I - No caso de improcedência da pretensão indemnizatória com base em responsabilidade por facto ilícito, as regras sobre a vinculação do tribunal à causa de pedir invocada pelas partes não subtraem à cognição do tribunal a apreciação da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil pelo risco, pois deve entender-se implicitamente alegada nos factos que estribam a responsabilidade por facto ilícito.
II - A responsabilidade civil objetiva é uma causa de pedir subsidiária que entra em cena sempre que os requisitos da responsabilidade por facto ilícito não estão reunidos, já que aquilo que o lesado pretende, em primeira linha, é o seu ressarcimento, seja com base em facto ilícito, seja com fundamento no risco (a não ser que o lesado manifeste inequivocamente a pretensão de que o lesante apenas seja responsabilizado com base em facto ilícito).
III - Para que o dano da privação do uso seja indemnizado é bastante a prova de que o lesado usaria normalmente a coisa danificada e de cujo gozo está privado por efeito do sinistro.
IV - O custo do aluguer de um veículo além de cobrir a margem de lucro a que qualquer atividade económica aspira, tem que necessariamente cobrir os custos inerentes ao desenvolvimento de tal atividade, sob pena de insolvência a breve trecho da entidade que a desenvolve.
V - E porque assim é, o dano da privação do uso do veículo sinistrado, sempre que o lesado não prova a efetiva realização de despesas com o aluguer de um veículo de substituição, não se pode aferir pelo valor locativo de um veículo similar ao sinistrado, sob pena de um injustificado enriquecimento do lesado.
Sumário do acórdão proferido no processo nº 1812/23.2T8AVR.P1 elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório[1]
Em 15 de maio de 2023, com referência ao Juízo Local Cível de Aveiro, Comarca de Aveiro, A..., Lda. instaurou a presente ação declarativa sob forma comum contra B... – Companhia de Seguros, S.A. pedindo a condenação desta ao pagamento da quantia de € 11 389,00, a título de indemnização pela perda total do veículo de matrícula ..-LO-.., a quantia de € 1 290,00, a título de indemnização pela privação do uso do mesmo veículo até, pelo menos, ao dia 18 de agosto de 2022, à razão diária de € 30,00, juros de mora contados à taxa supletiva legal desde a citação e sobre o diferencial entre a quantia de € 3 194,50 e o valor que vier a ser fixado por sentença.
Para fundamentar as suas pretensões, em síntese, a autora alega que no dia 6 de julho de 2022, o veículo com a matrícula ..-LO-.., de que é proprietária, seguia na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Aveiro, no sentido sul-norte, na via de trânsito do lado esquerdo, para efetuar uma manobra de ultrapassagem de outra viatura; o veículo segurado na ré de matrícula ..-..-GL transpôs a dupla linha longitudinal contínua para ultrapassar o veículo da autora, passando a circular na via destinada ao trânsito dos veículos que seguiam no sentido norte-sul; tal viatura deparou-se com um veículo que circulava nesse sentido norte-sul e, para evitar um embate frontal, desviou-se repentinamente para a direita e efetuou uma travagem brusca, perdendo o controlo da viatura e indo embater com a sua frente direita na lateral traseira esquerda do veículo da autora; nessa sequência, a condutora do veículo da autora também perdeu o controlo da viatura, acabando por embater contra um murete; em consequência, o veículo da autora sofreu elevados danos, não sendo viável a sua reparação, pelo que a autora pretende ser indemnizada do seu valor, que contabiliza em € 11 389,00; a autora viu-se privada da viatura durante 43 dias, pretendendo ser compensada, no montante de € 1 290,00; dado o valor irrisório que a ré lhe propôs para ressarcir a perda total do veículo, tem direito a receber juros no dobro da taxa legal, incidentes sobre a diferença entre o montante que foi proposto pela ré (€ 3 194,50) e o montante que esta vier a ser condenada a pagar.
Citada, a ré contestou, impugnando a dinâmica do acidente – afirmando que foi o veículo da autora que invadiu a via de trânsito por onde o veículo segurado seguia, cortando-lhe a linha de marcha – embora aceite regularizar o sinistro com base numa repartição equitativa da responsabilidade; a ré impugna o valor do veículo da autora, sustentando que é de € 6 750,00, já descontado o valor do salvado, aceitando ressarcir metade desse valor; impugna os danos invocados a título de privação do uso do veículo e afirma que, de todo o modo, a sua responsabilidade cessa com a formulação de proposta de regularização dos danos emergentes do sinistro, em 28-07-2022; conclui pugnando pela procedência parcial da ação.
Em 06 de outubro de 2023, foi proferido despacho que fixou o valor da ação no montante de € 12 679,00, conheceu dos requerimentos probatórios das partes e marcou data para a realização de audiência final.
A audiência final realizou-se em duas sessões e em 21 de maio de 2024 foi proferida sentença[2] que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo a ré dos pedidos.
Em 02 de julho de 2024, inconformada com a sentença, A..., Lda. interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1. Nos termos do disposto no art. 662.º do C.P.C., o Tribunal da Relação pode alterar a decisão sobre a matéria de facto, no caso vertente, uma vez que a apelante a impugnou e constam dos autos todos os elementos e documentos com base nos quais foi proferida.
2. Dificilmente se entende como foi possível que, apoiado apenas no depoimento de uma testemunha – condutor do veículo seguro pela recorrida – o Tribunal tenha formado a convicção relativamente à dinâmica do acidente.
3. Ademais, o Tribunal estribou a sua convicção em rastos de travagem, cujo existência deu como não provada!!!
4. Tendo em conta o depoimento das testemunhas AA e BB o Tribunal “a quo” podia e devia ter julgado de modo diverso a matéria dos pontos 7º, 9º, 10º, 11º e 12º dos Factos Provados;
5. E tendo em conta os depoimentos das mesmas testemunhas, o Tribunal “a quo” podia e devia ter julgado como Provados os factos das alíneas b), c), d), e), f), g) e h) dos Factos Não Provados;
6. Operadas as alterações da matéria de facto acima preconizadas, conclui-se que somente o condutor do veículo seguro pela recorrida deu causa, por sua culpa exclusiva, ao acidente;
7. Ele, na verdade, circulava com desrespeito pelas mais elementares regras estradais e executou uma ultrapassagem perigosa e temerária.
8. E a velocidade a que circulava – fosse ela qual fosse – sempre era excessiva, na justa medida em que não lhe possibilitou parar no espaço livre e visível à sua frente.
9. No que se refere à atuação da condutora do veículo da recorrente, tendo em consideração a factualidade provada, com as alterações preconizadas, nenhum juízo de censura é possível formular.
10. Impõe-se, pois, concluir que a génese do acidente é imputável, em exclusivo, ao condutor do veículo seguro pela recorrida, visto conduzir com desrespeito pelas mais elementares regras da prudência e animado de velocidade excessiva, a qual, fosse ela qual fosse, o impediu de parar ou desviar-se no espaço livre e visível à sua frente.
Por mera cautela e sem prescindir:
11. Caso se entenda que os elementos probatórios disponíveis não permitem tecer um juízo quanto à responsabilidade efetiva de cada interveniente na produção do acidente, deverá o litígio ser decidido com base em responsabilidade objetiva.
12. Se assim se entender, considerando que se trata de dois veículos ligeiros de passageiros, será igual o risco que um deles aportou para o acidente.
13. E, portanto, se assim for o autor, a Autora, ora recorrente, terá o direito a receber metade dos prejuízos e danos sofridos e apurados
14. No cálculo dessa indemnização deverão ser levados em conta todos os factos assentes e provados constantes da douta sentença ora em crise.
15. A douta sentença ora em crise recorrida violou, pois, e além do mais, por erradas interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 483.º n.º 1, 503.º, n.º 1, 506.º, 562.º, 564.º e 566.º e 570.º do Código Civil e o artigo 24.º do Código da Estrada.”
B... – Companhia de Seguros, S.A. respondeu ao recurso pugnando pela sua total improcedência.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste tribunal da Relação, os autos foram aos vistos das Excelentíssimas Colegas que integram o coletivo, cumprindo agora apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da impugnação dos pontos 7 e 9 a 12 dos factos provados e das alíneas b) a h) dos factos não provados;
2.2 Da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na sorte da ação e, em todo o caso, da aferição da existência de responsabilidade objetiva decorrente de colisão de veículos.
3. Fundamentos
3.1 Da impugnação dos pontos 7 e 9 a 12 dos factos provados e das alíneas b) a h) dos factos não provados
A recorrente impugna os pontos 7 e 9 a 12 dos factos provados e as alíneas b) a h) dos factos não provados, pretendendo que os factos provados impugnados sejam julgados não provados e, ao invés que as alíneas dos factos não provados impugnados sejam julgadas provadas.
A recorrente funda a sua pretensão de alteração da decisão da matéria de facto nos depoimentos das testemunhas AA e BB, nas passagens que destaca, localizando-as temporalmente na gravação e transcrevendo-as.
Os pontos de factos impugnados têm o seguinte teor:
- Nos referidos dia, hora e local, os veículos QN e LO circulavam pela Rua ..., no sentido sul-norte, pela via de trânsito mais à direita, atento o referido sentido, circulando o QN à frente do LO (ponto 7 dos factos provados);
- O veículo GL circulava em aproximação aos veículos QN e LO, preparando-se para os ultrapassar (ponto 9 dos factos provados);
- Quando o veículo GL estava próximo do veículo LO, a condutora desta viatura, pretendendo ultrapassar o veículo QN, guinou para a esquerda, invadindo a via de trânsito por onde o veículo GL circulava, cortando-lhe a linha de marcha (ponto 10 dos factos provados);
A condutora do veículo LO executou esta manobra sem prévia sinalização e sem cuidar da presença do veículo GL (ponto 11 dos factos provados);
- Surpreendido por tal manobra, o condutor do veículo GL travou a fundo e guinou para a esquerda, para evitar o embate (ponto 12 dos factos provados);
- Na ocasião referida em 7.º, o veículo LO transitava pela via de trânsito do lado esquerdo, destinada ao sentido sul-norte, próximo do eixo da via, iniciando uma manobra de ultrapassagem ao veículo QN, que circulava à sua direita, mais devagar (alínea b) dos factos não provados);
- Surgiu então o veículo GL, a uma velocidade não inferior a 80 km/hora (alínea c) dos factos não provados);
- O veículo GL, pretendendo ultrapassar o veículo LO, transpôs a dupla linha longitudinal contínua e passou a circular pela via de trânsito destinada ao sentido norte-sul (alínea d) dos factos não provados);
- No decurso desta manobra, o condutor do veículo GL deparou-se com um veículo automóvel, que transitava no sentido oposto, isto é, de norte para sul (alínea e) dos factos não provados);
- Na iminência de um embate frontal, o condutor do veículo GL guinou bruscamente à sua direita, tentando retomar a sua mão de trânsito (alínea f) dos factos não provados);
- Em simultâneo, travou a fundo, deixando rastos de travagem, vincados no pavimento da via, direcionados, na diagonal, desde a via de trânsito destinada ao sentido norte-sul, em direção à via de trânsito afeta ao sentido sul-norte, numa extensão superior a 10 metros (alínea g) dos factos não provados);
- Em virtude da guinada e desvio repentinos para a direita, em simultâneo com a travagem brusca que realizou, o veículo GL entrou em marcha descontrolada em sentido diagonal relativamente ao eixo da via e embateu no veículo LO (alínea h) dos factos não provados).
O tribunal recorrido motivou os pontos de facto impugnados da forma que segue:
“Relativamente à dinâmica do acidente, o tribunal analisou conjugadamente:
- os depoimentos dos condutores dos veículos intervenientes no acidente, AA (condutora do veículo LO) e CC (condutor do veículo GL);
- os depoimentos de DD e BB, que, quando se deu o embate, circulavam na mesma faixa de rodagem, em igual sentido de trânsito, alguns metros atrás dos veículos intervenientes no acidente;
- o depoimento de EE, agente da PSP que elaborou a participação de acidente;
- a participação de acidente junta com a contestação, como documento n.º 2 (a autora também juntou a participação do acidente, mas é menos legível que a que se mostra junta com o relatório de peritagem que faz o documento n.º 2 da contestação, por isso se atendeu a este último);
- as fotografias juntas com a petição inicial.
Assim, o tribunal ficou convencido de que o embate se deu, essencialmente, conforme descrito pela ré na contestação, em face do depoimento de CC e dos rastos de travagem (marcas de rodados/pneumáticos) visualizados nas fotografias juntas com a petição inicial, que se reportam ao dia do acidente. Com efeito, desses rastos parece resultar mais credível a versão da ré: CC, surpreendido com a mudança de direção da condutora do veículo LO e vendo cortada a sua linha de marcha, tentou desviar-se para a esquerda, razão pela qual ultrapassou as duas linhas longitudinais contínuas desenhadas no pavimento. Com efeito, a marca do rodado está praticamente sobreposta a essas linhas e terá sido feita pelo rodado esquerdo da viatura GL, o que é compatível com a versão de CC de que foi surpreendido pela manobra do veículo LO e, como manobra de recurso, guinou à esquerda, mas como circulava um veículo no sentido contrário e para não embater frontalmente com esse veículo, teve que virar imediatamente para a sua direita.
Essa mesma marca de pneumático parece contrariar a versão da autora - de que a viatura GL circulava pela via de trânsito destinada aos veículos que circulavam em sentido contrário. Se assim fosse, então a marca do pneumático esquerdo não estaria tão próxima das linhas longitudinais contínuas, como se apresenta.
Suscitou-se, em audiência, a dúvida quanto ao facto de o rasto de travagem a que se tem vindo a fazer referência ser da viatura GL, pois a mesma não se mostra desenhada no croqui da participação de acidente. EE, agente da PSP que elaborou o croqui, admitiu que pudesse ser o rasto de travagem do veículo GL. O tribunal concede que o referido agente, não tendo, naturalmente, presenciado o acidente e não podendo afirmar, sem margem para dúvida, de que a marca de rodado em questão respeitasse ao acidente apreciado, optou (e bem, diga-se) por não a indicar no croqui.
Como referido, AA deu uma versão dos factos diferente da que o tribunal deu como demonstrada, questionando-se quanto a tal versão como pode a referida testemunha asseverar que o veículo GL transpôs a linha longitudinal contínua para a ultrapassar e ao mesmo tempo afirmar que não se tinha apercebido da presença do veículo GL antes de ser embatida por esta viatura.
DD e BB foram apresentados em audiência como testemunhas oculares do acidente. Seguiam os dois (pai e filho) na mesma viatura automóvel, mas dão do acidente versões diferentes (o que não é de estranhar quando se trata de descrever a perceção pessoal do modo como aconteceu um acidente de viação, para mais quando o mesmo ocorreu há quase dois anos). DD afirma que o veículo LO seguia na via de trânsito da direita, atento o seu sentido de trânsito, quando foi embatido pelo veículo GL – o que é contrariado pelos demais depoimentos e deixa por explicar por que razão o veículo GL saiu da sua mão de trânsito. Já BB dá uma versão dos factos coincidente com AA.
Como quer que seja, da leitura que o tribunal efetuou dos rastos de travagem no pavimento, parece mais verosímil ao tribunal, como se disse, que CC, circulando na via de trânsito da esquerda, atento o seu sentido de marcha, tenha sido surpreendido pela presença do veículo LO e, num primeiro momento, tenha travado e desviado para a esquerda, mas na presença de viaturas em sentido contrário, tenha regressado à via por onde circulava e embatido no veículo LO, dando-se então o despiste de ambas as viaturas.
Finalmente, cumpre dizer que o croqui constante da participação de acidente de viação permite perceber a posição de cada um dos veículos após o embate e não infirma a dinâmica do acidente que o tribunal considerou demonstrada.
No que respeita ao local onde cada um dos veículos embateu (lateral traseira esquerda do veículo LO, lateral frente direita do veículo GL e frente esquerda do veículo QN), o tribunal atentou na reportagem fotográfica constante do relatório de averiguação junto (a cores) pela ré com o requerimento de 04-12-2023, referência 15408742.
(…)
Quanto aos factos que o tribunal deu como não provados, cumpre dizer que a resposta negativa resultou da ausência de prova dos mesmos [caso das alíneas a), c), j) a n) e q) a w)] ou por estarem em contradição com factos dados como provados [caso das alíneas b), d) a f) e h), referentes à dinâmica do acidente].
No mais, cumpre dizer que, no que respeita à alínea g) e não obstante aceitar-se que o veículo GL deixou marcas de rodado no pavimento, o contexto em que tais marcas aconteceram é distinta da alegada; a localização descrita na alínea em apreciação não é precisa, já que tais marcas começam, de facto, na hemifaixa afeta ao sentido norte-sul, mas muito próximo das linhas longitudinais contínuas; e a extensão das mesmas não está demonstrada.”
Cumpre apreciar e decidir.
A recorrente observa suficientemente os ónus que recaem sobre o impugnante da decisão da matéria de facto (veja-se o artigo 640º, nºs 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Civil), pelo que há que conhecer dessa impugnação.
Procedeu-se ao exame da prova documental junta aos autos e à audição da prova pessoal produzida nas duas sessões da audiência final e pertinente à dinâmica do sinistro, ou seja, os depoimentos das testemunhas AA (condutora do veículo LO), CC (condutor do veículo GL), DD e BB, que, quando se deu o embate, circulavam na mesma faixa de rodagem, em igual sentido de trânsito, alguns metros atrás dos veículos intervenientes no acidente e ainda o depoimento de EE, agente da PSP que elaborou a participação do acidente. Ouviu-se ainda o depoimento de FF, marido da testemunha AA e gerente da autora que se deslocou ao local do acidente pouco após a sua ocorrência, tendo sido o autor das fotografias que instruíram a petição inicial.
Analisaram-se as seguintes fotografias oferecidas pela autora com a sua petição inicial, logo de seguida à cópia da participação policial[3]:
- duas fotografias de uma faixa de rodagem com dois sentidos de trânsito separados por dupla linha contínua e delimitada com passeios, havendo em cada um dos sentidos de marcha duas vias de trânsito; no pavimento da faixa de rodagem são visíveis diversas marcas de pneus, uma delas a iniciar-se para lá da dupla linha contínua e prolongando-se para as duas vias de trânsito do lado oposto; a marca que se inicia para lá da dupla linha contínua, pela distorção da marcação do pneumático, parece ser originada por uma derrapagem; não se divisam na faixa de rodagem quaisquer fragmentos dos veículos, terra ou lixo ou derrame de líquidos, sendo apenas visível junto ao lancil do passeio da via de trânsito mais à direita um pequeno objeto que não é possível identificar;
- fotos da parte traseira do veículo segurado pela ré constantes na página 10 do relatório de averiguação, não sendo visíveis quaisquer danos;
- fotos da parte dianteira do veículo de matrícula ..-..-GL, segurado pela ré, na página 11 do relatório de averiguação, sendo visíveis muitos danos na sua parte frontal, aparentemente mais graves na frente do lado esquerdo do veículo, com fratura da grelha, na zona do lado esquerdo e achando-se o pneu da roda direito da frente rebentado;
- fotografias do certificado de matrícula emitido em 22 de abril de 2022, referente ao veículo de matrícula ..-..-GL, Honda ..., 1.5I, LS (EK3), de cor ..., sendo a primeira matrícula de 21 de março de 1996;
- fotos nas páginas 14 e 15 do relatório de averiguação, do veículo de matrícula ..-LO-.., de cor preta, com a frente danificada, estando o para-choques dianteiro caído no chão; o mesmo veículo apresenta sinais de raspagem na parte lateral direita, na parte inferior da porta traseira na zona da sua abertura e na zona do guarda-lamas dianteiro; na zona da raspagem, aparentemente com material abrasivo, há sinais de transporte de material de cor ...; o mesmo veículo apresenta sinais de raspagem e amolgadela da chapa na parte lateral esquerda na zona do guarda-lamas e na zona da abertura da porta traseira desse lado, tudo com sinais de transporte de material de cor ..., achando-se a ótica traseira desse lado com sinais de fratura;
- fotos na página 16 do relatório de averiguação, do certificado de matrícula do veículo ..-LO-.., emitido em 26 de março de 2019, sendo a primeira matrícula do veículo em 11 de abril de 2011;
- fotos nas páginas 17 a 19 do relatório de averiguação, do veículo de matrícula ..-QN-.., de cor ..., com a frente sem o para-choques, a zona do guarda-lamas traseiro do lado direito com sinais de raspagem e amolgadela com transporte de uma cor escura, a jante dianteira do lado esquerdo com sinais de raspagem em material abrasivo e o para-choques da frente, do lado esquerdo com sinais de raspagem e transporte de uma cor escura;
- fotos na página 19 do relatório de averiguação, do certificado de matrícula do veículo ..-QN-.., emitido em janeiro de 2020, sendo a primeira matrícula do veículo em 30 de outubro de 2015;
- participação policial do acidente objeto dos autos de folhas 28 de 32 do processo de averiguações de que se destacam os seguintes dados:
- o condutor do veículo de matrícula ..-..-GL nasceu em ../../2000 e é titular de licença de condução desde 01 de junho de 2021;
- a condutora do veículo de matrícula ..-LO-.. nasceu em ../../1958 e é titular de licença de condução desde 07 de março de 1988;
- o condutor do veículo de matrícula ..-QN-.. nasceu em ../../1990 e é titular de licença de condução desde 02 de outubro de 2008;
- no “croquis” da participação são visíveis no asfalto marcas paralelas oblíquas relativamente às vias de trânsito, da esquerda para a direita, imputadas ao veículo de matricula ..-..-GL e com um comprimento de dez metros; o veículo ..-..-GL está representado a vinte e seis metros do começo das marcas que lhe são imputadas, com a frente virada para o interior da faixa de rodagem e em sentido oposto ao daquela via de trânsito; o veículo de matrícula ..-LO-.. está representado sobre o passeio que margina a via de trânsito mais à direita, em posição oblíqua e a catorze metros e cinquenta centímetros do começo das marcas imputadas ao veículo ..-..-GL.
EE, agente da PSP e autor da participação policial referente ao acidente objeto destes autos foi confrontado com o “croquis” que elaborou e, induzido pelo Sr. Advogado da autora, ao arrepio do que ele próprio tinha escrito na participação policial, admitiu que as marcas de travagem que desenhou podiam ser do veículo QN, equívoco depois desfeito pelo Sr. Advogado da ré ao chamar a atenção para a legenda correspondente à letra G[4].
AA, condutora do veículo de marca Toyota ..., de matrícula ..-LO-.., identificou-se como empresária e sócia da autora e a exercer funções administrativas; declarou que no momento do acidente circulava sozinha no seu veículo, no sentido sul/norte, na via de trânsito mais à esquerda, circulando à sua direita um veículo Peugeot, de cor ... e sentiu uma pancada na parte lateral traseira esquerda do veículo que conduzia, tendo sido de imediato projetada para a sua direita, galgando o passeio e imobilizando-se depois de embater num murete; o veículo que embateu no seu era um Honda ..., de cor ..., veículo este que para a ultrapassar transpôs o duplo traço contínuo que separava as duas vias de trânsito no sentido sul/norte das outras duas vias de trânsito de sentido oposto; não se apercebeu da manobra do Honda ... mas explicou que deve ter surgido um veículo a circular no sentido norte/sul o que terá levado o Honda ... a colidir com o seu veículo; circulava a cerca de cinquenta quilómetros por hora; referiu que ficaram rastos de travagem no local do acidente; depois de o seu veículo ser projetado para a sua direita e de ter galgado o passeio tocou na parte traseira do lado direito do veículo Peugeot, veículo que se dirigia para as instalações da C... sitas nas imediações, do lado direito da via de trânsito por onde circulava.
DD, pintor de automóveis e bate-chapas, trabalhador por conta própria, presta serviços à autora, circulava num veículo na mesma via de trânsito em que circulavam o Toyota ... e o Peugeot ..., um atrás do outro, na via de trânsito mais à direita; viu um Honda ... que ia atrás do Toyota ... passar para a via de trânsito mais à esquerda, naquele sentido de marcha, para o ultrapassar, tendo pouco depois guinado para a direita, certamente porque vinha um veículo em sentido oposto, indo embater no lado esquerdo do Toyota ...; quando viu o acidente não reconheceu qualquer dos condutores, apenas tendo reconhecido no seu regresso, alguns minutos depois, a condutora do Toyota ...; a Sra. Juíza que presidiu à audiência final pediu à testemunha para fazer um desenho do que viu, desenho que se foi feito, não foi junto aos autos.
BB, pintor de automóveis, trabalha por conta de seu pai DD, conduzia um veículo em que este era transportado; conhece a condutora do veículo Toyota ..., não conhecendo o condutor do veículo Honda ...; circulava atrás de dois veículos que seguiam atrás de um Peugeot ..., enquanto o Toyota ... circulava na via de trânsito mais à esquerda, todos no sentido .../ Rotunda ...; de repente apareceu um Honda ... de cor ... que ultrapassou o duplo traço contínuo que separava os dois sentidos de trânsito, iniciando a ultrapassagem do Toyota ... e, depois, talvez porque tenha surgido um veículo que circulava em sentido oposto ao seu, guinou para a sua direita indo embater no Toyota ... e travou; não parou no local do acidente porque havia muito trânsito, tendo reparado quando passou na volta pelo local, que havia marcas de pneus; o Toyota ... imobilizou-se na berma do lado direito em cima do passeio, à direita do veículo Peugeot; disse que as marcas que ficaram no pavimento são do Honda ... pois este veículo fez fumo quando travou; instado para identificar quem tinha deixado as marcas de pneus no local do acidente identificou algumas marcas como sendo causadas pelo veículo Peugeot, negando depois que aí houvesse marcas do Peugeot ... ou do Toyota ....
CC declarou que exerceu a profissão de serralheiro mecânico e manifestou surpresa por ter o papel de testemunha; recorda-se do acidente, conduzia um Honda ... de 1996; não conhecia os outros intervenientes no sinistro; tinha saído há pouco do seu local de trabalho e circulava na via de trânsito da esquerda a fim de se dirigir para a esquerda na próxima rotunda; o Toyota ... circulava atrás de um Peugeot ... e, sem fazer pisca, o Toyota ... decidiu ultrapassar o Peugeot ... que circulava à sua frente, indo embater com a sua lateral esquerda contra a parte frontal do seu veículo, obrigando-o a desviar-se para a sua esquerda; nessa sequência, saiu fora de mão cerca de trinta centímetros por ter sido empurrado em consequência da colisão; usou o travão de mão e os travões da frente a fim de tentar evitar a colisão, não o tendo conseguido; admite que possa ter batido no veículo Peugeot; afirmou que as marcas de pneus junto aos dois traços contínuos não são marcas de travagem mas sim de derrapagem; afirmou que o Toyota ... foi colidir contra o seu veículo com a roda traseira do lado esquerdo na roda dianteira direita do seu veículo; na altura do acidente tinha licença de condução há menos de dois anos e ficou com medo de perder a licença por ter transposto as duas linhas contínuas.
FF, gerente da autora, marido da condutora do veículo Toyota ..., deslocou-se ao local do acidente pouco após a sua ocorrência, aí chegando ainda antes da autoridade policial; tirou as fotografias do local do sinistro e dos veículos nele envolvidos e que foram oferecidas pela autora com a sua petição inicial.
Rememorado o essencial da prova documental e pessoal produzida, é tempo de a avaliar criticamente.
Um acidente de viação é uma realidade dinâmica, dinamismo que leva a que os diversos envolvidos no sinistro e bem assim os que o observaram tenham visões do mesmo nem sempre consonantes. Por ser uma realidade dinâmica, a posição final dos veículos é em regra um retrato de um momento posterior ao da ocorrência da colisão.
O tempo em que se desenvolve um acidente não é imediato como tendem a pensar os intervenientes, pois que entre a decisão de execução de uma manobra e a sua concretização medeia sempre algum tempo variável em função da velocidade de reação de cada indivíduo e, nesse tempo de reação, os veículos continuam a progredir no espaço de acordo com a sua velocidade de circulação.
Além de ser uma realidade dinâmica, um acidente de viação é um facto material que produz alterações nos veículos, nas pessoas e no ambiente envolvido, sendo todas estas alterações dados de facto especialmente relevantes para avaliar a credibilidade e fiabilidade das provas pessoais produzidas.
As máquinas envolvidas num sinistro têm caraterísticas técnicas que se devidamente assinaladas e não havendo falhas de funcionamento dos sistemas permitem a extração de conclusões mais seguras sobre o ocorrido.
No caso dos autos discutiu-se muito sobre a existência de rastos de travagem no local e a atribuição desses vestígios de borracha na via a um ou vários dos veículos envolvidos.
Como é recorrente neste tipo de sinistralidade não se curou de averiguar se alguma ou todas as viaturas intervenientes no acidente estavam ou não dotadas de sistema antibloqueio dos travões e, na eventualidade de algum ou alguns dos veículos ou de todos eles estarem providos desse sistema de segurança, se estavam operacionais.
Na realidade, um sistema antibloqueio do sistema de travagem operacional obsta a que o veículo dele provido deixe rastos de travagem na faixa de rodagem.
A observação atenta de algumas das fotografias juntas aos autos pela autora com a petição inicial permite-nos com grande segurança afirmar que alguns dos vestígios de borracha no pavimento não são rastos de travagem, mas antes sinais de derrapagem (assim sucede, segundo cremos, com os vestígios localizados mais à direita na primeira fotografia e com os localizados mais à esquerda na segunda e terceira fotografia).
O condutor do veículo Honda ... referiu-se a sinais de derrapagem deixados pelo seu veículo e mencionou o uso do travão de mão a fim de evitar a colisão, manobra mais própria da competição automóvel e que bem dominada permite a execução de derrapagens controladas.
Anote-se que os rastos de derrapagem não têm o valor indiciário para efeitos de determinação da velocidade de circulação que têm os rastos de travagem pois resultam da causação de desequilíbrio no veículo e do aproveitamento da força centrífuga daí resultante.
Os dois condutores que intervieram na eclosão do sinistro deram versões diametralmente opostas sobre a forma como ocorreu, versões que não se coadunam com as consequências físicas verificadas nos veículos.
As duas testemunhas que afirmaram ter visto o acidente, inquiridas em sessões distintas da audiência final e que circulavam no mesmo veículo deram versões muito diferentes do mesmo.
O condutor do veículo Peugeot não foi ouvido.
A condutora do veículo Toyota afirmou que o veículo Honda vindo da via de trânsito oposta àquela em que circulava, colidiu contra a traseira esquerda do seu veículo, quando circulava na via de trânsito mais à esquerda, projetando o seu veículo para a direita.
Os sinais de colisão na parte traseira esquerda do veículo Toyota, pela altura a que os vestígios são aparentes e pela sua natureza (recorde-se que há sinais de fricção, não sendo significativo o amolgamento dessa zona do veículo Toyota), não são compatíveis com uma colisão frontal, mas antes com um encosto lateral. Por outro lado, uma colisão com a parte traseira de um veículo determina em regra uma deslocação da frente do veículo para o sentido oposto àquele em que é exercida a força do veículo que colide contra o outro.
Mas também os vestígios no veículo Honda e no Toyota não são compatíveis com a versão dos factos trazida a juízo pelo condutor do Honda .... De facto, se a colisão entre estes dois veículos se verifica quando o Toyota ... invade a via de trânsito à esquerda em que circula o Honda ..., este veículo irá colidir com a sua frente do lado direito com a lateral esquerda do Toyota ... deixando neste marcas mais profundas do que as evidenciadas pelas fotografias juntas aos autos, pois que, nessa situação, o veículo que invade a via de trânsito se acha em posição oblíqua.
Ora, como vimos, o Toyota ... apresenta sinais de um encosto lateral com outro veículo e o Honda ... tem toda a frente destruída, sendo aparentemente maiores os danos no lado esquerdo dessa frente, não sendo visíveis danos na lateral direita deste último veículo.
Ao invés, os danos que o veículo Toyota apresenta na sua traseira do lado esquerdo ajustam-se aos danos verificados na traseira do lado direito do veículo Peugeot, sendo compatíveis entre si pela altura, profundidade e natureza.
A hipótese adiantada pelo condutor do veículo Honda ... de que a roda traseira direita do Toyota ... teria ido colidir contra a roda dianteira direita do seu veículo não parece fisicamente possível, dada a posição protegida em que as rodas se encontram e que impossibilitam esse contacto.
Assim, tudo sopesado, a prova produzida não permite credibilizar qualquer das versões do acidente produzidas em juízo, apenas sendo possível concluir, atenta a convergência, nesse ponto, dos depoimentos dos condutores dos veículos Toyota ... e Honda ... colidiram um contra o outro em condições não precisamente determinadas e que na sequência de tal colisão tanto o veículo Toyota como o veículo Honda ... entraram em despiste.
Feita a análise crítica da prova produzida apreciemos detalhadamente cada um dos pontos de facto impugnados pela recorrente.
No que respeita ao ponto 7 dos factos provados, a prova produzida apenas permite dar como provado que nos referidos dia, hora e local, os veículos QN e LO circulavam pela Rua ..., no sentido sul-norte, o QN pela via de trânsito mais à direita, atento o referido sentido e mais a norte relativamente ao LO.
Deste modo, deve julgar-se não provado que o veículo LO, nos referidos dia, hora e local circulava pela via de trânsito mais à direita da Rua ..., sentido sul-norte.
Vejamos agora a impugnação do ponto 9 dos factos provados.
No que respeita este ponto de facto, a prova produzida é bastante para que se mantenha a decisão do tribunal a quo.
Apreciemos agora a impugnação dos pontos 10, 11 e 12 dos factos provados.
A análise crítica da prova pessoal e documental produzida nos autos não nos permitiu formar uma convicção positiva quanto às precisas circunstâncias que precederam a colisão do veículo GL com o veículo LO.
Deste modo, deve julgar-se não provada a factualidade vertida nos pontos 10, 11, e 12 dos factos provados.
Embora o ponto 13 dos factos provados não tenha sido expressamente impugnado é uma mera consequência dos pontos que o precedem e relativamente aos quais este Tribunal da Relação não logrou formar uma convicção positiva.
Deve por isso considerar-se também impugnado este ponto de facto.
Tal como se referiu a propósito dos pontos 10, 11 e 12 dos factos provados, a análise crítica da prova pessoal e documental produzida nos autos não nos permitiu formar uma convicção positiva quanto às precisas circunstâncias que precederam a colisão do veículo GL com o veículo LO, apenas sendo possível concluir que em circunstâncias não concretamente apuradas ocorreu uma colisão entre os veículos GL e LO.
Assim, no que respeita ao ponto 13 dos factos provados apenas se pode dar como provado que em circunstâncias não concretamente apuradas ocorreu uma colisão entre os veículos GL e LO, devendo julgar-se não provado que sem êxito, perante a proximidade a que os veículos se encontravam, ocorreu o embate entre a lateral traseira esquerda do veículo LO e a lateral frente direita do veículo GL.
No que respeita às alíneas b), c), d), e), f), g) e h) dos factos não provados, à semelhança do que se afirmou relativamente aos pontos 10, 11, 12 e 13 dos factos provados, a prova pessoal e documental produzida nos autos não nos permitiu formar uma convicção positiva quanto às precisas circunstâncias que precederam a colisão do veículo GL com o veículo LO, apenas sendo possível concluir que em circunstâncias não concretamente apuradas ocorreu uma colisão entre os veículos GL e LO.
Por isso, neste contexto probatório, deve manter-se não provada a factualidade vertida nas alíneas b), c), d), e), f), g) e h).
Assim, face ao exposto, conclui-se pela parcial procedência da impugnação da decisão da matéria de facto nos termos precedentemente enunciados.
3.2 Fundamentos de facto exarados na sentença recorrida com as alterações decorrentes da impugnação da decisão da matéria de facto que precede
3.2.1 Factos provados
- o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-GL (GL), conduzido por CC;
- o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-LO-.. (LO), pertencente à autora e conduzido por AA; e
- o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-QN-.. (QN).
3.2.2 Factos não provados
4. Fundamentos de direito
Da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na sorte da ação e, em todo o caso, da aferição da existência de responsabilidade objetiva decorrente de colisão de veículos
A recorrente pretende a revogação da sentença recorrida em função da procedência da impugnação da decisão da matéria de facto por que pugnou e, assim não sendo, quer que o sinistro objeto dos autos seja resolvido à luz das regras da responsabilidade objetiva no caso de colisão de veículos.
Cumpre apreciar e decidir.
A alteração da decisão da decisão da matéria de facto procedeu apenas na parte em que era impugnada a versão da ré do acidente objeto destes autos, não se provando assim nenhuma das duas versões do acidente objeto destes autos.
Os factos provados não permitem concluir pela prática de qualquer facto ilícito e culposo pelo segurado da ré (o condutor do veículo GL) que tenha sido causa do sinistro, já que não se apuraram as circunstâncias concretas em que ocorreu a colisão dos veículos GL e LO.
Neste circunstancialismo factual, as pretensões indemnizatórias da recorrente contra a ré seguradora à luz das regras da responsabilidade por facto ilícito não podem proceder.
E terá viabilidade, ao menos parcial, a pretensão indemnizatória da autora à sombra das regras da responsabilidade pelo risco?
As regras sobre a vinculação do tribunal à causa de pedir invocada pelas partes não subtraem à cognição deste tribunal esta modalidade de responsabilidade civil, pois deve entender-se implicitamente alegada nos factos que estribam a responsabilidade por facto ilícito.
Trata-se de uma causa de pedir subsidiária que entra em cena sempre que os requisitos da responsabilidade por facto ilícito não estão reunidos, já que aquilo que o lesado pretende, em primeira linha, é o seu ressarcimento, seja com base em facto ilícito, seja com fundamento no risco (a não ser que o lesado manifeste inequivocamente a pretensão de que o lesante apenas seja responsabilizado com base em facto ilícito).
O artigo 505º do Código Civil prescreve que, “sem prejuízo do disposto no artigo 570º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”
Finalmente, se “da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar” (artigo 506º, nº 1, do Código Civil).
No caso dos autos, a colisão envolveu dos veículos ligeiros, não se tendo provado factos que permitam atribuir a qualquer um deles uma maior contribuição para os danos.
Neste circunstancialismo, a proporção do risco de cada um dos veículos envolvidos na colisão para os danos verificados deve considerar-se igual, ou seja, metade para cada um.
A autora formulou contra a ré as seguintes pretensões indemnizatórias:
- perda total do seu veículo no montante de € 11 389,00, considerando o valor venal de € 13 000,00 e o valor dos salvados no montante de € 1 611,00;
- privação do uso do veículo até 18 de agosto de 2022, num período de quarenta e três dias e à razão diária de € 30,00;
- juros de mora contados à taxa supletiva legal desde a citação da ré até efetivo pagamento;
- juros de mora agravados nos termos previstos no artigo 38º nº 3 do decreto-lei nº 291/2007 de 21 de agosto.
Analisemos cada uma das pretensões indemnizatórias.
No que respeita ao dano da perda do veículo, perda total com que a autora se conforma e bem assim com a dedução a esse valor do correspondente aos salvados, provou-se:
- O veículo da autora tinha um valor comercial de € 8 000,00 (ponto 3.2.1.18 dos factos provados);
- No estado em que ficou (“salvado”), a viatura tem o valor de € 1 250,00 (ponto 3.2.1.19 dos factos provados).
Atenta a contribuição igualitária de cada um dos veículos envolvidos na colisão a autora tem a haver da ré, a título de perda total do seu veículo, a quantia de € 2 750,00 (€ 8 000,00 : 2 = €4.000,00; € 4 000,00 - € 1 250,00 = € 2 750,00).
Procede assim parcialmente esta pretensão indemnizatória da recorrente.
Apreciemos agora o dano da privação do uso de veículo da autora no período compreendido entre o sinistro e 18 de agosto de 2022, data em que adquiriu um novo veículo para substituição do sinistrado.
O dano da privação do uso tem na realidade judiciária diversos figurinos que ora o colocam na esfera dos danos patrimoniais ora o colocam na zona dos danos não patrimoniais e noutras situações numa zona algo ambígua dos danos patrimoniais cujo montante se fixa com recurso à equidade (artigo 566º, nº 3, do Código Civil)[5].
A questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso tem sofrido ao longo do tempo uma evolução jurisprudencial que aponta num sentido de maior abertura na reparação de tal dano[6].
Assim, numa corrente mais exigente para o lesado, para que o dano da privação do uso da coisa danificada seja ressarcível requer-se a prova de factos demonstrativos da repercussão negativa dessa privação no património do lesado[7].
Outra corrente jurisprudencial, mais favorável ao lesado, basta-se com a prova de que o lesado usaria normalmente a coisa danificada para que o dano da privação do uso seja indemnizado[8].
Outra posição, ainda mais favorável ao lesado, pronuncia-se no sentido da ressarcibilidade do dano da privação do uso mesmo que não seja feita prova de uma utilização quotidiana do veículo, indemnização a fixar com recurso à equidade e com ponderação das concretas circunstâncias de cada caso[9].
No caso dos autos, a autora é uma pessoa coletiva e não é titular de uma empresa de aluguer de automóveis que por definição é lucrativa e que para o desempenho dessa atividade suporta custos diversos, quer com aquisição dos veículos destinados ao aluguer, respetivos seguros e encargos fiscais, despesas de pessoal para receber os clientes, elaborar e celebrar os contratos, despesas de publicidade e etc….
Por isso, o custo do aluguer de um veículo além de cobrir a margem de lucro a que qualquer atividade económica aspira, tem que necessariamente cobrir os custos inerentes ao desenvolvimento de tal atividade, sob pena de insolvência a breve trecho da entidade que a desenvolve[10].
E porque assim é, o dano da privação do uso do veículo sinistrado, sempre que o lesado não prova a efetiva realização de despesas com o aluguer de um veículo de substituição, não se pode aferir pelo valor locativo de um veículo similar ao sinistrado, sob pena de um injustificado enriquecimento do lesado.
Amiúde, em tempos ainda não muito distantes, a jurisprudência dos tribunais superiores tem tomado como referência para cálculo do dano da privação do uso valores de dez euros diários e até inferiores[11] e numa situação estando em causa um veículo de gama bem superior ao veículo da recorrente[12].
Importa ainda referir que a privação do uso do veículo sinistrado não se traduziu só num dano para a lesada, mas também, além do mais, em despesas inutilizadas (período de tempo de cobertura com o seguro em que ocorre a privação do gozo, por exemplo) e poupança de despesas, pois que, além do mais, a circulação do veículo implica gastos com combustível e desgaste do material.
Tudo isso deve ser sopesado na fixação da indemnização por privação do uso do veículo.
Assim, tudo visto e ponderado dado o tempo decorrido desde a prolação das decisões judiciais antes citadas e a inflação que se tem vindo a verificar, reputa-se equitativa a fixação do dano da privação do uso do veículo de matrícula ..-LO-.. sofrido pela autora, no montante diário de vinte euros.
O acidente ocorreu em 06 de julho de 2022.
Provou-se que a ré propôs à autora o ressarcimento dos danos decorrentes do acidente pela quantia de € 3 194,50 (ponto 3.2.1.22 dos factos provados) e que por carta de 28 de julho de 2022, a ré propôs à autora a regularização dos danos emergentes do embate com base numa repartição equitativa de responsabilidade (ponto 3.2.1.23 dos factos provados).
O documento nº 5 oferecido pela ré permite concluir que a proposta de ressarcimento dos danos sofridos pela autora pela perda da viatura foi formulada em carta datada de 28 de julho de 2022.
Sabe-se que a autora teve conhecimento dessa carta (veja-se o artigo 75º da petição inicial), embora se desconheça em que data essa carta chegou ao conhecimento da autora.
Neste circunstancialismo, afigura-se-nos adequado aplicar por analogia o critério previsto no nº 1 do artigo 249º do Código de Processo Civil, pelo que se deve considerar que a proposta de indemnização formulada pela ré e endereçada à autora chegou ao conhecimento desta em 01 de agosto de 2022, devendo fixar-se neste dia o termo final do dano da privação do uso do veículo sinistrado, já que então a ré propôs um valor para reparação do mesmo superior àquele que se está a liquidar nestes autos.
O dano da privação do uso do veículo acidentado prolongou-se assim por vinte e sete dias, tendo a autora direito a haver da ré a este título a quantia de € 270,00 (27 dias x € 20,00 = € 540,00: 2= € 270,00).
Apreciemos agora a pretensão da recorrente de que a ré seja condenada a pagar juros de mora à taxa supletiva legal.
Atento o disposto na segunda parte do nº 2 do artigo 805º do Código Civil, sendo a obrigação de indemnização liquidada nestes autos, são devidos juros de mora desde o dia seguinte à data da citação da ré (28 de maio de 2023), já que no próprio dia da citação ainda pode cumprir.
A taxa de juro é a supletiva e que decorre do disposto no nº 1 do artigo 559º do Código Civil e da Portaria nº 291/2003 de 08 de abril, ou seja, 4% ao ano.
Finalmente, apreciemos a pretensão da recorrente de que a ré seja condenada a pagar juros agravados nos termos previstos no nº 3 do artigo 38º do decreto-lei nº 291/2007 de 21 de agosto.
Nos termos do normativo que se acaba de citar, “[s]e o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos nas disposições identificadas no n.º 1 até à data da decisão judicial ou até à data estabelecida na decisão judicial.”
Provou-se que a ré propôs à autora o ressarcimento dos danos decorrentes do acidente pela quantia de € 3 194,50 (ponto 3.2.1.22 dos factos provados).
A proposta razoável formulada pela ré não só não foi manifestamente insuficiente como, ao invés, se revelou muito equilibrada.
Deste modo, a recorrente não tem direito a haver juros à taxa agravada prevista no nº 3 do artigo 38º do decreto-lei nº 291/2007 de 21 de agosto, improcedendo esta pretensão.
As custas do recurso e da ação são da responsabilidade da autora e da ré na exata proporção do decaimento (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar o recurso de apelação interposto por A..., Lda. parcialmente procedente por provado e, em consequência, altera-se a decisão da matéria de facto nos termos antes enunciados e revoga-se a sentença recorrida proferida em 21 de maio de 2024 e, em substituição, condena-se a B... – Companhia de Seguros, S.A. a pagar à A..., Lda. a quantia global de três mil e vinte euros, sendo dois mil setecentos e cinquenta euros, a título de ressarcimento da perda total do veículo de matrícula ..-LO-.. e duzentos e setenta euros a título de privação do uso do mesmo veículo desde a data do acidente até 01 de agosto de 2022, a que acrescem juros de mora à taxa supletiva legal, no momento presente de 4% ao ano, contados sobre o aludido capital de três mil e vinte euros desde 29 de maio de 2023 até efetivo e integral pagamento e sem prejuízo de aplicação de outras taxas que ulteriormente venham a vigorar aos juros corridos na sua vigência.
Custas da ação e do recurso a cargo da autora e da ré na exata proporção de decaimento, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
Porto, 2025/7/10.
Carlos Gil
Eugénia Cunha
Teresa Pinto da Silva
______________________________
[1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 22 de maio de 2024.
[3] Uma vez que a cópia da participação policial oferecida pela ora recorrente com a sua petição inicial se acha em más condições de legibilidade, relevar-se-á a cópia deste mesmo documento anexa ao relatório de averiguação junto aos autos pela ré em 04 de dezembro de 2023.
[4] A letra G refere-se a marcas de travagem, em posição oblíqua, que se iniciam na via de trânsito mais à esquerda, no sentido sul/norte e que se prolongam na via de trânsito mais à direita do mesmo sentido, com o comprimento de dez metros, marca que se atribuem ao veículo A que é o de matrícula ..-..-GL.
[5] A ambiguidade resulta a nosso ver da circunstância de que, por definição, os danos patrimoniais são aqueles que são passíveis de avaliação pecuniária e isso porque são o reflexo do dano real na situação patrimonial do lesado (veja-se por todos, Das Obrigações em Geral, 6ª Edição, João de Matos Antunes Varela, Almedina 1989, Vol. I, páginas 568 e 569) e de no dano da privação do uso do veículo automóvel é esta projeção na situação patrimonial do lesado que nalguns casos causa dificuldades, precisamente aqueles em que se afirma a impossibilidade de determinação do valor exato dos danos. De todo o modo, parece não ser contestável que a privação do uso de um veículo é uma afetação do gozo deste concreto património mobiliário. Uma explicitação clara deste carácter poliédrico do dano da privação do uso pode ver-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06 de fevereiro de 2018, proferido no processo nº 189/16.7T8CDN.C1, acessível na base de dados do IGFEJ.
[6] Sobre esta problemática veja-se Responsabilidade Civil, Temas Especiais, Universidade Católica Portuguesa 2015, Maria da Graça Trigo, páginas 57 a 63. Atualmente, a nível da segunda instância tem-se vindo a admitir que o dano da privação do uso possa nalgumas circunstâncias ser ressarcido como dano não patrimonial (vejam-se por exemplo os seguintes acórdãos acessíveis na base de dados do IGFEJ: do Tribunal da Relação de Guimarães de 15 de junho de 2021, proferido no processo nº 2125/18.7T8VNF.G2; do Tribunal da Relação de Coimbra de 07 de setembro de 2021, proferido no processo nº 1022/20.0T8LRA.C1), posição que já no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04 de dezembro de 2003, proferido no processo nº 03B3030, teve acolhimento maioritário.
[7] Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04 de outubro de 2007, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Salvador da Costa no processo nº 07B1961, acessível no site do IGFEJ.
[8] Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de junho de 2009, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Alves Velho, no processo nº 1583/1999.S1, acessível no site do IGFEJ.
[9] Neste sentido leia-se Temas da Responsabilidade Civil, Vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2ª edição revista e actualizada, Almedina 2005, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 72 e 73, posição também mencionada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05 de julho de 2018, tirado por maioria, relatado pelo autor que se acaba de citar, no processo nº 176/13.7T2AVR.P1.S1, acessível no site do IGFEJ.
[10] Sobre esta problemática veja-se Responsabilidade Civil, Temas Especiais, Universidade Católica Portuguesa 2015, Maria da Graça Trigo, página 63, linhas 18 a 25.
[11] Vejam-se por exemplo o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21 de setembro de 2017, proferido no processo nº 252/08.8TBVLN.G1, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de dezembro de 2019, proferido no processo nº 3088/19.7YRLSB-2 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de maio de 2020, proferido no processo nº 289/19.T8MCN.P1, todos acessíveis na base de dados do IGFEJ.
[12] Veja-se, a propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de setembro de 2021, proferido no processo nº 6250/18.6T7GMR.G1.S1 e acessível no site do IGFEJ.