CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENOVAÇÃO DO CONTRATO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário

1. A cláusula onde se estabelece que o contrato é renovável nos termos legais não aponta para um prazo de renovação específico, designadamente, contido na lei vigente na data da sua celebração, significando apenas que as partes optaram por não regular a matéria, pelo que o prazo de renovação será aquele que estiver em vigor no momento em que se completar o prazo de duração inicial do contrato.
2. Tratando-se de um contrato de duração limitada cuja vigência se iniciou em 2005, portanto, ainda na vigência do RAU, e cujo prazo de duração inicial se completou no ano de 2020, já na vigência do NRAU, o prazo de renovação a considerar é aquele que consta do artigo 26.º, n.º 3, do NRAU, porquanto se trata de norma de direito transitório material, que prevalece sobre o regime previsto no NRAU para a renovação do contrato.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 424/23.5T8TVR.E1
(1ª Secção)

Sumário: (…)

(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)


***

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I - Relatório
1. (…) e (…) deduziram contra (…), Irmãos, Lda., a presente ação de despejo, sob a forma comum, pedindo que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento identificado nos autos, com fundamento na utilização do locado pela R. para fim diverso do contratualizado e, em conformidade, seja a R. condenada a entregar o locado livre de pessoas e bens e a pagar uma indemnização aos AA., equivalente ao valor atual da renda, até efetiva restituição do locado.
Subsidiariamente, peticionam ainda que o tribunal declare a cessação do aludido contrato de arrendamento por caducidade, com efeitos a partir do dia 24 de abril de 2026, bem como a condenação da R. a restituir o locado aos AA., livre de pessoas e bens, e no pagamento de uma indemnização equivalente ao valor atual da renda, até efetiva restituição do bem.

2. Regularmente citada, a R. contestou, pugnando pela improcedência da ação.
Deduziu ainda reconvenção, entendendo que a caducidade do contrato de arrendamento apenas ocorrerá em 24 de abril de 2035, porquanto não se renovou por prazos sucessivos de 3 anos, mas antes pelo prazo de 15 anos, que corresponde ao prazo da sua duração inicial, pedindo ao tribunal que declare tal realidade.
Os AA. replicaram.

3. Foi elaborado despacho saneador e realizou-se audiência de julgamento, após o que se proferiu sentença, com o seguinte dispositivo:
Tudo visto e ponderado, julga-se a presente ação procedente, e em consequência decide-se:
a) Não declarar resolvido o contrato de arrendamento discutido nos autos com fundamento no uso do locado pela Ré, para fim diverso do contratado e em conformidade, absolve-se a Ré do pedido de condenação de entrega do locado livre de pessoas e bens e no pagamento de uma indemnização no valor de € 412,69, desde o trânsito em julgado da sentença que declare a resolução do contrato de arrendamento, até ao momento da restituição da coisa locada.
b) Declarar válida e regular a comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento por parte dos Autores, na qualidade de senhorios, ocorrendo, por este meio e se outra causa não sobrevier, o termo do contrato no 24 de abril de 2026.
c) Condenar a Ré a restituir aos Autores o bem locado na data do termo do contrato de arrendamento e por referência à oposição da renovação.
d) Condenar ainda a Ré no pagamento de uma indemnização aos Autores, no montante de € 412,69 (quatrocentos e doze euros e sessenta e nove cêntimos) mensais, caso não proceda à entrega do locado nos termos acima estabelecidos até efetivo e integral entrega.

φ
e) Julgar a reconvenção totalmente improcedente, e em consequência, absolve-se os Autores do pedido.”

4. Inconformada com a sentença, a R. apelou da mesma, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem como objeto a impugnação da decisão que considerou válida a comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento por parte dos Recorridos e declarou o termo do contrato para o dia 24 de abril de 2026, condenando a Recorrente à restituição do imóvel e ao pagamento de indemnização em caso de incumprimento. Além disso, julgou improcedente o pedido reconvencional da Recorrente.
2. A Recorrente entende que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, ao aplicar de forma errada o direito e ao interpretar incorretamente o regime de renovação do contrato de arrendamento, especialmente no que diz respeito à cláusula "renovável e atualizável nos termos da lei".
3. O contrato não foi denunciado pelas partes no seu fim (24 de Abril de 2020), por isso, e se atentarmos somente ao estatuído no artigo 26.º, n.º 3, do NRAU, o contrato renovar-se-ia por mais três anos.

4. No entanto, este normativo no seu segmento final refere: “se outro prazo superior não tiver sido previsto”.

5. E, da análise ao texto do contrato de arrendamento em causa, podemos verificar que as partes fizeram consignar um prazo de duração a seguir à sua renovação: “O presente contrato de arrendamento é celebrado pelo prazo de quinze anos, renovável e actualizável nos termos legais, cujo início de vigência se reporta ao dia 25 de Abril de 2005”.

6. Quer isto dizer que as partes quando redigiram e outorgaram o contrato tinham conhecimento e quiseram de facto submeter a sua renovação ao lapso de tempo que na altura estava previsto na Lei.

7. Ora, é entendimento da Recorrente que a expressão "nos termos da lei" remete indubitavelmente para a legislação vigente à data da celebração do contrato (2005), ou seja, para o Regime do Arrendamento Urbano (RAU), e não para a legislação posterior, como o NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano), em vigor a partir de 2006.

8. Nos termos do artigo 12.º do Código Civil, o princípio da irretroatividade da lei implica que os contratos são regidos pela lei vigente à data da sua celebração, salvo disposição expressa em contrário, o que não ocorreu no presente contrato.

9. A interpretação do Tribunal a quo, que sustenta que a expressão "nos termos da lei" se refere à legislação futura (NRAU), contraria os princípios gerais de interpretação de contratos previstos no artigo 236.º do Código Civil, segundo os quais a interpretação deve atender à intenção das partes e ao sentido que um declaratário normal teria à data da outorga do contrato.

10. O contrato de arrendamento em questão, celebrado por um período inicial de quinze anos, estipulava expressamente que seria renovável "nos termos da lei". À data da celebração do contrato, o artigo 118.º, nº 1, do RAU estipulava que os contratos se renovavam automaticamente por igual período, ou seja, por mais quinze anos.

11. O artigo 26.º, n.º 3, do NRAU, que prevê uma renovação de três anos para arrendamentos não habitacionais, é uma norma supletiva, aplicável apenas na ausência de estipulação contratual em contrário. Como as partes acordaram um prazo de renovação superior, fazendo referência a “renovável e atualizável nos termos da lei”, o prazo de quinze anos previsto no contrato deve prevalecer.

12. Caso se entenda que a remissão para "nos termos da lei" cria uma lacuna interpretativa, deverá ser aplicado o artigo 59.º, n.º 3, do NRAU, que determina que a norma supletiva mais favorável ao arrendatário é a que deve ser aplicada. Neste caso, a renovação por igual período, conforme estipulado no RAU, seria a norma mais favorável à Recorrente.

13. A decisão do Tribunal a quo, que fixa o termo do contrato para 24 de abril de 2026, ao invés de 24 de abril de 2035, é contrária ao expressamente estipulado no contrato e às regras legais vigentes à data da sua celebração, nomeadamente o artigo 118.º, n.º 1, do RAU e o princípio da irretroatividade da lei.

14. Pelo que deve ser revogada e substituída por outra que declare inválida e ineficaz a comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento por parte dos Recorridos.

15. Salvaguardando o devido respeito por melhor opinião, a Recorrente não pode concordar com o entendimento vertido pelo Tribunal a quo, por ser contrário à lei e às regras básicas de interpretação jurídica, mais concretamente por violação do disposto nos artigos 118.º, n.º 1, do RAU, 26.º, n.º 3 e 59.º, n.º 3, do NRAU, 12.º, 236.º e 238.º do Código Civil.

16. Em face do exposto, a Recorrente conclui que a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a ação intentada pelos Recorridos e reconheça que o contrato de arrendamento se renova automaticamente por mais quinze anos, com termo a 24 de abril de 2035.”

5. Foram apresentadas contra-alegações, nas quais os AA. pugnaram pela improcedência do recurso, e foi deduzido recurso subordinado, no qual os AA. formularam as seguintes conclusões:

“1.ª – No entender dos recorrentes, foi violada pela sentença recorrida a norma contida no artigo 14.º, n.º 1, do Código do Registo Predial.[1]

2.ª – No entender dos recorrentes, a norma contida no artigo 14.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, devia ter sido interpretada e aplicada no sentido de a deliberação tomada pela recorrida em 31 de Maio de 2023, mas só registada em 26 de Outubro de 2023, não ter produzido efeitos contra os recorrentes antes de 26 de Outubro de 2023.

3.ª – Se assim tivesse interpretado e aplicado a norma acima indicada, teria o tribunal a quo concluído ter a recorrida, a partir de meados de Junho de 2023, passado a usar o locado para fim diverso do constante do seu objecto social e, consequentemente, do contratado, caso em que não poderia senão ter declarado resolvido o contrato de arrendamento discutido nos autos, com fundamento no uso do locado pela recorrida, para fim diverso do contratado, e, em conformidade, condenado a recorrida no pedido de condenação de entrega do locado livre de pessoas e bens e no pagamento de uma indemnização no valor de € 412,69, desde o seu trânsito em julgado, até ao momento da restituição da coisa locada.

Nestes termos e nos demais de Direito – que V. Exas. doutamente, suprirão –, deverá ser concedido provimento ao presente recurso subordinado, e, em consequência:

- Ser revogada a decisão recorrida, na parte em que julgou “Não declarar resolvido o contrato de arrendamento discutido nos autos com fundamento no uso do locado pela Ré, para fim diverso do contratado e em conformidade, absolve-se a Ré do pedido de condenação de entrega do locado livre de pessoas e bens e no pagamento de uma indemnização no valor de € 412,69, desde o trânsito em julgado da sentença que declare a resolução do contrato de arrendamento, até ao momento da restituição da coisa locada” (cfr. sentença recorrida, VII. Dispositivo, a));

- Ser a presente acção julgada procedente, por provada, e, em consequência:

- Ser declarada a resolução do contrato de arrendamento;

- Ser a recorrida condenada na imediata desocupação do locado e na sua entrega aos recorrentes, devoluto e livre de pessoas e bens;

- Ser a recorrida condenada a pagar aos recorrentes, a título de indemnização, desde o trânsito em julgado da sentença que declare a resolução do contrato de arrendamento, até ao momento da restituição da coisa locada, a renda actual.”

6. A R. não se pronunciou sobre o recurso subordinado.

7. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

No caso em apreço importa apreciar:

a) se deve o contrato de arrendamento considerar-se resolvido por utilização do imóvel para fim diverso do acordado, conforme peticionado no recurso subordinado;

b) se deve considerar-se que pelo decurso do prazo convencionado e sua renovação o contrato de arrendamento só cessa em 2035 e não em 2026, conforme peticionado no recurso principal.

III – Fundamentação de Facto

O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão sobre a matéria de facto, que não foi impugnada nos recursos apresentados pelas partes:

Matéria de facto provada

Discutida a causa e com revelo para a decisão a proferir, provou-se que:

1) Por apresentação (...), de 27.04.2019, encontra-se registado a favor dos Autores a aquisição da fração autónoma designada pela letra A, correspondente à loja do rés-do-chão esquerdo, com entrada pelos n.os 16 e 18, destinada a estabelecimento comercial do prédio (tabacaria/livraria), do prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal, sito na Rua (…), n.os 10, 12, 16 e 18, freguesia e concelho de Tavira, inscrito na matriz predial sob o artigo n.º (…), da freguesia de Tavira e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira, sob o artigo (…).

2) Os Autores adquiriram a referida fração ao anterior proprietário (…) por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 18.04.2019.

3) No referido negócio, fez-se constar que «(…) a venda é feita sem quaisquer ónus ou encargos com exceção de um contrato de arrendamento em vigor desde o ano de 2005, tendo como arrendatário “(…), Irmãos, Lda.”»

4) No dia 26.05.2005, por documento escrito, intitulado “Contrato de Arrendamento”, (…), (…) e (…), por um lado e na qualidade de senhorios, e pela Ré, por outro lado e na qualidade de arrendatária, foi alcançado um acordo mediante o qual os primeiros deram de arrendamento à segunda, a fração autónoma descrita em 1), mediante o pagamento da renda mensal de €400,00 e pelo prazo de 15 anos, «renovável e actualizável nos termos legais, cujo início de vigência se reporta ao dia 25 de abril de 2005»

5) Mais ficou estipulado que «o locado destina-se exclusivamente ao exercício da atividade comercial constante do pacto social da sociedade “(…), Irmãos, Lda.”, com exclusão de qualquer outra.»

6) À data de entrada em juízo da presente ação, o valor da renda mensal fixava-se no montante de € 412,69.

7) Atualmente e após atualização, o valor da renda mensal fixa-se em € 441,33.

8) Com a concretização do acordo descrito em 4) e 5), a Ré destinou o uso da fração para o exercício a sua atividade comercial para a comercialização de tabaco, tendo, posteriormente acrescentado a exploração de jogos da Santa Casa e comercialização de produtos típicos de papelaria.

9) O aludido acordo foi celebrado com o objetivo de a Ré explorar no local a sua atividade comercial, no seu interesse.

10) No dia 26 de outubro de 2022, foram inscritas a favor da sociedade comercial unipessoal por quotas com a firma “(…), Unipessoal, Lda.”, as duas quotas únicas do capital social da ré - uma, com o valor nominal de € 4.166,57, outra, com o de € 833,43.

11) Posteriormente, em meados de junho de 2023, a Ré começou a utilizar o locado para o exercício da atividade retalho de produtos alimentares e artigos de uso doméstico e sanitário, procedendo, entre outros à venda de bebidas, produtos de higiene e limpeza, conservas, batatas-fritas, bolachas, arroz, massas, leite e produtos congelado.

12) A Ré não vende no locado carne, peixe, fruta, legumes, e alimentos frescos e de curta validade.

13) Para além dos produtos de mercearia acima descrito, a Ré continua a comercializar no locado, a venda de tabaco e exploração de jogos Santa Casa.

14) À data da celebrado do convénio descrito em 4) e 5), constava do pacto social da Ré, o seguinte objeto social, «o seu objeto social é o comércio de tabacos e fósforos e qualquer outro ramo de comércio que resolva explorar, dentro dos limites da Lei.»

15) Em 06.06.2023, a atividade comercial da Ré inscrita na Conservatória do Registo comercial era: «comércio de tabaco e fósforos, jornais e revistas. Atividade ligada à organização de lotarias, totobola, totoloto, similares. Inclui as casas especializadas e cauteleiros, na venda de bilhetes de lotaria, a exploração de “Web sites” de jogos virtuais e apostas em corridas de cavalos e similares. Transporte ocasional de passageiros em veículos ligeiros até nove lugares incluindo o condutor. Outros transportes terrestres de passageiros diversos.»

16) Em 31.05.2023, a Ré deliberou adicionar ao seu objeto social a atividade de «Comércio a retalho em outros estabelecimentos não especializados, com predominância de produtos alimentares bebidas ou tabaco», ficando a constar do seu pacto social, «O seu objeto social é comércio de tabaco e fósforos, jornais e revistas. Atividade ligada à organização de lotarias, totobola, totoloto, similares. Inclui as casas especializadas e cauteleiros, na venda de bilhetes de lotaria, a exploração de "Web sites" de jogos virtuais e apostas em corridas de cavalos e similares. Transporte ocasional de passageiros em veículos ligeiros até nove lugares incluindo o condutor. Outros transportes terrestres de passageiros diversos. Comércio a retalho em outros estabelecimentos não especializados, com predominância de produtos alimentares, bebidas ou tabaco.»

17) Por apresentação 43 de 26.10.2023, foi registado a alteração do objeto social da Ré, nos exatos termos acima descritos.

18) Em 13 de julho de 2023, os Autores comunicaram à Ré, por carta registada com aviso de receção e endereçada à morada do locado, a oposição à renovação do contrato descrito em 4) e 5), fazendo constar, além do mais, que «(…) Assim, o aludido contrato caducará no próximo dia 24 de abril de 2026, data em que deverá ser-nos entregue o local arrendado.

19) A referida comunicação foi recebida pela Ré em 17.07.2023.


φ

Matéria de facto não provada

Com relevo para a decisão a proferir, não se provou que:

a) A fração descrita em 1) foi utilizada pela Ré como livraria.

b) Atualmente a Ré utiliza o estabelecimento comercial predominantemente para a venda de tabaco e jogos.”

IV - Fundamentação de Direito

A) Recurso subordinado

1. Em sede de recurso subordinado vieram os AA. requerer a revogação da sentença quanto à improcedência do pedido principal.

Preceitua o n.º 1 do artigo 633.º do Código de Processo Civil que “Se ambas as partes ficarem vencidas, cada uma delas pode recorrer na parte que lhe seja desfavorável, podendo o recurso, nesse caso, ser independente ou subordinado.”

O conceito de vencimento, para este efeito, reconduz-se à circunstância da parte ver afetada a posição que pretendia fazer valer em juízo, o que sucede quando, apesar de ter logrado obter ganho de causa, essa decisão assentou na procedência do pedido subsidiário (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2022 (Rosa Tching), Processo n.º 1238/20.OT8PTG.E1.S1, in http://www.dgsi.pt).
Assim, o recurso subordinado é legalmente admissível.

2. Por outro lado, no que concerne à apreciação do recurso subordinado, esclarece Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 8ª ed., Coimbra, 2024, pág. 145) que “assegurada a cognoscibilidade do objeto de qualquer dos recursos, cumprirá ao Tribunal Superior averiguar por que ordem os mesmos devem ser apreciados, pois que o resultado de qualquer deles poderá repercutir-se no outro independentemente da sua natureza subordinada ou autónoma”.
Ora, o recurso subordinado, como se disse acima, respeita ao pedido principal formulado na ação, através do qual pretendem os AA. alcançar a resolução do contrato, enquanto o recurso principal é relativo ao pedido subsidiário, consistente na declaração de caducidade do contrato em 24 de abril de 2026.
Deste modo, se for julgado procedente o pedido principal, o contrato cessa de imediato, por força do decretamento judicial da resolução, pelo que deixa de ter interesse a apreciação da futura caducidade.
Consequentemente, a apreciação do recurso subordinado deve preceder a apreciação do recurso principal.

3. Resolução do contrato
Dos factos provados decorre consensualmente que as partes celebraram entre si um contrato de arrendamento, destinado ao exercício da atividade comercial constante do pacto social da R. (factos provados sob 4 e 5), tendo sido formulado nesta ação um pedido principal de decretamento da resolução do contrato com fundamento em uso do imóvel para fim diverso do acordado.
Este pedido foi julgado improcedente com fundamento em que o objeto do contrato de arrendamento não foi definido por referência a uma atividade comercial concreta, mas antes por referência ao objeto social da empresa arrendatária, pelo que a circunstância deste objeto social ter sido modificado não ofende o contrato de arrendamento.
Decidiu-se ainda ser irrelevante para o caso que a R. apenas tenha registado a alteração do seu objeto social em outubro de 2023, apesar de ter iniciado a nova atividade comercial em meados de junho de 2023, porquanto foi deliberada essa alteração de atividade em assembleia realizada em 31 de maio de 2023.
No recurso sustentam os AA. que do artigo 14.º, n.º 1, do Código de Registo Comercial decorre que a deliberação da R. datada de 31 de maio de 2023 não produziu efeitos contra os AA. antes da data do respetivo registo, efetuado em outubro de 2023, pelo que a partir de meados de junho de 2023 a R. passou a usar o locado para fim diverso do acordado.

Ou seja, no recurso a R. não dissente da interpretação que o Tribunal a quo faz da cláusula atinente ao objeto do contrato de arrendamento, divergindo apenas da sua conclusão de que não se verificou a utilização do locado para fim diverso do acordado, pelo que é essa a única questão a apreciar nesta sede.

3.1. O artigo 14.º, n.º 1, do Código de Registo Comercial
Afirma-se na norma em apreço que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo.”
O elenco dos factos sujeitos a registo, atinentes às sociedades comerciais, estão previstos no artigo 3.º do Código do Registo Comercial, em cujo n.º 1, alínea a) se alude à sua constituição, indicando-se depois na alínea r) “qualquer outra alteração ao contrato de sociedade”.

Aqui se inclui, assim, o objeto social, na medida em que este constitui menção obrigatória do contrato de sociedade (artigo 9.º, n.º 1, alínea d), do Código das Sociedades Comerciais).

Resulta, aliás, da conjugação das alíneas b) e j) do artigo 10.º do Regulamento do Registo Comercial que o extrato da inscrição registral deve conter indicação das menções do contrato de sociedade que sejam alteradas e que devam constar do registo, designadamente, o objeto social.

Quanto ao conceito de terceiro, considera-se, para este específico efeito, “toda a pessoa singular ou coletiva que não seja parte no facto sujeito a registo, seu herdeiro ou representante” (José Engrácia Antunes, «O Registo Comercial», Revista da Ordem dos Advogados, ano 77, Jan./Jun. 2017, pág. 355).

Adicionalmente, os terceiros tutelados pelo citado artigo 14.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, são os que se encontram de boa fé, pelo que “a inoponibilidade não pode ser invocada por terceiros de má fé: apesar de a lei não o referir expressamente, afigura-se injustificado estender a proteção resultante da aparência registal negativa àqueles terceiros que, afinal, tinham conhecimento (ou desconheciam em virtude de negligência grosseira) a existência dos factos sujeitos a registo apesar da omissão deste” (José Engrácia Antunes, ob. cit., pág. 356).

No caso em apreço os AA. são terceiros relativamente ao facto objeto de registo e não resulta da matéria de facto provada que tivessem tido conhecimento da alteração ao pacto social antes da entrada em juízo da presente ação, em cuja petição inicial invocam como fundamento da resolução do contrato a falta de inscrição da atividade da R. no pacto social.

O Tribunal a quo considerou, porém, que em face da eficácia meramente declarativa do registo no caso da menção relativa à alteração do objeto social, a falta de inscrição desse facto no registo contemporaneamente ao início do exercício da nova atividade comercial não tinha consequências na situação vertente.

Com efeito, nem a inscrição no registo comercial titula a alteração do contrato social, nem a validade da alteração está dependente dessa inscrição, ou seja, o registo comercial constitui apenas requisito de eficácia externa do ato objeto do mesmo (idem, pág. 354).

Assim é porque a finalidade do registo é meramente a de dar publicidade à situação jurídica das sociedades comerciais (artigo 1.º, n.º 1, do Código do Registo Comercial).

Deste modo, a partir da data em que a alteração foi deliberada pela sociedade - esse, sim, o ato constitutivo da alteração ao pacto social, nos termos dos artigos 85.º e 246.º, n.º 1, alínea h), do Código das Sociedades Comerciais -, o exercício da nova atividade comercial tornou-se legal.

Ora, da matéria de facto provada consta que a alteração ao objeto social foi deliberada a 31.05.2023 (facto provado 16) e que o início do exercício da nova atividade comercial ocorreu em meados de junho de 2023 (facto provado 11), pelo que a R. exerceu sempre a sua atividade comercial dentro do âmbito traçado pelo pacto social.

Acresce que no contrato de arrendamento foi acordado que o locado se destina ao “exercício da atividade comercial constante do pacto social” da R. (facto provado 5), pelo que à luz dos critérios de interpretação da declaração negocial enunciados nos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, onde se atende à impressão do destinatário e à expressão literal da vontade das partes, se deve entender que a R. só incumpre o contrato de arrendamento se exercer alguma atividade comercial não autorizada pelo seu pacto social.

Consequentemente, ainda que na data em que se iniciou a nova atividade comercial os AA. não tivessem tido acesso à alteração ao pacto social da R., o facto é que nessa data a R. estava autorizada a exercer tal atividade, ou seja, a R. não incumpriu o contrato de arrendamento.

Em conclusão, improcede o recurso subordinado, confirmando-se, nesta parte, a decisão recorrida.

B) Recurso principal

1. Os AA. peticionaram ainda, subsidiariamente, a declaração de cessação do arrendamento por caducidade, cujos efeitos reportam ao dia 24 de abril de 2026, pedido este que foi julgado procedente.

É desta decisão que a R. discorda, no recurso principal, sustentando, essencialmente, resultar do contrato que as partes acordaram a renovação do mesmo por período igual ao da sua duração inicial, ou seja, 15 anos, por ser esse o regime vigente na data da celebração do contrato, pelo que a caducidade só ocorrerá em 2035.

As normas convocadas no recurso a respeito da matéria de que agora se cura são os artigos 118.º, n.º 1, do RAU, 26.º, n.º 3 e 59.º, n.º 3, do NRAU e 12.º, 236.º e 238.º do Código Civil.

2. Interpretação do contrato

Para a resolução do problema importa começar por interpretar a cláusula onde se estabeleceu que o contrato foi celebrado “pelo prazo de 15 anos, «renovável e actualizável nos termos legais, cujo início de vigência se reporta ao dia 25 de abril de 2005»” (facto provado 4).

Discorre-se na sentença sobre esta cláusula no sentido de que atento o prazo muito longo de vigência inicial do contrato, seria previsível que no termo desse prazo pudessem existir alterações legislativas nesta matéria, e, por outro lado, não é comum a referência à atualização surgir em sede de estipulação do prazo de vigência do contrato e sua renovação – indica-se na sentença que tal referência é habitualmente feita a propósito do valor da renda –, pelo que conjugando estes aspetos deve concluir-se que foi intenção das partes submeter a renovação do contrato ao prazo de renovação em vigor na data do seu termo.

No recurso convoca a R. as disposições dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, que consagram as regras em matéria de interpretação dos negócios jurídicos formais, consistindo nas ideias essenciais de que devem as palavras inscritas no título valer com o sentido que um normal declaratário, colocado na posição do real declaratário, delas possa extrair, a menos que o declaratário conheça a vontade real do declarante, e ainda de que esse sentido deve encontrar acolhimento mínimo no texto.

Ora, é correta a asserção do Tribunal a quo de que na linguagem habitualmente usada nos contratos de arrendamento a palavra “atualizável” se reporta à renda, ficando a constar da cláusula que fixa o respetivo valor, data e forma de pagamento.

Efetivamente, no arrendamento, à semelhança de outros contratos típicos mais frequentes no comércio jurídico, o clausulado possui uma redação igual ou muito semelhante na generalidade dos casos concretos.

Na situação vertente, porém, em lugar daquela palavra se encontrar dentro da cláusula atinente à renda, a mesma aparece imediatamente a seguir à palavra “renovável”, logo após a estipulação do prazo de duração do contrato.

Assim, a primeira constatação, à luz do exposto, é a de que as duas palavras associadas não partilham um contexto de significado comum no domínio do clausulado típico do contrato de arrendamento, quer dizer, não se consegue estabelecer uma conexão direta e lógica entre a “renovação” do prazo de duração do contrato e a “atualização”.

Por outro lado, da matéria de facto provada não resulta que as partes tenham escrito no contrato, a propósito da renda, que esta é “atualizável”, isto é, neste contrato a palavra “atualizável” foi inscrita apenas uma vez, ficando adjacente ao prazo de duração do contrato e sua renovação.

Não obstante esta última circunstância, foi vertido no facto provado 7 que “atualmente e após atualização, o valor da renda mensal fixa-se em € 441,33”, ou seja, apesar de inexistir uma tal menção expressa no contrato em sede de fixação do valor da renda, as partes estão de acordo em que a renda é atualizável.

Acresce ainda que nada consta da matéria de facto provada que permita concluir pela existência de uma especial intenção das partes subjacente ao posicionamento da palavra “actualizável” neste contrato, o mesmo é dizer, não está demonstrado que as partes deliberada e conscientemente tivessem pretendido com essa redação regular os seus interesses de forma distinta daquela que corresponde ao padrão nestes casos.

Tudo visto, afigura-se que da matéria de facto provada nada se extrai no sentido de que a palavra “atualizável” tenha sido utilizada com um sentido diverso daquele que é o normal nestas situações, pelo que aquela palavra deve entender-se reportada à renda.

A circunstância de tal palavra surgir integrada no texto do contrato em moldes distintos dos que são habituais nestes casos deve, assim, ser reconduzida a uma mera imperfeição de redação, em si mesma inconsequente.

Deste modo, a única conclusão a extrair do contrato é a de que as partes acordaram na sua renovação, nos termos da lei.

No entanto, pode ainda indagar-se se ao remeterem para a lei, as partes pretenderam assumir especificamente a aplicação da lei em vigor na data da celebração do contrato, com exclusão da sujeição do contrato às novas leis que viessem eventualmente a ser aprovadas neste domínio.

Não se afigura, contudo, que possa também sufragar-se esta interpretação, pois é bastante comum a remissão, com caráter genérico, para a lei, o que, por regra, significa apenas que as partes não pretenderam aprovar uma disciplina própria quanto ao aspeto em causa, pelo que o prazo de renovação será aquele que estiver em vigor no momento em que se completar o prazo de duração inicial do contrato.

Aliás, a circunstância do prazo inicial de vigência do contrato ser muito longo reforça esta conclusão, isto é, precisamente por ser previsível que em tão dilatado período de tempo viessem a ocorrer alterações legislativas, se as partes pretendessem precaver-se contra esta eventualidade, teriam estabelecido no contrato um prazo de renovação concreto ou feito referência expressa a um regime legal concreto, o que não sucedeu, como bem salienta o Tribunal a quo.


3. A aplicação da lei no tempo
A questão que se coloca ao Tribunal é, então, a de saber se deve considerar-se que o contrato cessará a sua vigência a 24.04.2026, como pretendem os AA., ou se o contrato permanecerá em vigor até 24.04.2035, como pretende a R..
Sublinhe-se, desde logo, que as partes convergem na qualificação do contrato de arrendamento de que se cura como um contrato de duração limitada, porquanto estão de acordo em que a norma relevante para a decisão é o artigo 26.º, n.º 3, do NRAU, tendo sido precisamente essa a norma aplicada pelo Tribunal a quo na sentença.
Assim, a discórdia situa-se ao nível da interpretação daquela norma, pois para os AA. o prazo de renovação do contrato é o que se mostra nela fixado, enquanto para a R., em virtude de entender que foi fixado um prazo de renovação no contrato e de qualificar aquela norma como supletiva, o prazo a atender é o que foi fixado no contrato.
Tendo presente que a questão de que se cura diz respeito à aplicação da lei no tempo e que a R. apela também ao disposto no artigo 12.º do Código Civil, será por aqui que iniciaremos a apreciação da questão.

3.1. O artigo 12.º do Código Civil
No artigo 12.º do Código Civil, sedes materiae da aplicação da lei no tempo, estabelece-se que:
“1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”
Decorre deste normativo um princípio geral de irretroatividade da lei, sendo que mesmo os desvios legalmente introduzidos no sentido da sua aplicação retroativa enfrentam o limite da intangibilidade dos efeitos já produzidos, pelo que, em síntese, a lei nova não se aplica quer a factos passados, quer a efeitos passados (Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Coimbra, 2021, pág. 282).
Consequentemente, a lei nova aplica-se a factos e efeitos futuros, bem como a factos que se tenham iniciado na vigência da lei antiga e ainda estejam em curso, e a situações jurídicas constituídas na vigência da lei antiga e que ainda não se tenham extinguido, desde que, neste caso, a lei disponha diretamente sobre o seu conteúdo e abstraia dos factos que estiveram na sua origem (idem, págs. 282 e 286-287).
A ponderação faz-se entre o interesse da estabilidade das situações jurídicas e a necessidade de adaptação à evolução dos contextos, expressa nas alterações legislativas (idem, págs. 281-282).
Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1997, pág. 237) enunciou o conceito de “estatuto contratual”, por oposição ao “estatuto legal”, afirmando que, por regra, se deverá aplicar aos contratos, até à sua extinção, o regime legal vigente na data da respetiva conclusão.
Semelhante solução radica no primado da autonomia da vontade, timbre da legislação de inspiração liberal, tutelando a confiança: “O contrato aparece como um acto de previsão em que as partes estabelecem, tendo em conta a lei então vigente, um certo equilíbrio de interesses que será como que a matriz do regime da vida e da economia da relação contratual. A intervenção do legislador que venha modificar este regime querido pelas partes afecta as previsões destas, transtorna o equilíbrio por elas arquitectado e afecta, portanto, a segurança jurídica” (idem, págs. 238-239).
No outro polo encontram-se as situações em que a intervenção legislativa é orientada pelo interesse público, nas quais a lei deve prevalecer sobre a vontade das partes: “O papel do legislador, nos quadros de uma concepção intervencionista do Estado na vida económica e social, leva-o hoje a prosseguir objetivos e a utilizar meios inconciliáveis, quer com um amplo respeito do dogma da autonomia da vontade, quer com a subsistência do regime da LA relativamente às Ss Js contratuais em curso. (…) A tudo isto acresce que muitas vezes a LN tem por objectivo reequilibrar as convenções que, em razão de perturbações políticas e sociais ou de circunstâncias económicas imprevisíveis, viram a sua economia interna também perturbada e, por isso, se tornaram injustas. Em tais casos não fará sentido a não aplicação imediata da LN” (idem, págs. 239-241).
Os critérios erigidos no n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil para discernir os casos de aplicação imediata da lei nova são a disciplina direta sobre a matéria em causa e a independência dessa disciplina relativamente ao título constitutivo da situação jurídica.
Descreve Baptista Machado (Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, 1968, pág. 122) aquelas normas de aplicação imediata como sendo as que se dirigem à tutela dos interesses duma generalidade de pessoas, que se achem ou possam vir a achar ligados por uma determinada relação jurídica, de modo a poder dizer-se que tais disposições atingem essas pessoas enquanto ligadas por semelhante vínculo.
Conclui o mesmo Autor que “nesta matéria o legislador deverá ser previdente, declarando a LN aplicável aos contratos em curso, quando seja essa a sua intenção.” (Introdução…, págs. 241-242).
Entendia-se, na jurisprudência, que se deviam considerar serem de aplicação imediata as normas que regulavam o arrendamento, nomeadamente, quando se tratasse de decidir acerca da resolução do contrato.
Este foi o sentido da decisão, designadamente, nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.05.2002 (Ferreira de Almeida) e do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.10.2005 (Ilídio Sacarrão Martins) (respetivamente, Processos n.º 02B1308 e n.º 8118/2005-8, ambos in http://www.dgsi.pt/): “as normas relativas ao inquilinato e arrendamento reportam-se à estruturação básica do sistema jurídico e da ordem social, e consequentemente, ao estatuto fundamental das pessoas e das coisas, e que, por isso, são de interesse geral, exigindo a aplicação imediata da lei nova, dado que este tipo de relações se autonomiza, atento o seu estatuto legal, do seu acto criador, conforme resulta da 2ª parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil”.

3.2. O RAU e o NRAU
Regressando agora ao NRAU, o respetivo artigo 59.º, norma também invocada pela R., integra-se no título dedicado às normas finais e ao capítulo que trata da aplicação no tempo, contendo a seguinte redação:
“1 - O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias. (…)
3 - As normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável.”
Assim, daqui podemos extrair duas conclusões:
i) o NRAU é imediatamente aplicável, ou seja, aplica-se aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor e que não se mostrem extintos nessa data, o que se revela conforme com a ideia atrás exposta de que em matéria de arrendamento, por regra, a nova legislação é imediatamente aplicável.
ii) o princípio da aplicabilidade imediata do NRAU comporta duas exceções:
- se se tratar de matéria abrangida pelo regime transitório, é este regime que se aplica, e não o NRAU;
- se o regime contido no NRAU for composto por normas supletivas, prevalecem sobre estas as normas supletivas vigentes na data da celebração do contrato, as quais serão, então, as aplicáveis ao caso.
O artigo 26.º do NRAU consta do título dedicado às normas transitórias e ao capítulo que trata dos contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano e contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, nele se dispondo o seguinte:
“1 - Os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como os contratos para fins não habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes. (…)
3 - Quando não sejam denunciados por qualquer das partes, os contratos de duração limitada renovam-se automaticamente no fim do prazo pelo qual foram celebrados, pelo período de dois anos ou, quando se trate de arrendamento não habitacional, pelo período de três anos, e, em ambos os casos, se outro prazo superior não tiver sido previsto.”
Este preceito mostra-se alinhado com os princípios estabelecidos no acima citado artigo 59.º, dele decorrendo a regra da sujeição ao NRAU dos contratos anteriores ao mesmo, salvaguardando-se, contudo, a aplicação de normas transitórias, que prevalecem sobre a disciplina estatuída pelo NRAU.

Assim se decidiu, aliás, nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.09.2023 (Ferreira Lopes) e do Tribunal da Relação do Porto de 16.01.2024 (Ana Lucinda Cabral) (respetivamente Processo n.º 1824/22.3T8VCT.G1.S1 e n.º 16064/21.0T8PRT.P1, ambos in http://www.dgsi.pt/), onde se concluiu que quanto às matérias reguladas pelo artigo 26.º, n.º 3, é esta norma que deve aplicar-se e não o RAU, nem o NRAU, por ser precisamente essa a vocação do direito transitório material.

Por outro lado, o referido n.º 3 do artigo 26.º ressalva o acordo das partes quando fixem um prazo de renovação superior a 3 anos, contudo, não está provado que as partes tenham acordado qualquer prazo de renovação do contrato.

Em conclusão, no caso em apreço, o contrato renovou-se em 25 de abril de 2020, pelo período de 3 anos, e voltou a renovar-se em 25 de abril de 2023, por novo período de 3 anos.

3.3. No mais, isto é, no que concerne ao percurso subsequente realizado na sentença com respeito à oposição à renovação deduzida pelos AA., não foi essa matéria objeto de impugnação no recurso, pelo que cumpre confirmar a sentença, também quanto a esta decisão proferida relativamente ao pedido subsidiário.

Improcede, portanto, o recurso.

C) Custas

As custas do recurso principal são suportadas pela R. e as custas do recurso subordinado são suportadas pelos AA., atenta a improcedência dos recursos (artigo 567.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

V – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso principal e o recurso subordinado, confirmando a decisão recorrida.

Custas do recurso principal pela R. e do recurso subordinado pelos AA..

Notifique e registe.

Sónia Moura (Relatora)
Manuel Bargado (1º Adjunto)
António Marques da Silva (2º Adjunto)

_________________________________________________
[1] É evidente o lapso de escrita de que padece a presente conclusão, porquanto no corpo das alegações os AA. se referem expressamente ao artigo 14.º, n.º 1, do Código do Registo Comercial, transcrevendo o mesmo.