TÍTULO EXECUTIVO
LETRA DE CÂMBIO
ASSINATURA
ACEITE
Sumário

I. Tendo o embargado sido demandado na ação executiva na qualidade de sacado e aceitante das letras dadas à execução, mas tendo impugnado a genuinidade da assinatura aposta nos dois títulos, é aplicável quanto dispõe o n.º 2 do artigo 374.º do Código Civil, aplicável aos documentos particulares, como é o caso.
II. Face ao preceituado na aludida disposição, cabia à exequente / embargada fazer prova da genuinidade da assinatura aposta no local destinado ao aceite.
III. Não tendo a exequente logrado fazer prova de que o embargante subscreveu as letras exequendas, por elas não se encontra vinculado, donde, não valerem as mesmas, quanto a ele, como título executivo.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 2443/11.5YYLSB-D.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja
Juízo Central Cível e Criminal de Beja - Juiz 3

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Consigno que procedi à abertura do material recebido do LPC da Polícia Judiciária.
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I. Relatório
Por apenso aos autos de ação executiva que o (…)Banco, SA move a (…) e outra, para cobrança coerciva da quantia de € 94.343,74 (noventa e quatro mil, trezentos e quarenta e três euros e setenta e quatro cêntimos), correspondendo € 85.000,00 a dívida de capital, reclamando ainda os juros vincendos até integral pagamento, veio aquele executado deduzir os presentes embargos, neles tendo invocado a falta de título executivo, por não ser sua a assinatura constante das duas letras dadas à execução, no local destinado ao aceite. Mais alegou que ambos os títulos se encontram prescritos; a letra no valor de € 30.000,00, por não conter a data da emissão, não se constituiu como válido título de crédito, e a exequente atua em abuso de direito, uma vez que o Banco não podia ignorar a falsidade das assinaturas atribuídas ao embargante.
Concluiu pela procedência dos embargos e consequente extinção da execução.

A exequente/embargada ofereceu contestação, nela tendo impugnado a factualidade alegada pelo embargante, cuja assinatura tem por genuína, uma vez que usa conferir as assinaturas dos subscritores dos títulos emitidos aquando da celebração dos contratos, as quais são apostas na presença de um funcionário, tendo-se ainda pronunciado pela improcedência da exceção da prescrição.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, prosseguindo os autos com delimitação o objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Foi entretanto habilitada para com ela prosseguir a causa seus termos subsequentes no lugar da exequente a cessionária (…) – STC, SA, com sede na Av. (…), n.º 110, 5º, Lisboa, para a qual foi transmitido o crédito exequendo (sentença de habilitação proferida a 13/5/2024, Ref.ª 34419222).

Realizou-se audiência final, em cujo termo foi proferida sentença que decretou a procedência dos embargos, determinando em consequência a extinção da execução quanto ao embargante.

Inconformada, apresentou-se a exequente a recorrer e, tendo apresentado a pertinente alegação, formulou a final as seguintes conclusões:
A. Vem a aqui Recorrente interpor o presente recurso da Sentença que Julga os embargos à execução procedentes, por não se conformar com a mesma.
B. Salvo o devido respeito pelo decidido, que é muito, a aqui Apelante permite-se discordar em absoluto desta decisão do Tribunal a quo, que não foi proferida conforme aos ditames da lei e do direito, pois entende que não terá sido apreciada nos termos que eram exigidos, no que tange à aplicação do direito.
C. Na sentença recorrida, entende o Digníssimo Tribunal a quo que relativamente à genuinidade da assinatura imputada ao Embargante, ora Recorrido “nenhuma prova de sentido favorável existe e, ao invés, existem até indícios de sinal contrário”.
D. Porquanto, entende que “olhando-se, como um leigo que o é o tribunal, para as assinaturas constantes nos títulos de crédito e as constantes nos documentos juntos aos embargos, pode-se concluir [permita-se o pleonasmo: “a olho nu”] pela dissemelhança entre umas e outras”.
E. Ora, salvo o devido respeito que é muito, não cremos que assim seja
F. Ora, facilmente se verifica que, existe, portanto, aqui um juízo, por parte do Tribunal a quo, de mera possibilidade, sem qualquer grau de certeza.
G. Assim, desde já se diga que a averiguação da genuinidade das assinaturas constitui uma atividade que importa a perceção de factos que exigem conhecimentos especiais, na área da análise da escrita manual de documentos, de que o julgador não dispõe, como porquanto, aliás o próprio reconhece ser “um leigo” pelo que cumpre, em primeira linha, apreciar o resultado do exame pericial efetuado, expresso no relatório apresentado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária.
H. Todavia, se os peritos – dotados de uma cultura especial e de experiência técnica e usando de uma metodologia de valor científico reconhecido – não conseguiram sequer realizar a perícia e chegar a uma conclusão sobre a genuinidade da assinatura impugnada ao seu autor aparente, então o juiz, não deve extrair a sua conclusão após uma apreciação “a olho nu” do titulo de crédito, deve antes ser exigente na apreciação do titulo executivo e da restante prova, sob pena, de, usando de uma prova particular e consabidamente falível, estabelecer a realidade de um facto, que pessoas dotadas de conhecimentos especiais, em absoluto estranhas às partes e indiferentes aos interesses de que são portadoras, não conseguiram obter.
I. O que, em qualquer caso, não se julga aceitável, numa prudente avaliação da prova, é que o juiz se substitua aos peritos e se permita a formulação de um juízo de valor a que esses peritos não conseguiram chegar.
J. Razão: é que a observação e o tratamento do facto discutido transcendem, evidentemente, o limite da cultura e da experiência comum, demandando conhecimentos especiais.
K. E isto é assim, dado que o que, em última extremidade, justifica a realização da perícia é, justamente, a insuficiência dos conhecimentos do magistrado.
L. Feitas todas as contas, há motivos para concluir que o Tribunal a quo, ao decidir que a assinatura não é do Embargante, incorreu – por violação das regras da ciência, da lógica ou da experiência – num error in iudicando, por erro na avaliação das provas.
M. Assim, é forçoso concluir que andou mal o Tribunal a quo ao julgar, como facto não provado “Que o Embargante haja assinado, como sacado, as letras supra aludidas.”
Ora quanto à ausência de morada indicada na letra cumpre dizer o seguinte,
N. Ora recorda a ora Recorrente, que a Conferência de Genebra não sentiu necessidade de exigir como elemento essencial da letra mais que a sua assinatura.
O. Sendo apenas essencial que, com a assinatura, se possa individualizar a pessoa do sacador e do sacado sem possibilidade de equívocos.
P. A existência, validade e eficácia da letra dependem de certos requisitos, mas nenhum deles é a morada.
Q. Todavia, para se eximir das responsabilidades assumidas, o Recorrido traz à liça suspeitas infundadas sobre a autoria da assinatura, que foi por si aposta na letra de câmbio que serve de título à execução.
Todavia, não deveria o Tribunal a quo acompanhar estas meras suspeitas, mas sim decidir de acordo com critérios apropriados e oportunos.
R. Pelo que, andou mal o Tribunal a quo ao considerar que a ausência de morada do ora Recorrido é um elemento que dá credibilidade à versão do Embargante.
Quanto à falta de título executivo,
S. Considera a ora Recorrente que a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.
T. A letra de câmbio, como é sabido, traduz-se numa ordem de pagamento dirigida pelo sacador ao sacado.
U. Através dela o sacador ordena ao sacado que lhe pague a ele ou a um terceiro (tomador) determinada quantia.
V. Caso o sacado aceite a letra, assume a obrigação de a pagar na data do vencimento.
W. Ora, entende o ora Recorrente, que o ora Recorrido, deu o seu aceite,
X. E que a argumentação do Tribunal a quo, de falta de genuinidade da assinatura, resulta de uma apreciação perfunctória, como aliás, resulta da própria sentença, porquanto refere o próprio Tribunal ser um leigo, relativamente à questão da avaliação das assinaturas.
Y. Quando na verdade deveria ter-se socorrido de uma prova qualificada, de cariz técnico e científico satisfazendo exigências de transparência, para boa compreensão da decisão pelas partes.
Z. Assim, é forçoso concluir que andou mal o Tribunal a quo ao julgar que existe falta de título executivo.
AA. Pelo que, atento ao supra exposto, deve ser revogada a decisão recorrida, sendo substituída em conformidade com o aqui exposto.
Conclui pela procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que determine o prosseguimento da execução.
Contra alegou o embargante, sustentando naturalmente a manutenção do decidido.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, constitui questão a decidir determinar se o tribunal errou ao dar como não provado que o embargante apôs a sua assinatura nas letras dadas à execução, antes devendo ser dado como assente que, por via do aceite das mesmas letras, se constituiu como obrigado cambiário.
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Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto
Apesar de na conclusão 2.ª (al. B) a apelante afirmar que discorda da decisão por não ter sido proferida “conforme aos ditames da lei e do direito”, não tendo sido apreciada nos termos que eram exigidos “no que tange à aplicação do direito”, vem depois impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, alegando que “há motivos para concluir que o Tribunal a quo, ao decidir que a assinatura não é do Embargante, incorreu – por violação das regras da ciência, da lógica ou da experiência – num error in iudicando, por erro na avaliação das provas”, tendo errado “ao julgar, como facto não provado “Que o Embargante haja assinado, como sacado, as letras supra aludidas” (conclusões L) e M).
Antes de mais, faz-se notar que imputando a recorrente à decisão recorrida erro de julgamento no que respeita ao facto dado como não provado sob a alínea a), não ousa indicar que pretende que esse mesmo facto seja dado como provado. E a verdade é que não há como sustentar que foi produzida prova no sentido da demonstração de que a assinatura constante das letras exequendas, no local destinado ao aceite, é do punho do embargante.
Vejamos: tendo sido determinada perícia à letra, não se mostrou viável a sua realização pelos motivos indicados pelas Sr.ªs peritas do Laboratório da Polícia Científica no ofício de 12 de abril, com os esclarecimentos prestados a 15 de Maio de 2024 – por apresentar a assinatura em causa um traçado ilegível, de reduzida extensão, com reduzidos elementos suscetíveis de comparação e com escassa quantidade de pormenores identificativos, não reunindo as condições técnicas necessárias para uma análise pericial comparativa de escrita manual.
Deste modo, e na ausência de perícia, não se alcança a alusão feita pela apelante à necessidade de “apreciar o resultado do exame pericial efetuado, expresso no relatório apresentado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária”, pois não existe nenhum relatório cujo conteúdo caiba analisar. E a verdade é que nenhuma prova de outra natureza foi produzida, tendo ambas as partes prescindido da inquirição das testemunhas que antes haviam indicado. Constatada a ausência de outros elementos probatórios, deteve-se o Sr. Juiz muito naturalmente nos títulos de crédito junto aos autos, acabando por concluir, dada a absoluta ausência de prova, que nada permitia afirmar a genuinidade das assinaturas impugnadas.
A recorrente alega que se os Srs. Peritos declararam não ter condições para realizar a perícia, não deveria o Sr. Juiz “extrair a sua conclusão após uma apreciação “a olho nu” do título de crédito”. Sucede, porém, que o Sr. Juiz não extraiu nenhuma conclusão da análise a olho nu das letras exequendas, antes consignou que, não tendo sido produzida prova – incumbência da exequente/embargada, conforme claramente explicou – no sentido de ser o embargante o autor das assinaturas apostas nas letras exequendas no local destinado ao aceite, o mais que podia dizer, da comparação entre tais assinaturas e aquelas que constam dos documentos oficiais, é que apresentam dissemelhanças o que, para além de não lhe estar vedado (pois se até a prova pericial é livremente apreciada pelo juiz – cfr. artigos 389.º do CC e 489.º do CPC), é uma evidência. Não deixou, todavia, de ressalvar que “tal desconformidade, em si, pouco indica, bem se sabendo que duas assinaturas nunca são iguais, relevantes são os seus traços caraterísticos tecnicamente medidos”, medição que, no entanto, não se revelou possível, assim tendo deixado claro que tal análise comparativa não foi de modo algum decisiva, mas antes a ausência de prova no sentido positivo da atribuição ao embargante das assinaturas impugnadas.
Quanto aos indícios que apontou no sentido da maior credibilidade da versão do embargante, não podemos deixar de secundar o acerto das considerações expendidas na sentença recorrida. Conforme o Sr. Juiz consignou, se a inexistência da morada indicada nos títulos é um dado inusitado, não retira credibilidade à versão do embargante; já a circunstância de ter demonstrado que tinha residência habitual em Angola em altura próxima à emissão das letras, não sendo impeditiva da sua subscrição -poderia ter-se deslocado a Portugal para o efeito- não deixa de conferir verosimilhança à narrativa que trouxe a juízo, tanto mais que nem ao de leve foi feita prova no sentido de que uma tal deslocação ocorreu.
Finalmente, tendo a embargada argumentado que, por procedimento, as assinaturas dos intervenientes são sempre conferidas e apostas na presença de um funcionário da instituição bancária, com a concomitante solicitação da apresentação de documento de identificação a fim de garantir que tais documentos são subscritos pela pessoa neles identificada, a verdade é que renunciou a produzir prova no sentido da confirmação do alegado, sendo certo que seria ainda necessário demonstrar que tal protocolo tinha sido seguido no que respeita às letras dadas à execução, prova que não foi feita, conforme se encontra evidenciado na sentença.
Não tem assim razão a apelante na impugnação que deduz à decisão proferida sobre a matéria de facto, que se mantém nos seus precisos termos.
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II. Fundamentação
De facto
Estabilizada, é a seguinte a matéria de facto a considerar, tal como nos chega da sentença recorrida:
1. A Embargada é portadora de uma letra, com o n.º (…), que constitui título executivo nos autos principais, preenchida pela importância de € 55.000,00, com data de emissão em 30/11/2009 e de vencimento em 30/01/2010, na qual figura como sacadora a Executada (…) Compra e Venda de Automóveis, Lda., junta ao requerimento executivo como doc. n.º 1 e aqui dada por reproduzida.
2. A Embargada é portadora de uma letra, com o n.º (…), que constitui título executivo nos autos principais, preenchida pela importância de € 30.000,00, com data de vencimento em 15/03/2010, na qual figura como sacador a Executada (…), Compra e Venda de Automóveis, Lda., junta ao requerimento executivo como doc. n.º 2 e aqui dada por reproduzida.
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Não se provou que:
a) O Embargante haja assinado, como sacado (e aceitante), as letras supra aludidas.
b) A Embargada tivesse conhecimento da efetiva morada do Embargante aquando da instauração da execução.
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De Direito:
Da (in)existência do aval
Sendo portadora de duas letras de câmbio por via de endosso, a ora apelante veio a juízo para obter a cobrança coerciva das quantias apostas nos títulos, tendo demandado o aqui embargante em alegada qualidade de sacado e aceitante.
Como é sabido, a emissão de uma letra dá origem a uma específica relação jurídica, autónoma e distinta de outra previamente existente: com a assinatura da letra, seja qual for a qualidade em que o subscritor intervenha, nasce uma nova obrigação, por este assumida, tendo como contraponto o reconhecimento ao sujeito ativo da relação cambiária de um específico direito de crédito cambiário[1] – as letras (e as livranças) são, pois, títulos constitutivos.
O aceite, recorda-se, é o negócio jurídico unilateral não recetício dirigido à constituição da obrigação cambiária principal, firmado pela subscrição do título no local destinado ao aceite e cujo conteúdo se esgota na assunção da respetiva obrigação, sendo o aceitante o obrigado principal (o sacado, conforme é sabido, não é obrigado cambiário, assumindo tal posição por via do aceite – cfr. artigo 28.º, § 1.º, LULL).
O embargado e ora apelado foi demandado, conforme referido, na posição de sacado e aceitante, tendo o título sido endossado ao banco pela sociedade sacadora, que terá procedido ao respetivo desconto. Todavia, tendo aquele impugnado a genuinidade da assinatura aposta nos dois títulos, é aplicável quanto dispõe o n.º 2 do artigo 374.º do Código Civil, aplicável aos documentos particulares, como é o caso: “se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade”.
Face ao assim preceituado, cabia à ora apelante fazer prova da genuinidade da assinatura aposta no local destinado ao aceite, ónus de que não logrou desincumbir-se. Na ausência de prova de que subscreveu o título, o embargante por ele não se encontra vinculado, não sendo obrigado cambiário, donde, as letras dadas à execução não valerem, quanto a ele, como título executivo. São assim destituídas de relevância as demais considerações tecidas pela apelante a propósito da vinculação por via do aceite, cuja existência não logrou provar. Com a consequência dos embargos deverem ser julgados procedentes, tal como se decidiu na decisão recorrida e aqui se confirma.
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Sumário: (…)

III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
As custas recaem sobre a apelante, que decaiu (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.).
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Évora, 25 de Junho de 2025
Maria Domingas Simões
Mário João Canelas Brás
Ana Margarida Pinheiro Leite



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[1] Carolina Cunha, “Letras e Livranças Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime”, págs. 152 e seguintes.