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COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário
Cabe aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a competência para a apreciação de ação destinada à efetivação de responsabilidade extracontratual do Estado decorrente do funcionamento de serviços do Ministério Público. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 5691/23.1T8STB.E1
Juízo Central Cível de Setúbal
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1. Relatório
(…) intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra o Estado Português, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe quantia não inferior a € 185.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, e a quantia de € 8.409,09, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescidas de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
O autor baseia o pedido indemnizatório formulado em responsabilidade civil do Estado atinente ao funcionamento de serviços do Ministério Público.
O Ministério Público, em representação do Estado Português, apresentou contestação, invocando, além do mais, a incompetência material do Tribunal, sustentando que a competência para a apreciação do presente litígio pertence aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
O autor apresentou articulado no qual se pronunciou, além do mais, sobre a mencionada exceção arguida na contestação.
Foi realizada audiência prévia, na qual se fixou o valor à causa e se proferiu despacho saneador, em que se julgou verificada a exceção de incompetência material arguida, decidindo-se o seguinte: Por tudo o que vem de ser exposto, julgando-se este tribunal materialmente incompetente para conhecer a presente ação, decide-se absolver o R. da instância. Custas pelo A.. Notifique.
Inconformado, o autor interpôs recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por outra que considere o Tribunal competente em razão da matéria para tramitar e julgar a presente ação, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1ª- Não se conforma o Apelante com a decisão proferida pela Instância Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juiz 1, que declarou a competência material para apreciação da matéria em causa, aos tribunais administrativos, por a ação em causa não visar a impugnação de qualquer ato ou decisão jurisdicional traduzindo-se num simples pedido indemnizatório, em que não estão em causa atos imputados ao Ministério Público mas às suas consequências.
2ª – O Autor não concorda com tal interpretação, pois que, na ação em referência visa a efetivação da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito com o fundamento em factos ocorridos no quadro de um processo crime, no domínio de atos que eram devidos e obrigatórios no decorrer do inquérito, ao abrigo do disposto no artigos 272.º, n.º 1 e 2, 58.º, n.º 2, 4, 111.º, 112.º, 113.º, 61.º, todos do CPP ( conforme artigos 16 a 28, 61 a 64 da Petição Inicial), sendo assim iniludível que se está no domínio dos « atos relativos ao inquérito e ao exercício da ação penal», a que se refere a alínea c) do n.º 3 do artigo 4.º do ETAF , e portanto excluídos do âmbito da jurisdição administrativa – cfr. entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 13-01-2004, proc. 01346/03, e de 20-03-2007, proc. 030/07.
3.ª São assim os tribunais comuns os competentes para julgar e apreciar a matéria em causa e os pedidos formulados pelo Apelante, pelo que, deve a excepção de incompetência do tribunal improceder.
4ª. Ao considerar existir incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais comuns absolvendo o réu da Instância violou, com a devida vénia, o Tribunal, os artigos 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 3, alínea c), do ETAF.»
O Ministério Público, em representação do Estado Português, apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre decidir se cabe aos tribunais judiciais ou aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a competência em razão da matéria para a apreciação do presente litígio.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
2. Fundamentos
2.1. Tramitação processual
Os elementos com relevo para a apreciação da questão suscitada constam do relatório supra.
2.2. Apreciação do objeto do recurso
Vem posta em causa na apelação a decisão de absolvição do réu da instância, com fundamento na exceção de incompetência em razão da matéria, por se ter entendido que a apreciação do presente litígio se encontra abrangida pela competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos previstos na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).
Discordando deste entendimento, defende o recorrente a competência em razão da matéria dos tribunais judiciais para o julgamento da presente ação, sustentando que se mostra preenchida a previsão da alínea c) do n.º 3 do artigo 4.º do ETAF e que tal exclui do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação deste litígio.
Vejamos quais os tribunais competentes para apreciar o presente litígio, aferindo se tal compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, como entendeu a 1.ª instância, ou aos tribunais judiciais, conforme defende o apelante.
Os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada, enquanto os outros tribunais, de outras ordens jurisdicionais, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas, conforme se extrai do disposto no artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, do artigo 64.º do Código de Processo Civil e do artigo 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).
Daqui resulta que a competência dos tribunais judiciais só se verifica quando as regras reguladoras de outra ordem jurisdicional não abranjam a apreciação da questão submetida a tribunal.
Impõe-se, assim, analisar o objeto da ação e averiguar da existência de norma específica atributiva de competência a jurisdição especial, no caso, aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal administrar a justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, conforme dispõe o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, e o artigo 144.º, n.º 1, da LOSJ, esclarecendo o artigo 1.º, n.º 1, do ETAF, que tal competência se reporta aos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto. Dispõe este preceito, no seu n.º 1, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas às matérias elencadas nas alíneas a) a n), bem como, conforme consta da alínea o), às relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nessas alíneas.
Nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º, invocada na decisão recorrida, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo.
Face à ressalva constante da parte final da citada alínea f), há que ter em conta a alínea a) do n.º 4 do mesmo preceito, nos termos da qual está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, entre outras situações, a apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso.
Considerando os fundamentos invocados nas alegações de recurso, cumpre atender, ainda, ao disposto na alínea c) do n.º 3 do mencionado artigo 4.º, nos termos da qual está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.
É sabido que a competência do tribunal deve ser aferida em função da forma como o autor estrutura o pedido e a respetiva causa de pedir, bem como pela natureza das partes.
Está em causa, nos presentes autos, um pedido indemnizatório formulado por um particular contra o Estado Português, com fundamento em responsabilidade civil atinente ao funcionamento de serviços do Ministério Público.
Analisando a petição inicial, verifica-se que o autor pretende, através da presente ação, obter decisão judicial que condene o Estado a pagar-lhe determinado montante, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que alega ter sofrido em consequência de deficiente funcionamento que imputa aos serviços do Ministério Público da comarca de Setúbal.
Estando em causa a apreciação de um pedido de condenação no pagamento de determinado montante a título de indemnização, verifica-se que o litígio não tem por objeto a impugnação de qualquer ato, designadamente daqueles a que se reporta a alínea c) do n.º 3 do artigo 4.º, invocada pelo apelante, a qual prevê a impugnação de atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.
Afastado o fundamento jurídico invocado pelo apelante para a alteração da decisão recorrida, improcede a argumentação apresentada para o efeito, mostrando-se o recurso manifestamente improcedente.
Efetivamente, não estando em causa a invocação de erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, nem a impugnação de atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões, mas a apreciação da atuação dos serviços do Ministério Público no âmbito de determinado inquérito, alegando o autor que o deficiente funcionamento que imputa a tais serviços lhe causou danos cuja indemnização peticiona, verifica-se que o litígio se subsume à previsão da alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, conforme considerou a 1.ª instância.
Apreciando caso análogo, o Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 27-11-2024 (publicado em www.dgsi.pt), proferido no processo n.º 01753/23.3BEPRT (relatora: Teresa de Sousa), entendeu o seguinte: É da competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal a apreciação de uma acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado com fundamento com fundamento na alegação de incumprimento pelo Ministério Público dos seus deveres funcionais.
No mesmo sentido se pronunciou por diversas vezes o Tribunal dos Conflitos, podendo indicar-se, a título exemplificativo, os acórdãos (publicados em www.dgsi.pt) seguintes:
- o acórdão de 05-05-2021 (relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), proferido no processo n.º 03461/20.8T8LRA.S1, no qual se considerou o seguinte: É da competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal a apreciação de uma acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual com fundamento na alegação de incumprimento, pelo Ministério Público, do dever legal de instaurar providência tutelar cível relativamente ao autor, durante a sua menoridade;
- o acórdão de 08-07-2021 (relatora: Teresa de Sousa), proferido no processo n.º 02/20, no qual se considerou o seguinte: É da competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal a apreciação de uma acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado com fundamento na alegação de incumprimento, pelo Ministério Público, do dever legal de prosseguir com um inquérito criminal;
- o acórdão de 23-05-2023 (relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), proferido no processo n.º 0785/22.3T8PVZ.S1, no qual se considerou o seguinte: É da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação de uma acção de indemnização proposta contra o Estado com fundamento na alegação de uma omissão de conduta legalmente devida por parte do Ministério Público, enquanto titular da acção penal, que, na óptica do autor, teve como consequência a extinção do procedimento criminal, por prescrição, e veio a ocasionar danos não patrimoniais indemnizáveis em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Tendo-se concluído que as regras reguladoras da jurisdição administrativa e fiscal abrangem a apreciação da questão submetida a tribunal, afastada se encontra a competência residual dos tribunais judiciais, o que impõe a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
Em conclusão: (…)
3. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
Évora, 25-06-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos (1.º Adjunto)
Eduarda Branquinho (2.ª Adjunta)