Nos termos e para os efeitos do n.º3 do art.º3.º, do CPC, é decisão surpresa aquela na qual se opta por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio.
Apelante: A... LDA.
Apelada: B...
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.
A..., LDA., deduziu contra B..., injunção que, tendo ocorrido oposição, seguiu os termos da ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO, SOB A FORMA DE PROCESSO COMUM.
Pediu a condenação desta no pagamento da quantia de 272.010,16 €, acrescida de juros vencidos de 4.109,12 € até à data da dedução do procedimento e juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
Para tanto alegou a celebração de um contrato de prestação de serviços em 5.9.20 com a requerida, nos termos do qual, como contraprestação, se obrigou a prestar cuidados médicos de hemodiálise a doentes renais nas instalações daquela.
Os valores devidos a título de contraprestação pelos serviços prestados seria paga mensalmente, com data de vencimento correspondente ao dia da emissão da factura.
Citada a requerida, deduziu oposição, além do mais sustentando que, ao contrário do alegado, o contrato vinculando as partes foi celebrado em 2004 e, desde essa data os valores facturados não se vencem na data da respectiva emissão, nunca se liquidando os serviços prestados com aquela emissão.
Descreve de seguida o procedimento adoptado quanto aos pagamentos devidos à requerente:
- factura emitida pela requerente e enviada à requerida;
- emissão de factura pela requerida e envio à ARS;
- pagamento pela ARS à requerida;
- pagamento à requerente.
Mais alega que a partir de abril de 2024 as regras de facturação por partedarequerida foram alteradas pela ARS, o que se traduziu em alguns percalços, que caracteriza, de tudo tendo informado a requerente.
Invocando que os procedimentos referidos conformaram ao longo dos anos uma vinculada disciplina quanto à forma e tempo de pagamento, justificando o atraso no pagamento das facturas identificadas pela requerente a facto que não lhe é imputável (ocorrência de uma alteração realizada pela ARS nas regras de facturação por parte da requerida), conclui que não está em situação de incumprimento.
Pugna pela absolvição do pagamento do capital e juros.
A requerente respondeu à oposição[1], impugnando o alegado pela requerida e referindo que a relação comercial existente entre ambas é regida desde 2020 por um novo contrato de prestação de serviços e não por um mero aditamento ao contrato anterior como defendido pela requerida, não tendo a perspectiva da requerida adesão às cláusulas contratual e livremente pelas partes fixadas.
Em 02.12.2024 a apelante veio apresentar requerimento dando conta que a apelada havia procedido, no dia 28.11.2024, ao pagamento das facturas em dívida nos seguintes termos:
«A..., LDA, Autora nos autos à margem referenciados, em que é Ré B..., vem expor e requerer o seguinte:
1. No passado dia 28 de novembro de 2024, a Ré procedeu ao pagamento das faturas em dívida cujo pagamento se reclamava nos presentes autos, totalizando o montante de 272 010,16 Euros (duzentos e setenta e dois mil e dez euros e dezasseis cêntimos).
Contudo,
2. a Ré não procedeu à liquidação dos juros de mora vencidos, conforme reclamados no requerimento inicial, nem liquidou as outras quantias exigidas pela Autora, designadamente a taxa de justiça e o montante referido no art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio.
3. Assim, a Autora continua a ser titular de um crédito perante a Ré no montante de 11.742,96 Euros (onze mil, setecentos e quarenta e dois euros e noventa e seis cêntimos),
4. correspondente aos juros vencidos até à data do pagamento, que totalizam os 11.549,96 Euros (onze mil, quinhentos e quarenta e nove euros e noventa e seis cêntimos), a que acrescem 193,00 Euros (cento e noventa e três euros) devidos pelas outras quantias referidas no antecedente n.º 2 (taxa de justiça e indemnização).
Assim,
5. ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 265.º do Código do Processo Civil, e com os fundamentos expostos, vem a Autora requerer a redução do pedido nos presentes autos para o montante global de 11.742,96 Euros (onze mil, setecentos e quarenta e dois euros e noventa e seis cêntimos), referentes a juros de mora vencidos e não pagos, à taxa de justiça e à indemnização prevista no art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio.»
Por requerimento de 3.12.24, invocando que recebeu no mês de novembro de 2024, por parte da Administração Central do Sistema de Saúde o pagamento das facturas por si emitidas relativas aos serviços prestados pela requerente, afirmando o procedimento atrás referida que defende vigorar nos últimos 20 anos, informa que, no 27 de Novembro de 2024, liquidou os valores constante das facturas em crise, no total de 272.010,16 €.
Reconhecendo-se o pagamento do capital, o tribunal a quo, visando pôr termo ao litígio por via de acordo das partes, proferiu o seguinte despacho no dia 13.1.25:
«Vistas as peças processuais das partes até ao momento, verificamos que o valor (capital) pretendido pela requerente se mostra, entretanto, pago.
A prosseguir o processo, este terá por finalidade única (digamos assim por simplicidade), apurar se são ou não devidos juros relativos a esse valor entretanto pago.
Apelamos, assim, aos bons ofícios dos ilustres mandatários, no sentido de, comunicando entre si e com as partes que representam, encontrarem uma solução consensual que ponha termo ao processo.
Nesse sentido, ficarão os autos a aguardar por 15 dias que os ilustres mandatários das partes informem se têm uma base de entendimento que coloque ponto final no processo, ou o mais que tenham por conveniente.»
Informando-se os autos por requerimento da requerida de 31.1.2025 de que não se mostrou possível o acordo quanto ao pagamento dos juros, foi proferida seguinte decisão:
«O objecto desta acção declarativa a prosseguir sob a forma de processo comum (iniciada como injunção), sumariamente, consistia em apurar se, como invocado pela autora A..., Lda., tinha direito a reclamar da ré, B..., as quantias de 272.010,16 euros a título de capital (por fornecimento de bens ou serviços não pagos entre 01.04.2024 e 31.07.2024), acrescida de 4.109,12 euros de juros de mora vencidos, bem como de 193,00€ (art. 7º do Decreto-Lei nº 62/2013 de 10 de Maio e de 153,00€ de taxa de justiça.
Pelo exposto e ao abrigo do disposto no art. 277 al. e) do Código de Processo Civil, julgo extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, com custas pela ré (art. 536 nº 3 do Código de Processo Civil).
Do assim decidido interpôs a R. recurso de apelação oferecendo alegações e formulando as seguintes CONCLUSÕES:
I. A decisão recorrida é nula, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na medida em que o Tribunal a quo, antes de julgar extinta a instância por inutilidade superveniente, não ouviu nenhuma das partes, não permitindo que sobre essa questão se pronunciassem.
II. Ao proceder assim o Tribunal a quo fez tábua rasa do princípio do contraditório e do princípio da proibição das decisões-surpresa, previsto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC.
III. A questão da inutilidade superveniente da lide, antes da prolação da sentença, nunca foi suscitada pelas partes ou sequer pelo Tribunal a quo.
IV. O direito ao contraditório é uma constante que deve ser assegurada ao longo de todo o processo.
V. Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influir ativamente na decisão.
VI. Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem.
VII. De acordo com o n.º 3 do artigo 3.º do CPC, a audição das partes só pode ser dispensada em casos de “manifesta desnecessidade”.
VIII. No caso sub iudice, era manifestamente necessário que se ouvisse as partes antes da prolação da decisão aqui em crise.
IX. De facto, a extinção da instância, que nunca foi ponderada ou requerida pelas partes, nem avançada como possibilidade pelo Tribunal, é uma decisão sobre a sorte da lide que impacta diretamente os seus interesses, devendo a sua posição conformadora ser tida em conta.
X. Inexistem dúvidas de que o princípio do contraditório foi, in casu, violado, correspondendo a decisão recorrida a uma decisão-surpresa com preterição do contraditório, sendo nula, à luz do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, nulidade que vai arguida para todos os efeitos.
Ainda que assim não se entenda:
XI. Além de se tratar de uma decisão-surpresa, processualmente inadmissível, a decisão recorrida enferma ainda de erro de direito, não estando preenchidos os pressupostos que permitem ao Tribunal a quo extinguir a presente instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos da al. e) do artigo 277.º do CPC.
XII. A inutilidade superveniente da lide é uma realidade absoluta, não se podendo extinguir a instância nos casos em que a utilidade existe, ainda que mínima ou pouco provável.
XIII. Não é manifestamente esse o nosso caso: a presente instância permanece útil e relevante, havendo por parte da Recorrente interesse em agir e a possibilidade de obtenção de uma vantagem juridicamente relevante com o prosseguimento da lide, o que desde logo decorre da redução do pedido com a manutenção do pedido de condenação da Recorrida no pagamento do montante de global de 11.742,96 Euros, referentes a juros de mora vencidos e não pagos, à taxa de justiça e à indemnização prevista no art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio.
XIV. No presente caso, não há razões para a extinção da presente instância, extinção essa que, aliás, não foi requerida por nenhuma das partes.
XV. A lide tem utilidade, a Recorrente mantém o seu interesse em obter tutela judicial para os seus direitos, designadamente garantindo a condenação da Recorrida no pagamento dos juros de mora e demais valores reclamados.
XVI. Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou a al. e) do artigo 277.º do CPC, impondo-se a revogação da sentença proferida para que os autos possam prosseguir os seus normais e ulteriores termos.
Foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
II.
Releva-se para efeitos do que se decidirá o teor factual que se retira do relatório que antecede.
III.
É consabido que resulta dos art.635.º, n.ºs 3 a 5 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, que o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações[2], sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, caberá apreciar em primeira linha (a) se a decisão posta em crise é nula por surgir sem que tivessem as partes tido oportunidade de se pronunciarem quanto à questão fundamento da mesma; (b) subsidiariamente, a improceder a questão anterior, conhecer da verificação (ou não) dos pressupostos que permitissem ao Tribunal a quo extinguir a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos da al. e) do artigo 277.º do CPC.
Vejamos.
Entende a recorrendo que a decisão em crise é nula por ter sido proferida sem que as partes tivessem tido oportunidade de se pronunciarem do fundamento que veria a presidi-la.
Está em causa, pois, a proibição das decisões surpresa.
O tribunal a quo em momento algum do iter processual aventou declarativamente da possibilidade de vir a proferir uma decisão de extinção da instância por via da inutilidade superveniente da lide.
Pelo contrário, deu até a entender, e bem, que parte do objecto do processo não se encontrava esgotado pelo pagamento assinalado, estando pendente para decisão a questão dos juros, se devidos ou não.
Veja-se o despacho «antecâmara» da decisão final:
«Vistas as peças processuais das partes até ao momento, verificamos que o valor (capital) pretendido pela requerente se mostra, entretanto, pago.
A prosseguir o processo, este terá por finalidade única (digamos assim por simplicidade), apurar se são ou não devidos juros relativos a esse valor entretanto pago.
Apelamos, assim, aos bons ofícios dos ilustres mandatários, no sentido de, comunicando entre si e com as partes que representam, encontrarem uma solução consensual que ponha termo ao processo.
Nesse sentido, ficarão os autos a aguardar por 15 dias que os ilustres mandatários das partes informem se têm uma base de entendimento que coloque ponto final no processo, ou o mais que tenham por conveniente.»
Na perspectiva de se lograr acordo quanto ao juros, porque a questão estava efectivamente em aberto em face do teor dos articulados, a requerente defendendo que as facturas se venceram na data da respectiva emissão, a requerida infirmando-o nos termos que se deixa descrito no relatório, foi proferido o despacho que antecede.
Não obstante, não se logrando a auto-composição do remanescente litígio, «passando por cima dele», entendeu-se que com o pagamento se exauriu o objecto da lide.
Cremos, efectivamente, que estamos perante uma decisão surpresa como é defendido a título principal pela apelante.
Reza o nº 3 do artigo 3.º do CPC que «o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questão de direito ou de facto, mesmo que do conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»
Este preceito projecta o âmbito do contraditório, entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do iter processual, visando-se prevenir as “decisões surpresa”.
Concretiza-se através do citado preceito uma concepção mais alargada do princípio do contraditório[3], assim se impondo que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios.
«Sem outras condicionantes, a liberdade de aplicação das regras do direito (art.º5, n.º3) ou a oficiosidade no conhecimento de determinadas excepções potenciariam decisões que, em divergência com as posições assumidas pelas partes, constituiriam verdadeiras decisões surpresa (STJ 17-6-14, 233/2000). A regra do nº3 pretende impedir que, a coberto desse princípio, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão (STJ 20-5-21, 81/14, STJ 15-3-18, 2057/11, STJ 19-5-16, 6473/03 e STJ 27-9-11, 2005/03 …). Simultaneamente, a solução legal propicia ao juiz melhores condições para um ponderação mais serena dos argumentos, potenciando designadamente a redução de casos de injustificadas absolvições da instância.»[4]
Como se refere no ac. do TRP de 2.12.2019[5] «[h]á decisão surpresa se o juiz de forma inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão na via adotada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos, só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade.
Quer se trate de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, casos existem em que as mesmas tinham obrigação de prever que o tribunal as podia decidir em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que, se as não suscitaram e não cuidaram de as discutir no processo, sib imputet, não se podendo, de modo equilibrado e razoável, considerar que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configura uma decisão-surpresa.
Esta pressupõe que a parte seja apanhada em falta por uma decisão, embora juridicamente possível, não estivesse sido prevista nem configurada por aquela. Se a decisão tomada pelo tribunal é emanação dos factos alegados e debatidos pelas partes e o tribunal se cingiu a esses factos, sem recurso novos, não alegados, como o enquadramento jurídico feito pelo tribunal consubstancia algo que aquelas previram ou, pelo menos, tinham a obrigação legal de prever, como possível, nenhuma decisão surpresa existe.»
Ora, no caso, a surpresa do sentido decisório é absoluta, tanto bastando para assim concluir o mero relance pelo teor do despacho atrás transcrito na relação com os articulados dando conta do pagamento do capital indicado nas facturas.
O sentido da decisão com que as partes pudessem contar, em face do teor do despacho referido, jamais poderia ser aquele pelo qual o tribunal veria a trilhar.
Do despacho referido, como já se referiu, retira-se que o tribunal sempre teria de dirimir o remanescente litígio relacionado como os juros alegadamente devidos, por conseguinte dando com ele a entender que o exaurimento do objecto do processo diria respeito tão só ao capital reclamado.
De resto, antecipando-se ao requerimento da recorrida dando conta do pagamento dos valores constantes das facturas identificadas no requerimento inicial, a recorrente veio reduzir o pedido por requerimento de 02.12.2024, por conseguinte perspectivando que aquele pagamento não esgotaria todo o objecto do processo, que a acção seguiria os seus termos e quanto ao apuramento dos juros, se devidos ou não.
Não obstante, sem audição prévia das partes, decidiu-se pela extinção total da instância por via da total inutilidade superveniente da lide.
Trata-se, de facto, de decisão surpresa, assim se afastando a argumentação da recorrida quando refere:
«11. Daqui decorre, no espírito de qualquer interlocutor, que o Tribunal “a quo” admitiu que o processo terminasse de imediato e não prosseguisse para a fase intermédia do processo e posterior fase final do processo.
12. De outra forma, o M.º Juiz do Tribunal de 1.ª Instância não colocaria no texto do despacho a hipótese “A prosseguir o processo …”.»
Diremos, na economia da melhor interpretação da decisão, considerada na sua totalidade, que com ela se pretendeu dizer que o processo prosseguiria se as partes não anuíssem ao repto feito de se conciliarem.
Fosse intenção equacionada de decidir como se decidiu, não teria de se apelar ao acordo porque o mesmo não teria objecto: acordar sobre o quê, se o objecto dos autos se esgotou?
Estamos perante manifesta decisão supressa.
Como se refere no citado acórdão, que se acompanha por substantivamente aplicável ao caso, «[a] violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa).
(…)
E, carecendo a nulidade de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197º, n.º 1), no prazo de dez dias, após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (art. 199º, n.º 1), sob pena de ficar sanada, estando a decisão-surpresa coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso.
(…)
Assim, analisada a lei, vista a doutrina e a jurisprudência não pode deixar de se decidir, pelos argumentos expostos que tinha, pois, o Tribunal a quo, antes de decidir, de ouvir os argumentos das partes.
(…)
Deste modo, procedendo a apelação por ter ocorrido violação do princípio do contraditório, não pode a decisão ser mantida, ficando, por isso, prejudicado o conhecimento» do remanescente objecto do recurso, igualmente da questão das custas suscitada pela recorrida.
IV.
Pelos fundamentos expostos, os juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, seguindo os autos para, ouvidas as partes, se decidir em conformidade quanto à eventual inutilidade superveniente da lide.
As custas serão suportadas apelada.
Sumário:
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Carlos A. Cunha Rodrigues de Carvalho
Isabel Rebelo Ferreira
Álvaro Monteiro
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[1] Cuja admissibilidade foi colocada em crise pela requerida por requerimento de 20.11.24
[2] Cfr. a citação da doutrina a propósito no Ac. do STJ de 6.6.2018 proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1: (a) António Santos Abrantes Geraldes - «[a]s conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do artigo 635º, n.º 3, do CPC. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo.» - in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª edição, Almedina, página 147. / (b) Fenando Amâncio Ferreira - «[n]o momento de elaborar as conclusões da alegação pode o recorrente confrontar-se com a impossibilidade de atacar algumas das decisões desfavoráveis. Tal verificar-se-á em dois casos; por preclusão ocorrida aquando da apresentação do requerimento de interposição do recurso, ou por preclusão derivada da omissão de referência no corpo da alegação. Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objeto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.» - in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2000, página 108 / (c) José Augusto Pais do Amaral - «[o] recorrente que tenha restringido o âmbito do recurso no requerimento de interposição, pode ainda fazer maior restrição nas conclusões da alegação. Basta que não inclua nas conclusões da alegação do recurso alguma ou algumas questões, visto que o Tribunal ad quem só conhecerá das que constem dessas conclusões.» - Direito Processual Civil, 2013, 11ª edição, Almedina, páginas 417/418.
[3] Isso mesmo é enfatizado por Lebre Freitas: «a esta conceção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehör” germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo». - In Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, pág. 96.
[4] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, CPC anotado, V.I, 3ª ed., p.22 (10).
[5] Proc.14227/19.8T8PRT.P1