No caso em que a pessoa singular que tem a iniciativa processual de se submeter ao processo especial de revitalização não era, à data de tal iniciativa processual, comerciante ou empresário, falha um pressuposto de sujeição ao PER previsto na lei, o que justifica o indeferimento liminar.
(Sumário da Relatora)
3. A jurisprudência do Tribunal da Relação de Coimbra (Acórdão de 07.02.2017, Proc. n.º 2504/16.4T8ACB.C1) e do Tribunal da Relação de Guimarães (04.04.2017) confirma que o PER é admissível a pessoas singulares quando esteja em causa a revitalização de uma atividade económica estruturada e da titularidade do requerente, o que corresponde à situação do recorrente.
4. O próprio recorrente juntou aos autos, dentro do prazo legal, documento comprovativo da Autoridade Tributária que atesta a sua inscrição como empresário em nome individual, prova essa que reforça a sua legitimidade para recorrer ao PER, na qualidade de titular de uma atividade económica organizada.
5. A jurisprudência posterior a 2017, como o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22.02.2018 (Proc. n.º 6598/16.4T8STB-A.E1), consolidou a aceitação do PER para empresários em nome individual, reconhecendo que estes, enquanto pessoas singulares com atividade económica autónoma, se enquadram na definição legal de “empresa” prevista no artigo 5.º do CIRE.
6. Nos termos do artigo 17.º-A, n.º 1, do CIRE, o PER destina-se a devedores — singulares ou coletivos — que se encontrem em situação económica difícil ou de insolvência iminente, e que sejam suscetíveis de recuperação, sendo esta disposição aplicável ao recorrente, na medida em que é empresário em nome individual e invoca a necessidade de reorganização económica.
7. A interpretação sistemática e teleológica do CIRE conduz inevitavelmente à conclusão de que a exclusão liminar de pessoas singulares com substrato empresarial do PER carece de fundamento legal e viola o próprio objetivo da norma: permitir a recuperação de devedores com viabilidade económica.
8. Assim, ao terem sido ignorados tanto os elementos factuais constantes dos autos como a evolução doutrinal e jurisprudencial do ordenamento jurídico nacional, a decisão de indeferimento liminar mostra-se injustificada, impondo-se a sua revogação e o prosseguimento regular do processo de revitalização requerido pelo recorrente.
Termos em que com os mais de Direito doutamente supridos por V.ªs. Ex.ªs. deve ser determinada a procedência por provada do presente recurso, revogando a decisão ora em crise, o que se requer, impondo-se a devida ulterior tramitação processual do Processo Especial de Recuperação interposto, em estrita conformidade com a tão douta e costumada JUSTIÇA!»
I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).
II.2.
No caso a única questão que cumpre avaliar é o acerto da decisão recorrida que indeferiu liminarmente o requerimento de apresentação ao processo de revitalização.
II.3.
FACTOS
Os factos a considerar são os que constam da decisão recorrida e ainda a seguinte factualidade resultante dos autos:
1 – Na data de 29 de abril de 2025, o requerente apresentou-se ao processo de revitalização.
2 - Mediante requerimento datado de 13 de maio de 2025, o requerente pediu a junção aos autos de certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, alegando que a mesma «atesta que desde a data de 09.05.2023 o requerente figura inscrito como empresário em nome individual».
3 – Sobre o requerimento referido em 2) recaiu despacho datado de 19.05.2025, com o seguinte teor:
«Referência 8801640 (13.05.2025):
Tomei conhecimento.
Nada a determinar, tendo em conta o teor da decisão proferida em 12.05.2025».
II.4.
Apreciação do objeto do recurso
Está em causa no presente recurso a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que indeferiu liminarmente o requerimento em que o apelante se apresentou a processo especial de revitalização.
Insurge-se o apelante contra tal decisão, defendendo, em síntese, que: i. se encontra inscrito junto da Autoridade Tributária como empresário em nome individual, sendo admissível que um empresário em nome individual recorra ao PER para negociar com os seus credores, desde que exerça uma atividade económica organizada e seja suscetível de recuperação; ii. o requerimento no qual o recorrente veio prestar esclarecimentos em cumprimento do ordenado pelo tribunal a quo data de 08.05.2025 e no prazo subsequente de 10 dias, na data de 13.05.2025, o requerente juntou aos autos documento emitido pela Autoridade Tributária e Aduaneira que comprova que o recorrente figura inscrito como empresário em nome individual.
Vejamos.
O processo especial de revitalização (PER) é um processo judicial pré-insolvencial que foi introduzido no CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril. Trata-se de um processo especial (e urgente – artigo 17.º-A, n.º 3, do CIRE) que se destina a permitir ao devedor (empresa) que, comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização[1].
O processo especial de revitalização foi modificado pelo D/L n.º 26/2015, de 06.02 e, posteriormente, pelo D/L n.º 79/2017, de 30.06 e pela Lei n.º 9/2022, de 11.01. Para o que ora releva, as modificações introduzidas pelo D/L n.º 79/2017 vieram, justamente, pôr fim à divergência doutrinal e jurisprudencial sobre o âmbito subjetivo do PER, isto é, se o mesmo se aplicava a qualquer devedor, pessoa singular ou pessoa coletiva, independentemente da titularidade de uma empresa ou se apenas se aplicava a devedores empresários, ou seja, a pessoas singulares, a pessoas coletivas e patrimónios autónomos que exercessem uma atividade económica. Com efeito, logo no preâmbulo daquele diploma legal se refere que «apostou-se na credibilização do processo especial de revitalização enquanto instrumento de recuperação, reforçou-se a transparência e a credibilização e desenhou-se um PER dirigido às empresas, sem abandonar o formato para as pessoas singulares não titulares de empresa ou comerciantes» e da conjugação do disposto nos artigos 1.º, n.º 2 e 3 e 17.º-A, n.º 1, do CIRE , na redação que lhe foi dada pelo referido D/L n.º 79/2017, decorre que o processo especial de revitalização (PER) apenas se aplica a empresas ou a pessoas singulares que sejam empresários ou comerciantes.
A propósito escreve Maria do Rosário Epifânio[2] o seguinte: «Em consequência desta alteração legislativa, podemos agora afirmar “com segurança”, por um lado, pela positiva, que o PER se aplica a qualquer empresa (titulada por pessoa singular, por pessoa coletiva ou que integra um património autónomo – artigo 2.º, n.º 1) , e, por outro lado, pela negativa, que o PER não se aplica a quem não tiver o estatuto de empresa.»
“Empresa” para efeitos do CIRE é «toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica» (artigo 5.º).
E “comerciante” é a pessoa que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão – artigo 13.º do Código Comercial.
Ensina Menezes Cordeiro[3] que a prática profissional de atos de comércio pode ser classificada com recurso a quatro vetores. São eles: i. é uma prática reiterada ou habitual; ii. é uma prática lucrativa; iii. é uma prática juridicamente autónoma, na medida em que o comerciante atua em nome próprio e por sua conta; iv. é uma prática tendencialmente exclusiva: a lei comercial não exige a exclusividade mas estabelece regras que inculcam uma afetação total do património do comerciante ao seu comércio.
Donde, para que uma pessoa singular possa submeter-se a um processo especial de revitalização tem de ser titular de uma empresa, ou seja, de uma organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica, nos termos previstos no artigo 5.º do CIRE, ou ser comerciante.
No caso em apreço, o requerimento inicial de apresentação a processo especial de revitalização foi apresentado, em nome próprio, por uma pessoa singular, o ora apelante (…). Naquele requerimento foi alegado que (…) «é gestor de empresas e empresário com participação social em diversas empresas há vários anos, tendo constituído empresas várias e participado no capital social de algumas e nas outras sendo apenas administrador, tendo dado o seu aval pessoal a várias entidades bancárias ao longo dos anos». O requerente e ora apelante não alegou que fosse comerciante ou que fosse proprietário de uma empresa ou acionista de uma sociedade que detivesse a empresa (em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente) e na qual exercesse funções de administrador.
Posteriormente, quando notificado para exercer o contraditório relativamente à possibilidade de o seu requerimento inicial ser indeferido liminarmente pelo facto de o PER se destinar apenas a empresas e o requerente ser uma pessoa singular, veio aquele, em 08.05.2025, sustentar que o PER é aplicável a pessoas singulares e que ele é comerciante e «exerce atividade empresarial através de acionista em diversas empresas» e que «se encontra coletado como tal junto da Autoridade Tributária»; e, posteriormente, mediante requerimento que deu entrada nos autos na data de 12.05.2025, o requerente e ora apelante pretendeu juntar aos autos uma certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, datada de 9 de maio de 2025, que atesta que naquela data (09 de maio de 2025) consta registada junto daquela autoridade que o requerente iniciou a atividade de apanha de algas e de outros produtos do mar em 09.05.2023.
Ora, como resulta do exposto supra, para que o requerente possa ser considerado “empresário” não basta que o mesmo seja, porventura, “acionista em diversas empresas” e quanto à alegada qualidade de “comerciante” resulta inclusive do documento que o mesmo pretendeu juntar aos autos (na data de 12.05.2025) que o início da prática da apanha de algas e de outros produtos do mar ainda não tinha ocorrido quando o requerente/apelante teve a iniciativa processual de se apresentar ao PER.
É certo que a lei não prevê expressamente a hipótese de recusa de abertura do PER. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 17.º-C, n.º 4, do CIRE recebido o requerimento comunicando a manifestação de vontade de encetar negociações conducentes à revitalização da empresa por meio da aprovação de um plano de recuperação, o juiz nomeia de imediato, por despacho, o administrador judicial provisório. Mas a este propósito refere Catarina Serra[4] que «um tal automatismo seria incompatível com uma leitura (mais) atenta dessa e de outras normas da disciplina do PER, designadamente, as que estabelecem os requisitos formais (cfr. artigos 17.º-A, n.º 2 e 17.º-C, n.ºs 1, 2 e 3) e, acima de tudo, com a exigência dos dois pressupostos (a insolvência iminente ou a situação económica difícil e a suscetibilidade de recuperação de empresa) (cfr. artigo 17.º-A, n.º 1)». Assim, aquela professora identifica, pelo menos, três grupos de casos de recusa de abertura do PER, a saber: i. os casos em que não estejam plenamente preenchidos os requisitos formais para a abertura do processo (v.g. a falta de apresentação da declaração escrita a que alude o artigo 17.º-C, n.º 1); ii. os casos em que existe um facto impeditivo do direito de usar ou recorrer ao PER (v.g. a pendência, à data da iniciativa processual, de um processo de insolvência em que foi declarada a insolvência da empresa; o encerramento de PER anterior, seja por não aprovação de plano de recuperação ou por desistência das negociações, seja por não homologação do plano de recuperação, sempre que o encerramento se tenha verificado menos de dois anos antes da nova iniciativa processual da empresa); iii. casos em que existe desrespeito manifesto dos pressupostos de abertura do PER (a pré-insolvência e a suscetibilidade de recuperação).
No caso em que aquele que tem a iniciativa processual de se submeter ao processo especial de revitalização não era comerciante ou empresário na data em que se apresentou ao processo especial de revitalização, falha um pressuposto de sujeição ao PER previsto na lei, o que justifica, em nosso entender, o indeferimento liminar.
Por conseguinte, não nos merece censura a decisão proferida pelo julgador de primeira instância, improcedendo a apelação.
Sumário: (…)
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar a apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida.
As custas na presente instância são da responsabilidade do apelante porque vencido.
Notifique.
DN.
Évora, 25 de junho de 2025
Cristina Dá Mesquita
Eduarda Branquinho
Vítor Sequinho dos Santos
__________________________________________________
[1] Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30 de dezembro de 2011, assume-se que tal processo pretende ser «um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência atual».
[2] Manual de Direito da Insolvência, 8.ª Edição, Almedina, pág. 442.
[3] Direito Comercial, 4.ª Edição Revista, atualizada e aumentada, com a colaboração de António Barreto Menezes Cordeiro, Almedina, pág. 266.
[4] Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, págs. 379-380.