ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
LIMITES E EFICÁCIA
PRÉDIO CONFINANTE
DILIGÊNCIAS DE PROVA
Sumário

I. Na acção de demarcação, a impossibilidade de determinar a localização da linha divisória através dos critérios sucessivos da conformidade com os títulos, da harmonia com a posse, ou resultante de outros meios de prova, impõe ao juiz que, como última regra aplicável, divida em partes iguais pelos prédios confinantes, a área situada entre os limites em litígio (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 1354.º do Código Civil).
II. O último critério assinalado, destina-se impedir que, ante o insucesso da actividade probatória da parte que, propondo a acção, fornece ao tribunal uma determinada linha divisória, resulte perpetuada a incerteza quanto aos limites dos prédios.
III. Uma vez verificada a controvérsia sobre a respectiva localização no terreno, a sentença proferida na acção de demarcação, antecedida, se necessário, das diligências de iniciativa oficiosa necessárias à aplicação da regra da divisão da área situada entre os limites do litígio, não pode deixar de definir a linha divisória comum entre os prédios confinantes das partes, ainda que não coincidente com as por estas propugnadas.
IV. Por violar este imperativo legal, padece da nulidade prevista pela alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a sentença que, omitindo a ponderação do critério previsto pelo n.º 2 do artigo 1354.º do CC, se limita a julgar improcedente o pedido formulado pelo autor por ter resultado inconclusiva a correspondência da linha de divisão com a assinalada pelo autor no pedido.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Apelação 754/17.5T8MMN.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo - Juiz 1

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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1º Adjunto: Filipe César Osório;
2º Adjunto: Maria João Sousa e Faro.
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I. RELATÓRIO
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A.
Na presente acção declarativa sob a forma de processo comum proposta contra (…), veio (…) pedir que seja:
- fixada no terreno a linha divisória comum entre os dois prédios dos autos, na parte em litígio, no local correspondente à linha divisória comum que consta no mapa de fls. 468 do processo de divisão de coisa comum n.º 912/14.4T8MMN, marcada a tracejado no documento 5 da p.i.;
- ordenada a implantação de marcos nessa linha de fronteira, com custos a suportar em partes iguais pela Autora e Ré;
- ordenada a demolição dos marcos implantados no terreno fora dessa linha comum de divisão;
- as partes condenadas a respeitar os limites da propriedade de cada uma, e a restituírem uma à outra, conforme a ordem de demarcação, todas as áreas que se venha a confirmar estarem a ser ocupadas sem causa.
Para tanto, alegou que, no processo judicial de divisão de coisa comum n.º 912/14.4T8MMN, que teve por objecto a “Herdade da (…)”, ficaram a Autora e a Ré com um prédio cada resultante da divisão em três lotes, melhor identificados na Planta / Mapa constante de fls. 468 do aludido processo. Autora e Ré contrataram depois um topógrafo para definir o local onde se situaria a estrema comum dos prédios que lhes couberam, o que aquele fez, colocando no terreno estacas a assinalá-la. Depois de colocados marcos no local pela Autora, a Ré manifestou discordância quanto à estrema, mantendo que a linha de divisão comum deveria ser posicionada cerca de duzentos metros para Norte daquela, de modo a que o prédio da Ré incluísse um “pego” ou “forno de cal” existente no local, o que a Autora não aceita.
B.
A Ré contestou, impugnando parte dos fundamentos de facto e os jurídicos do pedido formulado pela Autora.
Reconveio:
“1 – Deve ser fixada, no terreno, a linha divisória comum que consta no mapa do Tribunal de fls. 468 do processo de divisão de coisa comum n.º 912/14.4T8MMN, a apensar, marcada a tracejado no doc. n.º 5 da petição e de acordo com os critérios que constam do título divisório a que se referem os nºs 37, 41, 42 e 44 da acusação e que, em todas as circunstâncias, deverá assegurar que o Lote B, da ré, compreenda e integre o “forno de cal” assinalado no mapa do Tribunal (e que é de menor dimensão do a pedreira que integra o Lote A), tendo os lotes a seguinte composição (n.º 44):
O Lote A, que coube à autora: 151,2 ha, montado de sobro de 1ª e 2ª classes, 105,8 ha, com 18.000@ nos 9 anos;
O Lote B, que coube à ré: 192,3 ha, montado de sobro de 1ª e 2ª classes, 48,55 ha, montado de sobro de 3ª classe, 14 ha, com 13.000@ nos 9 anos; incluindo o “forno de cal” (de menores dimensões);
2. Caso se verifique que a área dos Lotes, no terreno, é inferior à que consta da divisão (nos Autos a apensar e na Conferência de Interessados, os dois Lotes totalizam cerca de 343 ha), deve ser levado a cabo delimitação que, de novo, tenha em conta que o Lote B compreende a parcela de 6,37 ha assinalada nos docs. nºs 11 e 12 e, logo, o “forno de cal” e corresponde à área a verde do doc. nº 18 e, ainda, assim, a composição constante do n.º 76 deste articulado; ou seja:
O Lote A, que coube à autora, com 149,9 ha., montado de sobro de 1ª e 2ª classes, 105,8 ha; com 18.000@ nos 9 anos;
O Lote B, que coube à ré, 190,97 ha, montado de sobro de 1ª e 2ª classes, 48,55 ha; montado de sobro de 3ª classe, 14 ha; com 13.000@ nos 9 anos; incluindo o “forno de cal” (de menores dimensões);
3. Consequentemente, que seja ordenada a implantação de marcas na linha de fronteira a que se refere o doc. n.º 18 (e onde hoje estão implantados os marcos da ré);
4. Deve ser ordenada a demolição dos marcos implantados no terreno de ambas as propriedades fora dessa linha comum de divisão;
5. Devem as partes ser condenadas a respeitar os limites da propriedade de cada uma, e a restituírem uma á outra, conforme a ordem de demarcação, todas as áreas que se venha a confirmar estarem a ser ocupadas sem causa.”
C.
Foi proferido despacho-saneador com dispensa de realização da audiência prévia, no qual foram identificados o objecto do litígio e os temas de prova.
D.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com decisão da matéria de facto e de direito, julgando improcedentes os pedidos formulados pela Autora.
E.
Inconformada com o decidido, a Autora interpôs o presente recurso de apelação.
Concluiu as suas alegações sustentando, em síntese que:
Numa acção de demarcação como a presente, na qual a Autora concluiu com um pedido genérico, peticionando “sejam as partes condenadas a respeitar os limites da propriedade de cada um, e a restituírem uma à outra, conforme a ordem de demarcação, todas as áreas que se venha a confirmar estarem a ser ocupadas sem causa”, o tribunal não pode limitar-se a julgar improcedente, sob pena de omitir uma decisão que a lei impõe, configurando esta decisão uma nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C. ou, no mínimo, erro de julgamento na aplicação do direito aos factos por violação do disposto no artigo 1354.º do Código Civil.
O tribunal “a quo” ajuizou mal a matéria de facto, atenta a prova que foi produzida em sede de audiência de julgamento:
- devendo ser considerados não provados os factos provados números 30 a 34;
- devendo ser considerado provado o facto não provado d) em resultado, não apenas dos testemunhos de … (perito inicialmente da confiança da Ré e por esta escolhido para efetuar a demarcação) e …, mas também do relatório pericial inequívoco, para além de que, a não ser assim, ocorre contradição entre o facto d) não provado e os factos provados 6 a 9;
- no teor do facto provado n.º 44, contrariado pelo testemunho de (…) que deu conta de que o seu método recorreu a pontos de medição vinculados a pontos concretos no terreno; e
- no conteúdo do facto provado n.º 57 que só por lapso terá sido provado, pois a Ré não retirou as 25 mil arrobas de cortiça aludidas, mas menos do que as 18 mil arrobas expectáveis para o seu lote como resulta do testemunho de (…).
Não colhem dois argumentos mobilizados na fundamentação da decisão recorrida:
- o critério económico do incremento da recolha de cortiça por parte da A.; e
- o da localização de um “forno da cal” e pedreiras.
Quanto ao critério económico para além da diferença de quantidades apontada na impugnação do facto provado n.º 57, não se circunscreveu à cortiça, havendo a considerar olival.
Relativamente ao forno a cal, não se percebe como pode o tribunal considerar que foi incluído no lote da Ré, não existindo atualmente, e depois indicar que a Autora ao criar a linha divisória, subtraiu o mesmo ao prédio da Ré, já que da inspecção ao local e testemunhos de (…) e (…) resulta que está localizado no lote da Ré, tendo em conta os marcos colocados pela Autora. O forno de cal corresponde a uma infraestrutura que está desativada, existindo, no lote da Autora, aqui Recorrente, duas pedreiras, uma maior e outra mais pequena, que nada têm a ver com o designado forno de cal.
Devia o tribunal ter considerado provado e, por isso, decidido que a linha divisória comum entre os dois prédios dos autos, na parte em litígio, corresponde à linha divisória comum que consta no mapa de fls. 468 do processo de divisão de coisa comum n.º 912/14.4T8MMN, marcada a tracejado no documento 5.
F.
Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
G.
Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
No caso vertente, são as seguintes as questões suscitadas pelo recurso:
1. Se a sentença proferida é nula por omissão de pronúncia;
2. Se, em caso de resposta negativa à questão precedente, deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada, da sentença recorrida;
3. Se há fundamento para definir a linha divisória comum entre os prédios da Autora e da Ré na localização propugnada pela Recorrente ou, na negativa, noutra localização.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
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Invoca a Autora / Recorrente a nulidade da sentença recorrida ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, sustentando que numa acção de demarcação como a presente, o tribunal não pode limitar-se a julgar o pedido improcedente, sob pena de omitir uma decisão que a lei impõe.
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A respeito da nulidade prevista pela supracitada alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a omissão de pronúncia ocorre perante a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa.
A norma em apreço conjuga-se com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC que impõe ao juiz o dever de “…resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…)”.
A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que, por isso, tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.
O que se compreende porque, por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.
Como ensina Alberto dos Reis, não enferma da nulidade em apreço, a decisão “…que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito. (…) São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer do seu ponto de vista: o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.” [1]
A este propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.10.2022, relatado pelo Conselheiro Isaías Pádua no processo n.º 602/15.0T8AGH.L1-A.S1[2], dá conta de que “constitui communis opinio, o conceito de “questões”, a que ali se refere o legislador, deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos, como já acima deixámos referido, os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (…)”. No mesmo sentido, entre outros, v. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.2011, relatado pelo Juiz Conselheiro Raúl Borges no processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1 e do Tribunal da Relação de Évora de 11.02.2021, relatado pela Desembargadora Emília Ramos Costa no processo n.º 487/20.5T8TMR.E1. [3]
Sobre a questão também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa referem ser “…pacífica a jurisprudência que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso, mas que não obriga a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com questões (STJ 23-1-19, 4568/13)”. [4]
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Vem a Autora, por via da presente acção, entre outras coisas, pedir que seja “…fixada no terreno a linha divisória comum entre os dois prédios dos autos (…) no local correspondente à linha divisória comum que consta no mapa de fls. 468 do processo de divisão de coisa comum n.º 912/14.4T8MMN, marcada a tracejado no documento 5 da p.i.”, “…ordenada a implantação de marcos nessa linha de fronteira, com custos a suportar em partes iguais pela Autora e Ré…” e “…as partes condenadas a respeitar os limites da propriedade de cada uma, e a restituírem uma à outra, conforme a ordem de demarcação, todas as áreas que se venha a confirmar estarem a ser ocupadas sem causa.”
Alega para o efeito que existe entre Autora e Ré dissídio relativamente à localização no local da linha de demarcação entre os prédios confinantes de cada uma delas, invocando o título de divisão de coisa comum que autonomizou os dois prédios como fundamento da delimitação proposta no pedido localização.
Estamos perante um pedido típico de acção de demarcação, faculdade imprescritível conferida ao proprietário de prédio sobre os donos dos prédios confinantes pelos artigos 1353.º e 1355.º do Código Civil, para realização da qual se não discute a titularidade do direito de propriedade dos prédios, reconhecido pelas partes, mas apenas a localização do limite comum entre eles.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.05.1969 (in “Boletim do Ministério da Justiça”, n.º 187, pág. 71) “…embora conexa com o direito das coisas, a acção de demarcação não é uma acção real, mas pessoal, não se pretendendo obter, pelo meio dela, a declaração de qualquer direito real ou da sua amplitude. Assim, a qualidade de proprietário de um terreno, invocada pelo autor numa acção em que pede a fixação das respectivas estemas, é apenas condição da sua legitimidade para tal acção, da qual não é causa de pedir o facto que originou o invocado direito de propriedade.”
No caso, a natureza da acção é reforçada pela contestação / reconvenção, na qual a Ré / Reconvinte também formula pedido idêntico, pugnando embora pelo estabelecimento do limite comum em localização distinta da alvitrada pela Autora.
O “modo de proceder à demarcação” entre os prédios confinantes, vem elencado nos n.os 1 e 2 do artigo 1354.º do Código Civil, num conjunto de critérios legais de aplicação sucessiva.
O primeiro, é realizá-la “…em conformidade com os títulos de cada um…” dos proprietários dos prédios confinantes (n.º 1, 1ª parte).
O segundo, a usar na falta ou insuficiência dos títulos, é o da “…posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova” (n.º 1, 2ª parte).
O terceiro e último, subsidiário dos demais porque aplicável apenas se os títulos, a posse ou os restantes meios de prova não permitirem determinar a concreta localização da estrema comum, é a distribuição “…do terreno em litígio por partes iguais” (n.º 2).
Da norma em apreço resulta uma essencial particularidade desta acção: ainda que a prova produzida em julgamento não permita concluir a concreta localização da linha delimitadora comum, o desfecho será, mesmo assim, a fixação desse limite mediante a repartição salomónica da área situada entre as confrontações pretendidas por cada uma das partes.
Deste modo, por imposição legal, o juiz tem que fixar o limite comum aos prédios ainda que, como último recurso aplicável, na impossibilidade de o determinar por outros meios, o faça através da repartição da área situada entre os limites em litígio.
Para tanto, bastar-lhe-á que, partindo da localização da estrema proposta por cada uma das partes, afira a área que se situa entre elas.
Em abono deste entendimento, consta do sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.05.2012, relatado pelo Conselheiro Fernando Bento no processo n.º 725/04.1TBSSB.L1.S1 que “…o autor só tem que alegar e provar os factos constitutivos do direito à demarcação, a saber: a confinância dos prédios, a titularidade do respectivo direito de propriedade na pessoa do autor e do demandado e a inexistência, incerteza, controvérsia ou tão só desconhecimento sobre a localização da respectiva linha divisória. (…) Assim, controvertida a localização da linha de demarcação, não pode deixar de ser delimitada uma área de terreno que pertence a um prédio ou a outro, consoante a localização que vier a prevalecer, de acordo com os critérios definidos pelo artigo 1354.º, n.º 1, do CC, ou a ambos em partes iguais conforme prescrito pelo n.º 2 do mesmo normativo.” (sublinhados nossos). [5]
A mesma posição encontramos no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.05.2024, relatado pelo Desembargador Luís Cravo no proc. n.º 1193/21.9T8CVL.C2, em cuja fundamentação podemos ler que “…num processo de demarcação – estabelecido que entre os prédios contíguos, de diferentes proprietários, não há linha divisória – não é possível, desde que se prove que a linha divisória entre eles é incerta e duvidosa, uma decisão de improcedência” (sublinhados nossos). [6]
No caso concreto, a Autora sustenta que a estrema é «…correspondente à linha divisória comum que consta no mapa de fls. 468 (…), marcada a tracejado no documento 5 da p.i.» (sublinhado nosso).
A Ré, por seu turno, mantém que, em qualquer caso, a delimitação «…deverá assegurar que o Lote B, da ré, compreenda e integre o “forno de cal” assinalado no mapa do Tribunal» e «…caso se verifique que a área dos Lotes, no terreno, é inferior à que consta da divisão (…) seja ordenada a implantação de marcas na linha de fronteira a que se refere o doc. n.º 18…” da contestação, em que consta assinalado a amarelo o lote A da Autora e a verde o lote B da Ré, em cuja linha divisória se encontram implantados os marcos da Ré (cfr. artigo 79º da contestação) (sublinhado nossos).
Mostrando-se indicado o posicionamento que cada uma das partes considera ser o da estrema comum dos seus prédios, encontravam-se reunidos os pressupostos para que a decisão dos autos tomasse posição sobre a concreta localização da linha de demarcação entre ambos, cumprindo o desiderato das partes da presente acção de demarcação e o aludido imperativo legal, mesmo que para tal fosse necessário determinar a área situada entre os dois limites, de modo a proceder à sua repartição.
E ainda que não estivesse suficientemente definido o limite comum que cada uma das partes propõe, impunha-se convidá-las a proceder à respectiva clarificação com vista à aplicação dos aludidos critérios previstos pelo artigo 1354.º do Código Civil.
Neste sentido, o aresto do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.12.2014, relatado pelo então Desembargador António Barateiro Martins no processo n.º 746/07.C2, justifica:
“Encurtando razões, tendo presente – como já se referiu – que o tribunal neste tipo de acções tem uma função algo diferente, devendo determinar oficiosamente (ou promover junto das partes) a realização das iniciativas processuais necessárias a alcançar o desiderato de concretizar o arbitramento; que no “momento” correspondente à concretização da demarcação, através dos critérios de decisão plasmados no artigo 1354.º do CC, deixa de valer (enquanto critério de decisão) o sucesso ou insucesso da actividade probatória da parte que, propondo a acção, fornece ao tribunal uma determinada linha divisória, uma vez que, perante o insucesso de tal actividade probatória, a solução não pode passar pelo perpetuar da incerteza quanto aos limites dos dois prédios, mas antes pela distribuição “salomónica” do terreno em litígio (cfr. artigo 1354.º, n.º 2, parte final do CC), não se pode deixar de mandar (…) proceder a tal averiguação – se necessário pelo próprio tribunal, realizando diligências de iniciativa oficiosa – da delimitação da parcela de terreno sob litígio, para, não se apurando os limites dos prédios, se poder aplicar a regra da divisão “salomónica” da parcela.” [7] (sublinhados nossos). Na mesma linha de entendimento, v. também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.10.2024, relatado pelo Conselheiro Ferreira Lopes no proc. 3265/19.0T8FAR.E1.S1.[8]
Sobre a localização da estrema comum aos dois prédios, a fundamentação da sentença recorrida limitou-se a dar conta de não ter sido possível concluir que a localização exacta da linha de divisão dos prédios da Autora e Ré corresponda ao assinalado no mapa que consta do processo n.º 912/14.4T8MMN, quer por este não ter sido precedido de trabalho de índole topográfica, no local, com marcação de pontos e coordenadas, quer porque a linha de divisão não tem por referência estrada, caminho ou curso de água, quer ainda por ter resultado da perícia diferença entre a área verificada no terreno e a área dos lotes indicada no mapa.
Com o devido respeito, as elencadas circunstâncias são superáveis, bastando para o efeito que, realizado um levantamento topográfico rigoroso da área conjunta dos prédios, o tribunal determine, se necessário com a colaboração das partes, onde se situam nesse levantamento os limites que cada uma delas considera corresponder ao comum, aferindo depois o preenchimento dos sucessivos critérios dos n.os 1 e 2 do artigo 1354.º do Código Civil.
Nesta actividade, deverá ter presente que:
- a divergência entre as áreas indicadas nos títulos e a área da totalidade do terreno, encontra no n.º 3 do mesmo artigo, uma resposta que consiste na distribuição proporcional da área em falta ou em excesso, à parte de cada um dos prédios confrontantes;
- caso os títulos, a posse, ou outros meios de prova, não permitam formar uma conclusão válida sobre a localização da estrema comum, deverá, como último recurso e em respeito pelo aludido n.º 2 do mesmo preceito legal, proceder-se à repartição, em partes iguais, da área situada entre os limites assinalados por cada uma das partes;
- em qualquer caso, sendo incerta a localização da linha de divisão entre os prédios confinantes de Autora e Ré, o tribunal não pode limitar-se a julgar improcedentes os pedidos formulados pelas partes, impondo-se-lhe definir por onde se fará essa delimitação, ainda que em local não coincidente com os que as partes sustentam na acção, conquanto fisicamente situado entre estes.
Só assim porá fim à situação de incerteza que é a razão de ser da acção.
Aqui chegados, afigura-se certa a conclusão de que, tendo-se limitado a julgar improcedentes os pedidos formulados pela Autora, a decisão recorrida não deu resposta à questão fundamental que lhe incumbia apreciar, desiderato último da propositura da acção de demarcação, desrespeitando imposição legal decorrente do artigo 1354.º do Código Civil.
Por isso, a sentença recorrida não resolveu, nem conheceu, o dissídio essencial da lide, o problema concreto que devia decidir.
A saber: onde se situa a linha divisória entre os prédios da Autora e da Ré?
A prolação da decisão de improcedência do pedido de demarcação quando, face à situação de comprovada incerteza quanto ao limite comum dos prédios, tal desfecho não se encontra entre os legalmente possíveis, omitindo pelo caminho a ponderação do critério último previsto no n.º 2 do artigo 1354.º do CC, constitui ausência de tomada de posição ou de decisão sobre matérias que a lei impunha ao juiz tomar.
Assim, procede a arguição de nulidade da sentença proferida, fundada em omissão de pronúncia (cfr. alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC).
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Consequentemente, devem os autos ser devolvidos à 1ª instância, a fim de ser proferida nova sentença que defina a localização da linha divisória comum dos prédios da Autora e da Ré, precedida das diligências tidas por necessárias para permitir a aplicação, ao caso, dos critérios previstos no artigo 1354.º do Código Civil, entre as quais o apuramento:
- da linha de demarcação da estrema comum proposta por cada uma das partes, por referência a levantamento topográfico rigoroso da área conjunta dos prédios confinantes da Autora e da Ré; e
- da área existente entre as linhas aludidas no parágrafo precedente.
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Custas
Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.
No caso, a Recorrente obteve vencimento no recurso.
Todavia, para além de não ter apresentado contra-alegações, a Recorrida não deu causa à nulidade da sentença de 1ª instância, razão pela qual as custas deverão ser suportadas pela parte vencida a final.
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III. DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:
1. Anular a decisão recorrida, ordenando a baixa dos autos à primeira instância, a fim de esta suprir as causas da nulidade acima identificadas.
2. Condenar nas custas do presente recurso a/as parte/s que vier/em a resultar vencida/s a final.
Notifique.
Évora, 25 de Junho de 2025
Ricardo Miranda Peixoto (Relator)
Filipe César Osório (1º Adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2ª Adjunta)

__________________________________________________
[1] In “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, reimpressão, Coimbra Editora, 1984, anotação 5 ao artigo 668.º, pág. 143.
[2] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/952807c78e863705802588d9004df1b1?OpenDocument
[3] Disponíveis, respectivamente, nas ligações:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/716b1b216836db4c802579980057452c?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/749cacb56fc5b1868025868800764267?OpenDocument
[4] In “Código de Processo Civil Anotado”, volume I, Almedina, 3ª edição, anotação 13 ao artigo 615.º, pág. 794.
[5] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/21123d864092b48a80258bac005962de?OpenDocument
[6] Disponíveis, respectivamente, nas ligações:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/437741a490512fcc80257a21002f4156
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/f1c257bd6708281a80258b2a002eec1c?OpenDocument
[7] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/e2528e5e7a90eec280257df100532d30?OpenDocument
[8] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/21123d864092b48a80258bac005962de?OpenDocument