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RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
SUSPENSÃO
CASO JULGADO
Sumário
I – O regresso de uma criança pode ser recusado se existir um risco grave de que fique sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, numa situação intolerável. II - Para casos excepcionais, o tribunal pode, a pedido da pessoa contra a qual é requerida a execução ou, se aplicável nos termos do direito nacional, da criança em causa ou de qualquer parte interessada agindo no superior interesse da criança, suspender o processo de execução caso a execução exponha a criança a um grave risco de danos físicos ou psicológicos devido a impedimentos temporários que tenham surgido depois de a decisão ter sido proferida ou em virtude de qualquer outra alteração significativa das circunstâncias. III – Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança. IV - A definição dada à relação controvertida impõe-se a todos os tribunais , e até a quaisquer outras autoridades, quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). V - Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.
Texto Integral
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I–Relatório
AA, por apenso aos autos de acção tutelar comum (nos termos do art.º 67.º do R.G.P.T.C., que o Ministério Público, em representação do Estado Português e nos termos do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25 de Junho de 2019 (Regulamento Bruxelas II, e dos art.°s 3.°, 4.°, 5.°, alínea. b), 7.°, al. f), e 21.° da Convenção de Haia de 25/10/1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, requereu, com vista a abertura de procedimento judicial com vista à prolação de decisão sobre o regresso da criança BB, nascida a ../../2019, a França), veio, nos termos do disposto no artigo 56.º do Regulamento (EU) n.º 1111/2019 de 25 de Junho, requerer a suspensão da decisão de regresso imediato da BB a França e entrega da BB ao pai.
Alegou, para o efeito, que o procedimento de entrega da BB atropelou de forma grosseira a consideração (65), porque neste caso em particular, e pela matéria assente nos autos, o trauma não só pode, como tem necessariamente de ser evitado e amenizado.
Aduziu que a menina foi violentada de forma abrupta com a situação de ter de ser entregue na Segurança Social de imediato e embarcar para França com o pai, sem a mãe, e sem os irmãos, tendo o procedimento técnico obrigado a mãe a alterar o que tinha programado de forma pensada e cuidada, contando à filha, no dia de Páscoa, tudo o que foi decidido e também o episódio da véspera com a GNR a ir a sua casa para a levar para França.
Mais se alegou que a BB recusa veemente deixar a mãe e os irmãos, ir para França, abandonar a sua escola, deixar as técnicas que a têm ajudado todos os dias, deixar a dança e a natação, deixar todos os seus amigos em ... e abandonar a sua vida em ....
Referiu ter essa situação feito regressar todos aqueles desequilíbrios que se julgavam ultrapassados, como choros, gritos, agitação e acordar de forma repentina de noite, com medo do lobo, contrariar e gritar a todo o momento para nunca mais ninguém dizer que tem de ir para França.
Concretiza, dizendo, que na noite de 20 para 21 de Abril já não dormiu no seu quarto e teve de dormir com a mãe, apavorada que alguém a fosse buscar à força ao seu quarto e a levasse para França.
Concluiu, referindo que a posição imponderada, irrefletida, precipitada e ao arrepio de qualquer equilíbrio e adequação ao caso concreto, originou uma alteração das circunstâncias no que diz respeito ao bem-estar da BB, importando um retrocesso perigoso para a sua saúde mental e física, criando mazelas e feridas que podem tornar-se irrecuperáveis, com afectação da saúde física e mental da BB.
Refere que a situação física e emocional da BB por força do impacto do conhecimento abrupto e sem o cuidado que a situação exigia, ficou abalada de uma forma grave, uma vez que o seu estado de saúde e cuidados recuou ao tempo da sua chegada a Portugal.
Conclui requerendo, pelas circunstâncias supervenientes para a saúde da BB por força do referido, a suspensão imediata do procedimento de entrega.
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Aberta vista ao Ministério Público, o mesmo alegou, entre o mais, que o objecto dos presentes autos se encontra esgotado e decidido por decisão transitada em julgado, decisão essa proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, nada mais havendo a decidir no âmbito dos mesmos, a não ser cumprir o decidido e já determinado.
Em síntese, refere que sobre os factos os tribunais portugueses já emitiram juízo, por decisão já transitada em julgado, obstando a que possam, de novo, ser julgados por outra jurisdição, igualmente não colhendo a invocação do Art.º 56.º do Regulamento, por não estarem preenchidos os critérios taxativamente exigíveis para a suspensão com base nesse preceito legal.
Pede-se, assim, a continuidade da execução da decisão, com as diligências necessárias ao seu cumprimento.
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Seguiu-se, oportunamente, a decisão por parte do Tribunal a quo, que indeferiu liminarmente o peticionado na petição inicial apresentada pela Requerente AA.
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II- Objecto do recurso
Inconformada com essa decisão, veio a requerente interpôr o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1ª A progenitora peticionou a suspensão da entrega da BB com base em factualidade nova e superveniente ao trânsito em julgado da decisão do STJ; 2ª O Tribunal adquo fez uma confusão entre a questão ultrapassada, decidida e transitada, da análise que foi efectuada relativamente aos pressupostos dos artigos 12º e 13º, alínea b) da Convenção de Haia, e a questão ora suscitada, nova e superveniente, prevista no artigo 56º, nºs. 4 a 6 e na consideração (69) do Regulamento do Conselho nº1111/2019 de 25-06-2019; 3ª A nova matéria de facto resultou do conhecimento que a BB teve, no dia 20 de abril de 2025, de que teria de ir viver com o pai para França; 4ª Essa nova matéria de facto corresponde à recusa veemente da BB ir para França viver com o pai; recusa veemente em deixar a mãe e os irmãos; recusa veemente em deixar os amigos e a escola; 5ª E a matéria nova também corresponde ao estado emocional e físico da BB, por força do conhecimento referido na cláusula 3ª; 6ª O Tribunal aquo não efectuou quaisquer diligências probatórias no sentido de sindicar a matéria de facto superveniente que deu causa ao pedido de suspensão; 7ª O Tribunal aquo partiu do pressuposto de que a progenitora estava a usar um expediente dilatório para não entregar a BB (que nem sequer suspende a decisão do processo principal), e motivou a decisão ora recorrida com um fundamento que foi aplicado à outra matéria de facto transitada, e que não cabe, nem colhe na decisão ora recorrida; 8ª A violação por parte do Tribunal aquo das regras imperativas de produção e verificação de prova relativa à matéria de facto, nova e controvertida, a fim de que tal prova se produzisse (ou não), impõe a anulação da sentença recorrida; 9ª Foram violadas as seguintes normas jurídicas: consideração (69) e artigo 56º, nºs. 4 a 6 do Regulamento nº1111 do Conselho de 25-06-2019; artigos 9º, alínea b); 16º, nº2, 18º, nº2, da CRP.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, o qual terá de ser substituído por outro que determine a realização de diligências de prova para apuramento da nova matéria de facto relativa ao pedido de suspensão de entrega, assim se fazendo uma vez mais JUSTIÇA!!!
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O Ministério Público veio pugnar pela confirmação da decisão proferida.
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O requerido CC veio apresentar as suas contra-alegações, pugnando igualmente pela total improcedência do recurso, por não provado, por forma a manter-se a sentença recorrida.
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Recebido o recurso, foram colhidos os vistos.
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III- O Direito
Como resulta do disposto nos art..ºs 608.º, nº. 2, ex vi do artº. 663.º, n.º 2, 635.º, nº. 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Assim, face às conclusões das alegações de recurso, importa apurar se ocorre o fundamento superveniente invocado para o pedido de suspensão de entrega, ou, se este, por já ter sido objecto de decisão, não se verifica.
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Fundamentação de facto
- A matéria jurídico-processual constante do relatório elaborado no ponto I, aqui dada por integralmente reproduzida.
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Fundamentação jurídica
Por forma a melhor podermos balizar a questão objecto de recurso e proferir a decisão que se impõe, importa, neste caso concreto, ter em conta o decidido nas várias instâncias, para, assim, apurar e decidir se é, ou não, de manter a decisão de indeferimento liminar, baseada no facto dos motivos da suspensão requerida terem sido já alvo de pronúncia com trânsito em julgado por parte do STJ.
Vejamos.
Tendo o Ministério Público vindo requerer a entrega judicial ao abrigo da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25-10-1980, a que corresponde o apenso A, veio a aí requerida, mãe de BB, deduzir requerimento concluindo pela sua expressa oposição ao regresso voluntário da sua filha a França, pugnando, assim, pela recusa de entrega da menor ao abrigo do art. 12.º da Convenção de Haia, por ter decorrido mais de um ano entre a vinda da menor para Portugal e a data da interposição do processo, uma vez que a mesma se encontra já inserida e ambientada no meio familiar e escolar, bem como ao abrigo do art. 13.º, al. b), da mesma Convenção, por força do risco grave que a decisão de regresso acarretaria para a menor.
Após contraditório e diligências realizadas veio a ser proferida sentença que julgou procedente a medida requerida comungando, para o caso que agora nos interessa, do facto das situações de perigo legitimadoras da recusa na determinação da entrega se reconduzirem a maus tratos, abuso sexual, regresso a países situados em zona de conflitos, de guerra ou de fome, ou de nível de gravidade semelhante, afigurando-se de gravidade semelhante aquelas que se traduzam na existência de sério perigo para a saúde ou vida da criança decorrente da sua deslocação para o Estado da sua residência habitual, designadamente, por força da sua débil condição de saúde.
Apontou-se, ainda, como argumento, que se for provado que foram tomadas as medidas concretas adequadas para garantir a protecção da criança após o regresso, o argumento de que este representa um risco grave para a saúde física ou psíquica da criança ou a coloca numa situação intolerável deixa de poder ser fundamento da recusa de regresso, face ao que se dispõe no art. 27.º, n.º 3, do Regulamento n.º 2019/1111, de 25/6 e art. 13.º, al. b), da Convenção de Haia de 1980.
Posto isto, face à alegação da progenitora que a menor, sofrendo de Perturbação do Espectro do Autismo – Síndrome de Asperger, ao passar a residir em França com o progenitor, privada do convívio regular consigo e seu agregado, verá a sua evolução clínica comprometida, susceptível de integrar a situação prevista no art. 13.º, al. b), da Convenção, o tribunal a quo, face ao circunstancialismo referido, concluiu como muito provável que a alteração do centro de vida da criança para junto do progenitor, com a inerente privação de contacto com a progenitora, que é a sua figura afectiva de referência, e mudança dos profissionais e das pessoas com quem tem vindo a conviver, importe comprometimento da evolução referida e da sua estabilidade emocional.
Entendeu-se, porém, que tal probabilidade não integra a situação de risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer modo, ficar numa situação intolerável, a que se refere o art. 13º, al. b), da Convenção, não tendo a intensidade bastante, tanto mais que se assume que a menor beneficiará dos cuidados de que tem beneficiado em Guimarães e que se mostram adequados a mitigar fortemente os efeitos nocivos mencionados.
Por outro lado, considerou-se que a criança, por força da sua idade (à data 5 anos), não apresenta grau de maturidade que permita levar em conta a sua opinião sobre o assunto em apreço (art. 13.º, § 2.º da Convenção).
Por sua vez, em síntese, este tribunal, ao contrário da conclusão a que chegou o Sr. Juiz que proferiu a decisão recorrida, entendeu existir um risco grave de a criança, no seu regresso a França, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável, o que, conjugado com o facto de se encontrar totalmente integrada no seu novo ambiente em Portugal (artigos 12.º § 2 e 13.º, alínea b) da Convenção).
Considerou-se que a interpretação restritiva das excepções constantes da Convenção, efectuada na sentença recorrida, representa a negação, ou, pelo menos, a desconsideração da relevância do superior interesse da criança na interpretação da Convenção de Haia de 1980 sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças.
Em sede de revista, o STJ referiu que ‘…não nos impressiona a dependência da criança da sua cuidadora e os reflexos que isso tem do seu retrocesso, se afastada da mãe’, acrescentando que ‘risco grave não é equivalente a inexistência de risco. Como o conceito pressupõe pode haver risco. E as alterações da vida de uma criança que há quase um ano está em Portugal nas condições desta menor, sendo ordenado o seu regresso a França, sempre se farão sentir. E serão sentidas pela menor e pela sua mãe’.
Segundo um critério que se considerou ser de bom senso, apontou-se ditar o mesmo que ‘na idade da criança os avanços e retrocessos são habituais. A criança terá certamente sofrido um retrocesso ao ser deslocada para Portugal e afastada do pai – e com ajuda médica e especializada mostrou melhorias significativas no seu comportamento já depois de cá estar. Mas em nenhum momento alguém chamou a atenção para o sofrimento da criança pelo afastamento do pai – e a criança tem um historial de vivência conjunta com o pai de cerca de três anos, seguida de manutenção da sua presença na sua vida (já com maior turbulência, como denotam os processos que foram despoletados em França relativos ao exercício das responsabilidades parentais)’.
Perfilhou-se o entendimento, para o que agora nos interessa, que a excepção de risco grave é “prospectiva”, não se devendo limitar a uma análise das circunstâncias que existiam antes ou no momento da transferência ou retenção indevida. Em vez disso, requer um olhar para o futuro, ou seja, quais seriam as circunstâncias se a criança regressasse de imediato. A análise da excepção de um risco grave também deve incluir, se considerado necessário e apropriado, ponderação da disponibilidade de medidas de protecção adequadas e eficazes no Estado de residência habitual.
E perante essa mesma análise e perspectiva ‘prospectiva’ considerou-se não existir evidência de risco grave, tendo-se represtinado a decisão da 1.ª Instância.
Não conformada, AA, veio, nos termos do disposto no artigo 56º do Regulamento (EU) nº 1111/2019 de 25 de Junho, requerer a suspensão da decisão de regresso imediato da BB a França e entrega ao pai, alegando, em síntese, que a situação física e emocional da BB por força do impacto do conhecimento abrupto da situação, de ter de regressar a França e para o pai, sem o cuidado que a situação exigia, ficou abalada de uma forma grave, uma vez que o seu estado de saúde e cuidados recuou ao tempo da sua chegada a Portugal.
Ora, o artigo 13.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 33/83, de 11 de Maio, que aprova a Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, estabelece que o regresso da criança pode ser recusado se existir um risco grave de que a criança, no seu regresso, fique sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.
Fazendo um paralelismo com o art.º 56.º, do Regulamento (EU) nº 1111/2019 de 25de Junho, agora invocado para fundamentar o pedido de suspensão, constata-se que, no seu n.º 4, para casos excepcionais, o tribunal pode, a pedido da pessoa contra a qual é requerida a execução ou, se aplicável nos termos do direito nacional, da criança em causa ou de qualquer parte interessada agindo no superior interesse da criança, suspender o processo de execução caso a execução exponha a criança a um grave risco de danos físicos ou psicológicos devido a impedimentos temporários que tenham surgido depois de a decisão ter sido proferida ou em virtude de qualquer outra alteração significativa das circunstâncias.
Exige-se, como tal, um grave risco de danos físicos ou psicológicos para a criança devido a impedimentos temporários surgidos depois de a decisão ter sido proferida ou em virtude de qualquer outra alteração significativa das circunstâncias.
É certo que o imediato regresso da criança ao Estado de onde foi ilicitamente retirada pode ser excepcionalmente recusado quando a execução dessa medida seja susceptível de criar risco grave de ocorrência de uma situação de violação intolerável do interesse da criança e se revelar, em concreto, mais prejudicial para a criança do que a manutenção da situação ilícita criada, não podendo, nesse caso, a ponderação dos fins gerais visados pela Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças sobrepor-se ao superior interesse da criança, a avaliar em concreto (neste sentido veja-se o Ac. do STJ de 13.9.22, proferido no proc. 20/22.4T8VVc-A.E1.S1, publicado no site da dgsi).
Como pode ler-se na página oficial na Internet da Conferência de Haia sobre Direito Internacional Privado ( www.hcch.net ) um dos objectivos da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia a 25 de Outubro de 1980, é o de tutelar o superior interesse da criança, como aliás decorre desde logo da primeira consideração introdutória, segundo a qual os Estados signatários estão firmemente “convictos de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua custódia”.
O imediato regresso da criança ao seu ambiente natural de vida, tal como previsto na Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, é uma medida baseada na presunção de que, salvo circunstâncias excepcionais “a deslocação ou retenção ilícitas de uma criança através de fronteiras internacionais não é do interesse superior da criança e que o regresso da criança ao Estado da residência habitual promoverá os seus interesses, por reivindicar o direito da criança a ter contacto com ambos os pais, apoiando a continuidade na vida da criança”.
Tais considerandos encontram, de resto, tradução na previsão do artigo 20.º da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças e estão em perfeita consonância com instrumentos internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, cujo artigo 3.º n.º 1 estipula que “t[T]odas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.”.
O Professor Luís de Lima Pinheiro na sua comunicação “Deslocação e Retenção Internacional Ilícita de Crianças” proferida na Conferência “Direito da Família e Direito dos Menores: que direitos no século XXI?”, que teve lugar na Universidade Lusíada, em Outubro de 2014, publicado na revista da ordem dos advogados, esclarece a propósito que “o[O principal fundamento de oposição à decisão de regresso é o risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a danos de ordem física ou psicológica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável. Este preceito deve ser interpretado à luz da primazia atribuída ao superior interesse da criança nas decisões que lhe dizem respeito pelo artigo 3.° da Convenção sobre os Direitos da Criança.”.
Podemos encontrar alguns critérios para a determinação do superior interesse da criança nestes casos na jurisprudência do Tribunal Europeu relativa ao direito ao respeito da vida familiar consagrado pelo artigo 8.º da Convenção Europeia, em parte relativa a decisões de regresso proferidas com base na Convenção da Haia de 1980.
Segundo esta jurisprudência, a criança tem dois interesses principais: manter os seus laços com a sua família, a menos que se prove que esses laços são indesejáveis, e ver assegurado o seu desenvolvimento num ambiente sadio. Os interesses da criança, numa perspectiva de desenvolvimento pessoal, dependem de uma multiplicidade de circunstâncias individuais, em especial a sua idade e grau de maturidade, a presença ou ausência dos seus pais, o ambiente em que vive e as suas experiências pessoais.
A especial ponderação do superior interesse da criança tem sido também objecto de particular relevo em decisões dos Tribunais superiores como é o caso, entre outros, dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2021 na revista 6810/20.5T8ALM.L1.S1, de 15 de Fevereiro de 2022 na revista 687/16.2T8TMR-H.E1.S1, e de 12 Novembro 2024, no Processo nº 2695/23.8T8PTM.E1.S1, publicados na dgsi.
De onde resulta, em nosso entender, que a decisão sobre a existência de fundamento de recusa de determinação do regresso da criança ao Estado de onde foi retirada (as excepções a que alude o artigo 13.º da Convenção), sem deixar de atender, em abstracto, aos fins visados pela Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, não pode também deixar de avaliar se, no caso concreto, o imediato regresso ao país onde a criança tinha residência se enquadra no âmbito da efectiva tutela do seus superior e relevante interesse.
A esta luz, o regresso deve ser recusado caso essa separação seja claramente mais prejudicial à criança que a permanência com o progenitor que a deslocou ou reteve ilicitamente.
Mas, contrariamente ao entendimento adoptado pelo relatório explicativo e pelos tribunais de alguns Estados Contratantes, nem todos os fundamentos de oposição ao regresso da criança devem ser interpretados restritivamente.
Neste ponto, parece que se impõe uma interpretação conforme à Convenção sobre os Direitos da Criança, segundo a qual o critério decisivo deve ser sempre o superior interesse da criança em causa.
Há que ter em conta, em nossa opinião, as consequências – inevitavelmente perniciosas e irreversíveis – para o desenvolvimento da personalidade da criança resultantes da sua separação forçada por um período indeterminado da sua progenitora e da família materna mais próxima com quem, nos últimos três anos tem vivido.
No entanto, o seu peso relativo no contexto da ponderação da decisão foi afastado pelo facto de as excepções no âmbito da Convenção de Haia de 1980 deverem ser interpretadas em sentido restritivo de modo a salvaguardar os fins da Convenção, dando mais enfase aos fins de eficácia do regulamento de sancionar o carácter ilícito da deslocação (ou da retenção) da criança, evitando que a passagem do tempo venha consolidar as situações constituídas em violação dos direitos também do outro progenitor, do que, segundo a leitura que se faz, a uma outra interpretação não tão restritiva sobre as situações limitativas que integram o risco grave de a criança ficar sujeita, no seu regresso, a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer forma, numa situação intolerável.
Nada se pode sobrepor aos interesses da criança quando tal represente a sua negação ou pelo menos a sua desconsideração.
Impor o regresso de uma criança de seis anos a França, com espectro de autismo, e entregá-la aos exclusivos cuidados do pai num quadro em que se afigura – inequivocamente face aos factos apurados – que ela mantêm com a mãe e com os irmãos, um relacionamento de proximidade e afectividade mais intenso e propício a um mais salutar desenvolvimento da sua personalidade, afecta o seu superior interesse.
Não pode deixar de se considerar que a determinação do regresso da criança constitui uma situação – para ela certamente difícil de compreender – de injustificada privação por período indefinido e sem alternância, de contacto de proximidade e acompanhamento permanente pela sua progenitora de que sempre tem beneficiado nos seus seis anos de vida.
Ou seja, separá-la do seu meio e destruir as sua amarras ao que lhe é tão familiar e prazeroso é susceptível de representar um choque psicológico e afectivo intolerável para a criança.
Pensamos que sujeitar uma criança a uma privação de contactos directos com a mãe, com quem mantém um bom relacionamento efectivo, quando são desconhecidas as características do seu relacionamento com o pai, constitui, em modesta opinião, um grave risco para os interesses da criança e cria uma situação substancialmente intolerável.
Por isso, sempre nos inclinaríamos para acolher a decisão proferida por este tribunal, o que levaria a acolher o pedido formulado se ele não tivesse sido já alvo de apreciação e decisão por parte do Supremo Tribunal de Justiça em sentido contrário.
Na verdade, estamos, na apreciação e decisão sobre os pressupostos respeitantes ao pedido de suspensão da entrega, vinculados pela força do caso julgado, considerando o que foi alegado.
Ora, no que respeita ao conteúdo e alcance do caso julgado, estabelece o art. 619.º, n.º 1 do C. P. Civil que: «t[T]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida de mérito da causa, a decisão sobre a relação jurídica material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º ».
O caso julgado material, tal como decorre do aí disposto e 621º, também do NCPC, impõe que a decisão sobre a relação material controvertida, transitada em julgado, passe a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos termos julgados e limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.
Como refere Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, p. 305), “c[C]onsiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.”.
Na verdade, o caso julgado visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica, fundando-se a protecção a essa segurança jurídica, relativamente a actos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido – art.º 2º da Constituição da República Portuguesa –, destinando-se a evitar que no exercício da função jurisdicional, duplicando-se as decisões sobre idêntico objecto processual, se contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior.
No que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito, quer a doutrina, quer a jurisprudência têm distinguido duas vertentes:
a) – uma função negativa, reconduzida a excepção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em acção futura;
b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.
Este efeito positivo do caso julgado material assenta, pois, numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.
Ora, para fundamentar o pedido de suspensão invoca-se o impacto do conhecimento abrupto da situação, de ter de regressar a França e para o pai, fazendo recuar a BB a um estado de saúde e cuidados ao tempo da sua chegada a Portugal.
Ora, essa situação já tinha sido prevista pelo Tribunal Superior como passível de se verificar, sem que se tivesse julgado suficiente para negar o seu regresso a França e entrega ao pai.
Aliás, como se salientou, nenhum relevo se considerou ter os reflexos de afastamento da criança da sua progenitora, apesar da sua dependência da cuidadora, e consequentes retrocessos, se afastada da mãe, pese embora se tenha considerado que os mesmos seriam sentidos por ambas.
Julgou-se normal, na idade da criança, os avanços e retrocessos.
E, fazendo-se uma análise “prospectiva” do caso, concluiu-se não existir fundamento para a sua não entrega ao pai e regresso a França, face às medidas de protecção adequadas e eficazes no Estado de residência habitual.
Procedeu-se, assim, a uma análise futurista do que se iria passar, tal como é relatado pela requerente, dentro dos possíveis cenários previstos, com base nas informações colectadas e considerando diversos factores e suas interacções.
Não se pode, assim, dizer, que a execução exponha a criança a um grave risco de danos físicos ou psicológicos devido a impedimentos temporários que tenham surgido depois de a decisão ter sido proferida ou em virtude de qualquer outra alteração significativa das circunstâncias, dado que foram já alvo de um prognóstico que julgou irem verificar-se e não integrar esse risco ou uma qualquer circunstância superveniente.
Assim, a decisão proferida no apenso A. obriga a que se respeite o que foi aí decidido, por decisão já transitada em julgado, obstando a que agora se possa inverter o sentido dessa decisão.
Pelo exposto, por via do já decidido por decisão transitada em julgado, tem de se julgar improcedente o recurso interposto pela requerente, confirmando-se, consequentemente, o decidido.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se nesta 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela requerente, confirmando-se, consequentemente, o decidido.
Custas pela A.
Notifique.
*
Guimarães, 10 de Junho de 2025
Maria dos Anjos Melo
António Figueiredo de Almeida
Alcides Rodrigues