável nessa acção, determinaram qualquer inversão do título da posse da recorrente, por não serem, para tanto, idóneas.
O artigo 1263.º, alínea d), do CC, prevê, como forma de aquisição da posse, a inversão do título desta. O artigo 1265.º do mesmo código estabelece que a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.
Resulta da conjugação destas duas normas legais que: i) a inversão do título da posse constitui uma forma de aquisição da posse por quem já detinha a coisa mas não era possuidor; ii) por efeito de um acto praticado pelo detentor, sozinho ou com o concurso de um terceiro que, com ele, pratique um acto idóneo para transferir a posse.
Nesta ordem de ideias, ensina António Menezes Cordeiro que a inversão do título da posse «é a constituição de uma situação possessória a favor do detentor», «é uma operação pela qual o detentor obtém, ex novo, uma situação possessória, com referência à coisa que já detinha», para a qual se exige «uma actuação efectiva contra o possuidor – isto é, sendo esse o caso, a pessoa em nome da qual possuía – de tal modo que, com publicidade, que também aqui deverá ser exigida, seja cognoscível, pelos interessados, a verdadeira posse em nome próprio», e que «acto de terceiro capaz de transferir a posse é, no fundo, um acto do próprio detentor, celebrado com um terceiro, que dê corpo a uma decorrência não enquadrável numa situação de mera detenção»[3]
Como é bom de ver, a figura da inversão do título da posse nada tem a ver com factos da natureza daqueles que o tribunal a quo nela enquadrou. Dela estão excluídos, nomeadamente, actos praticados por um terceiro sem o concurso de quem tem a coisa em seu poder, seja como detentor, seja como possuidor. Ainda que ponham em causa essa detenção ou essa posse, tais actos não caberão nos quadros da inversão do título da posse.
Sendo assim, a propositura, pelo avô dos recorridos, da acção descrita nos pontos T a X do EFP, e a prolação de sentença a ele favorável nessa acção, em nada prejudicaram a posse que a recorrente vinha exercendo. Não a fizeram cessar, nem sequer a desvalorizaram. Tratou-se de uma acção proposta contra pessoas diversas da recorrente, de que esta só teve conhecimento 9 anos depois dessa propositura, e que não a podia afectar.
A conclusão a que acabamos de chegar tem, evidentemente, consequências na apreciação da situação dos autos.
Ainda que a posse da recorrente sobre o prédio se tivesse iniciado apenas em 1985, como se entendeu (mal, como concluímos em 3.4) na sentença recorrida, a mesma prolongou-se até à actualidade, sem qualquer «inversão do título da posse» que a fizesse cessar ou a desqualificasse. Logo, sempre a recorrente teria adquirido o direito de propriedade sobre o prédio 15 anos depois, em 2000. Ou seja, o recurso procederia de igual modo.
3.6. Verificando-se os pressupostos da usucapião a favor da recorrente, conclui-se que esta é a única proprietária do prédio.
Em consequência disso:
- A acção terá de ser julgada improcedente, porquanto não se verifica a situação de compropriedade invocada pelos recorridos;
- A reconvenção deverá ser julgada procedente, declarando-se a recorrente como única e exclusiva titular do direito de propriedade sobre o prédio e ordenando-se o cancelamento do registo predial actualmente existente a favor dos recorridos, o qual se encontra, como acima concluímos, desconforme com a realidade;
- A responsabilidade pelas custas processuais, em ambas as instâncias, recai sobre os recorridos, nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, nos seguintes termos:
- Julga-se improcedente a acção, absolvendo-se a recorrente do pedido;
- Julga-se procedente a reconvenção, declarando-se a recorrente, (…) – Lisboa, (…) Turismo, S.A., como única e exclusiva titular do direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua (…), n.º 55, com a área de 10.686 m2, inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…), concelho de Grândola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o registo n.º (…); em consequência, ordena-se o cancelamento do registo predial a favor dos recorridos.
Custas, em ambas as instâncias, a cargo dos recorridos.
Notifique.
25.06.2025
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Mário João Canelas Brás (1.º adjunto)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário (2.ª adjunta)
__________________________________________________
[1] À hipótese de absoluta ausência de fundamentação de facto, vem aquela que consideramos ser a melhor jurisprudência equiparando a de a fundamentação de facto ser de tal modo incompleta que torne a decisão incompreensível, isto é, que não permita, aos seus destinatários, a percepção das razões de facto que determinaram o tribunal a decidir como decidiu. Trata-se, contudo, de uma problemática sem interesse para a decisão do presente recurso, razão pela qual deixamos apenas nota da sua existência.
[2] Cfr., sobre esta questão, José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 5.ª edição, revista e ampliada, pág. 85, e Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris? – Sociedade Editora, 1996, págs. 238-239 e 250-251.
[3] Tratado de Direito Civil, XIII, Almedina, 2023, págs. 663 a 665.