INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO DE PATRIMÓNIO
PATRIMÓNIO DO DEVEDOR
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Sumário

Não é aceitável que o insolvente queira aproveitar tudo o que lhe possa ser útil na insolvência – mormente a exoneração do seu passivo restante –, mas se oponha a qualquer tentativa de clarificação que possa vir ainda a ocorrer numa liquidação superveniente de bens/acções de é titular.

Texto Integral

RECURSO Nº 756/23.2T8OLH-E.E1 – APELAÇÃO (JUÍZO DE COMÉRCIO DE OLHÃO)

Acordam os juízes nesta Relação:

O Insolvente/Apelante (…), com residência na Estrada das (…), Edifício (…), em (…), vem interpor recurso do douto despacho que foi proferido em 15 de Abril de 2025 (ora a fls. 73 a 77), que complementou o douto despacho de 12 de Fevereiro de 2025 (a fls. 64), que ordenara o prosseguimento do processo para a fase da liquidação superveniente, “nos termos do disposto no artigo 241.º-A, n.º 1, do CIRE”, nos presentes autos de insolvência a correrem termos no Juízo de Comércio de Olhão-Juiz 2, que aí haviam sido instaurados no dia 11 de Julho de 2023 pelo Requerente (…), residente na Travessa (…), n.º 622, em Amarante, ora intentando a revogação do que assim vem decidido e que venha a ser ainda impedida tal liquidação superveniente, para o que apresenta alegações que remata com a formulação das seguintes Conclusões:

1. Nos presentes autos foi proferida douta sentença que ordenou o encerramento do processo de insolvência e da liquidação, decisão essa que transitou em julgado.
2. Aquando da prolação de tal despacho não fora ainda proferido despacho liminar de exoneração do passivo restante, sendo de notar que o encerramento do processo se deu por proposta do sr. AI, por ter constatado insuficiência de bens para satisfação de custas e das dívidas da massa.
3. O Mmo. Juiz a quo notificou todos os credores para usarem, querendo, a faculdade prevista no artigo 232.º n.º 2, o que aliás, fez por duas vezes, mas nenhum credor se pronunciou, nem requereu o não encerramento do processo pelo que este foi encerrado.
4.depois do trânsito em julgado dessa decisão, veio totalmente a destempo o “Banco (…)” requerer a apreensão de bens, mais concretamente de ações da sociedade “(…)”, relativamente às quais, há mais de um ano, no processo afirmava deter em penhor, sem que tal tivesse demonstrado no decurso do processo.
5. Note-se que o “Banco (…)” e os restantes credores não se pronunciaram atempadamente pelo não encerramento do processo proposto pelo sr. Administrador atenta a insuficiência de bens da massa, nem depositaram qualquer quantia para assegurar o pagamento das custas e as dívidas da massa (cfr. artigo 232.º, n.º 2, do CIRE).
6. Isto posto, o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 613.º, n.º 1, do CPC, nulidade que deve ser declarada, como se requereu em sede de recurso que, aquando da prolação do despacho complementar, ainda não tinha sido admitido!
7. O conteúdo do despacho complementar de que se recorre é errado, viola a lei e como tal deve igualmente ser anulado.
8. Com efeito, já depois da nulidade cometida na prolação do despacho recorrido (antes de ter sido complementado) foi proferido novo despacho que manteve erradamente a decisão de apreensão de ações que o Banco insiste pertencerem ao insolvente, o que não corresponde à verdade.
9. Depois do recurso interposto, o Tribunal a quo achou por bem proferir despacho liminar de exoneração do passivo restante (que há quase 2 anos estava para ser proferido!), só para ter fundamento para reordenar a apreensão das ações, agora (!) alegadamente porque tal seria permitido no âmbito de uma liquidação superveniente…
10. De notar que em manifesta contradição com o despacho datado de 10/10/2024.
11. O despacho recorrido deve ser anulado, porque pretende manter a decisão de apreensão de ações, que já não poderia ser executada até porque o sr. Administrador tinha já cessado as suas funções, aproveitando para proferir despacho liminar de exoneração do passivo unicamente para que a apreensão pudesse ser feita pelo agora Fiduciário, tudo como se essas ações tivessem ingressado no património do insolvente após o encerramento do processo e da liquidação.
12. A fundamentação do despacho complementar, quando sustenta a apreensão no disposto no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, é errada pois se as ações fossem propriedade do insolvente e tivessem sido dadas em penhor, deveriam ter sido apreendidas pelo sr. AI antes do encerramento da liquidação.
13. Aliás, se o Banco estivesse efetivamente na posse das ações, como veio dizer depois do trânsito em julgado do despacho que encerrou a liquidação, então deveria ter entregue as ações ao sr. Administrador para que as mesmas fossem vendidas e o produto da venda fosse integrado na massa insolvente.
14. E não foi isso que sucedeu, pois o “Banco (…)” disse no processo que não era possível a apreensão das ações!!
15. Durante o processo, o “Banco (…)” não demonstrou deter as ações alegadamente em penhor, não demonstrou estar na posse das ações e, muito menos, demonstrou que as ações eram ao portador. Pelo contrário, totalmente a destempo, veio juntar aos autos cópias dos títulos representativos das ações, que provam que estas são e sempre foram nominativas, cópias que terá obtido através de terceiros.
16. Aquando da elaboração da lista a que se refere o artigo 129.º do CIRE, o sr. Administrador considerou que o crédito do Banco (…) era comum, desde logo porque o Banco não juntou com a sua reclamação qualquer contrato de penhor.
17. O que resulta evidente da leitura do documento n.º 2 junto com a Lista do artigo 129.º do CIRE.
18. Tanto assim que o Banco (…) reagiu contra essa qualificação, impugnando a decisão do sr. AI (vide impugnação da lista de créditos junta ao apenso da reclamação de créditos em 07/11/2023, Ref.ª 11918506) mas, em momento posterior, acabou por desistir da impugnação.
19. Isto posto, é manifesto que o crédito em causa, quando for proferida a sentença de graduação e qualificação de créditos terá de ser qualificado como comum.
20. Em 18/03/2024, o sr. Administrador de Insolvência informara já o Tribunal que tinha averiguado quem era o beneficiário efetivo da sociedade (...), e inclusive juntou ao processo comprovativo do RCB, concluindo que o insolvente não era o beneficiário efetivo da sociedade.
21. O despacho recorrido, datado de 12/02/2025 enferma, pois, do vício da nulidade prevista no artigo 613.º do CPC, na medida em que, proferida a sentença que ordenou o encerramento do processo e assim da liquidação, e tendo a mesma transitado em julgado, ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz.
22. Nos termos do artigo 233.º, n.º 1, alínea b), do CIRE, um dos efeitos do encerramento é precisamente a cessação das atribuições do Administrador de Insolvência pelo que o mesmo não tinha, até ao momento da prolação do despacho de exoneração do passivo, quaisquer poderes de apreensão de bens do insolvente, que aliás nos termos da alínea a) do mesmo artigo, recuperou todos os poderes de disposição sobre os seus bens.
23. Pelo que o despacho em crise é nulo porque viola frontalmente tais normas, como seria nula uma eventual apreensão das ações que porventura o sr. AI apreendesse.
24. O despacho complementado manteve a apreensão dizendo que o Administrador, agora convertido em fiduciário, deveria apreender as referidas ações, nos termos do artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, mas sem qualquer razão.
25. Na verdade, a sentença que ordenou o encerramento do processo foi proferida nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 232.º do CIRE e não nos termos da alínea e) desse artigo, desde logo porque ainda não tinha sido proferido despacho liminar de exoneração do passivo.
26. O que significa que, obviamente, o artigo 241.º-A do CIRE não podia ser aplicado no processo, desde logo porque, como decorre do seu teor literal, apenas se aplica quando e se o processo seja encerrado nos termos da alínea e) do artigo 232.º do CIRE.
27. Por outro lado, como decorre com suficiência do texto do artigo 241.º do CIRE a liquidação adicional refere-se a bens ou direitos que ingressem no património do insolvente após o encerramento do processo.
28. Não pode, pois, no caso acolher-se a fundamentação do despacho complementar pois o sr. AI só não apreendeu as ações, como disse no processo:
d) Porque o Banco não demonstrou o penhor ou a posse efetiva das mesmas e nunca as entregou ao AI.
e) Porque o próprio AI averiguou que o insolvente não era proprietário ou beneficiário da sociedade, ou seja, não detinha as ações que eram propriedade de terceiro.
29. Errou, assim, a decisão recorrida quando, ignorando todo o sucedido ao longo do processo, ordenou a apreensão das ações, inicialmente em momento em que o AI já não as podia apreender, mesmo que se demonstrasse serem pertença do insolvente (o que é impossível, pois não são), vindo, agora, de forma subtil, dizer que a apreensão ainda é possível nos termos do n.º 1 do artigo 241.º, norma que apenas se aplica quando o processo é encerrado por força do despacho liminar de exoneração do passivo (alínea e) do artigo 232.º do CIRE, o que não sucedeu pois o processo foi encerrado antes da prolação desse despacho e com fundamento diferente, insuficiência de bens, averiguada pelo sr. AI.
30. A liquidação superveniente a que se refere o artigo 241.º do CIRE só pode ser aplicada quando, tendo o processo sido encerrado por força da prolação do despacho de exoneração do passivo, se detectem bens na propriedade do insolvente que devam ser apreendidos para pagamento aos credores, durante o período da cessão.
30. (numeração repetida) Totalmente nulo o despacho recorrido que teima numa apreensão de ações que não pertencem ao insolvente.
31. Foram violados os artigos 129.º, 232.º, 233.º e 241.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, ainda, os artigos 613.º, 625.º e 628.º do Código de Processo Civil e artigo 9.º do Código Civil.

Termos em que e nos mais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido.
E só assim será feita JUSTIÇA!


O Credor Reclamante/Apelado Banco (…), SA apresenta contra-alegações (fls. 91 a 94 verso dos autos), para dizer que não assiste razão ao Insolvente/Apelante na discordância manifestada para com a douta sentença recorrida, que, assim, se deverá manter, rematando tais contra-alegações com a formulação das seguintes Conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido em 15 de Abril, que, considerando não existir a alegada (pelo Insolvente) nulidade por violação de caso julgado formal anterior, ordenou o prosseguimento dos autos “com a apreensão e liquidação das mencionadas participações sociais”.
2. O Tribunal considerou – e bem – que, não obstante a decisão de encerramento por insuficiência de bens, tendo em conta que, posteriormente a esse despacho, veio a verificar-se que o Insolvente é titular das acções representativas do capital social da sociedade “(…), LLC”, sobre as quais o “Banco (…)” tem penhor e sendo aquela sociedade proprietária do imóvel sito em (…), designado por lote n.º 24, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), cujo valor patrimonial é de € 935.160,00, deve proceder-se à sua liquidação nos termos do disposto no artigo 241.º-A, n.º 1.
3. O Tribunal transcreve a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 115/XIV/3ª, onde se prevê que finda a liquidação do ativo, possa ainda ser possível, durante o período de cessão, o fiduciário apreender e vender bens que ingressem então no património do devedor e, posteriormente, afetar o respetivo produto da venda aos credores, nos mesmos moldes do rendimento disponível, evitando situações de enriquecimento sem causa daquele e, acrescentamos nós, de fraude à lei.
4. Com efeito, o sentido legal de se permitir a liquidação superveniente será a descoberta de bens que, por um lado, surgiram em momento posterior à liquidação; por outro lado, daqueles que não haviam sido detectados na fase de liquidação do ativo, permitindo assim a satisfação dos Credores através da liquidação adicional desses bens.
5. E considera que se se entendesse que os bens ora apurados (ainda que já existentes no património do Devedor), não poderiam liquidar-se, tal circunstância implicaria a retirada de consequências em termos de ocultação de bens (artigos 186.º, n.º 2, alínea a), 238.º, n.º 1, alínea e) e 243.º, n.º 1, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
6. Neste contexto, verificando-se – como se verificou – nestes autos a existência de participações sociais de que o Insolvente é titular e apesar de as mesmas não terem sido apreendidas, nada impede a sua apreensão e venda com vista à satisfação dos interesses dos credores.
7. A liquidação superveniente de natureza excepcional permite a atribuição do fiduciário de competência liquidatária para os bens ou direitos com conteúdo patrimonial que o devedor adquira após o encerramento da fase de liquidação e do processo de insolvência, durante o período da cessão e, por maioria de razão, relativamente aos bens que o Insolvente já tinha mas cuja apreensão não se havia ainda verificado.
8. Dado o objetivo da norma e considerando, por isso, o seu desiderato teleológico, parece ser de admitir o recurso à liquidação superveniente do ativo nos casos de apuramento posterior de bens ou direitos do devedor preexistentes, que o Administrador, por qualquer razão, não logrou apurar enquanto estava em curso a normal fase de apreensão e liquidação, apelando para o efeito à ratio legis do preceito e mediante interpretação extensiva do mesmo.
9. Aliás, como bem se diz no despacho, caso assim não fosse, sempre a ocultação de tal património seria motivo para cessação antecipada do pedido de exoneração, coisa que, certamente, o Insolvente não pretenderá, pois foi o mesmo que formulou tal pedido.
10. Deve, pois, manter-se o douto despacho proferido, prosseguindo os autos para a liquidação das acções, nos termos ordenados.

Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso e assim se fazer inteira e sã JUSTIÇA!

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Provam-se os seguintes factos relevantes para decisão, consubstanciados em outras tantas ocorrências processuais já constatadas:

1. A 22 de Agosto de 2023 foi decretada a insolvência do interessado … (vide fls. 9 a 11 dos autos).
2. A 16 de Novembro de 2023 foi junto o Relatório do sr. Administrador da Insolvência a que se reporta o artigo 155.º do CIRE (vide fls. 12 a 16).
3. Em 30 de Dezembro de 2024 foi proferida douto despacho em que se decidiu encerrar o processo de insolvência por inexistência de bens (vide citius).
4. A 12 de Fevereiro de 2025 proferiu-se então o douto despacho que foi inicialmente objecto do presente recurso (a fls. 64 dos autos), como segue:
«Ref.ª Citius 13322008: a apreensão e liquidação de valores mobiliários pertencentes ao insolvente poderá, caso venha a ser proferido despacho liminar de exoneração, prosseguir nos presentes autos nos termos do disposto no artigo 241.º-A, n.º 1, do CIRE.
Nestes termos, antes de mais, porquanto o Credor Banco (…), SA não fez prova de que tenha em depósito as ações representativas do capital da sociedade “(…), LLC”, com sede em (…), antes de mais, em 10 dias, deverá fazer prova da posse desses valores mobiliários. Notifique. (…)».
5. A 3 de Março de 2025 foi interposto recurso desse despacho, conforme ao teor do douto articulado de fls. 66 a 68 verso dos autos, que aqui se reproduz na íntegra (a data de entrada está aposta a fls. 65 dos autos).
6. Mas a 15 de Abril de 2025 (a fls. 73 a 78 dos autos) foi proferido douto despacho a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, e a complementar aquele douto despacho de 12 de Fevereiro, supra transcrito, nos seguintes termos (na parte agora objecto do presente recurso, naturalmente):
«(…)
Considerando que foi proferido despacho liminar de exoneração do passivo admitindo que o devedor (…) passe a ceder o rendimento disponível ao sr. Fiduciário nomeado e considerando a circunstância do Credor “Banco (…), SA”, pese embora o encerramento do processo de insolvência, declarar que detém em penhor ações representativas do capital social da sociedade “(…), LLC”, e que tais ações pertencerão ao devedor.
Mais se tendo alegado que tal sociedade constitui sociedade veículo porquanto proprietária do seguinte bem imóvel: sito em (…), designado por lote n.º 24, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), cujo valor patrimonial é de € 935.160,00, e comprovada a existência das mencionadas ações – requerimento do credor “Banco (…), SA” de 24 de fevereiro de 2025, Ref.ª 13421122 –, em complemento do despacho proferido em 12 de fevereiro de 2025 (Ref.ª 135281762), que rigorosamente não tem carácter decisório, determina-se que a liquidação daqueles direitos tenha lugar nos termos do disposto no artigo 241.º-A, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Mais se consigna que se entende não ter sido cometida nulidade ao proferir, quer o despacho de 12 de fevereiro de 2025 (Ref.ª 135281762), quer o presente despacho, porquanto a decisão proferida não coloca em causa o encerramento do processo de insolvência, antes determina a realização da liquidação superveniente a que se refere o artigo 241.º-A, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, norma que prevê:
“Finda a liquidação do ativo do devedor e encerrado o processo de insolvência nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, caso ingressem bens ou direitos suscetíveis de alienação no património daquele, o fiduciário deverá, com prontidão, proceder à sua apreensão e venda, sendo para o efeito aplicável o disposto no Título VI com as devidas adaptações.”
Sendo certo que o encerramento do processo de insolvência foi determinado ao abrigo do disposto no artigo 230.º, n.º 1, alínea d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, rigorosamente, não tendo ocorrido a liquidação do ativo da massa insolvente por não ter sido possível apreender quaisquer bens para esse efeito, não parece existir qualquer impedimento a jogar mão da faculdade prevista no preceito (inovadora porquanto introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro).
Refere-se na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 115/XIV/3ª que se prevê que finda a liquidação do ativo, possa ainda ser possível, durante o período de cessão, o fiduciário apreender e vender bens que ingressem então no património do devedor e, posteriormente, afetar o respetivo produto da venda aos credores, nos mesmos moldes do rendimento disponível, evitando situações de enriquecimento sem causa daquele, e, acrescentamos nós, de fraude à lei.
Segundo se entende, o sentido legal de se permitir a liquidação superveniente será a descoberta de bens que, por um lado, surgiram em momento posterior à liquidação; por outro lado, daqueles que não haviam sido detectados na fase de liquidação do ativo, permitindo assim a satisfação dos credores através da liquidação adicional desses bens, considerando o carácter de execução universal associado ao processo de insolvência.
De resto, a entender-se que os bens agora apurados (ainda que já existentes no património do devedor), não poderiam liquidar-se, tal circunstância implicaria a retirada de consequências em termos de ocultação de bens (artigos 186.º, n.º 2, alínea a), 238.º, n.º 1, alínea e) e 243.º, n.º 1, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Nestes termos, conclui-se pela inexistência da alegada nulidade por violação de caso julgado formal anterior (artigo 613.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.Civil), devendo prosseguir-se com a apreensão e liquidação das mencionadas participações sociais. Notifique.
Considerando que a decisão agora proferida complementa a anterior decisão a que se refere o recurso interposto (artigo 617.º, n.º 2, do CPC), notifique o Recorrente e os Credores da Insolvência (Recorridos), para os efeitos do disposto no artigo 617.º, n.º 3, do C.P.Civil».
7. Em 30 de Abril de 2025 foi apresentado recurso desse douto despacho (vide a data de entrada a fls. 79 e o douto articulado de fls. 80 a 89 dos autos.
8. E a 28 de Maio de 2025 foi proferido o seguinte douto despacho (vide fls. 96 dos autos):
«Por legal, tempestivo, encontrando-se o Recorrente dispensado do prévio pagamento da taxa de justiça (artigo 248.º, n.º 1, do CIRE) e por ter legitimidade, admito o Recurso apresentado pelo devedor (…), por requerimento com a Ref.ª 13493868, da decisão de 4 de março de 2025 (Ref.ª 135493388), com o complemento da decisão proferida em 15 de abril de 2025 (Ref.ª 136105140), na parte em que se refere à liquidação superveniente das ações representativas do capital social da sociedade (...) e se declara não ter sido cometida a nulidade a que se refere o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPCivil, sendo o recurso de apelação, com subida imediata, em separado (artigos 617.º, n.º 2, 627.º, n.º 1, 629.º, n.º 1, 637.º, n.os 1 e 2, 638.º, n.º 1, 641.º, n.º 1, 644.º, n.º 2, alínea g), 645.º, n.º 2, 647.º, n.º 1, todos do CPCivil e artigo 14.º, n.os 5 e 6, alínea a), do CIRE.
Mantém-se para efeitos de recurso o valor fixado na sentença de € 5.000,01 conforme o disposto no artigo 15.º do CIRE.
Notifique Recorrente e Recorridos para se pronunciarem quanto às peças que devem instruir o apenso de recurso (artigo 646.º, n.º 1, do CIRE).»
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Vejamos, então, as questões que demandam ainda a apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem, basicamente relacionadas com a prolação de dois despachos na 1ª instância – em 12.02.2025 e em 15.04.2025 – que remetem os autos de insolvência para a fase da liquidação superveniente dos bens móveis alegadamente pertencentes ao insolvente, uma vez proferido o douto despacho de 30.12.2024 que encerrara a instância por inexistência de bens. É isso o que hic et nunc está em causa, como se extrai do teor das conclusões alinhadas no recurso apresentado e supra transcritas na íntegra para facilidade de percepção da própria questão solvenda.
Pois, como é sobejamente conhecido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (vide artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC), naturalmente sem prejuízo das questões cujo conhecimento ex officio se imponha (vide artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, desse Código).
Tenha-se ainda em atenção que, nos termos do n.º 2 do seu artigo 617.º, “Se o juiz suprir a nulidade ou reformar a sentença, considera-se o despacho proferido como complemento e parte integrante desta, ficando o recurso interposto a ter como objeto a nova decisão” (nosso sublinhado).

Mas vejamos por que acaba por não assistir qualquer razão ao recorrente.

Antes de mais, importa dizer que não se coloca no recurso – ao contrário do que parece pretender-se – qualquer questão relacionada com as invalidades formais dos doutos despachos prolatados, porquanto a arguição da nulidade por violação de um despacho anterior transitado em julgado e esgotamento do poder jurisdicional do juiz sobre a matéria se reporta ao próprio mérito das decisões proferidas, rectius saber se podiam ainda reabrir a fase da liquidação do activo depois de o processo ter sido encerrado por inexistência de bens do insolvente.

Já quanto ao próprio mérito dos despachos e do recurso, tudo aponta para que o insolvente intente obter, nestes seus autos de insolvência, o melhor de dois mundos: por um lado, quer a exoneração do seu passivo restante (que é só de € 2.421.519,01, como informa o Administrador da Insolvência no Relatório a fls. 13 dos autos); por outro, nem quer pensar em que haja aqui sequer qualquer tentativa de liquidação do activo, seja anterior, seja posterior ao encerramento já decretado da instância de insolvência, em 30 de Dezembro de 2024; ao menos, uma vez que quer o apagão de todo o imenso rol dos seus débitos, que se não viesse a opor a que se fosse averiguar afinal de quem são (a quem pertencem) as acções alegadamente dadas em penhor ao Banco (…), SA e que lhe permitiram obter mais um chorudo crédito de € 900.000,00 que amealhou dessa instituição bancária; e que permitissem, ao menos, esclarecer se esse penhor é real, na medida em que está em causa uma sociedade (a “…, LLC”) com sede no estrangeiro e que é proprietária do imóvel sito em (…), na (…), com um valor patrimonial de € 935.160,00 – poderá ser este valor ou nada para os credores; tudo isso poderia, assim, vir a ser esclarecido nessa sede de liquidação superveniente do activo – e o insolvente até poder ter razão e ser-lhe ela reconhecida nessa sede, e mostrar-se um pouco mais merecedor do benefício da exoneração do (gigantesco) passivo restante que o acompanha.
Ao invés, o insolvente quer tudo o que possa aproveitar da insolvência – nem parece ser ele o insolvente, antes um credor a querer ver tutelados os seus créditos – e opõe-se ferozmente a qualquer tentativa de clarificação que possa vir ainda a ocorrer na liquidação superveniente que se anuncia. Não pode ser.

O douto despacho recorrido – de 15 de Abril de 2025 – admitiu in limine o pedido de exoneração do passivo restante e lançou mão do regime do recente artigo 241.º-A, n.º 1, do CIRE (aditado por razões óbvias pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro), o qual, sob a epígrafe de Liquidação superveniente, estatui que “Finda a liquidação do ativo do devedor e encerrado o processo de insolvência nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, caso ingressem bens ou direitos suscetíveis de alienação no património daquele, o fiduciário deverá, com prontidão, proceder à sua apreensão e venda, sendo para o efeito aplicável o disposto no título vi, com as devidas adaptações”. E tem justamente que ser assim, pelo que não haverá agora nenhuma censura a fazer-lhe.

Ademais, as críticas que o recorrente faz ao douto despacho que assim se pronunciou sobre a questão – de que o Mm.º Juiz a quo fez de propósito, apenas agora admitindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, para poder precisamente utilizar aquele normativo do n.º 1 do artigo 241.º-A – nem é adequada, nem justa, face ao que se passou no processo e à sua própria conduta, pois que o Tribunal tinha que dar esse despacho, pois a lei a tal o obrigava (vide o artigo 239.º do CIRE) e só o pôde fazer agora porque foi quando teve acesso a elementos fácticos (designadamente relativos à situação económica do visado) necessários para poder decidir a questão e que o próprio interessado deveria ter carreado e não carreou – estaria em Angola [veja-se o já mencionado despacho de 30.12.2024, no citius, no qual o Mm.º Juiz a quo até pretenderia proferir o despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, e não o pôde fazer por carecer de elementos para tal: «Com vista a proferir despacho liminar de exoneração e pese embora a tomada de declarações ao Insolvente, não foi então possível apurar quais as suas condições de vida; rendimentos auferidos; quais as despesas suportadas. Assim, porquanto o requerimento de 2 de agosto de 2023 (referência 11557257) não esclarece devidamente aquelas circunstâncias omitindo quais os atuais rendimentos; onde reside e como se sustenta, convida-se a esclarecer tais circunstâncias, no prazo de dez dias, devendo documentar devidamente os factos que venha esclarecer. Deverá ainda juntar certidão do assento de nascimento e declaração subscrita pelo próprio Devedor em que afirme encontrarem-se verificados os requisitos e conhecer as obrigações decorrentes do procedimento de exoneração do passivo restante, comprometendo-se a cumprir os deveres inerentes, previstos nos artigos 236.º e seguintes do CIRE, em especial, os deveres previstos no n.º 4 do artigo 239.º, daquele Código (…)»].
Não foi, assim, como se demonstra, por qualquer táctica do Tribunal que se não proferiu logo o despacho de admissão liminar da exoneração do passivo restante, mas esse retardamento ficou a dever-se à inércia do próprio insolvente e primeiro interessado na exoneração – o que não o inibe de fazer agora juízos de intenções malévolas ao próprio Tribunal como o que consta na sua conclusão 9: “Depois do recurso interposto, o Tribunal a quo achou por bem proferir despacho liminar de exoneração do passivo restante (que há quase 2 anos estava para ser proferido!), só para ter fundamento para reordenar a apreensão das ações, agora (!) alegadamente porque tal seria permitido no âmbito de uma liquidação superveniente…”. Mas não foi nada disso que se passou.

E foi assim enquadrada que decidiu a 1ª instância, acabando por tomar a decisão que se lhe impunha prolatar, a qual não deixou de levar em conta todas essas circunstâncias envolventes – como o faz, também, agora, esta 2ª instância.

Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá que manter, intacto na ordem jurídica, o douto despacho recorrido que assim veio a decidir, e improcedendo o presente recurso de Apelação.
*

Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar o douto despacho recorrido.
Custas pela massa insolvente (artigo 304.º do CIRE).
Registe e notifique.
Évora, 25 de Junho de 2025
Mário João Canelas Brás (Relator)
Tomé de Carvalho (1º Adjunto)
Cristina Dá Mesquita (2ª Adjunta)