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PROCEDIMENTO CAUTELAR
APROPRIAÇÃO ILÍCITA DE ENERGIA ELÉTRICA
PRESUNÇÕES ILIDÍVEIS
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Sumário
I - Os n.os 3 e 4 do artigo 250.º do Decreto-Lei 15/2022, de 14 de janeiro, onde se estabelece a presunção legal ilidível de que os "benefícios resultantes de AIE [apropriação indevida de energia] presumem-se imputáveis ao titular do contrato do ponto da instalação de produção, armazenamento ou consumo", não violam os princípios constitucionais da proporcionalidade, da tutela judicial efetiva e do processo equitativo. II - A inversão do contencioso pressupõe, para além do mais, que com a "matéria adquirida" no procedimento cautelar seja "possível formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado".
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
EMP01..., Unipessoal L.da instaurou o presente procedimento cautelar, que corre termos no Juízo Local Cível de Amares, contra EMP02... S.A., formulando os seguintes pedidos:
"I) A suspensão da interrupção do fornecimento de energia elétrica no prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua ..., da união de freguesias ..., ... e ..., concelho ... (...), correspondente ao contrato de fornecimento de energia elétrica com o código ...42, e código de local de entrega (CPE) ...81...; e II) A suspensão da redução de fornecimento de energia elétrica no prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua ..., da união de freguesias ..., ... e ..., concelho ... (...), correspondente ao contrato de fornecimento de energia elétrica com o código ...42, e código de local de entrega (CPE) ...81...; Subsidiariamente, III) O restabelecimento, sem qualquer limitação, do fornecimento de fornecimento de energia elétrica, no prazo de 24 horas a contar da decisão, no prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua ..., da união de freguesias ..., ... e ..., concelho ... (...), correspondente ao contrato de fornecimento de energia elétrica com o código ...42, e código de local de entrega (CPE) ...81..., caso ocorra, após a instauração da presente providência, a redução ou interrupção da energia elétrica".
Alegou, em síntese, que no âmbito da sua atividade de alojamento e turismo explora a Quinta ... em ... composta por várias casas, que em 2016 celebrou com a EMP03... S.A. contrato de fornecimento de energia elétrica para esse local, que em 24-10-2024, recebeu uma carta remetida pela requerida informando que foi detetado um procedimento irregular no equipamento de contagem, que o Sistema Elétrico Nacional sofreu um prejuízo que ascende a 16.246,87 € e que a requerida exige o pagamento desse montante sob pena de redução de potência e posterior interrupção do fornecimento de energia. Mais alega que não praticou qualquer ato que corresponda ao apontado procedimento irregular.
A requerida contestou afirmando, em suma, que a 29-5-2024 uma equipa técnica ao seu serviço deslocou-se àquele local e verificou que o contador se encontrava com a tambá de bornes desselado e com o shunt L1 e L2 aberto e que essa prática ilícita provoca a adulteração dos registos e a subfacturação da energia consumida, o que permitiu que parte da energia elétrica consumida nessa instalação não fosse registada pelo equipamento de contagem, havendo assim uma apropriação indevida de eletricidade pela requerente.
Realizou-se a audiência de julgamento e após foi proferida sentença em que se decidiu:
"Face ao exposto e nos termos das disposições legais supra citadas, decide-se julgar integralmente improcedente o presente procedimento cautelar comum e, em consequência, absolve-se a requerida de todos os pedidos formulados pela requerente."
Inconformada com esta decisão, dela a requerente interpôs recurso findando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:
1.ª) Deve alterar-se a decisão de facto, os pontos 23, 24, 25, 26, 27 e 28 constantes da "III-Fundamentação de Facto", "a) Factos Indiciados", por erro de julgamento;
2.ª) Desde logo, o "Auto de Vistoria do Ponto de Medição" junto aos Autos – cfr. doc. n.º 13, junto com o requerimento inicial, e como doc. n.º 5, com a, aliás douta, Oposição – não obedece ao formalismo legal - art.º 4.º, 6.º do Regulamento n.º 814/2023, 27/07, 2ª Série do D.R., e ao n.º 1, do art.º 250.º, do D.L. n.º 15/2022, de 14/01 -, sendo nulo.
3.ª) O "Auto de Vistoria do Ponto de Medição" não foi elaborado por equipa técnica especializada e segregada e não está assinado pela mesma;
4.ª) A alteração da matéria de facto propugnada baseia-se, ainda, no depoimento da testemunha da Requerida, AA, o qual não pertence à EMP02..., nem a equipa especializada e segregada de AIE;
5.ª) Nesta medida e atento o exposto, que resulta da prova – documental e testemunhal - produzida, que o Auto de Vistoria e, consequentemente, a inspeção de AIE não respeitou o art. 4.º, 5.º e 6.º do Regulamento n.º 814/2023 e o art.º 251.º do DL 15/2022.
6.ª) Por esse motivo, o referido Auto de Vistoria é ilegal e nulo, por não obedecer ao formalismo legal, não sendo, portanto, suscetível de atestar uma AIE;
7.ª) O Tribunal a quo devia ter julgado como não provados os mesmos, bem como a situação de AIE, e, não o tendo feito, violou o art. 4.º, 5.º e 6.º do Regulamento n.º 814/2023, o art.º 251.º do DL 15/2022, art. 361.º do C.P.C., e artigo 342.º, 364.º, 393.º Cód. Civil;
8.ª) A Recorrente não foi notificada do projeto de decisão, nos termos do art.º 6.º do Regulamento n.º 814/2023, o que, conjugado com a nulidade – tal como defendido anteriormente pela Recorrente – de Auto de Vistoria de AIE, inquinam de ilegalidade o procedimento de AIE e, consequentemente, a legitimidade para proceder ao corte / suspensão de energia pela EMP02....
9.ª) O exercício de defesa foi limitado pela ausência de elementos comunicados e obrigatórios por lei, nomeadamente impostos pelo Regulamento n.º 814/2023 e DL n.º 15/2022, acima citados;
10.ª) Estamos perante vícios formais e procedimentais, por não notificação da Recorrente para efeitos de audição prévia, que invalidam a decisão final e consequente interrupção do fornecimento de energia;
11.ª) O Tribunal a quo devia ter julgado como não provados os factos ora impugnados, nomeadamente toda a factualidade que se reporte à situação de AIE e indemnização exigida e, ao ter atuado em sentido contrário, violou o art. 4.º, 5.º e 6.º do Regulamento n.º 814/2023, o art.º 251.º do DL 15/2022, art. 361.º do C.P.C., e artigos 342.º, 364.º, 393.º Cód. Civil;
12.ª) A Recorrente foi notificada de Decisão, datada de 09/10/2024 – cfr. doc. n.º 8, junto com o requerimento inicial – sem o cumprimento dos requisitos impostos pelo art.º 8.º, do Regulamento n.º 814/2023.
13.ª) Esta Decisão da EMP02... é omissiva e incognoscível, em relação (i) à descrição pormenorizada da situação de AIE identificada, (ii) aos fundamentos para a decisão final de imputação e informação quanto à efetivação de interrupção ou redução de potência contratada, (iii) à forma de cálculo do valor do montante pecuniário a pagar a título de indemnização, (iv) aos direitos do produtor, utilizador ou proprietário, designadamente o de requerer a avaliação ou reapreciação da informação recolhida pelo operador de rede e de impugnar qualquer decisão do operador de rede, mediante recurso aos tribunais judiciais ou aos meios alternativos de resolução de litígios existentes, identificando o centro de conflitos de consumo competente;
14.ª) Estas omissões enfermam de ilegalidade o procedimento de AIE e, consequentemente, a legitimidade para proceder ao corte / suspensão de energia pela EMP02...,
15.ª) Pelo que o Tribunal a quo devia ter julgado como não provados os mesmos, nomeadamente quanto à situação de AIE, e, ao não fazê-lo, violou o art. 8.º, 11.º do Regulamento n.º 814/2023, o art.º 250.º, art.º 256.º, do DL 15/2022 e artigo 342.º Cód. Civil;
16.ª) Verifica-se, além disso, a existência de séria do direito invocado alegado, pela Requerente, nomeadamente o direito ao fornecimento de energia elétrica contratualizado (v. ponto 4 dos factos dados como provados);
17.ª) À Recorrente, tal como numa ação de simples apreciação negativa, competia alegar e provar o direito de acesso ao fornecimento de energia elétrica, por contrato com distribuidor de energia elétrica, no caso vertente, com a EMP03... (v. ponto 4 dos factos dados como provados);
18.ª) À Requerida competia o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, nomeadamente de interrupção do fornecimento de energia elétrica e do valor indemnizatório, alicerçados na apropriação indevida de energia - o que, com o devido respeito por entendimento contrário, não sucedeu nos presentes autos;
19.ª) O Tribunal a quo deveria, por isso, ter dado como verificada a existência de séria do direito invocado pela Requerente, assim cumprindo o art. 362, n.º 2 do C.P.C.;
20.ª) A Recorrente concretizou o periculum in mora, através da matéria constante nos pontos 33.º a 58.º, do requerimento inicial;
21.ª) Os factos dados como provados (pontos 3 e 8) pela decisão de facto, permitem, de acordo com as regras da experiência e critérios da lógica, concluir pela existência de receio de lesão grave e de difícil reparação;
22.ª) Apesar do estabelecimento explorado pela Requerente não ter de encerrar ou suspender a sua atividade, com uma eventual a interrupção de energia, este evento sempre afetariam, limitariam e lesariam a sua atividade económica, as quais se agravariam com a pendência da ação principal;
23.ª) O Tribunal recorrido não fez uma interpretação correta da factualidade, quer alegada no requerimento inicial, que da que foi dada com provada, e que permite concluir pela existência de uma ameaça fundada de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade da Requerente, violando o disposto nos art.º 362.º, do C.P.C.;
24.ª) São inconstitucionais as normas contidas no art. 250.º, n.º 3 e 4, do D.L. n.º 15/2022, de 14/01, com fundamento na violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência ao direito de iniciativa económica privada, acolhido no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição, pelo que não podiam fundamentar a decisão em crise e fundamentar a imputação, à Recorrente, titular do contrato, dos benefícios de uma AIE;
25.ª) Padece de inconstitucionalidade material a interpretação que o Tribunal a quo faz do art. 250.º, n.º 3 e 4, do D.L. citado, por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade, enquanto concretizador do princípio do Estado de Direito Democrático, da tutela judicial efetiva e do processo equitativo, segundo a qual compete à Recorrente, na qualidade de titular do contrato / consumidora, para afastar a imputação e sua responsabilidade pela AIE , demonstrar a não faturação da injeção, quando é alheia, à sua esfera de atuação, a eventual AIE;
26.ª) Esta interpretação adotada pelo Tribunal a quo constitui uma intervenção restritiva do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva da Recorrente, assim como contende com os três subprincípios do princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), traduzindo-se, em suma, numa medida inconstitucional por ofensa do consagrado nos artigos 2.º e 20.º da Constituição.
27.ª) A Requerente requereu, na sessão da audiência de julgamento de 28/02/2024, tal como consta da respetiva Ata, a inversão do contencioso, nos termos do art. 369.º, do CPC, entendendo que não é necessário produzir prova complementar, em ação definitiva, e que os meios probatórios, essencialmente documentais, constam do processo e foram objeto de contraditório;
28.ª) Muito embora o presente recurso verse sobre impugnação da matéria de facto, entende-se que é possível formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado.
A requerida contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 4, 637.º n.º 2 e 639.º n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil[1], delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:
a) em virtude dos três fundamentos invocados, os factos 23, 24, 25, 26, 27 e 28 dos factos provados devem ser julgados não provados;
b) "os factos dados como provados (pontos 3 e 8) pela decisão de facto, permitem, de acordo com as regras da experiência e critérios da lógica, concluir pela existência de receio de lesão grave e de difícil reparação";
c) há as inconstitucionalidades apontadas nas conclusões 24.ª e 25.ª;
d) tendo em vista a inversão do contencioso, "é possível formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado".
II
1.º
Foram julgados provados os seguintes factos:
1. A requerente dedica-se à exploração de atividades de alojamento e turismo, restauração, aquicultura, compra e venda, administração e arrendamento de bens imóveis em Portugal e no estrangeiro.
2. A requerida tem por objeto a distribuição de energia elétrica e a prestação de outros serviços acessórios complementares, procedendo ao abastecimento da energia elétrica aos locais de consumo, através de infraestruturas e equipamentos em Portugal.
3. A requerente no âmbito da sua atividade de alojamento e turismo explora a denominada Quinta ..., sita na Rua ..., ..., em ..., quinta que é composta por várias casas que a requerente aluga.
4. No âmbito da sua atividade, no ano de 2016, a requerente celebrou um contrato de fornecimento de energia elétrica com a EMP03..., S.A..
5. A Quinta ... integra o prédio sito na Rua ..., em ..., correspondente ao contrato de fornecimento de energia elétrica com o código ...42, que corresponde ao local de entrega (CPE) n.º ...81....
6. A morada estipulada para o envio das faturas de eletricidade relativas ao contador referido em 5) foi a Rua ....
7. O contador referido em 5) encontra-se instalado no muro divisório da Quinta ..., junto ao portão de acesso carral.
8. O contador referido em 5) fornece energia elétrica para o portão de acesso carral à Quinta ..., para iluminação dos jardins e rega, para os painéis solares, para os candeeiros dos caminhos pedonais e carrais do interior da quinta, para a iluminação e para o motor da piscina e para a iluminação do campo de ténis.
9. No dia 13.07.2023, a requerente recebeu uma mensagem da requerida a informar que iria proceder à substituição do contador por outro mais evoluído tecnologicamente.
10. Em 24.10.2024, a requerente recebeu uma carta, por correio simples, remetida pela requerida, datada de 09.10.2024, informando-a de que no passado dia 29.05.2024, foi realizada uma auditoria técnica à instalação elétrica que serve o local de consumo da requerente, tendo sido detetado um procedimento irregular no equipamento de contagem conforme pedido de indemnização, auto de vistoria e detalhe de cálculo já enviados, tendo o Sistema Elétrico Nacional sofrido um prejuízo que ascende ao montante de € 16.246,87 quantia que até essa data não foi paga.
11. Na carta referida em 10), a requerida comunicou à requerente que tem o prazo de 10 dias a contar dessa carta para proceder ao pagamento voluntário do montante de € 16.246,87 e que no mesmo prazo poderia ser apresentado um pedido de reapreciação da informação recolhida ou pode recorrer aos tribunais competentes e informou-a de que caso não proceda ao pagamento dessa quantia a EMP02..., S.A., poderá, sem mais interpelações, proceder à redução de potência e posterior interrupção do fornecimento de energia elétrica e informou-a de que pode solicitar a regularização do processo ou enviar os seus pedidos através da área "Contacte-nos", em ....
12. Em 25.10.2024, a requerente apresentou na área "Contacte-nos", em ... uma reclamação e solicitou a reapreciação deste assunto, a requerida confirmou a receção desta reclamação e, por e-mail de 06.11.2024, respondeu à reclamação, mantendo a posição da missiva anterior datada de 09.10.2024 e anexando uma fotografia do contador e o auto de vistoria.
13. Em 14.11.2024, a requerente apresentou nova reclamação a que a requerida respondeu em 26.11.2024.
14. Em 04.12.2024, a requerente apresentou reclamação à requerida a que a requerida respondeu em 09.12.2024.
15. A requerente tem ao seu serviço a sua gerente, uma trabalhadora e um prestador de serviços.
16. O contador referido em 5) pertence à requerida.
17. A requerida exerce as funções de operador de rede de distribuição de eletricidade, cuja atividade de distribuição de energia é exercida em regime de concessão de serviço público em exclusivo.
18. A requerida efetua a ligação da rede elétrica de serviço público das instalações de consumo, cujos titulares tenham celebrado um contrato de fornecimento de energia elétrica com um comercializador que opere no mercado regulado ou no mercado livre.
19. A requerida fornece e instala um equipamento de medição (contador), destinado a registar os consumos efetuados e procede à selagem desse equipamento para evitar a sua violação e a adulteração dos registos por pessoas não autorizadas.
20. A requerida procedeu à apresentação de denuncia pela apropriação indevida de energia nos Serviços do Ministério Público de Amares com vista à instauração de um processo de inquérito pela apropriação de energia detetada nas instalações da requerente.
21. O local de consumo com o n.º ...08, correspondente à instalação sita na Rua ..., Rega, em ..., está ligado à rede pública de energia elétrica desde 2004, através da celebração de contratos de fornecimento de energia elétrica com diferentes titulares e comercializadores e desde 07.06.2016 vigora um contrato de fornecimento de energia elétrica celebrado pela requerente.
22. Em virtude dos contratos de fornecimento de energia celebrados para o local de consumo referido em 21), a requerida efetuou a ligação à rede elétrica pública e colocou o equipamento de medição (contador) referido em 5).
23. No âmbito da sua campanha de substituição de equipamentos, a requerida gerou a ordem de serviço n.º ...00 para substituição de equipamento BTN (campanha) e no dia 29.05.2024, uma equipa técnica ao serviço da requerida deslocou-se ao local de consumo referido em 21) e aí verificou que o contador se encontrava com a tampa de bornes desselada e com shunt L1 e L2 aberto e esse equipamento foi substituído nessa data.
24. A situação do contador verificada em 23) provoca a adulteração dos registos e a subfacturação da energia consumida nesse contador e permitiu que parte da energia elétrica consumida na instalação referida em 21) não fosse registada pelo equipamento de contagem, o que gerou uma apropriação de energia pelo utilizador que a consumia sem pagar o respetivo preço.
25. Em consequência de o contador referido em 5) e em 21) se encontrar com a tampa de bornes desselada e com shunt L1 e L2 aberto, o utilizador dessa instalação consumiu energia que era disponibilizada pela rede e que não era contabilizada pelo equipamento de contagem nem era alvo de faturação.
26. Com a situação do contador referida em 23), a requerida sofreu prejuízos no valor de € 16.246,87, montante que contabiliza o valor da energia consumida, o valor da potência tomada, os encargos administrativos emergentes dessa situação e contabiliza o cálculo de energia elétrica compreendida no período de 29.05.2021 a 28.05.2024 e teve por base os consumos reais posteriores registados no equipamento entre 29.05.2024 e 29.08.2024, descontado o consumo e encargos da potencia contratada de 20,70 Kva.
27. No cálculo do valor de € 16.246,87, a requerida contabilizou energia elétrica no montante de € 16.155,27 correspondente a 102.704 kwh, a que acresce o montante de € 91,60 referente a encargos administrativos contabilizados pela requerida.
28. A requerente foi beneficiária da situação verificada no contador referida em 23).
*
E foram julgados não provados os seguintes factos:
A. O contador referido em 7) já existia nas condições aí referidas antes de a requerente iniciar a exploração turística da Quinta ...;
B. A requerente pagou todas as faturas de fornecimento de energia elétrica;
C. Em 05.12.2024, a requerida enviou SMS à requerente a anunciar o corte de energia para o dia 09.01.2025;
D. A redução e/ou interrupção do fornecimento da energia elétrica do contador referido em 5) e em 8) terá como efeito a suspensão da atividade de alojamento local e de turismo da Quinta ... e este empreendimento turístico não poderá funcionar sem o portão de acesso carral, sem a iluminação dos jardins, sem a rega, sem os painéis solares de aquecimento de água necessários a todas as instalações, incluindo todos os anexos onde existem equipamentos de água;
E. O empreendimento turístico da Quinta ... não poderá funcionar sem a iluminação dos candeeiros dos caminhos pedonais e carrais do interior desse empreendimento, sem a iluminação e sem a ligação do motor da piscina e sem a iluminação do campo de ténis;
F. A Quinta ... não pode funcionar se os seus hóspedes e clientes não puderem utilizar os espaços comuns referidos em 8);
G. Caso ocorra redução e/ou interrupção da energia elétrica fornecida para o contador referido em 5) e em 8), se a requerente tiver clientes hospedados na Quinta ..., a requerente não poderá manter os serviços de alojamento com esses clientes, a imagem e o bom nome da requerente ficam prejudicados e a requerente terá de indemnizar os seus clientes;
H. Todas as receitas da requerente resultam da exploração da Quinta ... e a redução e/ou interrupção do fornecimento de energia elétrica conduzirá à cessação da atividade da requerente e à sua incapacidade de gerar receitas necessárias para pagar à sua gerente, aos seus trabalhadores, ao senhorio e aos seus fornecedores;
I. A quantia referida em 10) e em 11) não se baseia na análise do histórico de consumo das faturas emitidas pela EMP03... à requerente;
J. A atividade económica da requerente tem ciclos que se refletem no consumo de energia, com picos de energia no verão e menor consumo noutras alturas e nos anos de 2020 e 2021 o consumo de energia foi menor devido às consequências da pandemia de Covid 19;
L. A requerente não alterou nada no contador referido em 5) que é passível de ser acedido por qualquer pessoa e a requerente nunca se apercebeu de qualquer alteração a esse contador;
M. Todos os registos informatizados e ordens de serviço da requerida são sistematicamente auditados e fiscalizados pela ERSE e por equipas de auditoria externa;
N. No dia 30.08.2024, a requerida enviou à requerente uma carta a solicitar o pagamento de indemnização no montante de € 16.246,87 pela apropriação indevida de energia/projeto de decisão acompanhado do auto de vistoria e do detalhe de cálculo dessa indemnização.
2.º
A requerente entende que por três motivos os factos 23, 24, 25, 26, 27 e 28 dos factos provados devem ser julgados não provados.
Em primeiro lugar porque «o "Auto de Vistoria do Ponto de Medição" junto aos Autos (…) não obedece ao formalismo legal - art.º 4.º, 6.º do Regulamento n.º 814/2023, de 27/07, 2ª Série do D.R., e ao n.º 1, do art.º 250.º, do D.L. n.º 15/2022, de 14/01 -, sendo nulo.» E "por esse motivo, o referido Auto de Vistoria é ilegal e nulo, por não obedecer ao formalismo legal, não sendo, portanto, suscetível de atestar uma AIE".
Estes seis factos têm como pressuposto, direto ou indireto, a circunstância, descrita no facto 23, de "que o contador se encontrava com a tampa de bornes desselada e com shunt L1 e L2 aberto".
Como é sabido, os recursos "destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida"[2] e "não a conhecer de questões novas, salvo se estas forem de conhecimento oficioso e não estiverem já resolvidas por decisão transitada em julgado"[3]. "As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos."[4] Os recursos constituem, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões não apreciadas e discutidas no tribunal a quo, sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso[5]. Com efeito, "o recurso permite a reapreciação (e não apreciação ex novo) de decisões de uma instância inferior, ou seja, numa «fórmula impressiva, no recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas que tenham já sido objeto de decisão anterior pelo tribunal a quo e que um interessado pretende ver reapreciadas»."[6]
Ora, como bem sublinha a requerida nas suas contra-alegações, "a questão da validade ou invalidade do Auto de Vistoria e/ou procedimento de AIE não foi apreciada pelo Tribunal a quo porque não foi alegada e submetida à sua apreciação". Com efeito, na petição inicial a requerente não suscitou a questão da (eventual) nulidade do Auto de Vistoria, designadamente por (possivelmente) não cumprir o "formalismo legal - art.º 4.º, 6.º do Regulamento n.º 814/2023, de 27/07, 2ª Série do D.R., e ao n.º 1, do art.º 250.º, do D.L. n.º 15/2022, de 14/01". E nestas normas não se sanciona com nulidade a inobservância de algum desse "formalismo legal"
Deste modo, não pode este tribunal conhecer da questão relativa a esta invocada nulidade que, só agora em sede de recurso, a requerente lhe coloca.
Consequentemente, com este fundamento não se pode julgar não provados os factos 23, 24, 25, 26, 27 e 28.
*
Em segundo lugar, na visão da requerente, esta "matéria de facto impugnada deve, ainda, ser reapreciada, tendo em conta que a Requerente, ora Recorrente não foi notificada do projeto de decisão, nos termos do art.º 6º do Regulamento n.º 814/2023", razão pela qual "o Tribunal a quo devia ter julgado como não provados os factos ora impugnados".
A requerente afirma que "não foi notificada do projeto de decisão, nos termos do art.º 6.º do Regulamento n.º 814/2023, o que, conjugado com a nulidade – tal como defendido anteriormente pela Recorrente - de Auto de Vistoria de AIE, inquinam de ilegalidade o procedimento de AIE e, consequentemente, a legitimidade para proceder ao corte / suspensão de energia pela EMP02...".
Como se viu, não foi reconhecida a nulidade do Auto de Vistoria, pelo que por esse motivo não se pode dizer que está inquinado "de ilegalidade o procedimento de AIE".
Quanto à falta de notificação "do projeto de decisão, nos termos do art.º 6.º do Regulamento n.º 814/2023" regista-se que o n.º 3 desse preceito estabelece que "o operador de rede notifica o titular da instalação do projeto de decisão, para efeitos de audição prévia". Pretende-se, assim, que o consumidor tenha a oportunidade de exercer o contraditório antes de haver uma posição final, por via do qual poderá levar o operador da rede a rever a sua posição inicial.
Neste ponto o tribunal de 1.ª instância deixou dito que, "pese embora a requerida não tenha logrado demonstrar que notificou a requerida do projeto de decisão previsto no artigo 6.º, n.º 1 do Regulamento n.º 814/2023, resultou demonstrado que a requerida notificou a requerente da decisão proferida em 09.10.2024, a requerente teve a oportunidade e solicitou a reapreciação dessa decisão, tendo a requerida respondido às várias solicitações efetuadas a esse propósito e tendo, inclusivamente, remetido à requerente o auto de vistoria do contador e uma fotografia do mesmo, assim dando conhecimento à requerente da situação verificada pela requerida e permitindo o exercício do direito de defesa e de reclamação pela requerente." Sublinha-se que, como emerge dos factos 12 a 14, a requerente apresentou junto da requerida três reclamações (em 25-10-2024, 14-11-2024 e 4-12-2024), às quais a requerida respondeu, tendo, por essa via, aquela a oportunidade de exercer um efetivo contraditório, defendendo a sua perspetiva e apresentando os fundamentos em que a mesma assenta. E no decorrer deste "diálogo" a requerida não tomou qualquer posição definitiva, designadamente de reduzir ou cortar o fornecimento de energia elétrica à requerente.
Portanto, apesar de não se ter provado que foi concedido à requerente o contraditório no momento definido no n.º 3 do artigo 6.º do Regulamento 814/2023, a verdade é que esse contraditório acabou por ser efetivamente assegurado, não havendo, nesse plano, em termos de facto, uma limitação no exercício dos direitos da requerente.
Nessa medida, não há aqui fundamento para se julgar não provados os factos 23, 24, 25, 26, 27 e 28.
*
Em terceiro lugar, a requerente considera que "a matéria de facto ora impugnada deve, igualmente, ser alterada, tendo em conta que a Requerente, ora Recorrente foi notificada de Decisão, datada de 09/10/2024 - cfr. doc. n.º 8, junto com o requerimento inicial - sem o cumprimento dos requisitos impostos pelo art.º 8º, do Regulamento n.º 814/2023." Desta forma, "estas omissões enfermam de ilegalidade o procedimento de AIE e, consequentemente, a legitimidade para proceder ao corte / suspensão de energia pela EMP02.... Pelo que o Tribunal a quo devia ter julgado como não provados os mesmos" os factos em apreço.
A requerente sustenta que "foi notificada de Decisão, datada de 09/10/2024 (…) sem o cumprimento dos requisitos impostos pelo art.º 8.º, do Regulamento n.º 814/2023" e que essa "decisão da EMP02... é omissiva e incognoscível, em relação (i) à descrição pormenorizada da situação de AIE identificada, (ii) aos fundamentos para a decisão final de imputação e informação quanto à efetivação de interrupção ou redução de potência contratada, (iii) à forma de cálculo do valor do montante pecuniário a pagar a título de indemnização, (iv) aos direitos do produtor, utilizador ou proprietário, designadamente o de requerer a avaliação ou reapreciação da informação recolhida pelo operador de rede e de impugnar qualquer decisão do operador de rede, mediante recurso aos tribunais judiciais ou aos meios alternativos de resolução de litígios existentes, identificando o centro de conflitos de consumo competente".
Nesta parte vemos que se provou que a "24.10.2024, a requerente recebeu uma carta (…) remetida pela requerida, datada de 09.10.2024, informando-a de que no passado dia 29.05.2024, foi realizada uma auditoria técnica à instalação elétrica que serve o local de consumo da requerente, tendo sido detetado um procedimento irregular no equipamento de contagem conforme pedido de indemnização, auto de vistoria e detalhe de cálculo já enviados, tendo o Sistema Elétrico Nacional sofrido um prejuízo que ascende ao montante de € 16.246,87 quantia que até essa data não foi paga" (sublinhado nosso). E nessa missiva "a requerida comunicou [ainda] à requerente que tem o prazo de 10 dias a contar dessa carta para proceder ao pagamento voluntário do montante de € 16.246,87 e que no mesmo prazo poderia ser apresentado um pedido de reapreciação da informação recolhida ou pode recorrer aos tribunais competentes e informou-a de que caso não proceda ao pagamento dessa quantia a EMP02..., S.A., poderá, sem mais interpelações, proceder à redução de potência e posterior interrupção do fornecimento de energia elétrica e informou-a de que pode solicitar a regularização do processo ou enviar os seus pedidos através da área "Contacte-nos", em ....". Note-se que o teor destes dois factos não foi colocado em causa pela requerente.
Depois disso, em resposta à primeira reclamação da requerente, a requerida informou-a que:
"- No dia 29-05-2024 verificámos que o contador estava desselado na tampa inferior e com um shunt aberto. Por isso, foi elaborado um auto de vistoria referente às não conformidades encontradas, conforme evidencias fotográficas em anexo e auto de vistoria; - O valor apurado de 16.246,87 Euros, que deverá ser pago, refere-se à eletricidade consumida e não registada no período de 29-05-2024 a 28-05-2024, com base no consumo verificado no novo contador no período de 29-05-2024 a 29-08-2024, e aos encargos com a correção da situação; - Esclarecemos que sempre que são detetadas inconformidades nos equipamentos de controlo e medição, independentemente da sua localização, das quais possam ter resultado um benefício para o utilizador da instalação, é do respetivo titular da mesma a responsabilidade por eventuais encargos; Efetuámos uma análise aos consumos da instalação em causa e, constatámos que, no período de 25-08-2017 a 09-05-2024, o consumo médio diário (CMD) foi de 29.28 kWh, após a correção da anomalia o CMD, aumentou substancialmente, para 100.88 kWh. - Poderá consultar o Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, e o Regulamento n.º 814/2023 relativo à Apropriação Indevida de Energia."
E numa resposta a outra reclamação a requerida deixou dito, designadamente, que:
"Analisámos a sua reclamação de dia 04-12-2024 acerca do fornecimento de energia elétrica referente ao CPE ...81... que corresponde à instalação situada Rua ..., ....
(…) O contador estava desselado e com shunts abertos. No dia 29-05-2024, a nossa equipa técnica deslocou-se ao local de consumo tendo verificado que o contador estava sem selos na tampa inferior e com shunts abertos em duas fases, conforme evidências fotográficas e Auto de Vistoria anteriormente enviados. Posto isto, não temos garantia de que o consumo total estava a ser registado. A análise aos consumos aponta um benefício com esta inconformidade Analisamos os consumos da instalação e podemos concluir que no período de 25-08-2017 a 09-05-2024, o consumo médio diário (CMD) foi de 29,28kWh/dia. Já após a correção da anomalia o consumo médio diário aumentou para 100.88kWh/dia, dessa forma, não podemos deixar de afirmar que o utilizador da instalação beneficiou de energia consumida e não faturada, dado que, em consequência das anomalias detetadas não foi contabilizada toda a energia consumida. Nestas circunstâncias, o Operador de Redes de Distribuição (ORD), enquanto parte lesada, tem o direito a ser ressarcido das quantias que venham a ser apuradas em resultado do mesmo.
(…) Informamos que pode pagar o valor indicado de forma faseada ou integral."
Neste contexto, vemos que foi comunicada à requerente a descrição pormenorizada da situação de AIE identificada, os fundamentos para a decisão final, a informação quanto à interrupção ou redução da potência contratada, a forma de cálculo do valor do montante a pagar a título de indemnização e os direitos de pedir a reapreciação da informação recolhida e de recorrer aos tribunais.
A requerida só não terá dado conhecimento à requerente de que, como resulta da alínea f) do n.º 3 do artigo 8.º do Regulamento 814/2023, esta podia "requerer a avaliação (…) da informação recolhida pelo operador" e recorrer "aos meios alternativos de resolução de litígios existentes, identificando o centro de conflitos de consumo competente".
Salvo melhor juízo, esta omissão é manifestamente insuficiente para que se julgue não provados os factos 23, 24, 25, 26, 27 e 28, até por que neles não há alusão alguma aos direitos de requerer a avaliação da informação obtida e de recorrer aos meios alternativos de resolução de litígios. E aí nada consta quanto a um eventual prejuízo ou outra consequência resultante de tal omissão. Aliás, a requerente não alegou que, de alguma forma, a sua conduta ficou condicionada pela falta dessa informação.
Aqui chegados, conclui-se que se mantém o quadro dos factos julgados provados pelo tribunal de 1.ª instância.
3.º
Na ótica da requerente, "os factos dados como provados (pontos 3 e 8) pela decisão de facto, permitem, de acordo com as regras da experiência e critérios da lógica, concluir pela existência de receio de lesão grave e de difícil reparação".
Para a procedência do procedimento cautelar «não é necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero "fumus boni juris", ou seja, que o direito se apresente como verosímil»[7]. "Não se exige a prova da sua existência, nos termos em que ela deverá ser produzida no âmbito da ação"[8]; basta que, sustentado "numa prova perfunctória"[9], "se encontre indiciariamente provado"[10].
Só depois de verificado este pressuposto é que se irá apurar se há periculum in mora. Lembra-se que «as providências cautelares destinam-se a "acautelar o efeito útil da ação" principal. É por essa razão que as providências cautelares exigem um periculum in mora, que decorre do receio de um direito sofrer uma lesão grave e dificilmente reparável se a sua tutela tiver de aguardar pela ação principal»[11].
No nosso caso, acompanhamos a Meritíssima Juiz quando afirma "que não resultou indiciada a existência de qualquer direito da requerente que permitisse suspender ou impedir a redução ou a interrupção do fornecimento de energia elétrica para o local de consumo n.º ...08, objeto de viciação na contabilização da energia elétrica fornecida. Tanto mais que, conforme supra referido, a requerente em momento algum ilidiu a presunção prevista no artigo 250.º, ns.º 3 e 4 do D.L. n.º 15/2022, de molde a poder afastar a sua responsabilidade pelo pagamento da indemnização reclamada pela requerida pela apropriação indevida de energia de que a requerente beneficiou. Pelo que julgamos que a requerente não logrou demonstrar a existência de fumus boni iuris, essencial para o decretamento desta providência cautelar."
Logo, não há periculum in mora.
Cremos que esta questão foi colocada pela requerente no pressuposto de que, aquando da reapreciação da decisão da matéria de facto, os factos 23, 24, 25, 26, 27 e 28 tinham sido retirados dos factos provados, o que, como se viu, não sucedeu.
4.º
A requerente entende ainda que "são inconstitucionais as normas contidas no art. 250.º, n.º 3 e 4, do D.L. n.º 15/2022, de 14/01, com fundamento na violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência ao direito de iniciativa económica privada, acolhido no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição, pelo que não podiam fundamentar a decisão em crise e fundamentar a imputação, à Recorrente, titular do contrato, dos benefícios de uma AIE. Padece de inconstitucionalidade material a interpretação que o Tribunal a quo faz do art. 250.º, n.º 3 e 4, do D.L. citado, por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade, enquanto concretizador do princípio do Estado de Direito Democrático, da tutela judicial efetiva e do processo equitativo, segundo a qual compete à Recorrente, na qualidade de titular do contrato / consumidora, para afastar a imputação e sua responsabilidade pela AIE , demonstrar a não faturação da injeção, quando é alheia, à sua esfera de atuação, a eventual AIE".
É oportuno começar por dar nota de que na motivação do recurso a requerente apenas invoca a "inconstitucionalidade material do art. 250º, n.º 3 e 4, do D.L. citado, por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade, enquanto concretizador do princípio do Estado de Direito Democrático, da tutela judicial efetiva e do processo equitativo". Dito por outras palavras, aí não menciona a inconstitucionalidade decorrente da "violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência ao direito de iniciativa económica privada, acolhido no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição", de que fala na conclusão 24.ª.
A jurisprudência é pacífica no sentido de que "não pode ser considerado o que consta das conclusões da alegação do recorrente sem corresponder a matéria explanada no corpo alegatório"[12].
Por conseguinte, não se apreciará a alegada inconstitucionalidade por violação do disposto nos artigos 165.º n.º 1 b) e 61.º n.º 1 da Constituição da República.
O artigo 250.º do Decreto-Lei 15/2022, de 14 de janeiro, dispõe que;
"1 - A apropriação indevida de energia (AIE) ocorre quando há captação de energia elétrica em violação das regras legais ou regulamentares aplicáveis e independentemente da vigência de contrato e sob quaisquer modalidades de acesso ou utilização. 2 - Constituem, designadamente, indícios da ocorrência de AIE os seguintes: a) A captação de energia elétrica dissociada de equipamentos de medição ou de controlo de potência ou consumo; b) A viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos equipamentos de medição ou de controlo de potência ou consumo de energia elétrica, incluindo os respetivos sistemas de comunicação de dados; c) A alteração dos dispositivos de segurança dos equipamentos referidos nas alíneas anteriores, nomeadamente, através da quebra de selos, violação de fechos ou de fechaduras, ou ainda de incidente de cibersegurança; ou d) Situações fraudulentas nas atividades de produção, armazenamento, comercialização, consumo, agregação e outras prestações de serviços análogas, nomeadamente o falseamento de valores de energia medidos através da viciação da medição ou de outras práticas fraudulentas. 3 - Os benefícios resultantes de AIE presumem-se imputáveis ao titular do contrato do ponto da instalação de produção, armazenamento ou consumo, sempre que exista, ou subsidiariamente ao seu proprietário, em função da energia injetada ou consumida e dos períodos de utilização do local de ligação com a rede de transporte ou distribuição. 4 - A presunção prevista no número anterior pode ser ilidida mediante prova da não faturação da injeção ou, no que respeita ao consumo ou receção, da não utilização da instalação por aquele a quem tenha sido imputada, acrescida da: a) Existência de utilizador a quem possa ser imputado benefício resultante de AIE; ou b) Inexistência de qualquer utilizador possível. 5 - Nos casos a que se refere a alínea a) do número anterior, o benefício de AIE passa a ser imputado a esse utilizador."
A presunção constitui uma "prova por indução ou inferência (prova conjetural) a partir dum facto provado por outra forma - e não destinado a representar nem mesmo a indicar (como o sinal ou contramarca) o facto que constitui o thema probandum. Chama-se presunção a própria inferência; ou ainda (menos propriamente) o facto que lhe serve de base - facto que, mais rigorosamente, se designará por base da presunção."[13] Na verdade, consiste numa "consequência ou ilação que a lei ou o julgador deduz de um facto conhecido (facto probatório) para firmar um facto desconhecido" e constitui "uma operação probatória ou demonstrativa"[14]; trata-se de "meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência"[15]. E a presunção legal "é a que resulta da lei, podendo ser ilidível ou inilidível. A regra, decorrente do artigo 350.º, n.º 2, C.C., é a de que as presunções legais são relativas, isto é, ilidíveis."[16]
Nas presunções ilidíveis, como é a que se encontra nos n.os 3 e 4 do citado artigo 250.º, a contraparte tem a possibilidade de a afastar, fazendo prova em contrário; o ónus da prova inverte-se[17].
"O princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa 'justa medida', impedindo-se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos"[18].
No nosso ordenamento jurídico há inúmeras presunções legais, principalmente ilidíveis[19], em diversas áreas, porque o legislador entende que em determinados cenários, face à dificuldade da prova de um concreto facto e às regras da experiência é adequado, razoável e proporcional partir do princípio de que esse facto ocorreu, possibilitando simultaneamente à parte contrária fazer prova de que, contrariamente ao que normalmente sucede, tal facto, afinal, não teve lugar.
Na situação dos autos, dada a impossibilidade de o fornecedor de energia vigiar permanentemente o local da instalação, que muitas vezes se situa em propriedade privada sem que a ele se possa aceder livre e facilmente, conjugado com a circunstância de, à partida, o titular do contrato ter, direta ou indiretamente, controlo desse sítio, as regras da experiência de vida apontam no sentido de que este tem um domínio de facto dessa instalação e controla o que aí acontece. Nessa medida é apropriado, oportuno e equilibrado estabelecer que os "benefícios resultantes de AIE presumem-se imputáveis ao titular do contrato do ponto da instalação de produção, armazenamento ou consumo", concedendo a este a possibilidade de provar que assim não é. E a prova de uma das situações descritas no n.º 4 artigo 250.º do Decreto-Lei 15/2022 não se reveste de uma dificuldade tal que, como defende a requerente, deva ser qualificada como "uma prova diabólica". E presumindo-se que são "imputáveis ao titular do contrato do ponto da instalação de produção, armazenamento ou consumo" "os benefícios resultantes de AIE", isso não "equivale a uma responsabilização / condenação sem atender à sua culpa". Não há aqui uma responsabilidade objetiva; se o facto é imputável ao titular do contrato isso significa que há culpa da sua parte.
No que se refere à tutela judicial efetiva, "a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas."[20]
Por sua vez, um processo equitativo implica "a efetividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas."[21] Na verdade, o direito ao processo equitativo visa garantir uma real tutela jurisdicional, o que pressupõe a observância do "direito de defesa e [d]o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas"[22].
Ora, o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 250.º do Decreto-Lei 15/2022 não inviabiliza ou limita o acesso do consumidor aos tribunais, onde pode apresentar a sua pretensão numa ação na qual, com respeito pelas regras consagradas no nosso ordenamento jurídico, será proferida uma decisão judicial. E nessa lide o consumidor apresentará os fundamentos de facto e de direito que tem por relevantes e a prova que considerar apropriada, assistindo-lhe sempre o direito ao contraditório e o recurso aos mesmos meios processuais que a parte contrária tem ao seu dispor.
Sendo assim, os n.os 3 e 4 do artigo 250.º do Decreto-Lei 15/2022 não violam os princípios constitucionais da proporcionalidade, da tutela judicial efetiva e do processo equitativo.
5.º
A requerente, tendo por objetivo a inversão do contencioso, afirma que "é possível formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado".
O tribunal de 1.ª instância depois de dizer que "não se mostram preenchidos os pressupostos que permitem o deferimento da pretensão da requerente por via do presente procedimento cautelar comum, razão pela qual se julga improcedente esta providência cautelar comum, improcedência que pelas razões expostas abrange quer os pedidos principais quer o pedido subsidiário formulado pela mesma", concluiu que, por isso, é "improcede o pedido de inversão do contencioso formulado pela requerente".
O n.º 1 do artigo 369.º estabelece que, independentemente de outros requisitos, "mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado".
Como se viu, "a matéria adquirida no procedimento" não permitiu "formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado", o que é quanto basta para que não se possa dar a inversão do contencioso.
III
Com fundamento no atrás exposto julga-se improcedente o recurso, pelo que se mantém a sentença recorrida.
Custas pela requerente.
Notifique.
António Beça Pereira
Afonso Cabral de Andrade
António Figueiredo de Almeida
[1] São deste código todos os artigos mencionados adiante sem qualquer outra referência. [2] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 2008, pág. 23. [3] Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 566. [4] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª Edição, pág. 98. [5] Neste sentido veja-se ainda Ac. STJ de 24-4-2012 no Proc. 424/05.7TYVNG.P1.S, Ac. STJ de 5-5-2016 no Proc. 1571/05.0TJPRT-C.P1.S1, Ac. STJ de 3-11-2016 no Proc. 73/14.9T8BRG.G1.S1, Ac. STJ de 8-10-2020 no Proc. 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, Ac. STJ de 15-12-2022 no Proc. 125/20.6T8TND.C1-A.S1, Ac. STJ de 2-2-2023 no Proc. 314/19.6YHLSB.L2.S1, Ac. STJ de 25-5-2023 no Proc. 1864/21.0T8AGD-A.P1.S1, Ac. STJ de 13-5-2025 no Proc. 3945/21.0T8STB.E1.S1, todos em www.gde.mj.pt, Ac. STJ de 14-7-2020 no Proc. 989.19.6T8BCL.G1.S1, jurisprudencia.csm.org.pt/ecli e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, pág. 156. [6] Ac. STJ de 4-5-2023 no Proc. 96/20.9PHOER.L1.S1, www.gde.mj.pt. [7] Pereira Rodrigues, A Prova em Direito Civil, pág. 270. [8] Batista Lopes, Dos Procedimentos Cautelares, 1965, pág. 100. [9] Ac. STJ de 13-4-2010 no Proc. 168/06.2TBVGS, www.gde.mj.pt. [10] Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2.ª Edição, pág. 182. [11] Teixeira de Sousa, Comentário de 29-2-2024, https://blogippc.blogspot.com [12] Ac. STJ de 06-05-2010, Proc. 1227/04.1TBVIS.C1.S1. Neste sentido veja-se Ac. STJ de 9-7-2015 no Proc. 208/08.0TBPNH.C2.S1, Ac. Rel. Coimbra de 3-6-2014 no Proc. 74656/129YIPRT.C1, Ac. Rel. Coimbra de 31-05-2011 no Proc. 935/10.2TBMGR.C1 e Ac. Rel. Porto de 13-1-2020 no Proc. 3381/18.6T8PNF-A.P1, todos em www.gde.mj.pt. [13] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 215. [14] Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, 1961, pág. 179. [15] Vaz Serra, RLJ, Ano 108, pág. 352. [16] Ana Prata et al., Dicionário Jurídico, Vol. I, 5.ª Edição, pág. 1099. [17] Cfr. artigo 350.º do Código Civil. [18] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, pág. 153. Sobre esta matéria pode ver-se Ac. Tribunal Constitucional 634/93, Ac. Tribunal Constitucional 302/2001, Ac. Tribunal Constitucional 88/2004 e Ac. Tribunal Constitucional 632/2008, todos em www.tribunalconstitucional.pt. [19] Veja-se, por exemplo os artigos 230.º n.º 1 e 623.º do Código de Processo Civil, 503.º n.º 3, 516.º e 1871.º n.º 1 do Código Civil e 7.º do Código do Registo Predial. [20] Ac. Tribunal Constitucional 141/2019. A este propósito veja-se Ac. Tribunal Constitucional 186/2025, Ac. Tribunal Constitucional 148/2025 e Ac. Tribunal Constitucional 401/2017, todos em www.tribunalconstitucional.pt. [21] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, pág. 439. [22] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 415. Sobre esta questão veja-se Ac. Tribunal Constitucional 766/2022, Ac. Tribunal Constitucional 434/2011 e Ac. Tribunal Constitucional 157/2001, todos em www.tribunalconstitucional.pt.