PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DO PRAZO EM CURSO
ACTO JUDICIAL
RELAÇÃO DE BENS
APRESENTAÇÃO
Sumário

I. Para interromper o prazo de prescrição, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 323.º, n.º 1, do Código Civil exige-se a prática de ato judicial que dê a conhecer ao devedor a intenção de o credor exercer a sua pretensão.
II. A apresentação da relação de bens no processo de inventário e respetiva notificação à autora exprime a intenção do Réu/Recorrido de exercer contra a recorrente o direito que na presente ação (declarativa de condenação, com fundamento em enriquecimento sem causa) aquele pretende fazer valer e, por isso, deve considerar-se interrompido o prazo de prescrição previsto no artigo 482.º do Código Civil.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Sumário: (…)

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Acordam na 1.ª secção do Tribunal da Relação de Évora,
1. Relatório:
(…) intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum contra (…), pedindo, além do mais, a condenação do Réu a reconhecer o seu direito de propriedade sobre a fração autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “E”, correspondente ao 1º andar esquerdo do prédio urbano, sito na Estrada Nacional (…), n.º 1, em Faro e a restitui-la à autora livre e desocupada.
O Réu contestou e deduziu reconvenção pedindo que se declare ser ele o único proprietário da referida fração e, para o caso de assim não se entender, peticiona a condenação da autora a pagar-lhe o valor de € 112.969,68 invocando que “despendeu o preço do imóvel que foi pago na íntegra à Autora, designadamente € 74.819,68€” e pagou € 38.150,00, pela remodelação da fração. Subsidiariamente, peticiona a condenação da autora no referido valor, a título de enriquecimento sem causa.
Na réplica, a autora defende-se por exceção invocando a prescrição do direito à restituição dos valores alegadamente pagos pelo réu, com fundamento em enriquecimento sem causa, por ter decorrido o prazo de três anos a que alude o artigo 482.º do Código Civil.
Em sede de audiência prévia, o Réu pronunciou-se quanto à exceção deduzida, sustentando que, apenas ao ter sido citado para os termos do processo de inventário, que correu termos no juízo de família e menores de Faro, em dezembro de 2021, é que teve a certeza de que o imóvel em causa não seria colocado em seu nome, factualidade que, em seu entender, possui a virtualidade de interromper o prazo em curso.
Foi, então, proferido despacho-saneador que, além do mais, julgou improcedente a exceção de prescrição.
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A autora/Reconvinda, por não se conformar com esta decisão, interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A) A prescrição extintiva visa não só a realização de objetivos de conveniência ou oportunidade, mas também assegurar a proteção dos direitos do sujeito passivo, face à inércia do titular do direito e a satisfação da necessidade social de segurança jurídica e de certeza dos direitos.
B) Determina o artigo 482.º do Código Civil que o direito à restituição (...) prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária, se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do enriquecimento.
C) A contagem deste prazo inicia-se a partir do momento em que o empobrecido tem conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, ou seja, desde que o empobrecido sabe que ocorreu um enriquecimento à sua custa e da pessoa que se encontra enriquecida.
D) Nos presentes autos, esse momento corresponde ao dia 03 de dezembro de 2020, data em que transitou em julgado a decisão que decretou o divórcio entre autora e o réu.
E) O relacionamento dos créditos, efetuado em 28 de fevereiro de 2022, em sede de inventário para partilha dos bens comuns subsequente a divórcio não interrompe o prazo prescricional previsto no artigo 482.º do Código Civil, uma vez que a notificação à autora da relação de bens apresentada não exprime, nem direta, nem indiretamente, a intenção de o recorrido exercer contra a recorrente o direito que na presente ação pretende fazer valer.
F) Isto porque o fundamento do inventário, a causa de pedir, ou seja, o facto concreto de onde emerge o pedido, não é aquele que o réu aqui invoca porque uma coisa é a partilha subsequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges, e outra é o recurso à figura do enriquecimento sem causa.
G) Estando-se nas duas ações perante diferentes institutos, a notificação à autora da relação de bens no âmbito do referido processo de inventário não tem a virtualidade de interromper o prazo prescricional do direito do réu/reconvinte à restituição por enriquecimento sem causa.
H) Não é defensável que só após ver negada a sua pretensão no processo de inventário é que o recorrido poderia agir judicialmente contra a recorrente com base no enriquecimento sem causa.
I) O carácter subsidiário do instituto do enriquecimento sem causa não impede que as partes articulem o recurso à figura com eventuais outras fontes de obrigações.
J) Ao proferir o despacho recorrido, o Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação do disposto nos artigos 323.º, 327.º, n.º 1, 473.º, 474.º e 482.º, todos do Código Civil.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Questões a decidir:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, atento o disposto artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º do Código de Processo Civil.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir:
i. se a apresentação da relação de bens no processo de inventário e respetiva notificação à Recorrente interrompe o prazo de prescrição do direito do Recorrido de agir judicialmente contra a Recorrente, com fundamento no enriquecimento sem causa, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 323.º do CC, por exprimir a intenção do Recorrido de exercer contra a Recorrente o direito que na presente ação pretende fazer valer.
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2. Fundamentação
2.1. Factos que este Tribunal considera relevantes para a decisão e que resultam dos documentos juntos aos autos, designadamente do Processo Principal a que este Tribunal tem acesso via citius:
1) A autora é proprietária da fração autónoma designada pela Letra E, correspondente ao 1.º andar esquerdo, destinada a habitação, sita na Estrada Nacional, n.º (…), em Faro, desde 2001.
2) Autora e Réu viveram maritalmente entre 1997 e 2009 e estiveram casados entre 2009 e 2020.
3) A decisão que decretou o divórcio entre autora e réu, transitou em julgado no dia 03 de dezembro de 2020.
4) No dia 28 de fevereiro de 2022, o Réu apresentou em juízo, na qualidade de cabeça de casal e no âmbito do processo de inventário para partilha dos bens comuns, a Relação de bens junta aos autos e que aqui se dá por reproduzida, relacionando sob a rúbrica “Créditos” 3 verbas alegadamente devidas pela autora ao Réu/Cabeça de casal.
5) A autora foi notificada da relação de bens e apresentou reclamação em 14 de março de 2022.
6) Em 07-11-2023, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora que confirmou a decisão proferida pela 1ª instância que excluiu da relação de bens os montantes agora pedidos pelo Réu.
7) A ação principal foi intentada no dia 05-02-2024.
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2.2. Da prescrição do eventual direito do Réu à restituição do valor de € 112.969,68 com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa
Nos presentes autos, o réu deduziu reconvenção, subsidiariamente, com vista a obter a condenação da autora no pagamento da quantia de € 112.969,68, correspondente ao que, alegadamente, foi por si despendido com a aquisição da fração autónoma reivindicada e com as obras de remodelação da referida fração.
O réu alega que terá pago tais despesas no decurso da união de facto (de 12 de abril de 1997 a 31 de outubro de 2009) e do casamento (de 31 de outubro de 2009 e 03 de dezembro de 2020) com a autora e fundamentou estes pedidos, subsidiariamente, no instituto do enriquecimento sem causa.
Em sede de despacho saneador, o Tribunal julgou improcedente a exceção de prescrição deste eventual direito do Réu (à restituição do referido valor com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa), por considerar que o prazo de prescrição iniciou-se em 03-12-2020, interrompeu-se com a apresentação da relação de bens nos autos de inventário, no âmbito do qual foram relacionadas as verbas em causa “porquanto através daquele ato, o Réu exprimiu a sua intenção de exercer o correspectivo direito (artigo 323.º do referido diploma), ficando a aguardar a aceitação da referida relação de bens pela parte contrária e consequente inclusão na operação e partilha subsequente ao divórcio”; a interrupção inutiliza todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo”, pelo que na data em que a autora foi notificada para contestar o pedido reconvencional, ainda não havia transcorrido o prazo em causa”.
Dispõe o artigo 482.º do Código Civil que o direito à restituição (...) prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária, se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do enriquecimento.
As partes não dissentem quanto ao facto de estar em causa este prazo de prescrição de 3 anos, nem relativamente à data do início do prazo de prescrição: 03 de dezembro de 2022. Com efeito, nos termos do artigo 318.º, alínea a), do Código Civil a prescrição não corre entre os cônjuges, ainda que separados judicialmente de pessoas e bens.
Defende, porém, a autora que o prazo de 3 anos iniciado em 03-12-2020 terminou em 03-12-2023, pelo que quando a presente ação foi intentada, em 05-02-2024, já tinha decorrido o prazo de prescrição.
A questão que assim se coloca é a de saber se a apresentação da relação de bens no processo de inventário e respetiva notificação à autora exprime a intenção do recorrido de exercer contra o recorrente o direito que na presente ação aquele pretende fazer valer e, por isso, deve considerar-se interrompido o prazo de prescrição iniciado em 4-12-2020, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 323.º do Código Civil.
Dispõe este preceito que a prescrição se interrompe pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, ou seja, o que releva é a prática de ato judicial que dê a conhecer ao devedor a intenção do credor de exercer a sua pretensão.
Olhando à relação de bens verifica-se que o Réu relacionou na mesma, sob o título “Créditos”, como verba n.º 1, verba n.º 3 e verba n.º 4, os valores que aqui peticiona e que a Ré foi notificada desta relação de bens. A autora não pôs em causa estes factos, mas alega que a mencionada notificação da relação de bens não exprime a referida intenção de exercer o direito que na presente ação o recorrido pretende fazer valer porque o fundamento do inventário é a partilha subsequente ao divórcio, e neste caso é o enriquecimento sem causa; Conclui a recorrente que estando em causa dois institutos diferentes, não se pode concluir que o réu exprimiu a intenção de exercer o direito que pretende exercer na presente ação.
Com todo o respeito por opinião diversa, não se pode concordar com esta posição.
A prescrição constitui, enquanto facto extintivo do direito, uma exceção perentória que sanciona, de forma direta, os credores relapsos no exercício dos seus direitos, e que conduz à absolvição do pedido (cfr. artigos 571.º, n.º 2 e 576.º do Código de Processo Civil).
Assim, o credor que durante mais três anos não mostra qualquer interesse em cobrar o seu crédito sofre as consequências da sua negligência e perde o direito de atuar judicialmente contra o devedor. Ora, não foi o que aconteceu in casu. Com efeito, o Réu que considera que a requerida lhe deve determinado montante, correspondente ao valor que investiu no prédio daquela e que pretende que a Autora lhe pague esse valor, tentou cobrar esse valor no âmbito do processo de inventário, dando assim a conhecer à autora, com a apresentação da Relação de Bens, a sua vontade de cobrar esse crédito.
Como não o conseguiu, por o Tribunal ter entendido não ser o processo de inventário a sede própria para discutir se o referido valor era ou não devido, pretende através da presente ação cobrar esse valor ainda que agora concretize que o fundamento é o enriquecimento sem causa. Do exposto, pode-se concluir que o réu deu a conhecer à devedora a vontade de se ressarcir do valor que entende ser credor, pelo que não foi relapso. Saber se o Réu tem ou não direito a receber o referido valor é outra questão, de mérito e que envolve a apreciação do crédito.
Conclui-se, assim, que a notificação da relação de bens apresentada no processo de inventário, onde além do mais o cabeça de casal, ora recorrido, relacionou os créditos que pretende que lhe sejam pagos, nesta ação, é apta a exprimir a intenção do Réu de agir judicialmente contra a recorrente para ser pago do referido valor e, por isso, deve considerar-se interrompida a prescrição, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 323.º do Código Civil.
Nos termos do artigo 326.º e 327.º, n.º 1, do CC, a interrupção inutiliza todo o tempo decorrido, não começando a correr novo prazo enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo.
Tendo a decisão sobre a relação de bens que excluiu as verbas n.º 1 a 7 da relação de bens sido objeto de recurso e tendo o acórdão sido proferido no dia 07-11-2023, é manifesto que na data em que foi intentada a presente ação, 05-02-2024, ainda não tinha decorrido o novo prazo de prescrição de 3 anos, a que alude o artigo 498.º do Código Civil.
Por todo o exposto, não existe qualquer violação dos preceitos invocados pela Recorrente, impondo-se a manutenção da decisão recorrida.
Vencida a autora/recorrente/apelante, é responsável pelo pagamento das custas do presente recurso (artigos 527.º, n.º 1 e 2 e 529.º, ambos do CPC).
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3. Decisão:
Pelo exposto, decide-se julgar a apelação totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Évora, 25 de junho de 2025
Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)
Maria Adelaide Domingos (1ª Adjunta)
Francisco Xavier (2º Adjunto)