DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
CASO JULGADO FORMAL
ANOMALIA PSÍQUICA
REVISÃO
Sumário

1. O despacho que convida a parte a pronunciar-se sobre uma questão, com vista à prolação de futura decisão, é meramente preparatório desta decisão final, pelo que assume natureza instrumental e caráter provisório.
2. Trata-se, assim, de um despacho de mero expediente, insuscetível de recurso, nos termos do artigo 630.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
3. O caso julgado formal implica que não possa voltar a ser apreciada nos autos a mesma questão concreta que foi já objeto de despacho, seja para renovar a decisão previamente tomada, seja para a contradizer, modificando-a, conforme decorre do disposto no artigo 625.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, mas não impede o conhecimento de uma questão diferente relativa ao mesmo objeto processual.
4. A revisão periódica da medida de acompanhamento, prevista no artigo 155.º do Código Civil, está sujeita a pressupostos distintos da modificação ou cessação da medida, prevista no artigo 149.º do mesmo diploma legal, porquanto aquela é obrigatoriamente realizada, de modo oficioso, no termo do prazo fixado na sentença para esse efeito, enquanto esta depende do impulso das pessoas a quem a lei confere para tal legitimidade e assenta na invocação da alteração da situação do beneficiário.
5. A representação geral prevista no artigo 145.º, n.º 2, alínea b), do Código Civil não alcança os denominados direitos pessoais, a que se reporta o artigo 147.º do mesmo diploma legal, porquanto aqui está-se em presença de limitações da autonomia privada, que devem ser objeto de decisão expressa e especialmente fundamentada.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 207/18.4T8ABT-A.E1
(1ª Secção)

Sumário: (…)

(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)


***

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I - Relatório
A) A 15.02.2025 veio o Ministério Público, por apenso aos autos de interdição instaurados a favor de (…), requerer que seja revista a medida de acompanhamento decretada a favor do beneficiário, por razões de saúde, com a fixação das seguintes medidas:
1. representação geral para todos os atos da vida corrente, sem prejuízo daqueles atos que careçam de autorização judicial (artigos 145.º, n.º 2 e 147.º, n.º 1, a contrario, do Código Civil), com acompanhamento na administração total de bens;
- acompanhamento no tratamento dos seus assuntos pessoais que envolvam entidades públicas ou privadas, designadamente entidades bancárias, desde que não importem autorizações, assim como abertura e tratamento de toda a correspondência a estas entidades associadas.
2. Acompanhamento para tratamento clínico, designadamente a decisão na marcação de consultas, na sua comparência às mesmas, na adesão a terapêuticas prescritas, mormente na toma de medicação e no consentimento quanto a intervenções cirúrgicas (artigo 145.º, n.º 2, alínea e), do Código Civil).
3. Nos termos do disposto no artigo 147.º, nºs. 1 e 2 do Código Civil, deve ser (…) impedido do exercício dos direitos pessoais, designadamente:
- ser tutor, vogal de Conselho de Família e administrador de bens de incapazes (artigos 1933.º, n.º 2, 1953.º, n.º 1 e 1970.º do Código Civil);
- de testar (artigo 2189.º, alínea b), do Código Civil);
- de desempenhar por si as funções de cabeça-de-casal (artigo 2082.º do Código Civil);
- de outros atos pessoais como sejam perfilhar ou adotar, cuidar e educar filhos ou adotados, contrair casamento, escolher profissão, de se deslocar para o estrangeiro, de fixar residência, ou de estabelecer relações com outros e os demais que se mostrem adequados em função das necessidades que vierem a ser apuradas após a realização das diligências decorrentes da instrução dos presentes autos.
Mais requereu a manutenção da designação como acompanhante, conforme previsto no artigo 143.º, n.º 2, alínea c), do Código Civil, da sua mãe (…), e a designação, para constituir o Conselho de Família, dos seguintes familiares:
– (em substituição do pai, idoso, impossibilitado) o familiar (…), retro identificado;
– (em substituição da familiar (…), idosa, impossibilitada) a familiar (…) retro identificada.

B) A 27.02.2025, o Tribunal a quo proferiu despacho liminar, onde suscitou oficiosamente a questão da exceção dilatória do caso julgado, com os seguintes fundamentos:
In casu, no que respeita à identidade de sujeitos, é inquestionável, face aos factos a considerar, sendo requerente o Digno Ministério Público e requerido, o beneficiário das medidas de acompanhamento (…).
Por outro lado, quanto à identidade dos pedidos, são totalmente coincidentes, sendo para tanto a revisão das medidas de acompanhamento respeitantes ao beneficiário em causa, fundando-se exatamente nos mesmos pedidos já anteriormente formulados e apreciados. Na verdade, quer nos autos principais, quer no apenso ora em causa, em ambos se procurou obter a revisão das medidas de acompanhamento do beneficiário (…).
Verifica-se, portanto, a identidade dos pedidos.
Resta analisar se ocorre identidade de causas de pedir.
A causa de pedir, por força da teoria da substanciação consagrada no direito processual civil, não é senão o título (facto jurídico), como decorre expressamente o n.º 4 do artigo 581.º do CPC. No caso vertente, os factos em que se baseiam os pedidos formulados pelo requerente Ministério Público, são efetivamente os mesmos, sem que tivessem sido alegados factos supervenientes / novos que permitissem apurar e assim, decidir pela revisão da medida de acompanhamento. Note-se que os factos, baseiam-se no facto de já ter sido proferida sentença, em 23.01.2019, que declarou “interdito” por anomalia psíquica o beneficiário, e em 19.03.2019 ter sido conferido o estatuto de maior acompanhado. Mais alega que o requerido é portador de debilidade mental profunda do beneficiário, a qual é irreversível, com uma incapacidade fixada em 75%, beneficiando de apoio diário nas suas atividades, como sendo alimentação, administração de medicamentos, higiene pessoal, cuidados e tratamento da roupa.
Assim entende este Tribunal que se encontra em causa, em ambas, quer na ação principal, quer no apenso ora em causa, exatamente a mesma pretensão material, sendo, como tal, inteiramente coincidente a causa de pedir.”
Terminou, convidando as partes a pronunciarem-se sobre a referida exceção.

C) Nesta sequência, o Ministério Público respondeu ao convite, entendendo não se verificar a exceção suscitada.

D) Em 27.03.2025 foi proferido o seguinte despacho:
“Por requerimento de 10.03.2025 (cfr. ref.ª 11489843) veio o Ministério Público alegar, em síntese, que o despacho proferido a 15.04.2024 (cfr. ref.ª 96223132) não se pronunciou sobre a “revisão da medida”, nem sobre qualquer tema, sendo antes uma decisão interlocutória sobre um ato oficioso da secretaria, pelo que, não se formou “caso julgado”, atendendo a que não existiu pronúncia concreta sobre a revisão ora requerida no apenso A.
Mais refere que aduz factos novos acerca da situação do requerido, da sua vida atual e da composição do conselho de família.
Cumpre apreciar e decidir.
Escalpelizados os autos, desde já se adianta que não assiste razão ao Ministério Público, na medida em que o despacho proferido em 15.04.2024, apreciou e debruçou-se sobre a “revisão da medida”, estando o mesmo fundamentado e no qual se concluiu que “(…) entendemos que nestes casos os processos não devem ser reabertos oficiosamente pelo Tribunal, na medida em que não foram reportados aos autos factos supervenientes, nem alteração da situação clínica do requerido e não foi carreada nova informação médica para os autos, mas apenas a requerimento quando tal ocorra, ao abrigo do disposto nos artigos 904.º, n.ºs 2 e 3 e 892.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Destarte, face aos fundamentos de facto e de direito expostos, determina-se o arquivamento destes autos”.
Pelo que, contrariamente ao afirmado pelo Ministério Público, o Tribunal pronunciou-se e decidiu sobre a “revisão da medida”.
Desta feita, ao Ministério Público assistia o direito de interpor recurso quer do despacho proferido em 15.04.2024 (cfr. ref.ª 96223132), quer do despacho proferido em 27.02.2025 (cfr. ref.ª 99027458).
Não obstante, o supra aludido, cumpre a este Tribunal tecer as seguintes considerações.
O Ministério Público não alegou factos novos que alterem o quadro clínico do Maior Acompanhado, uma vez que os factos que o Ministério Público indica como “FACTOS NOVOS” em nada relevam para a alteração do quadro clínico e, assim sendo, para a revisão da medida já decretada ao Maior Acompanhado no âmbito dos autos principais por sentença datada de 15.01.2019 e da qual ocorreu a convolação para o Regime do Maior acompanhado a 19.03.2019.
Ora, no caso concreto, e como o Ministério Público alega, o Maior Acompanhado padece de debilidade mental profunda, num estado irreversível, pelo que, não se augura que seja de rever a medida já decretada, a de representação geral, uma vez que a mesma acautela de forma concreta a atual situação de facto do Maior Acompanhado.
Nesta senda, não se vislumbra a necessidade de determinar as “limitações concretas do requerido em sede de medidas de acompanhamento”, nem “clarificar a atual situação do requerido em sede das suas capacidades e limitações”, conforme alegado pelo Ministério Público, porquanto a situação clínica do requerido mantém-se inalterável.
Pelo que, tendo sido decretada a medida de representação geral, estão acauteladas todas as limitações e capacidades deste, as quais são colmatadas pelo acompanhante nomeado.
Mais cumpre referir que este Tribunal a deferir a pretensão do Ministério Público, estaria em violação dos mais elementares princípios consagrados no Código de Processo Civil, como sejam, desde logo, o princípio da proibição da prática de atos inúteis, proibidos no art.º 130º do CPC, porquanto atenta a situação clínica do requerido, sem que tenham sido alegados factos novos que alterem o quadro clínico do Maior Acompanhado e tendo em conta que este quadro permanece inalterável, a deferir a revisão seria praticar um ato inútil, uma vez que o mesmo já beneficia da medida de representação geral, acautelando assim, a atual situação do Maior Acompanhado que padece de debilidade mental profunda que é irreversível.
Para além do mais, verificar-se-ia a violação de outros princípios basilares, como sendo o princípio da gestão processual e da adequação formal, ao abrigo dos arts. 6º e 547º ambos do CPC e ainda o princípio da celeridade processual.
Em conclusão, a deferir a pretensão ora deduzida, teria o Ministério Público que reiniciar todos os processos de interdição/inabilitação, cujas pessoas estão vivas, para apurar concretamente a situação atual dos beneficiários, pois só assim se cumpriria o princípio da legalidade a que está sujeito.
Destarte, face ao exposto e no que tange ao requerimento apresentado pelo Ministério Público, conclui-se pela inadmissibilidade legal do aludido requerimento, o que se decide.”

E) Inconformado, veio o Ministério Público interpor recurso de apelação do despacho acima transcrito, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
“1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida a 27.03.25/ref.ª 99306765 que recusou proceder à revisão da medida de interdição aplicada ao beneficiário Ricardo Henrique Marques Carias indeferindo o requerimento para revisão da medida, a tramitar por apenso nos termos do disposto no artigo 904.º, n.º 3, do CPC.
2. Não colhe o argumento de que a decisão de 15.04.24/ref.ª 96223132 proferida nos autos principais se pronunciou acerca da “revisão da medida” - é uma decisão interlocutória, de mero expediente, sobre um ato oficioso da secretaria, que o Ministério Público, por falta de elementos não impulsionou.
3. Essa decisão não era passível de recurso, conforme se retira do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do CPC. Daqui que se não se pode afirmar que “transitou em julgado”, por falta de previsão na norma do artigo 628.º do CPC.
4. Não se formou pelo despacho de 15.04.24/ref.ª 96223132 decisão acerca da “revisão”.
5. Igualmente não colhe o argumento quanto à decisão de 27.02.25, neste Apenso pois a mesma é interlocutória, limita-se a solicitar a pronúncia do requerente acerca de uma previsível decisão – como tal também não se forma, em relação a uma decisão que concede prazo para que as partes de pronunciem, um “caso julgado” logo é irrecorrível.
6. Não se pronunciou acerca da “revisão da medida”, nem sobre qualquer tema objetivo - é uma decisão interlocutória, de mero expediente, sobre um ato “anunciado”.
7. Essa decisão não era passível de recurso, conforme se retira do disposto no artigo 630.º, n.º 1, do CPC. Daqui que se não se pode afirmar que “transitou em julgado”, por falta de previsão na norma do artigo 628.º do CPC.

8. Mais uma vez não se formou pelo despacho de 27.02.25, decisão final acerca da “revisão”.

9. Não podemos concordar com a decisão de que se recorre pois que dispõe o n.º 4 do artigo 26.º da Lei 49/2018 – Aplicação da Lei no tempo – que: “Às interdições decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos ao acompanhante poderes gerais de representação”.

10. Deste preceito legal decorre a convolação automática dos processos de interdição em acompanhamento, sendo-lhes aplicável, na medida do possível, as disposições relativas ao acompanhamento legal, introduzido pela citada Lei n.º 49/2018.

11. Por seu lado, o artigo 155.º do Código Civil, sob a epígrafe “Revisão Periódica”, dispõe que “O Tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos”.

12. Deste último preceito resulta, como é pacificamente entendido, que a sentença de acompanhamento fixa a periodicidade com que, sem necessidade de requerimento fundamentado, é revista a sentença que fixa as medidas de acompanhamento, no máximo com uma periodicidade de cinco anos.

13. E, assim, todas as sentenças de acompanhamento decretadas na vigência da Lei n.º 49/2018 fixam pacificamente a nova data da revisão, sem necessidade de que se conheça qualquer alteração prévia à revisão relativamente à situação do acompanhado, afirmando-se a obrigação legal do sistema não deixar o acompanhado sem controlo das medidas aplicadas por prazo superior a cinco anos.

14. O legislador não excecionou desse controlo os acompanhamentos sob o regime da representação geral, nos quais se incluem as interdições convertidas ope legis em acompanhamentos, por força do citado artigo 26.º, n.º 4.

15. Por maioria de razão, não se vislumbra porque motivo não se aplica esse controlo às sentenças de interdição onde existe um regime de incapacidade geral presumido que, contudo, em casos variados e que se admitem frequentes, poderão ser convertidos em regimes de acompanhamento sujeitos a medidas menos rígidas, designadamente compatíveis com regimes de representação especial.

16. Ou seja, não se mostra admissível que os acompanhamentos decretados na vigência da Lei n.º 49/2018 sejam sujeitos a um regime diferente dos acompanhamentos que resultam da transição operada por via do disposto no artigo 26.º, n.º 4, do mesmo diploma legal, deixando os interditos desprotegidos desse controlo que é obrigatório por força do artigo 155.º do Código Civil e assim discriminando os Beneficiários, consoante a sentença tenha sido proferida antes ou depois da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, em clara e frontal violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

17. A questão de saber em que momento essa revisão deve ocorrer, no caso das interdições, divergia quanto ao momento do início do prazo para que se contassem os cinco anos para revisão, pois que ou seriam contados sobre a data da prolação da sentença que decretava a interdição ou sobre a data de entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, sem prejuízo de a revisão ocorrer fora desse prazo, quando se conhecessem motivos fundamentados para tal, questão que se mostra ultrapassada porquanto já decorreram cinco anos sobre a entrada em vigor da citada lei.

18. Ademais, conforme jurisprudência citada, a revisão deve ocorrer, oficiosamente, decorridos cinco anos sobre a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018 sem prejuízo de, por requerimento fundamentado, ser revista noutro prazo.

19. Dir-se-á, ainda, que o argumento de que existem milhares de processos que é necessário movimentar não pode ser atendido porquanto cada Beneficiário é um cidadão com igualdade de direitos perante o Estado e quem este deve identidade de tutela, não podendo esses cidadãos que a lei visou libertar do estigma do conceito de interdição ser discriminados por razões contabilísticas, sob pena de violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

20. Na verdade, não pode o julgador distinguir onde a lei não distingue, não se concebendo que seja admissível conferir diferente tutela aos Beneficiários de regimes de acompanhamento, consoante sejam procedentes do antigo instituto das interdições /inabilitações ou adquiridos já na vigência do regime introduzido pela Lei n.º 49/2018.

21. Salvo melhor entendimento, este Tribunal não se pronunciou ainda acerca da revisão obrigatória da medida e só pode, agora que lhe foi requerido, optar o fazer.

22. Termos em que viola o douto despacho recorrido o disposto nos artigos 155.º do Código Civil e 904.º, n.º 2, do CPC e 26.º, n.º 4, da Lei n.º 49/2018 e que interpretou no sentido de ser possível dar diferente tratamento a cidadãos beneficiários do mesmo regime legal, negando ou aplicando a tutela da revisão oficiosa da medida de acompanhamento consoante tenha sido aplicada antes ou depois da Lei n.º 49/2018 e, assim, consequentemente violou o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, ao permitir o tratamento diferenciado desses cidadãos.

23. Violou ainda o disposto no artigo 26.º, n.º 8, da Lei n.º 49/2018, que interpretou no sentido de não permitir a revisão oficiosa ou por requerimento por mero decurso do prazo de revisão quando deveria ter interpretado esse normativo no sentido de que o mesmo permite uma revisão periódica obrigatória, e outra supletiva, a ocorrer mediante requerimento fundamentado, apresentado por quem detenha legitimidade para o efeito.

24. Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento do incidente, com tramitação por apenso aos autos principais, designando-se dia para audição do Beneficiário, aceitando-se a prova junta e determinando-se a prova tida por adequada.”

F) Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

No caso em apreço importa apreciar se deve ser revogado o despacho sindicado, ou seja:

a) se se verifica a exceção dilatória do caso julgado;

b) caso assim se não entenda, se deve ser ordenado o prosseguimento dos autos com vista à revisão periódica da situação do beneficiário de medida de acompanhamento.

III – Fundamentação

1. Os factos relevantes para a apreciação do recurso são os que constam do relatório e ainda os seguintes:

A) Nos autos de processo de interdição em apreço, instaurados pelo Ministério Público, foi decidido, por sentença proferida em 23.01.2019, decretar a interdição, por anomalia psíquica, de (…).

B) Em despacho proferido a 19.03.2019, com fundamento na entrada em vigor do novo regime legal do maior acompanhado e, especificamente, no respetivo artigo 26.º, n.ºs 1 e 2, onde se determina que o juiz utilizará os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias do processado dos anteriormente denominados processos de interdição e de inabilitação, ao novo processado do regime jurídico do maior acompanhado, uma vez que o mesmo se aplica imediatamente aos processos de interdição e de inabilitação que estejam pendentes, foi decidido o seguinte:

a) o acompanhamento do maior (…) por (…), nos autos identificada;

b) atribuir, à acompanhante, poderes de representação geral do beneficiário;

c) declarar que a medida de acompanhamento se tornou conveniente, a partir da data da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14.08, ou seja, desde 10.02.2019 (artigo 900.º, n.º 1, do Código de Processo Civil);

d) estabelecer o prazo de cinco anos para a revisão da medida de acompanhamento (artigo 155.º do Código Civil).

e) manter o conselho de família, outrora designado, nos termos do artigo 900.º, n.º 2, parte final, do Código de Processo Civil.

B) A 02.04.2024 foram oficiosamente requisitados ao arquivo geral os autos de processo de interdição, após o que foi aberta vista ao Ministério Público, que declarou:

Atento o desconhecimento da atual situação clínica do acompanhado e a fim de que se possa emitir Parecer acerca das medidas adequadas aos dias de hoje, ao abrigo do disposto no artigo 26.º da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, no seu n.º 8 o qual estatui que “Os acompanhamentos resultantes dos n.os 4 a 6 são revistos a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, à luz do regime atual”. O MP requererá oportunamente a REVISÃO DA MEDIDA.”

C) Nesta sequência, a 08.04.2024, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

Compulsados os autos afere-se que o Maior Acompanhado, declarado por Sentença prolatada a 19.03.2029, padece de debilidade mental profunda desde o nascimento e é irreversível, conforme resulta da perícia médico legal constante dos autos com a ref.ª de 06.12.2018, pelo que se entende que não há necessidade de revisão da medida e após um estudo maturado da Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto que implementou o regime jurídico de Acompanhamento de Maior, entendemos que nestes casos os processos não devem ser reabertos oficiosamente pelo Tribunal, na medida em que não foram reportados aos autos factos supervenientes, nem alteração da situação clínica do requerido enão foi carreada nova informação médica para os autos, mas apenas a requerimento quando tal ocorra, ao abrigo do disposto nos artigos 904.º, n.ºs 2 e 3 e 892.º, n.º 1, todos do CPC.

No entanto, antes de mais abra-se Vista ao Ministério Público de modo a evitar decisões-surpresa, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.”

D) Após renovação da promoção anterior por parte do Ministério Público, o Tribunal a quo manteve a posição vertida no seu despacho anterior e determinou o arquivamento dos autos, por despacho proferido a 15.04.2024, do qual não foi interposto recurso.

2. Artigos 149.º e 155.º do Código Civil

Na decisão proferida a 19.03.2019, o Tribunal a quo deu cumprimento à norma transitória contida no artigo 26.º da Lei n.º 49/2018, de 14.08, que aprovou o novo regime do maior acompanhado, pelo que nos autos de interdição de que se cura determinou que o tutor passasse a acompanhante (n.º 7), atribuiu-lhe poderes gerais de representação (n.º 4) e fixou em 5 anos o prazo de revisão periódica da medida de acompanhamento, contado a partir de 10.02.2019, ou seja, a primeira revisão periódica deveria ocorrer em 19.03.2024.

Tendo sido requisitados os autos ao arquivo geral em 02.04.2024 e aberta vista, de seguida, ao Ministério Público, este declarou que iria promover a revisão, nada requerendo, nem especificando a este respeito nessa promoção ou na promoção subsequente, que antecedeu o despacho proferido pelo Tribunal a quo a 15.04.2024, onde se declarou inexistir necessidade de revisão da medida e se ordenou o arquivamento dos autos.

2.1. Importa, desde já, apreciar o quadro legal que preside a esta revisão, sendo útil a articulação com o regime da cessação e modificação do acompanhamento, ambos previstos no Código Civil:

- artigo 149.º (“cessação e modificação do acompanhamento”)

"1 - O acompanhamento cessa ou é modificado mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justificaram.

2 - Os efeitos da decisão podem retroagir à data em que se verificou a cessação ou modificação referidas no número anterior.

3 - Podem pedir a cessação ou modificação do acompanhamento o acompanhante ou qualquer uma das pessoas referidas no n.º 1 do artigo 141.º”

- artigo 155.º (“revisão periódica”):

“O tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.”

Lidas as normas transcritas, verificamos que existe uma diferença significativa entre as duas, a saber, a revisão periódica é obrigatória e oficiosa, não se encontrando sujeita à alegação de qualquer alteração na situação do beneficiário; a revisão a requerimento de um sujeito processual destina-se à cessação ou modificação da medida, o que pressupõe a descrição do facto desencadeante da iniciativa processual e revela a eventualidade do procedimento, isto é, só há lugar a este procedimento se se verificar uma alteração das circunstâncias do beneficiário.

Quanto ao escopo da revisão periódica, explica Miguel Teixeira de Sousa («O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais», O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado [e-book], Centro de Estudos Judiciários, Fevereiro de 2019, págb. 43), que a mesma “é justificada pela necessidade de verificar não só se a medida de acompanhamento se mantém adequada, mas também se o acompanhante desempenhou correctamente as suas funções; pode ainda imaginar-se que a medida de acompanhamento tenha sido decretada para um tempo indeterminado (por exemplo, para o tempo correspondente à convalescença de um acidente), pelo que importa verificar se a medida deixou de ser justificada”.

Isto sem prejuízo das duas normas partilharem a mesma filosofia de base: “A nova redação desses dois preceitos legais consagra a natureza temporária e tendencialmente transitória das medidas de acompanhamento. Está aqui em causa, mais uma vez, uma ideia de necessidade e proporcionalidade das medidas de acompanhamento, para salvaguarda da maior autonomia possível do beneficiário.” (Ana Luísa Santos Pinto, «O regime processual do acompanhamento de maior», Revista Julgar, n.º 41, Maio-Agosto 2020, pág. 171).

Neste mesmo sentido decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.05.2021 (Eugénia Cunha) (Proc. n.º 102/20.7T8FLG.P1, in http://www.dgsi.pt/) que:

“I - O processo de acompanhamento de maior é um processo especial, formalmente de natureza contenciosa e substancialmente de jurisdição voluntaria - cfr. artigos n.º 1, do 891.º, n.º 2, do 986.º, 987.º e 988.º, do Código de Processo Civil –, com caráter urgente, que se regula pelas disposições que lhe são próprias (v. artigos 891.º a 905.º do CPC) e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo que não estiver previsto numas e noutras, pelo que estabelecido se encontra para o processo comum (v. n.º 1 do artigo 549.º de tal diploma);

II - Tal processo contempla a suscetibilidade de revisão das decisões:

i) uma, supletiva – v. n.º 2 do artigo 904.º e artigo 988.º do CPC, no que concerne à possibilidade de alteração das medidas quando circunstâncias supervenientes o justifiquem;

ii) uma outra, obrigatória, no mínimo quinquenal, das medidas de acompanhamento – v. artigo 155.º do Código Civil;

III - Impõe-se que as medidas de acompanhamento fixadas sejam periodicamente revistas ao longo da vida do beneficiário (cfr. artigo 155.º do Código Civil) para se aferir da sua concreta adequação, necessidade e proporcionalidade, sempre à luz do princípio da supletividade;

IV - E o momento da fixação da periodicidade da revisão é o da prolação da sentença, e nessa peça processual, sempre tendo de o ser, no mínimo, de cinco em cinco anos (v. referido artigo 155.º do Código Civil), sem prejuízo de, a todo o tempo, poderem as medidas ser revistas ou levantadas pelo tribunal, desde que a evolução da situação e as circunstâncias do beneficiário o justifiquem (v. n.º 2 do artigo 904.º do Código de Processo Civil).”

3. Exceção dilatória do caso julgado

A questão que aqui se coloca é a de saber se está vedado ao Ministério Público requerer a revisão periódica da medida aplicada ao beneficiário, por virtude da verificação da exceção dilatória do caso julgado, com fundamento no despacho proferido a 15.04.2024 nos autos de processo de interdição, do qual não foi interposto recurso.

3.1. Despacho de mero expediente

No caso dos autos é discutida a natureza dos despachos proferidos pelo Tribunal a quo a 15.04.2024 e a 27.02.2025, entendendo o Ministério Público que são despachos de mero expediente, logo, irrecorríveis, conforme disposto no artigo 630.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Ora, nos termos do artigo 152.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, “os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes”.
Assim, quanto ao despacho de 15.04.2024, constata-se que nele o Tribunal a quo rejeitou a revisão periódica da medida aplicada do beneficiário, pelo que se trata de uma decisão que se repercute na situação jurídica do beneficiário.
Estamos, pois, em presença de um despacho com conteúdo decisório, e não de um despacho de mero expediente.
Já no que concerne ao despacho proferido a 27.02.2025, onde o Tribunal a quo suscitou oficiosamente a exceção dilatória do caso julgado e ordenou a notificação das partes para se pronunciarem sobre a mesma, não contém tal despacho qualquer decisão, antes sendo meramente preparatório de uma futura decisão, quer dizer, este despacho assume natureza instrumental face à decisão final proferida a 22.04.2025 e, por isso, caráter provisório.
Efetivamente, só o despacho proferido a 22.04.2025 conhece, de forma definitiva, da questão, esse, sim, interferindo com a posição jurídica do beneficiário, pois veda o prosseguimento do incidente de revisão instaurado pelo Ministério Público.
Podemos, assim, concluir que o despacho de 27.02.2025 consubstancia um despacho de mero expediente, pois limita-se a prover ao regular andamento do processo, ordenando a observância do princípio do contraditório previamente à prolação de uma decisão final, em cumprimento do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, e dele não resulta qualquer consequência para a situação jurídica do beneficiário.
Pronunciou-se neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.12.2021 (Vieira e Cunha) (Processo n.º 4111/19.0T8GMR-A.G1-A.S1, in http://www.dgsi.pt/):
“III – Um primeiro despacho que decide a audição das partes sobre determinada matéria constitui despacho de mero expediente, que não admite recurso, conforme artigos 630.º, n.º 1 e 152.º, n.º 4, do CPCiv.”
Em conclusão, o despacho proferido a 27.02.2025 não era recorrível, por constituir um despacho de mero expediente, nos termos do disposto nos artigos 152.º, n.º 4 e 630.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas o despacho de 15.04.2024 era suscetível de recurso.

3.2. Pressupostos da exceção dilatória do caso julgado

Nos termos do artigo 619.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, adquire força de caso julgado material a sentença que “decida do mérito da causa”, a qual fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º.

Excluem-se, portanto, desta eficácia as decisões que recaiam “sobre a relação processual”, as quais têm mera eficácia de caso julgado formal, isto é, possuem força obrigatória apenas dentro do processo (artigo 620.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Em conformidade com o preceituado nos artigos 580.º, n.º 1 e 581.º, n.º 1, 1ª parte, do Código de Processo Civil, a exceção dilatória do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, a qual se afere pela respetiva identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
No que concerne à identidade objetiva, o n.º 3 do artigo 581.º do Código de Processo Civil reconduz a identidade de pedido à petição do mesmo efeito prático-jurídico - o que releva não é, assim, a mera expressão literal do pedido; enquanto a identidade de causa de pedir é referida pela 1ª parte do n.º 4 daquela norma ao mesmo facto jurídico como fundamento da pretensão deduzida – independentemente da respetiva qualificação jurídica (teoria da substanciação) (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., Coimbra, 2024, pág. 713).
Ou seja, a exceção dilatória do caso julgado reporta-se ao caso julgado material, consubstanciando a sua dimensão negativa, traduzida na proibição de repetição de uma causa (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, pág. 572; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Coimbra, 2017, pág. 749).
Relativamente ao caso julgado formal, deve ter-se presente o disposto no artigo 625.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, onde se estabelece que é aplicável à existência de contradição entre duas decisões que, dentro do mesmo processo, versem a mesma questão concreta da relação processual, o princípio de que havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, se cumpre a que passou em julgado em primeiro lugar.
Assim, uma vez conhecida uma questão concreta que não seja de mérito, não pode a mesma questão voltar a ser apreciada nos autos, seja para renovar a decisão previamente tomada, seja para contradizê-la, modificando-a, quer dizer, afirma-se aqui a intangibilidade da decisão coberta pela força de caso julgado formal, que se justifica pelos valores da segurança jurídica e estabilidade da tramitação processual (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 17.05.2022 (João Ramos Lopes), Proc. n.º 1320/14.2TMPRT.P1, e da Relação de Coimbra de 25.02.2025 (Fonte Ramos), Proc. n.º 1181/23.0T8VIS-A.C1, ambos in http://www.dgsi.pt/).
Importa ainda separar as questões dos argumentos, porquanto a circunstância de submeter à apreciação do tribunal a mesma questão, mas com diversos argumentos, não a transforma numa questão nova (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17.05.2022 acima citado).
Adicionalmente, relevam para este efeito tanto as decisões proferidas nos autos principais, como nos respetivos apensos (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.04.2025 (Teresa Albuquerque), Processo n.º 1161/19.0T8VRL-D.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/).
Deste modo, para se concluir pela ofensa do caso julgado formal importa interpretar a primeira decisão, de modo a identificar os seus precisos limites e termos, conforme preceituado no artigo 621.º do Código de Processo Civil:
“I- O caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tal como previsto no artigo 620.º, 1, do CPC, constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (artigo 621.º do CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2023 (Ricardo Costa), Processo n.º 3372/18.7T8VNF.G2.S1, in http://www.dgsi.pt/).

3.2.1. Revertendo ao caso dos autos, vemos que no despacho de 15.04.2024 não se proferiu uma decisão de mérito, isto é, não se apreciaram factos ou o respetivo enquadramento jurídico no âmbito do conhecimento de uma pretensão dirigida ao Tribunal.
Nesse despacho, o Tribunal a quo apontou simplesmente os requisitos que entende serem necessários para o prosseguimento do incidente de revisão da medida de acompanhamento e, concluindo inexistirem nos autos factos novos sobre a situação clínica do beneficiário, ordenou o seu arquivamento.
Assim, o referido despacho recaiu apenas sobre a relação processual, definindo critérios de admissibilidade de um incidente e extraindo daí consequências.
Ou seja, não se trata aqui de uma decisão com força de caso julgado material, antes nos situamos no perímetro do caso julgado formal.

3.2.2. A questão reside, depois, em saber se esse caso julgado formal impede a prolação de nova decisão sobre o incidente de revisão.
Ora, a decisão de 15.04.2024 teve na sua génese a reabertura oficiosa dos autos de interdição e a subsequente promoção do Ministério Público onde este anuncia que iria promover a revisão da medida aplicada ao beneficiário.
Trata-se, efetivamente, de um mero anúncio, pois nada aí é requerido, aliás, o Ministério Público explica, nessa promoção, a razão da falta de concretização dos termos da pretendida revisão, aludindo ao desconhecimento da situação atual do beneficiário.
É certo, como vimos acima, que a revisão periódica se funda no mero decurso do prazo previsto na sentença para esse efeito, pelo que deve ser desencadeada oficiosamente, assim que se complete o aludido prazo, ainda que nenhuma notícia exista sobre qualquer alteração da situação do beneficiário.
Neste último contexto será dentro do incidente de revisão que se realizarão as diligências necessárias para se aferir da situação atual do beneficiário, a fim de aquilatar da eventual necessidade de modificação ou cessação da medida.
Nada impede, no entanto, que o Ministério Público realize essas diligências fora do processo e comunique posteriormente ao mesmo os factos apurados quanto à situação atual do beneficiário, requerendo então o que tiver por conveniente relativamente à medida de acompanhamento decretada, conforme sucedeu nos presentes autos.
Assim, ainda que em abstrato a questão colocada em ambos os momentos seja a mesma, isto é, trata-se da primeira revisão periódica posterior a 2019, não podemos de todo afirmar que em concreto a questão tratada no despacho de 15.04.2024 seja a mesma questão que foi tratada no despacho de 27.03.2025, que apreciou aquele requerimento de 15.02.2025.
Com efeito, no apenso instaurado a 15.02.2025, com a finalidade de revisão da medida, o Ministério Público veio descrever a situação atual do beneficiário, explicando as razões que entende justificarem a tramitação do incidente de revisão, o que configura um contexto distinto daquele que esteve subjacente ao despacho de 15.04.2024, pois aqui o Tribunal a quo não conheceu de qualquer requerimento formulado pelo Ministério Público, uma vez que este, nessa ocasião, nada peticionou ou alegou sobre a situação atual do beneficiário.
Entendemos, deste modo, que o Ministério Público não se limitou a introduzir novos argumentos, antes tendo suscitado a apreciação de uma questão nova e que se prende com a avaliação da situação atual do beneficiário.
Em conclusão, o despacho de 15.04.2024 não versou sobre a mesma questão concreta da relação processual que foi objeto do despacho proferido a 27.03.2025, pelo que não ocorre ofensa do caso julgado formal.

4. A revisão periódica da medida de acompanhamento
Pretende, então, o Ministério Público que os autos prossigam os seus termos com vista à revisão periódica da medida de acompanhamento, entendendo que devem ser periodicamente revistas as medidas aplicadas a todos os beneficiários, incluindo aqueles que transitaram para o atual regime do maior acompanhado, provenientes de um primitivo processo de interdição.
Aduz-se no despacho sindicado que os factos alegados no requerimento do Ministério Público não são novos, pelo que constituiria um ato inútil prosseguir com o incidente de revisão.
Ora, do acima exposto decorre que há factos novos, porquanto o Ministério Público atualizou a situação do beneficiário.
Tal circunstância não significa, porém, que esses factos assumam relevância no sentido da modificação da medida.
Comparando o teor da decisão proferida a 19.03.2019 e o requerimento do Ministério Público de 15.02.2025 verificamos que não decorre deste último que a situação clínica do beneficiário tenha sofrido evolução, sendo certo, como refere o Tribunal a quo, que a patologia na origem do decretamento da interdição foi aí qualificada como irreversível.
Aliás, o Ministério Público não propõe a modificação da medida de acompanhamento com representação geral que havia sido decretada na indicada decisão de 19.03.2019.
Porém, constata-se que naquela decisão de 19.03.2019 nada se disse acerca dos atos da vida pessoal do maior acompanhado, mas no requerimento do Ministério Público de 15.02.2025 peticiona-se que o Tribunal tome posição sobre essas matérias, que são aí concretamente enunciadas.
Devemos, consequentemente, apurar se este aspeto pode ser considerado uma modificação da situação jurídica do maior acompanhado.

4.1. Os “direitos pessoais”
Importa convocar, para apreciar esta questão, as seguintes normas do Código Civil:
- artigo 145.º (“âmbito e conteúdo do acompanhamento”):
“1 - O acompanhamento limita-se ao necessário.
2 - Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:
a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas. (…)”
- artigo 147.º (“direitos pessoais e negócios da vida corrente”):
“1. O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.
2. São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.”
Ora, a representação geral prevista no artigo 145.º, n.º 2, alínea b), do Código Civil respeita estritamente à dimensão patrimonial da vida do maior acompanhado, daqui se excluindo apenas, por força do disposto no n.º 1 do artigo 147.º do mesmo diploma legal, os negócios da sua vida corrente (Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, «Maior acompanhado, “Direitos pessoais” e negócios da vida corrente», O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado [e-book], Centro de Estudos Judiciários, Fevereiro de 2019, págs. 130-131).
Por outro lado, no n.º 2 daquele artigo 147.º prevêem-se restrições a direitos de personalidade:
“Em Direito Civil, o problema consiste em saber se o Tribunal pode decretar limites à autonomia privada de um maior acompanhado, em matéria de casamento, de constituir situações de união, de procriação, de perfilhação, de adoção, de poder paternal, de profissão, de circulação, domicílio e residência, de relacionamento com outas pessoas e de testamento. (…)
Em conclusão, o que se encontra no artigo 147.º do Código Civil é o regime aplicável ao maior que não tem capacidade natural para tratar da sua pessoa, o que afeta inevitavelmente os direitos de personalidade e, como tal, exige um regime de proteção mais ponderado. Ou seja, mantém-se a divisão entre os casos nos quais o maior simplesmente não consegue tratar do seu património sozinho, e aqueles casos – mais graves – nos quais não consegue tratar da sua pessoa. O que implica que a caraterística mais importante será a ligação aos direitos de personalidade. Não significa que os problemas sejam de direitos de personalidade, mas antes que afetam bens de personalidade, direta ou indiretamente” (idem, págs. 137 e 140).
Daqui decorre que apesar da situação clínica do beneficiário não haver sofrido alteração, é visado com o incidente de revisão o alargamento do conteúdo da medida de acompanhamento, passando a nela incluir limitações da autonomia privada.
Não são, por outro lado, aspetos despiciendos, pelo contrário, as novas áreas de incidência da medida agora propostas constituem o reduto mais profundo e significativo da vida humana, sendo por esse motivo, em regra, excluídas do âmbito da medida de acompanhamento, que se cinge primacialmente à dimensão patrimonial.
Assim, só mediante decisão expressa e especialmente fundamentada pode a autonomia privada de um cidadão ser restringida em tais domínios, a qual deve assentar em factualidade suficiente para revelar a incapacidade do beneficiário governar a sua pessoa (neste sentido, Pedro Callapez, «Do acompanhamento de maiores», Processos Especiais, coordenação Rui Pinto e Ana Alves Leal, vol. I, Lisboa, 2020, pp. 122-123).
Foi este o entendimento adotado nos seguintes arestos:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.10.2019 (Eduardo Petersen Silva) (Processo n.º 1135/18.9T8FNC.L1, in https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?nid=5678&codarea=58):
“1 - Na determinação concreta do regime a aplicar a maior acompanhado, a escolha da representação geral não exclui a subsistência de campos residuais de manutenção do livre exercício de direitos, quando não apurados, em concreto, factos que revelem a incapacidade para esse exercício.
2 - Tais factos porém podem resultar por interpretação do conjunto dos factos provados. Se está provado que alguma pessoa sofre de esquizofrenia, com défice cognitivo moderado a grave, doença que a impede de governar a sua pessoa e bens, se encontra internada em instituição de saúde mental há 20 anos, não sabe ler nem escrever, não consegue escolher a roupa que vai vestir, frequenta actividades mas sempre acompanhada por outra pessoa, e não é capaz de tomar decisão para as tarefas elementares do quotidiano, deste conjunto factual resulta a incapacidade irreversível de entender e tomar decisões relativamente a casamento, constituição de relações de união de facto com protecção legal, recurso a técnicas de procriação assistida e recusa de tratamentos médicos.”
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.06.2024 (Conceição Sampaio) (Processo n.º 524/22.9T8VLN.G1, in http://www.dgsi.pt/):
“I - Um dos princípios orientadores do novo regime do acompanhamento é o principio de intervenção mínima, traduzido no princípio da necessidade: o âmbito de proteção a decretar deve ser limitado ao estritamente necessário para assegurar a proteção dos interesses do beneficiário, não atingindo situações em que este tem capacidade de atuação autónoma, com destaque para a específica salvaguarda do exercício de direitos pessoais e dos negócios da vida corrente.
II - O novo regime jurídico visou precisamente afastar o carácter necessário da ablação dos direitos pessoais em consequência do reconhecimento de uma capacidade diminuída.
III - A possibilidade de restringir a capacidade, através da excecional limitação do exercício de direitos pessoais, depende sempre da demonstração de uma concreta e fundamentada necessidade. Exige-se, sempre, uma ponderação autónoma relativamente a cada um dos direitos pessoais em causa.”
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.03.2025 (Paulo Dias da Silva) (Processo n.º 865/23.8T8ILH.P1, in http://www.dgsi.pt/):
“IV - Tanto no domínio dos direitos pessoais como na dimensão patrimonial dos negócios da vida corrente, as intervenções no âmbito do regime do maior acompanhado devem garantir o poder de autodeterminação e salvaguardar a vontade do beneficiário, quando que tal se mostre possível e sempre que este seja detentor de um discernimento esclarecido, estando todas as actuações que visam a resolução de determinado problema limitadas pelos princípios da necessidade, proporcionalidade e suficiência, sendo que estas medidas surgem, ainda assim, como subsidiárias dos deveres gerais de cooperação e apoio de natureza familiar ou assistencial.”
A esta luz, entendemos que o incidente de revisão não é inútil, no sentido em que aquilo que se pede ao Tribunal não consiste na mera repetição do que se mostra já decidido, mas sim no alargamento do conteúdo da medida decretada.
Acresce, como se disse acima, que não constitui pressuposto da revisão que a situação do beneficiário tenha sofrido alteração, servindo o incidente para aquilatar da adequação da medida.
Em face do exposto, deve revogar-se o despacho sindicado e ordenar-se o prosseguimento dos autos.

5. Custas
Atenta a circunstância do Recorrente ter logrado obter vencimento no recurso e tratando-se de um incidente de revisão de medida de acompanhamento a maior no qual inexiste parte contrária, não há lugar ao pagamento de custas.

IV – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e ordenando o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Notifique e registe.
Sónia Moura (Relatora)

Filipe César Osório (1º Adjunto)

Ricardo Miranda Peixoto (2º Adjunto)