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CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PERDA DE INTERESSE
INCUMPRIMENTO DE CONTRATO PROMESSA
Sumário
I. Tendo o autor, promitente comprador, emitido prematura - antes do vencimento da obrigação - declaração de perda de interesse, em ordem a extinguir o contrato promessa celebrado, e não tendo procedido em momento algum à interpelação do devedor, antes tendo instaurado a presente ação escassos dois meses depois do termo do prazo contratualmente estabelecido, imputando aos réus a alegada perda de interesse, visando a condenação destes na entrega de quantia correspondente ao dobro do sinal, revelou de forma séria, inequívoca e irreversível a sua intenção de não cumprir, incorrendo em incumprimento definitivo. II. O incumprimento ao promitente comprador imputável confere ao reconvinte, promitente fiel, o direito à indemnização pretendida, ainda que não tenha pedido a resolução do contrato, funcionando aqui o regime do sinal conforme prevê o n.º 2 do artigo 442.º, com a consequente atribuição do valor recebido a este título. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
201/21.8T8CBA.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Beja Juízo Central Cível e Criminal de Beja - Juiz 4
I. Relatório
(…), divorciado, com domicílio na Rua (…), n.º 60, rés-do-chão, direito, no (…), instaurou em 30 de Novembro de 2021 contra (…), residente na Estrada Municipal – Horta (…), Vidigueira; (…), com domicílio na Rua da (…), n.º 28, (…); (…), com domicílio na Rue du (…), (…), França, e (…), com domicílio na Estrada Municipal – Horta (…), Vidigueira, este representado pelo acompanhante nomeado, seu pai e aqui 1º R. (…), a presente ação declarativa, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação dos RR “Na devolução do sinal em dobro, na quantia de € 50.000,00”, acrescida de juros desde a data da citação até integral pagamento, com fundamento no incumprimento pelos demandados do contrato promessa celebrado com o 1º R. em 11 de Junho de 2021, nos termos do qual este prometeu vender ao A. que, por seu turno, prometeu comprar, um prédio que integrava a herança indivisa aberta por óbito de (…), da qual são herdeiros todos os Réus.
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O Réu (…), por si e em representação de seu filho (…), e a também Ré (…) contestaram nos termos da peça junta de fls. 33 a 38 dos autos, na qual alegaram que o 1º R continua a manter interesse na celebração do contrato definitivo e a garantir o interesse dos demais herdeiros na celebração do mesmo mas, na medida em que apenas o primeiro se obrigou, sempre os restantes demandados teriam de ser absolvidos dos pedidos, por não se terem vinculado. Impugnaram o alegado pelo autor na petição uma vez que, disseram, foi este informado da necessidade de obter autorização judicial para a celebração do contrato definitivo, atendendo à situação de incapacidade do réu (…), sem que tenha colocado qualquer objeção.
Mais alegaram que o Autor, por razões que desconhecem, começou a colocar obstáculos ao negócio em Setembro de 2021, tendo então comunicado que já não tinha interesse na sua realização, propondo a restituição do sinal com um acréscimo de 30%, o que o 1º R. recusou, não se verificando incumprimento a este imputável.
Imputando ao autor o incumprimento definitivo do contrato, por dele ter desistido antes de se ter verificado mora, o que configura uma declaração antecipada de não cumprimento, deduziu o 1º R. contra aquele pedido reconvencional, pedindo o perdimento a seu favor do sinal prestado.
Apresentou contestação autónoma a também Ré (…), peça na qual invocou desconhecer a celebração, por seu pai, do contrato promessa aqui em causa, o qual sustentou ser ineficaz em relação à contestante, não lhe sendo oponível nenhuma obrigação decorrente do mesmo. Mais alegou não terem sido pelo autor alegados factos suscetíveis de permitirem a imputação ao 1º R. do incumprimento definitivo do contrato, com a consequente improcedência da ação, devendo a contestante ser, em qualquer caso, absolvida do pedido.
O A. replicou, invocando a exceção dilatória da falta de legitimidade dos RR reconvintes por preterição de litisconsórcio necessário passivo, uma vez que desacompanhados da demandada (…), tendo-se estes pronunciado pela improcedência da exceção.
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Tendo o autor falecido na pendência da ação, foram julgadas habilitadas, para com elas prosseguir a causa os termos subsequentes, as suas filhas e únicas herdeiras (…) e (…).
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Teve lugar audiência prévia e nela, admitida a reconvenção, foi de seguida proferido despacho a julgar improcedente a arguida exceção dilatória da ilegitimidade ativa do reconvinte, tendo as partes sido notificadas para alegar de facto e de direito (cfr. ata de 13/5/2024 – Ref.ª 34429771].
Foi depois proferida sentença que, na improcedência da ação e da reconvenção, absolveu as AA habilitadas e os RR dos pedidos reciprocamente formulados.
Inconformado, apresentou-se a recorrer o R. (…) e, tendo desenvolvido na alegação os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
I. O autor perdeu o interesse no negócio sem causa justificativa e por culpa exclusiva.
II. O Autor, ao comunicar ao Réu, em Setembro de 2021, que não pretendia cumprir o contrato prometido, declarou antecipada e inequivocamente a intenção definitiva de não cumprimento da obrigação a que se tinha vinculado.
III. Tal declaração só pode configurar uma declaração de incumprimento definitivo. Pois, conforme facto provado na sentença, “EmSetembrode2021oAutorcomunicouao1ºRéujá não ter interesse na realização do contrato definitivo.”
IV. A declaração do autor de “jánãoterinteressenarealizaçãodocontratodefinitivo” não admite outra interpretação que não seja a de que não pretende mais, definitiva e inequivocamente, realizar o contrato prometido.
V. Essa intenção do autor declarada ao réu de não mais pretender o negócio, foi, ainda, reforçada pela interposição da presente ação, pela causa de pedir e pedido formulados.
VI. Essa declaração do Autor, de forma definitiva, clara e peremptória de já não ter interesse em celebrar o contrato definitivo, configura uma resolução contratual, sem necessidade de interpelação admonitória, dando lugar ao cumprimento do disposto no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.
VII. O contrato promessa dos autos cessou por resolução infundada do autor, já não estando em vigor.
VIII. Perante o incumprimento definitivo do autor, tem o réu direito a fazer seu o valor entregue pelo autor a título de sinal.
Conclui pela revogação da decisão recorrida.
Não foram oferecidas contra alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, a única questão suscitada vincula a decidir se deve ser declarado o perdimento do sinal a favor do réu reconvinte por recusa antecipada do cumprimento por banda do promitente comprador, com valor de incumprimento definitivo.
* II. Fundamentação De facto
É a seguinte a factualidade relevante que, sem impugnação, foi julgada assente na sentença recorrida:
1. O 1.º Réu, arrogando-se a qualidade de cabeça de casal na herança aberta por óbito de (…), e o Autor, outorgaram, em 11 de junho de 2021, documento particular denominado «contrato promessa de compra e venda de imóvel», junto à petição como documento n.º 2, aqui dado por integralmente reproduzido, no qual consta, entre o mais, o seguinte: «Considerando que: A) Os Primeiros Contratantes são donos e legítimos proprietários do prédio em regime de propriedade total, sem andares, destinado a habitação, sito em (…), Vidigueira, 7960-211 Vidigueira, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vidigueira sob o n.º (…), da freguesia de Vidigueira, inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo (…)» «Cláusula Primeira (Objeto) Pelo presente contrato os Primeiros Contratantes prometem e obrigam-se a vender ao Segundo Contratante, livre de quaisquer ónus ou encargos, responsabilidades e obrigações de qualquer natureza, devoluto de pessoas e bens, no estado de conservação em que se encontra, e o Segundo Contratante promete e obriga-se a comprar aos Primeiros Contratantes o imóvel, melhor identificado no Considerando A) do presente contrato promessa.» «Cláusula Segunda (Preço e condições de pagamento) O preço de venda do Imóvel ora prometido vender, é acordado entre os Contratantes, no montante de € 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros), que será pago nos seguintes termos: a) Como sinal e princípio de pagamento, o Segundo Contratante paga aos Primeiros Contratantes, no ato da assinatura do presente contrato-promessa, a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), através de cheque bancário n.º (…), da conta do banco Caixa Geral de Depósitos, emitido à ordem de (…).» «Cláusula Terceira (Prazo) 1. Acordam todos os Contratantes que a outorga da escritura pública ou documento particular autenticado, deverá realizar-se no prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias, a contar da data da assinatura do presente contrato. 2. A marcação do dia, hora e local para a realização da escritura pública ou documento particular autenticado fica a cargo do Segundo Contratante que, deverá avisar os Primeiros Contratantes, com a antecedência mínima de 10 (dez) dias, face ao termo do prazo acima indicado, por carta registada com aviso de receção, ou por e-mail, da data, hora e local em que o título de compra e venda será celebrado. 3. Os Primeiros Contratantes obrigam-se a fornecer ao Segundo Contratante todos os elementos identificativos e documentais que lhes digam respeito, bem como ao Imóvel objeto do presente contrato, e que sejam suficientes e necessários para a realização da escritura pública ou documento particular autenticado.» «Cláusula Quinta (Incumprimento) 1. Em caso de incumprimento definitivo do presente contrato promessa por motivos imputáveis ao Segundo Contratante, assistirá aos Primeiros Contratantes, a faculdade de fazer sua as quantias recebidas a título de sinal e princípio de pagamento. 2. Em caso de incumprimento definitivo do presente contrato promessa por motivos imputáveis aos Primeiros Contratantes, assistirá ao Segundo Contratante, a faculdade de exigir daqueles as quantias pagas a título de sinal e princípio de pagamento, em dobro. 3. O incumprimento definitivo do presente contrato depende da interpelação dos Promitentes faltosos. 4. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, os Contratantes não faltosos podem, em alternativa, requerer a execução específica do presente contrato promessa nos termos do artigo 830.º do Código Civil.»
2.Em setembro de 2021, o Autor comunicou ao 1º Réu já não ter interesse na realização do contrato definitivo.
3. Por sentença datada de 12 de junho de 2017, foi declarada a interdição do 4º Réu.
* De Direito Do incumprimento definitivo por banda do autor e do direito do reconvinte à indemnização correspondente à perda do sinal.
O A. veio a juízo pedir a condenação dos RR na entrega da quantia correspondente ao dobro do sinal por si entregue em execução do contrato promessa celebrado com o 1º R., mediante o qual prometeu comprar um prédio pertença da herança aberta por óbito de (…), cônjuge do 1º R. e mãe dos restantes.
Invocou, para tanto, ter tomado conhecimento em data posterior que um dos herdeiros, por via de incapacidade judicialmente reconhecida, estava sujeito ao atual regime do maior acompanhado, com a consequente necessidade de obtenção de autorização judicial para que o negócio prometido se pudesse realizar. Porque tal autorização não estava garantida sendo, que, em todo o caso, nunca o processo de autorização estaria concluído a tempo de ser respeitado o prazo de 120 dias contratualmente fixado para a celebração do contrato prometido, antevendo tal demora perdeu interesse na prestação, impondo-se considerar não cumprida a obrigação assumida pelos RR, promitentes vendedores, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil[1], disposição legal que expressamente convocou.
O assim alegado não obteve, como se referiu já, acolhimento na sentença recorrida que, em segmento não impugnado, julgou o pedido improcedente, dele absolvendo os RR. Considerou-se, para tanto, que o promitente comprador, o falecido pai das autoras habilitadas, não tinha fundamento para resolver o contrato, posto que havia declarado a sua perda de interesse em Setembro de 2021, quando ainda não existia mora por banda do promitente vendedor, nada sugerindo que não fosse ainda possível celebrar o contrato prometido no prazo previsto, sendo certo ainda que nos termos contratualmente estabelecidos era exigível uma prévia interpelação admonitória, facultando à parte constituída em mora uma derradeira possibilidade de cumprir, que no caso não ocorrera. E com tal fundamentação concluiu-se na sentença que no caso não se justificava “a resolução contratual nem por perda do interesse objetivo na prestação do devedor [que não existe] nem por interpelação admonitória [que não ocorreu]”.
Passando depois à apreciação do pedido reconvencional, consignou-se na sentença apelada que “a declaração resolutiva por perda de interesse, emitida pelo Autor ao 1º Réu, não se poderá qualificar como uma recusa deste ao cumprimento do contrato”. E não assistindo “razão ao Autor na cessação contratual por via da sua perda de interesse, nem ao 1º Réu-Reconvinte na cessação por via de uma recusa antecipada e definitiva do Autor ao cumprimento, extraída dessa mesma declaração de perda de interesse”, foi consequente a conclusão de que a relação contratual se mantinha em vigor, improcedendo também a reconvenção, sendo este último segmento que aqui cumpre escrutinar.
Dispõe o artigo 410.º, n.º 1, do Código Civil, que à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
Nos termos do n.º 2 que a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral.
Ensina O Prof. Galvão Telles[2] que o “Contrato promessa é um acordo preliminar que tem por objecto uma convenção futura, o contrato prometido. (…) Reveste, em princípio, a natureza de puro contrato obrigacional, ainda que diversa seja a índole do contrato definitivo. Gera uma obrigação de prestação de facto, que tem de particular consistir na emissão de uma declaração negocial. Trata-se de um pactum de contrahendo.”
Resulta dos factos assentes nos autos terem o falecido autor e o 1º R., cabeça de casal na herança aberta por óbito de sua mulher, (…), celebrado contrato promessa, tal como se deixou definido – qualificação jurídica na qual as partes não dissentem –, nos termos do qual este se obrigou a vender e aquele, por seu turno, se obrigou a comprar, o prédio identificado na cláusula 1ª do acordo celebrado, mediante o pagamento do preço, fixado pelas partes em € 125.000,00.
Cabe referir, antes de mais, que pese embora os demais herdeiros surjam identificados como primeiros contratantes, apenas o réu (…) subscreveu o contrato, logo, apenas ele pelo mesmo se vinculou. Mas desta ausência dos restantes herdeiros não resulta, a nosso ver, e tal como se mencionou na decisão recorrida, a invalidade do negócio, já que válida é a promessa de venda de coisa alheia (total ou parcialmente), não lhe sendo aplicável o regime do artigo 892.º, uma vez que não produz efeitos translativos. Com efeito, assumindo as partes tão-somente a obrigação de celebrar o contrato definitivo, prestação de facere, portanto, é perfeitamente possível que o promitente vendedor – que, repete-se, não aliena, apenas se obriga a alienar no futuro – logre adquirir o bem a tempo de cumprir a sua promessa (cfr. neste sentido, acórdãos deste mesmo TRE de 20/10/2010, processo n.º 2766/03.7TBPTM.E1[3] e de 15/12/2016, processo n.º 82/14.8T8VRS.E1). Deste modo, ou o promitente se coloca em condições de poder cumprir o contrato prometido em devido tempo ou, não logrando reunir tais condições, “torna-se responsável pelo incumprimento de um compromisso validamente assumido” (do citado acórdão de 15/12/2016).
Mais se provou que, tendo as partes contratantes convencionado que a outorga da escritura pública ou documento particular autenticadodeveria realizar-se no prazo máximo de 120 dias a contar da data da assinatura do contrato, ficando a cargo do promitente comprador “A marcação do dia, hora e local para a realização da escritura pública ou documento particular autenticado” e competindo a este “avisar os Primeiros Contratantes, com a antecedência mínima de 10 (dez) dias (…), por carta registada com aviso de receção, ou por e-mail, da data, hora e local em que o título de compra e venda será celebrado” (cfr. a cláusula 3ª), logo em Setembro o Autorcomunicou ao 1.º Réu já não ter interesse na realização do contrato definitivo, vindo a instaurar a presente ação escassos dois meses depois (30 Novembro de 2021), pedindo a condenação dos RR na restituição do sinal em dobro, no pressuposto da resolução do contrato com fundamento em incumprimento que imputa ao promitente vendedor. Sendo a resolução infundada, conforme se encontra definitivamente decidido nos autos, cabe indagar se produz, ainda assim, efeito extintivo do contrato, ao invés do que se considerou na sentença recorrida, podendo/devendo esta atuação do promitente comprador ser tida, em qualquer caso, como recusa de cumprimento, fazendo-o recair ipso facto em incumprimento definitivo, com o consequente reconhecimento à contraparte do direito à indemnização, no caso o perdimento do sinal a favor do ora recorrente, conforme este pretende e requer.
No domínio contratual, a regra vai no sentido de que os contratos devem ser pontualmente cumpridos e que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (artigos 406.º, n.º 1 e 762.º, n.º 1).
Como é sabido, o contrato bilateral torna-se resolúvel desde que uma das partes falte culposamente ao seu cumprimento, correspondendo a resolução à destruição da relação contratual, operada por um dos contraentes com base num facto posterior à celebração do contrato[4]. Este direito tanto pode resultar da lei como da convenção das partes (artigo 432.º, n.º 1), sendo portanto de exercício vinculado, ou seja, encontra-se dependente da verificação de um fundamento legal ou convencional, e opera em regra extrajudicialmente, mediante declaração à outra parte nos termos do n.º 1 do artigo 436.º, implicando a extinção “ex tunc”da relação jurídica contratual em causa, com efeitos equivalentes aos da invalidade[5] (artigos 433.º e 434.º, n.º 2).
Permitindo o consagrado sistema declarativo que a resolução se possa exercer mediante mera declaração à outra parte, a desnecessidade do assentimento do destinatário da declaração resolutiva pode projetar-se judicialmente numa discordância quanto à existência dos necessários pressupostos. Questiona-se assim se a declaração resolutiva infundada, quando judicialmente recusada a sua confirmação, conforme foi aqui o caso, mantém a sua eficácia extintiva ou deverá antes ser-lhe negada, com a consequente declaração de que o contrato afinal não se extinguiu, conforme foi decidido.
A questão é controvertida mas não se discorda, dir-se-á, do entendimento acolhido na sentença recorrida, uma vez que “(…) não é a natureza receptícia, nem a natureza performativa da declaração de resolução, nem tão pouco a natureza potestativa do direito de resolução que conferem à declaração resolutiva, ipso facto, efeito extintivo. A eficácia da declaração resolutiva depende, naturalmente, do preenchimento prévio dos pressupostos a que a declaração se encontre sujeita, designadamente o respetivo fundamento: o direito de resolução”[6]. Daí que, “Na medida em que se encontra desprovida do direito que nos termos da lei a permitiria sustentar, a declaração de resolução infundada, sem prejuízo da violação de outras disposições legais e ou contratuais em que possa incorrer, consubstanciará sempre uma violação do artigo 432.º do CC”[7], sendo portanto nula nos termos do artigo 280.º, n.º 1 e, dessa forma, “insusceptível de destruir o contrato”[8].
Aderindo-se assim à conclusão a que se chegou na decisão recorrida no sentido de que o autor não logrou resolver o contrato com a declaração de perda de interesse, daqui não decorre, porém, que a declaração resolutiva ilícita não tenha relevância jurídica, impondo-se averiguar dos seus efeitos na execução do contrato.
No caso vertente, tendo celebrado o contrato em junho de 2021, logo em setembro, antes ainda do vencimento da obrigação, o falecido autor, promitente comprador, declarou ao promitente vendedor que já não tinha interesse no contrato definitivo. Tal declaração, ao que resulta dos factos provados, não impugnados, não foi acompanhada da indicação de qualquer fundamento em ordem a justificar a alteração da vontade do declarante, surgindo como uma manifestação de desvinculação infundada e arbitrária. Com efeito, e conforme se faz notar no acórdão do STJ de 15/10/2024 (processo n.º 1530/20.3T8CBR.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt) “(…) a perda do interesse na prestação não pode assentar numa simples mudança de vontade do credor” e “também não basta para fundamentar a resolução qualquer circunstância que, segundo o juízo do credor, justifique a supressão da fonte da obrigação não cumprida na altura própria: devendo aquela perda ser valorada objectivamente, não é suficiente o critério subjectivo do credor”.
É certo que na petição inicial apresentada nos autos, já depois do decurso do prazo fixado no contrato promessa para a celebração do acordo prometido, o autor veio invocar como fundamento a circunstância de ter tido conhecimento da necessidade de ser obtida autorização judicial para a venda do imóvel, dada a situação de incapacidade de um dos herdeiros, tendo mesmo alegado que, caso tivesse tido conhecimento desse facto, não teria celebrado o contrato. Não estando em causa a invocação de erro vício, para o que sempre faleceria o requisito da essencialidade, não tendo o autor, de resto, posto em causa a validade do contrato, afigura-se que a declaração feita em setembro no sentido de ter perdido o interesse no negócio – perda de interesse reafirmada na petição inicial e reiterada na réplica (cfr. artigo 1º desta peça) –, ainda que sem eficácia resolutiva, posto que infundamentada, consubstancia uma declaração séria, perentória e irreversível no sentido de não pretender cumprir o contrato[9], sendo este o sentido a atribuir-lhe segundo os critérios interpretativos consagrados nos artigos 236.º e seguintes.
Ao declarar infundadamente que perdera o interesse no contrato o autor deu a conhecer à contraparte, de forma clara, inequívoca e irrevogável (o que se confirmou com a propositura da presente ação), a intenção de não o vir a cumprir. Trata-se de conduta suscetível, a nosso ver, de ser reconduzida à recusa de cumprimento, configurando incumprimento contratual[10], a conceder ao contraente fiel a faculdade de mobilizar os meios de reação reservados para as situações de incumprimento definitivo[11]. Não vemos, aqui dissentindo da decisão recorrida, que a factualidade apurada permita concluir que o autor, promitente comprador, se encontrava em erro quanto à existência de fundamento resolutivo – o que se afigura contrariado pela prematura e imotivada declaração de perda de interesse emitida em setembro de 2021 – antes tendo afirmado na petição e reiterado na réplica a sua intenção “séria, categórica e definitiva” de não cumprir o contrato, intentando desvincular-se da obrigação de celebração do acordo prometido.
De outro lado, e como evidencia a dedução do pedido reconvencional, assente no incumprimento definitivo imputado ao promitente comprador, o réu reconvinte, destinatário da declaração, teve o contrato por cessado. Daí que, conforme confessa, não tenha dado andamento ao processo de propositura da ação destinada a obter a necessária autorização para a realização do contrato prometido, diligência que teve por inútil, sinal inequívoco da perda de confiança na manutenção do vínculo, atenta a conduta da contraparte, em face da qual conformou a sua própria atuação.
Conforme reconhece o STJ em acórdão de 14/7/2021 (processo n.º 82/20.9T8VFC.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt), “A resolução do contrato por recusa de cumprimento, ainda que não decorra das disposições gerais, é admitida e reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência.
O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, constantemente, que “o princípio do pontual cumprimento dos contratos e a confiança que os contraentes depositam no cumprimento das prestações recíprocas, justificam a resolução do contrato, por violação do princípio da boa-fé, que abrange os deveres acessórios de conduta, nos casos em que o comportamento do devedor evidencie uma clara e inequívoca vontade de não cumprir”.
Embora a declaração, por que se exprime a clara e inequívoca vontade de não cumprir, possa ser expressa ou tácita, a “a relevância da declaração […] exige que a mesma seja -com diferentes cambiantes da doutrina- consciente, séria, categórica, inequívoca, definitiva, peremptória, para além de juridicamente possível”.
Verificadas tais características, a contraparte fica investida, conforme se refere no mesmo aresto, em dois direitos potestativos: o direito potestativo de resolução do contrato; o direito potestativo de adquirir, de fazer sua, a quantia entregue como sinal (cfr. artigo 442.º, n.º 2, primeira parte, do Código Civil).
O mesmo STJ veio entender, no acórdão de 15/10/2024 antes citado, que “No que respeita especificamente à resolução infundada do contrato promessa, determina o seu incumprimento, dado que revela o propósito, claro, sério e unívoco, a intenção categórica ou o propósito indubitável e irrevogável de não cumprimento – e de não cumprimento definitivo – daquele mesmo contrato”.
Revertendo de novo ao caso dos autos, considerando quanto se deixou dito à luz dos factos provados, também aqui se conclui que o autor, promitente comprador, tendo emitido prematura – antes do vencimento – declaração de perda de interesse em ordem a extinguir o contrato, e não tendo procedido em momento algum à interpelação do devedor, antes tendo instaurado a presente ação escassos dois meses depois do termo do prazo contratualmente estabelecido, imputando aos réus a alegada perda de interesse, visando obter a condenação destes na entrega de quantia correspondente ao dobro do sinal, revelou de forma séria, inequívoca e irreversível a sua intenção de não cumprir, incorrendo em incumprimento definitivo sem necessidade de interpelação admonitória da contraparte. Tal incumprimento ao promitente comprador imputável confere ao reconvinte, promitente fiel, o direito à indemnização pretendida, ainda que não tenha pedido a resolução do contrato[12] – conforme reconhece, no pressuposto de que o mesmo se encontrava extinto, pese embora a ausência de fundamento da declaração emitida pelo autor –, funcionando aqui o regime do sinal conforme prevê o n.º 2 do artigo 442.º, com a consequente atribuição do valor recebido a este título.
Procede assim o recurso.
* Sumário: (…)
III. Decisão Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, e na procedência do pedido reconvencional declaram que o R. reconvinte tem o direito de fazer sua a quantia recebida a título de sinal no âmbito do contrato de compra e venda celebrado com o falecido pai das AA habilitadas.
As custas do pedido reconvencional nesta e na 1.ª instância ficam a cargo das reconvindas (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.).
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Évora, 25 de Junho de 2025
Maria Domingas Simões
Mário João Canelas Brás
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
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[1] Diploma a que pertencerão as disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Inocêncio Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 6.ª ed., pág. 83.
[3] Conforme se refere no mesmo aresto “Em caso de incumprimento do contrato-promessa de venda de bem alheio (v.g. por não ter o promitente vendedor logrado adquirir para si esse bem alheio, de modo a poder cumprir a sua obrigação e realizar o contrato definitivo), e dada a eficácia meramente obrigacional da promessa, apenas resta ao promitente comprador obter uma indemnização pelo incumprimento, segundo o regime do artigo 442.º, n.os 2 e 4, do Código Civil estando-lhe, por isso, vedado exercer o direito de execução específica”.
[4] Prof. Antunes Varela, Direito das Obrigações, II, 6.ª Edição, 1995, Almedina, pág. 273 e ss.
[5] Salvo quanto aos contratos de execução continuada ou periódica, hipótese que para aqui não releva, no âmbito dos quais os efeitos só operam “ex nunc”.
[6] Joana Farrajota, “A resolução do contrato sem fundamento”, Almedina 2015, TESES, pág. 179.
[7] Autora e ob. citadas na antecedente nota, pág. 182.
[8] Idem, págs. 185-186.
Chegando a idêntica conclusão num caso de resolução infundada, o acórdão deste TRE de 27 de Março de 2025, no processo n.º 3908/23.1T8PTM.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Assim o entendeu o STJ em acórdão de 27 de Maio de 2010, processo n.º 6882/03.7TVLSB.L1.S1, cujo sumário se encontra acessível em www.dgsi.pt:
“I. Apenas o incumprimento definitivo do contrato-promessa confere ao contraente fiel o direito à resolução do contrato e desencadeia a aplicação das sanções a que se reporta o artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.
II. A mora tão só se converte em incumprimento definitivo, a ocorrer hipótese a que alude o artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil.
III. A perda, não mera diminuição de interesse na prestação, a que se reporta o artigo 808.º do Código Civil, não pode repousar numa simples mudança de vontade do credor, desacompanhada de qualquer circunstância além da mora, antes devendo ser apreciada em função do critério de um homem de bom senso e razoável que, numa ponderação global do caso, entre em linha de conta com a duração da mora, o comportamento do devedor e o propósito subjectivo do próprio credor.
IV. A recusa, absoluta e inequívoca, de cumprimento, por parte daquele que está a ele obrigado, acontecida através de declaração clara, séria, categórica e definitiva (ou o comportamento inequívoco evidenciador da vontade de não cumprir, ou da impossibilidade, antes de tempo, de cumprir), configura hipótese de incumprimento definitivo, sem necessidade de interpelação, notificação admonitória ou prova, pelo credor, da insubsistência do seu interesse no cumprimento.
V. A declaração resolutória, arbitrária ou caprichosa, sem justificação ou fundamento, consubstancia declaração ou comportamento inequívoco de não cumprir.
[10] Neste sentido, Joana Farrajota, ob. citada, pág. 222, expressa que “(…) a declaração de resolução infundada, quando manifeste uma vontade séria e definitiva do devedor de não cumprir o contrato, de se desvincular deste -e não nos casos em que, por exemplo, tenha por base um erro, designadamente quanto à existência de fundamento para a cessação do contrato-, reveste-se de uma gravidade tal, na medida em que atinge o âmago da relação obrigacional, que torna imperativo colocar à disposição do credor os instrumentos de reacção mais vigorosos de que o sistema dispõe: as faculdades concebidas para fazer face a uma situação de incumprimento”.
[11] Isto quer se considere que na base do incumprimento fundado na recusa antecipada se encontra a violação de um dever de conduta, a violação de um dever acessório, no caso, de proteção da confiança do credor na manutenção do vínculo, a violação do dever primário de prestar ou ainda a tutela do receio de incumprimento – sobre a questão, de forma aprofundada, J. Farrajota, ob. cit., págs. 229 e seguintes.
[12] Neste sentido, citado acórdão do STJ de 15710/2024.