TRANSACÇÃO JUDICIAL
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
ENTREGA JUDICIAL DE IMÓVEL
Sumário

A anormalidade das circunstâncias em que a transacção foi celebrada e produziu os seus efeitos iniciara-se quase 8 meses antes, pelo que, forçosamente, a recorrente e o recorrido tiveram-nas em conta.

Texto Integral

Processo n.º 181/22.2T8MMN-A.E1


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(…) deduziu embargos à execução para entrega de coisa certa contra si instaurada por Banco (…), S.A..

Na sequência da realização de audiência prévia, foi proferido saneador-sentença, mediante o qual os embargos foram julgados improcedentes.

A embargante interpôs recurso de apelação do saneador-sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – O presente recurso versa sobre o reconhecimento da alteração anormal de circunstâncias derivada do surto pandémico e subsequente modificação dos termos do acordo anteriormente alcançado para entrega do imóvel.

2 – Com efeito, o acordo que a recorrente e a recorrida alcançaram baseou-se em pressupostos económicos e até de disponibilidade temporal que foram indubitavelmente alterados pela ocorrência da pandemia Covid-19.

3 – E tal merece a tutela do direito, sensibilidade judicativa que, de forma decepcionante, a sentença recorrida não teve.

4 – A sentença recorrida coloca a questão a apreciar como se tratando da exigibilidade ou inexigibilidade de entrega do imóvel por força da alteração superveniente das circunstâncias.

5 – Antes como agora – e tendo presente a factualidade dada como provada que respeita a factos públicos e notórios que carecem até de alegação – a ora apelante sustenta o reconhecimento de uma alteração anormal das circunstâncias.

6 – Com efeito, entre apelante e apelada foi ajustado um prazo tido como equilibrado para que aquela se pudesse capitalizar e/ou desenvolver contactos e parcerias até já estabelecidas por força de um projecto de loteamento onde se situa o imóvel.

7 – Infelizmente, por força da pandemia, a apelante não conseguiu dispor de tempo e ambiente económico para agir como perspectivara, o que, aliás, era do conhecimento da própria instituição bancária ora recorrida.

8 – Como é evidente, a situação pandémica foi um motivo de força maior que afectou as expectativas contratuais em que as partes fundaram a sua decisão de contratar, maxime a apelante obrigada a proceder ao pagamento.

9 – Mal andou a sentença recorrida ao considerar que a situação pandémica, por si só, não justificou a impossibilidade de cumprimento das obrigações contratuais assumidas pela apelante e que tal carecia de comprovação quando é o tribunal a quo que decide não proceder à produção de prova.

10 – Assim, a decisão recorrida incorre no vício da insuficiência de factos para a decisão proferida pois não podia deixar de proceder à indagação e produção de prova sobre as causas do incumprimento e se estas resultam ou não do surto pandémico Covid-19.

11 – Sem conceder minimamente, ainda se dirá que o facto do acordo entre as partes ter surgido no domínio do estado de emergência em nada belisca justamente as limitações oriundas das consequências devastadoras no regular funcionamento da vida económica e social e, como tal susceptível de enquadrar a noção de alteração anormal das circunstâncias como tão bem se enunciou na sentença.

12 – Assim, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 437.º, n.º 1, do CPC.

13 – Deve, pois, a sentença recorrida ser anulada e substituída por uma outra que, segundo juízos de equidade, permita a modificação contratual e concessão de um prazo de seis meses para a apelante cumprir a obrigação de pagamento do preço.

Os factos julgados provados no saneador-sentença recorrido são os seguintes:

1. Banco (…), S.A., em 09.02.2022, intentou acção para execução de sentença contra (…), que corre termos neste juízo sob o n.º 181/22.2T8MMN, para entrega do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Viçosa, freguesia de (…), descrito sob o n.º (…).

2. A exequente deu à execução a sentença proferida no dia 16.11.2020, no âmbito da acção de processo comum n.º 283/18.0T8VVC, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Vila Viçosa, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, na qual figura como autor Banco (…), S.A. e como ré (…), junta aos autos principais com o requerimento executivo, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, que possui os seguintes dizeres relevantes para os presentes autos:

«Atento o objeto da presente acção, que se encontra na disponibilidade das partes, a qualidade destas últimas, que para o efeito têm legitimidade - encontrando-se a Ré representada pelo Ilustre Mandatário, munido com poderes especiais para o efeito, e a forma porque foi exarada, que é a legal, ao abrigo do disposto pelos artigos 1248.º e 1249.º do Código Civil e 283.º, n.º 2, 284.º, 287.º, 289.º, n.º 1, 290.º, n.º 1 e 3 e 277.º, alínea d), do CPC, julga-se válido o acordo celebrado, o qual se homologa, declarando-se extinta a instância (…)».

3. O acordo celebrado entre as partes a que a decisão mencionada em 2 se refere, foi alcançado no dia 16.11.2020, em diligência judicial, diz o seguinte:

«1. A Ré confessa-se devedora da Autora do montante de € 252.227,00 (duzentos e cinquenta e dois mil e duzentos e vinte e sete euros);

2. A Ré compromete-se, por si ou por interposta pessoa, a efectuar o pagamento da quantia referida em 1 até ao dia trinta de novembro de dois mil e vinte e um (30-11-2021);

3. Não sendo efectuado o pagamento no prazo acordado, a Ré obriga-se a restituir à Autora o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Viçosa, freguesia de (…), descrito sob o n.º (…), cuja aquisição se encontra registada a favor da Autora;

4. Caso seja feita a entrega do imóvel, considera-se extinta a dívida enunciada em 1, bem como de qualquer quantia devida associada ao presente contrato.

5. Custas em partes iguais, prescindindo as partes de custas de parte.».

4. Até 30.11.2021, (…) não procedeu ao pagamento à exequente da quantia de € 252.227,00.

5. (…) não entregou à exequente o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Viçosa, freguesia de (…), sob o n.º (…).

6. No dia 11.03.2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o estado de pandemia em face do impacto causado pelo surto pandémico de Covid-19 à escala global.

7. Em Março de 2020, surgiram em Portugal os primeiros casos de doença causados por um vírus denominado Sars-Cov-2, sendo a doença comumente designada por Covid-19.

8. No dia 19 de Março de 2020, foi decretado Estado de Emergência em Portugal, que foi sucessivamente renovado e apenas terminou em 2 de Maio de 2020.

9. No dia 6 de Novembro de 2020 foi decretado estado de emergência em Portugal, que foi sucessivamente renovado e apenas terminou em 30 de Abril de 2021.

10. Durante alguns períodos dos estados de emergência decretados, nomeadamente quando foram decretados confinamentos gerais e obrigatórios, apenas era permitida a circulação de cidadãos portugueses para determinadas actividades.

11. Foram decretados confinamentos gerais e obrigatórios nos períodos de Março a Abril de 2020 e Janeiro a Março de 2021.


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Está em causa saber:

- Se se verificou uma alteração das circunstâncias em que a recorrente fundou a sua decisão de celebrar o contrato de transacção que integra o título executivo;

- Se, a ter-se verificado, essa alteração justifica, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 437.º do CC, a prorrogação do prazo de pagamento da quantia de que a recorrente é devedora.

O contrato de transacção foi celebrado no dia 16.11.2020. Nele se estabeleceu um prazo de pagamento da dívida da recorrente que terminava no dia 30.11.2021.

Enquadremos estas duas datas.

No dia 19.03.2020, foi decretado o estado de emergência em Portugal, sucessivamente renovado até 02.05.2020.

No dia 06.11.2020, foi novamente decretado o estado de emergência em Portugal, sucessivamente renovado até 30.04.2021.

Foram decretados confinamentos gerais e obrigatórios nos períodos de Março e Abril de 2020 e Janeiro a Março de 2021.

Durante alguns períodos dos estados de emergência decretados, nomeadamente quando foram decretados confinamentos gerais e obrigatórios, apenas foi permitida a circulação de pessoas para determinadas actividades.

Constata-se que a transacção foi celebrada quase 8 meses depois da primeira declaração de estado de emergência em Portugal devido à crise pandémica. Mais, foi celebrada 10 dias depois da segunda declaração de estado de emergência.

Constata-se igualmente que, no decurso do prazo de pagamento estipulado na transacção, mais precisamente a partir de Maio de 2021, a situação pandémica e as limitações dela decorrentes conheceram um desagravamento.

Perante este quadro, carece de fundamento a invocação, feita pela recorrente, de uma alteração anormal de circunstâncias que tenha determinado que a exigência do pagamento da quantia em dívida dentro do prazo estipulado afectasse gravemente os princípios da boa fé e não estivesse coberta pelos riscos próprios da transacção. A anormalidade das circunstâncias em que a transacção foi celebrada e produziu os seus efeitos iniciara-se quase 8 meses antes, pelo que, forçosamente, a recorrente e o recorrido tiveram-nas em conta.

Aquilo que se verificou no decurso do prazo de pagamento da quantia devida pela recorrente estipulado na transacção não foi um agravamento das circunstâncias que se verificavam ao tempo da celebração desta, mas o seu inverso: em 30.04.2021, deixou de vigorar o estado de emergência em Portugal. Ou seja, a partir desta data, as circunstâncias melhoraram relativamente àquelas que se verificavam aquando da celebração da transacção.

Isto basta para concluir que não se encontram preenchidos os pressupostos de que o n.º 1 do artigo 437.º do CC faz depender a modificação do contrato. Nomeadamente, não se verifica qualquer insuficiência da matéria de facto enunciada no saneador-sentença recorrido. Este contém todos os factos relevantes para fundamentar a conclusão a que chegámos, que é idêntica àquela a que o tribunal a quo chegou.

Deverá, pois, o recurso ser julgado improcedente.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o saneador-sentença recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

25.06.2025

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Branco Coelho (1.º adjunto)

Eduarda Branquinho (2.ª adjunta)