RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I - O dano biológico é um dano abrangente que inclui prejuízos alargados incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expetáveis.
II - É indemnizável, do ponto de vista de perda patrimonial, o dano biológico integrado por défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos, para pessoa de 26 anos de idade, com salário mensal de €736,43, sendo equitativa a quantia de €30.000,00.

Texto Integral

Processo: 2182/21.9T8GDM.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

AUTOR: AA, residente na rua ..., ..., Gondomar.

RÉUS: Fundo de Garantia Automóvel, com sede na avenida ..., ..., ... Lisboa e

BB, residente na rua ..., ..., ... Penafiel.

Por via da presente ação declarativa, pretende o A. obter a condenação dos RR. a pagarem-lhe a quantia de 40.000, 00, por danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como indemnização pelo que vier a sofrer futuramente em consequência de acidente de viação de que foi vítima e cuja responsabilidade cabe ao segundo R.

Os RR. contestaram, impugnando o primeiro os danos alegados e o segundo a versão do acidente apresentada pelo A.

Citada, a Segurança Social formulou pedido de reembolso de despesas com subsídio de doença pago ao A.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 10.1.2025, a qual julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou solidariamente os Réus no pagamento ao Autor do montante de 22.000,00€ (vinte e dois mil euros), acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor a contar da data do trânsito da sentença até integral pagamento e, ainda, nas despesas que venha a suportar com as vacinas anuais de que necessita por força de lhe ter sido retirado o baço.

Mais condenou o 2.º Réu no reembolso à Segurança Social da quantia de 1.117,23€ (mil cento e dezassete euros e vinte e três cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa legal desde 16-08-2021 até efetivo pagamento.

Desta sentença recorre o A., visando a condenação da Ré pagar-lhe € 40.000, 00, com base nos argumentos que assim expôs em conclusões de recurso:

1 - A sentença de que se recorre, considerou demonstrados todos os elementos que constituem a obrigação de indemnizar, mas considerou que, no caso concreto, a indemnização deveria ser arbitrada a título meramente não patrimonial.

2 - O dano biológico tem vindo a ser entendido como dano-evento, referente a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais; é um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, suscetível de afetar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas, determinando perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado.

3 - Já os danos não patrimoniais referem-se às dores, incómodos, desgostos pela perda de funcionalidades/órgãos e/ou pela má imagem, sofridos com o acidente.

4 - No caso dos autos, ao A. foi extraído o baço. Verifica-se, portanto, uma afetação definitiva da integridade sica e/ou psíquica do A., com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais. Trata-se de um dano biológico, indemnizável como tal.

5 - Por outro lado, o A. sofreu dores e incómodos consideráveis, sendo que parte desse sofrimento emocional não cessou e acompanhá-lo-á para o resto da vida.

6 - Acresce que enfrenta um aumento de risco de desenvolvimento de infeções após a esplenectomia (extração do baço) estando sujeito a vacinação anual an-pneumocócica, an-meningocócica, antiHaemophilus tipo b e vacina contra Covid-19, condição que é suscetível de causar um dano biológico – na medida em que o sinistrado corre um risco acrescido de contrair doença física que o impossibilite de viver a sua vida de modo “normal”, e até de trabalhar – e um dano não patrimonial, já que, a acontecer alguma infeção pela falta do baço, vai causar sofrimento físico e emocional.

7 - De facto, o A. terá, durante toda a sua vida futura, de pautar a sua forma de estar em sociedade, em família e no trabalho, a uma condição que resultou de um trauma na sua integridade sica, infligido por terceiro, que lhe vale uma IPG de 6 pontos, e que requer, além da medicação habitual, cuidados acrescidos em tudo o que vier a fazer, por ser muito mais suscetível de contrair infeções.

8 - Esta afetação causa-lhe, também, desgosto, pois sabe que se tornou uma pessoa muito mais “frágil”.

9 - Assim, tendo em consideração a afetação da integridade sica do A., quantificável numa IPG de 6 pontos, num jovem de 26 anos de idade, é justo e equitativo o montante de 15.000,00€ a tulo de dano biológico, até tomando por referência a jurisprudência indicada na sentença de que se recorre, nomeadamente o AC. RG de 24/03/2022, Procº 2114/19.4T8VRL.G1 (45 anos de idade, IPG de 8 pts, 15.000€); da RG de 15/12/2022, Procº 868/21.7T8VCT (48 anos de idade, IPG de 2 pts, 10.000€); da RG de 21/03/2024, Procº 3889/21.6T8VCT.G1 (17 anos, 2 pontos, 15.000€).

10 - Já a título de danos não patrimoniais, tendo em conta as dores quantificáveis em 4/7, a cicatriz cirúrgica, normotrófica e normocrómica, com 29 cm de comprimento, cujo dano estético permanente foi fixado no grau 4, a intervenção cirúrgica com anestesia geral para extração do baço, o internamento durante 5 dias, dois dos quais a usar um dreno abdominal, o repouso em casa durante um mês, a utilização de cinta de contenção durante três meses, os 143 dias de baixa médica para tratamento, tudo num jovem de 26 anos de idade, que vai viver para sempre mutilado, é justo equitativo o montante de 25.000,00€ a título de dano não patrimonial.

11 - Relativamente aos juros de mora, e dado que os montantes peticionados o foram com referência a uma indemnização justa à data em que foi peticionada (2021) devem aqueles incidir sobre os montantes indemnizatórios desde a citação até efetivo e integral pagamento.

O R. FGA apresentou contra-alegações, opondo-se à procedência do recurso.

Objeto do recurso: da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto

Matéria de facto provada

Em primeira instância foi dada como provada e não provada a seguinte matéria:

1) No dia 04 de outubro de 2020, pelas 11h20, ocorreu um embate na EN 108, Km ... Gondomar.

2) No referido embate, foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-IE, conduzido pelo Autor e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-EH-.., conduzido pelo 2.º Réu.

3) No local do embate, a EN 108 configura uma reta, com duas hemifaixas de rodagem, uma em cada sentido, e é intercetada pela Rua ..., do lado esquerdo atento o sentido de marcha Entre-os-Rios/Porto, formando um entroncamento.

4) Antes do embate, o Autor circulava na EN 108, no sentido Entre-os-Rios/Porto e ao aproximar-se do entroncamento com a Rua ..., pretendendo virar à esquerda, acionou o sinal de mudança de direção à esquerda, aproximou-se do eixo da via e abrandou, dado que circulava um veículo em sentido contrário, que não permitia a imediata viragem à esquerda.

5) O veículo de matrícula ..-EH-.., conduzido pelo 2.º Réu, circulava na EN 108, no mesmo sentido Entre-os-Rios/Porto, atrás do veículo ..-..-IE conduzido pelo Autor.

6) Quando o veículo ..-..-IE estava atravessado na hemifaixa de rodagem em sentido contrário, dirigindo-se à Rua ..., o veículo ..-EH-.., ao ultrapassar uns ciclistas que circulavam na mesma via e sentido, embateu com a sua frente na lateral esquerda traseira do veículo ..-..-IE.

7) Na sequência do embate, a viatura ..-..-IE capotou, imobilizando-se já fora da faixa de rodagem.

8) O veículo de matrícula ..-EH-.. não se encontrava abrangido por qualquer contrato de seguro de responsabilidade civil à data do embate.

9) No sentido Entre-os-Rios/Porto, cerca de 400 metros antes do local do embate, existe um sinal vertical de indicação de aproximação de cruzamento com via sem prioridade – B8 – sendo que a via é posteriormente intercetada pela Rua ... à direita e pela Rua ... à esquerda.

10) No local do embate, a EN ...08 é ladeada por casas e estabelecimentos comerciais e industriais.

11) O Autor foi transportado ao Hospital ..., no Porto, com queixa de dor torácica anterior, grelha costal, coluna dorsolombar e abdómen.

12) O Autor apresentava uma ferida sangrante contusa post auricular esquerda, pequenos cortes na região palmar de ambas as mãos, fratura do ramo isquiático esquerdo e fraturas no esmalte dos dentes 14, 41 e 42.

13) Na zona abdominal, o Autor apresentava uma área de heterogeneidade do parênquima esplénico numa extensão de 57 mm, de provável natureza metatraumática, bem como líquido livre disperso pelos diferentes quadrantes do abdómen e da pelve.

14) O Autor apresentava duas áreas de laceração do parênquima esplénico, uma mais cranial outra atingindo o hilo vascular, com hematomasubcapsular e periesplénico associado.

15) No mesmo dia, 04-10-2020, o Autor foi submetido a uma intervenção cirúrgica de esplenectomia total, com anestesia geral, tendo ficado internado no Hospital entre os dias 04-10-2020 e 09-10-2020.

16) Nos primeiros dois dias após a cirurgia, o Autor usou um dreno abdominal.

17) Já depois da alta hospitalar, esteve em casa em repouso, durante um mês, tendo-lhe sido prescrito a 23-11-2020, data em que teve alta clínica, a utilização de cinta de contenção durante três meses.

18) O sofrimento físico e psíquico sofrido pelo Autor foi fixado no grau 4.

19) Em consequência do sinistro, o Autor apresenta um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 6 pontos[1].

20) À data do acidente, o Autor tinha como antecedentes patológicos/cirúrgicos um tratamento ortodôntico com aparelho fixo superior e inferior durante 24 meses, finalizado a 12-05-2020, e uma intervenção cirúrgica para a correção de varicocelo, a 02-01-2013, com cicatrização na fossa ilíaca esquerda.

21) O Autor ficou com uma cicatriz cirúrgica, normotrófica e normocrómica, com 29 cm de comprimento e de orientação longitudinal, cujo dano estético permanente foi fixado no grau 4.

22) O Autor enfrenta um aumento de risco de desenvolvimento de infeções após a esplenectomia, estando sujeito a vacinação anual anti-pneumocócica, anti-meningocócica, anti-Haemophilus tipo b e vacina contra Covid-19.

23) A consulta de Estomatologia que esteve marcada ao Autor, para dia 16-10-2020, foi desmarcada.

24) Em nova consulta a 26-01-2023, foram realizados tratamentos de dentisteria nos dentes 4.1. e 2.4, tendo sido concedida ao autor alta por não necessitar de outros tratamentos de estomatologia.

25) À data do embate, o Autor exercia as funções profissionais de inspetor de indústria, auferindo a quantia mensal líquida de 736,43€.

26) O Autor nasceu no dia ../../1994.

27) O Autor é beneficiário da Segurança Social com o NISS ...94 e, em consequência do acidente recebeu, a título de subsídio de doença, o valor de 1.117,23€ relativo ao período decorrido entre 04-10-2020 e 23-12-2020.

Foram dados como não provados os factos seguintes:

a) No momento referido em 4) o Autor imobilizou a sua viatura.

b) O Autor nunca mais conseguiu marcação de consulta de estomatologia.

c) O Autor evidencia um aumento de cansaço na realização das tarefas diárias.

d) Quando foram explicados ao Autor os riscos da intervenção cirúrgica, este ficou muito abalado, pois temeu pela sua vida.

e) A fratura das três peças dentárias causava-lhe impressão na boca, pois as arestas vivas decorrentes da fratura magoavam-lhe a língua e tinha a sensação de ter um “corpo estranho”.

f) Se o Autor tivesse acionado o pisca, teria o Réu visto e adequado a sua condução à pretensão daquele virar à esquerda, considerando que este circulava a cerca de 50 km/hora.

Fundamentação de direito

Não estando em causa a dinâmica do acidente, impõe-se apenas verificar se o tribunal a quo fixou a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais em proporção considerada razoável.

O cálculo do dano biológico – cifrado num défice funcional permanente de 6 pontos – e do dano não patrimonial – foi englobado num total de € 22.000, 00.

O tribunal começou por considerar que o dano biológico manifesta as duas vertentes – patrimonial e não patrimonial – para depois efetuar o cálculo do dano biológico de acordo com a Portaria 377/08, recorrendo à Tabela Nacional de Incapacidades Permanentes, considerando razoável um valor entre €. 1.005, 48, e € 1.200, 42, por cada ponto de desvalorização, fixando em € 6.500, 00, o dano patrimonial.

Só após, partiu para o cálculo dos danos não patrimoniais e, no global, fixou uns e outros em € 22.000, 00.

O A. entende que uma IPP de 6% merece ser compensada em €15.000, 00, considerando os seus 26 anos de vida e diz que os juros são devidos desde a citação.

Neste tocante, valemo-nos do que já expusemos noutros acórdãos desta Relação e secção, como no recente acórdão relatado pela agora relatora, a 28.4.2025, no Proc. ..., onde, entre o mais, escrevemos:

«Está em causa, em primeiro lugar, a avaliação do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.

Fala-se a este respeito de dano biológico, na sua refração patrimonial.
No acórdão do STJ, de 11.12.2012 (Proc. 40/08.1TBMMC.C1.S1), conclui-se que o dano biológico não é um dano laboral mas um dano de natureza geral, a que corresponde a denominada incapacidade permanente geral, correspondente à afetação definitiva da capacidade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussões nas atividades da vida diária, incluindo familiares, sociais, de lazer e desportivas, a qual não tem sequer expressão em termos de incapacidade para o trabalho apenas exigindo ao autor esforços acrescidos nesse domínio.
Mais recentemente podem ver-se, entre outros, o ac. STJ, de 28.1.2025, Proc. 6781/20.8T8LRS.L.S1, em cujo sumário se lê: III. O dano biológico, reconhecido como um dano à integridade psico-física do lesado, que afeta de forma relevante a funcionalidade do corpo nas suas vertentes física e mental, pode assumir-se tanto como um dano patrimonial, se tiver reflexos na situação patrimonial do lesado (seja no presente, seja no futuro), quer como dano não patrimonial, na medida em que as consequências do deficit funcional sofrido não tenham impacto económico para o lesado, implicando, por exemplo, uma maior penosidade (com tradução psicológica em sensação de sofrimento) na realização de algumas tarefas, mas sem inerente perda de rendimentos.

IV. No que concerne à eventual destrinça entre a indemnização pelo dano biológico (na sua vertente patrimonial) e a indemnização pela perda da capacidade de ganho, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o que releva é que “na fixação da indemnização pelo dano patrimonial futuro o julgador atenda não apenas à eventual perda de rendimentos salariais em função do nível de incapacidade laboral do lesado, mas também ao dano biológico sofrido”. Com isso se realçando que, para além de lesões permanentes das quais pode emergir, direta e imediatamente, repercussão na capacidade de ganho atinente à profissão habitual, às quais se moldará a aplicação de tabelas financeiras como as previstas para a sinistralidade laboral, não deverão esquecer-se as sequelas funcionais que, fragilizando e inferiorizando a capacidade de utilização do corpo, reduzem de forma relevante a competitividade da vítima no mercado de trabalho e aumentam a penosidade da sua ação.
Também do STJ, do mesmo dia, no ac. proferido no Proc. 1572/19.6T8SNT.L1.S1, escreveu-se:
I. O chamado dano “biológico” ou “corporal”, enquanto lesão da saúde e da integridade psico-somática da pessoa imputável ao facto gerador de responsabilidade civil delitual, traduzida em incapacidade funcional limitativa e restritiva das suas qualidades físicas e intelectuais, não constitui uma espécie de danos que se configure como um tertium genus na dicotomia danos patrimoniais vs. danos não patrimoniais; antes uma categoria autónoma de delimitação e avaliação de efeitos da lesão – em função da sua natureza, conteúdo e consequências, tendo em conta os componentes de “dano real” –, seja enquanto dano patrimonial (por terem por objecto um interesse privado susceptível de avaliação pecuniária), por um lado, seja enquanto dano moral ou não patrimonial (por incidirem sobre bem ou interesse insusceptível, em rigor, dessa avaliação pecuniária e plasmando-se na clarificação de danos em esferas atendíveis da pessoa, para além das consequências típicas da dor e do sofrimento).
II. Quando a vertente patrimonial do dano biológico se convoca, tem a virtualidade de ressarcir não só (i) as perdas de rendimentos profissionais correspondentes à impossibilidade de exercício laboral e/ou económico-empresarial e as frustrações de proveitos existentes à data da lesão (ponderadas até um certo momento de vida activa), mas também (ii) a privação de futuras oportunidades profissionais e o esforço acrescido de reconversão (enquanto determinado pela incapacidade resultante da lesão) para o exercício profissional – num caso e noutro, danos patrimoniais futuros previsíveis, na variante de “lucros cessantes” (arts. 562º, 564º, 1 e 2, CCiv.).

III. Não sendo possível apurar o valor exacto desses danos para efeitos de determinação do montante indemnizatório, tal implica convocar o critério da equidade (mesmo que assistido por determinados factores de ponderação e orientação das particularidades concretas) previsto no art. 566º, 3, do CCiv. (em articulação com o art. 4º, a)), susceptível de ser fiscalizado pelo STJ (ainda) como “questão de direito” em revista, tendo em conta situações do mesmo tipo de gravidade e consequências, e vista a equidade como elemento de ponderação não exclusivo e esgotante, antes complementar ou auxiliar, exercendo um papel corrector e de adequação do montante indemnizatório às circunstâncias específicas e à justiça do caso concreto, permitindo que esse papel se cruze com a ponderação da gravidade objectiva e subjectiva dos prejuízos sofridos, das circunstâncias específicas do facto e do agente e as variantes dinâmicas decorrentes de factores de relevância do dano na sua especificidade.
IV. Nessa fiscalização da correcção do “quantum” indemnizatório, a tutela da igualdade e da proporcionalidade inerente à equidade na fixação do “dano biológico”, implica um exercício comparativo com os padrões judicativos utilizados para deficiências funcionais permanentes em casos análogos, sendo o caso concreto radicado num quadro em que a incapacidade não impede o exercício de profissão e uma vida ainda próxima da anterior ao sinistro, mas torna o exercício profissional e a vida lúdica mais penosa e necessitada de esforço suplementar e acrescido em consequência das sequelas do acidente de viação. V. A sindicação em revista do uso da “equidade” na fixação do montante indemnizatório destinado a compensar “danos não patrimoniais” em caso de responsabilidade extra-contratual (arts. 483º, 1, 496º, 1 e 4, 494º, 1, CCiv.), ainda como matéria de direito (arts. 674º, 1, a), e 682º, 1, CPC), uma vez segmentados e autonomizados do “dano biológico” decorrente de acidente de viação, limita-se ao controlo dos pressupostos normativos da fixação equitativa da indemnização, relativa a danos com relevância legalmente admitida, e sobre a conformidade da avaliação e ponderação do montante quantitativo dos danos com os critérios e limites legais e/ou jurisprudenciais que para tal deveriam ser considerados na fixação desse montante; no caso concreto, as intervenções médico-cirúrgicas, os tratamentos de recuperação, as sequelas físicas provadas como resultado do acidente, a graduação do sofrimento físico-psíquico e a graduação do prejuízo estético, tendo em conta a consideração da lesão objectiva de bens essenciais da pessoalidade relativas à perturbação emocional, à dor e ao sofrimento, às consequências na “entidade psicossomática” e de “projecto de vida” e às relevantes “ingerências em áreas de sensibilidade humana”.

A determinação do dano patrimonial futuro, com base na afetação permanente e irreversível da capacidade funcional, com ou sem afetação total ou parcial da capacidade para o exercício da atividade habitual (com valores indemnizatórios reforçados neste último caso) foi objeto de acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ) proferido pelo STJ, a 28.3.2019 (Proc. 1120/12.4TBPLT.G1.S1)[2]. Nesse aresto consignaram-se os seguintes princípios que aqui renovamos:

- A indemnização deste dano passa pela determinação de um capital produtor um rendimento que se venha a extinguir no final do período provável de vida ativa do lesado, suscetível de lhe garantir, durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.

- A utilização de fórmulas abstratas ou critérios, como elemento auxiliar, tornam mais justas, atuais e minimamente discrepantes, as indemnizações.

- O recurso aos juízos de equidade é defensável como complemento para ajustar o montante encontrado à solução do caso concreto.

Por nós, sempre aceitámos que a valorização deste dano e os critérios de fixação da respetiva indemnização não dispensam um ponto de partida mais ou menos seguro e que consiste no apuramento dos rendimentos que o lesado recebe na sua ocupação normal ou previsível e determinar qual o período futuro de vida (que não apenas ativa) que ainda teria. Caso beneficie de uma reforma mínima da segurança social, considera-se o valor do salário mínimo nacional ao tempo da consolidação das lesões[3].

Tradicionalmente, os tribunais têm-se socorrido de diversos critérios para o cômputo da indemnização por danos derivados da redução ou extinção da capacidade de ganho[4].

Já se utilizou um critério de capitalização do salário, através da atribuição de um capital cujo rendimento, calculado com base na taxa média e líquida de juros dos depósitos a prazo, fosse equivalente ao rendimento perdido.

Também é vulgar elaborar-se um cálculo baseado em tabelas financeiras, método que assenta em duas condicionantes, uma relativa à esperança de vida do lesado[5] (e não apenas à vida ativa como se acentua neste AUJ) e outra à taxa de juros líquida (que hoje não é superior a 1%, atenta a generalizada baixa das taxas de juro).

Por vezes utilizam-se regras do direito do trabalho usadas no cálculo das pensões por acidente de trabalho ou capital por remição.

Estes critérios não devem ser aplicados mecanicamente, mas podem servir como orientação geral ou elemento operativo, no âmbito da tarefa da fixação da indemnização, sujeita à correção imposta pelos circunstancialismos da cada caso mas sempre tendo por pressuposto que a quantia a atribuir ao lesado o há-de ressarcir, durante a sua vida (a laboralmente útil e a posterior), da perda sofrida e mostrar-se esgotada no fim do período considerado.

Destarte, faremos, numa primeira fase, uma abordagem ao problema da fixação da indemnização relativa à perda da capacidade aquisitiva por meio de simples cálculo matemático (refira-se que a tendência em termos de direito comparado é a de fixar tão apriorística e rigorosamente quanto possível os elementos de cálculo deste tipo de indemnização, não só para possibilitar soluções de consenso extrajudicial mas também para evitar casos de injustiça relativa que resultam da diversidade de critérios que se adotam nos diferentes fóruns judiciários, tendência que, quanto a nós, será inteiramente de aplaudir de iure condendo).

Lançaremos mão da equação matemática já utilizada em arestos jurisprudenciais e que é a seguinte:

C = (1+ i)ⁿ – 1 x P

(1+I)ⁿ x i

Nesta equação C representa o capital a depositar logo no primeiro ano, P, a prestação a pagar anualmente e i, a taxa de juro que se fixa em 1% atenta a baixa das taxas de juro e n, o número de anos de vida que o sinistrado terá.

Consideraremos aqui uma esperança de vida de 78,37 anos.

O A. nasceu a ../../1951[6].

À data da consolidação das lesões (27.2.2024) a A. tinha 73 anos. Até aos 78, 37 anos faltariam 5, 37 anos.

Não constitui óbice à atribuição de indemnização pelo dano patrimonial aqui em presença o facto de o sinistrado se já encontrar em situação de reforma.

Como já referimos, entendemos que o salário mínimo nacional reflete mais equitativamente a situação de quem não aufere qualquer vencimento, correspondendo ao mínimo exigível nacionalmente para o efeito[7].

Considerando um rendimento mensal correspondente ao salário mínimo vigente ao tempo da consolidação das lesões (em 2024) de um valor mensal de 820, 00, e anual de € 9.840, 00, com uma perda anual de 15%, temos um total anual de perda de € 1.476, 00.

Assim, utilizando a fórmula que se propõe, teremos uma taxa de juro real líquida de 1% (1 + 0.01).

Logo, C= (1 + 0,1%)5,37- 1 x € 1476, 00

(1 + 0.1%)5,37 x 0.1%

C= 7.900, 00.

Neste conspecto, numa situação de equidade, admite-se arredondar para € 8.000, 00, o valor atribuído a este título em primeira instância e que se nos afigura absolutamente ajustado.»

Aplicando o raciocínio ao concreto, considerando um rendimento mensal correspondente ao salário que era de € 736, 43, mensais (facto 25) e € 10.310,02, anuais, temos uma perda de anual de € 618, 60.

O A. nasceu a ../../1994, tendo, à data da consolidação das lesões, 26 anos de idade, pelo que, considerando aquela esperança média de vida, poderia contar, ainda, com mais 52, 37, de vida ativa.

Logo,

Logo, C= (1 + 0,1%)52,37- 1 x € 618, 60

(1 + 0.1%)52,37 x 0.1%

C= 31.499, 43.

A fim de verificar outras situações com que possa comparar-se a do A. e, assim, efetuar uma ponderação mais equitativa em termos de justiça, vejamos, por ex., deste tribunal e secção, prolatado pela aqui primeira adjunta, o ac. RP, de 15.6.2020, Proc. 1230/17.1T8AVR.P1, padecendo o A. de 13% de incapacidade, contando 45 anos de idade, fixou-se em € 45.000, 00, a indemnização pelo dano biológico (danos não patrimoniais de € 30.000, 00); da mesma relatora, de 7.3.2022, Proc. 612/18.6T8OBR.P1, para 3% de incapacidade, lesado de 58 anos de idade e salário de cerca de € 700, 00, foi fixada indemnização em € 15.000, 00 (danos não patrimoniais de idêntico valor).

Do aqui segundo adjunto, ac. RP, de 19.3.2018, Proc. 1500/14.0T2AVR.P1, tendo por referência um rendimento anual de €11.900,00, um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 15 pontos, autor com 23 anos de idade, foi fixado em €75.000,00 o montante destinado a reparar o dano em causa.

Sendo assim, tendo o A. peticionado a tal título a quantia de € 15.000, e referindo-se o limite do pedido não às diversas parcelas, mas sim ao valor total da condenação (art. 609.º/1 CPC), fixa-se a indemnização pelo dano biológico em € 30.000, 00.

A indemnização pelos danos não patrimoniais, em obediência àquele princípio do pedido, fixa-se em € 10.000, 00, muito inferior ao valor real dos danos apresentados considerando, não apenas as lesões físicas que culminaram naquela IPP, mas também atendendo ao facto ter sofrido diversas fraturas, perda de três dentes e lacerações internas (factos 12 a 14), tendo sido submetido a intervenção cirúrgica (facto 15), tendo estado em repouso durante um mês e utilizado cinta de contenção por três meses (facto 17), com sofrimento físico-psíquico de grau 4, dano estético de idêntico grau, enfrentando, ainda, perigo de desenvolver novas infeções (facto 22).
Quanto aos juros moratórios, lembremos o acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de maio de 2002 (Diário da República – I Série-A, 27 de junho de 2002), que fixou como jurisprudência:
Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do art. 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora e não a partir da citação”.

Na nossa situação, como vimos, a indemnização total arbitrada não foi atualizada porquanto ficou aquém dos valores devidos e estabelecidos para situações idênticas, pelo que não pode dizer-se que tenha sido atualizada.

Sendo assim, são devidos juros de mora, desde a citação.

Dispositivo

Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, revogando parcialmente a sentença – que se mantém no restante -, condenam-se os RR. solidariamente a pagar ao A. a quantia de € 40.000, 00, com juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

Custas da ação pelos RR. e do recurso pelo R. FGA.

Porto, 10.7.2025


Fernanda Almeida

Fátima Andrade

Miguel Baldaia de Morais


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[1] Conforme relatório médico-legal, a data da consolidação das lesões foi fixada pelo INML em 23.2.2021.
[2] Decisão que considera exatamente ser o dano biológico um dano abrangente de prejuízos alargados incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expetáveis.
[3] Assim, ac. STJ, de 6.2.2024, Proc. 2012/19.1T8PNF.P1.S1:  I - O dano biológico integrado por défice funcional permanente da integridade fisico-psíquica de 6 pontos, compatível com o exercício de atividade profissional mas que implica esforços suplementares para o exercício da mesma, é indemnizável sob uma vertente patrimonial, como dano patrimonial futuro que tem em conta a expressão daquele défice. II - Tratando-se de calcular um quantitativo indemnizatório que traduza o capital de que o lesado se veja privado para o futuro em virtude do défice funcional sofrido, para tal há que ter em conta o período de tempo que, considerando a idade do lesado aquando da data da consolidação médico-legal das lesões (pois é a partir desta que fica definido o défice funcional), tem em conta a sua esperança média de vida, e a consideração do salário médio mensal nacional dos trabalhadores por conta de outrem por referência ao ano da consolidação médico-legal das lesões (…).
[4] As tabelas de determinam o dano biológico constantes das Portarias 377/08, de 26.5, e 679/09, de 25.6, ficam aquém dos parâmetros jurisprudenciais, como é notado no AUJ.
[5] Que era, ao tempo da consolidação médico-legal, de 78,37 anos, para os homens, cfr. Esperança média de vida em Portugal aumenta para 81,17 anos - SIC Notícias
[6] Note-se que este é o exemplo do caso cujo extrato estamos seguindo e não a situação destes autos.
[7] Neste sentido, ac. STJ, de 22.6.2017, Proc. 104/10.1TBBC. G1. S1: I. A atribuição de indemnização pelo dano biológico não substitui nem impede a atribuição de uma indemnização pelo dano patrimonial futuro que pondere a incapacidade funcional do sinistrado. II. O facto de o lesado ter apenas 14 anos de idade, de frequentar a escolaridade obrigatória e de, por tudo isso, não exercer ainda qualquer profissão, nem ter qualquer habilitação profissional ou académica não determina que, (i) como pretende a Seguradora, a indemnização seja calculada pelo valor da remuneração mínima garantida ou que, (ii) como decidiu a Relação, seja calculada pelo valor do salário mínimo nacional. III. Em tais circunstâncias é mais ajustado ponderar o valor do salário médio nacional, como elemento objectivo que sustenta o recurso à equidade.