OBRIGAÇÕES FUTURAS
CONTRATO-PROMESSA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
Sumário

I – O contrato de reserva de imóvel é um contrato atípico, em sentido estrito, dado que não se encontra previsto na lei, sendo-lhe aplicáveis, além das cláusulas acordadas pelos contraentes, as normas do Código Civil que consagrem regras gerais, bem como as disposições reguladoras de contratos nominados com os quais apresente maior afinidade;
II – Prevendo o contrato celebrado a entrega pelos autores à ré da quantia de € 15.000,00, a título de reserva de bem imóvel que ponderavam comprar-lhe, visando a celebração de contrato-promessa de compra e venda desse bem, acompanhada pela assunção, por parte da ré, de diversas obrigações – a saber: i) a obrigação de reservar o imóvel, o que importa a não aceitação de outra proposta de aquisição daquele bem, bem como de celebrar o contrato-promessa com os autores nos termos acordados; ii) a obrigação de restituição do montante entregue, caso os autores pretendessem desvincular-se da acordada celebração do contrato-promessa, sendo estabelecido o prazo de oito semanas para o efeito; iii) a obrigação de imputação dessa quantia no valor devido a título de sinal aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda –, não poderá considerar-se que tal prestação tenha deixado de ter causa justificativa na sequência da desistência operada pelos autores após o acordado período de oito semanas;
III – Tendo-se provado que, como contrapartida da entrega pelos autores do montante de € 15.000,00, a ré assumiu, entre outras obrigações, a obrigação de reserva do imóvel para celebração com os autores do acordado contrato-promessa, verifica-se que a reserva do imóvel até à data da desistência, operada pelos autores após o acordado período de oito semanas, constituiu uma causa para aquela prestação;
IV – Não decorrendo da factualidade provada a inexistência de uma obrigação que tenha justificado o dispêndio patrimonial dos autores, antes se extraindo de tal factualidade a existência de uma causa justificativa para o efeito – a obrigação assumida pela ré de reservar o imóvel para celebração com os autores do acordado contrato-promessa –, causa essa que não deixou de existir, considerando que a ré reservou o imóvel até à desistência operada pelos autores, não poderá considerar-se preenchido o pressuposto previsto no artigo 473.º, n.º 2, do CC, integrador do enriquecimento sem causa, o que afasta a verificação cumulativa dos requisitos do instituto.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 446/23.6T8TVR.E1
Juízo de Competência Genérica de Tavira
Tribunal Judicial da Comarca de Faro


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

(…) e (…) intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra (…), Lda., pedindo a condenação da ré, pelos motivos que expõem, a pagar-lhes a quantia de € 15.000,00 – a título de devolução do montante que alegam ter-lhe entregue para efeitos de reserva de imóvel com vista a futura celebração entre as partes de contrato-promessa de compra e venda de fração autónoma de determinado prédio a construir – e a quantia de € 2.500,00 – a título de indemnização por danos não patrimoniais –, acrescidas de juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a data da interpelação extrajudicial que invocam até integral pagamento, como tudo melhor consta da petição inicial.
Citada, a ré contestou, defendendo-se por impugnação motivada e pugnando pela improcedência da ação.
Foi realizada audiência prévia, na qual se fixou o valor à causa e se proferiu despacho saneador, após o que se identificou o objeto do litígio e se procedeu à enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se decidiu o seguinte:
Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em sua consequência:
a) Condena-se a Ré (…), Lda., a restituir aos Autores (…) e (…) a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), acrescida de juros moratórios calculados sobre esse montante, à taxa supletiva para os juros civis, contados desde 04 de Maio de 2022 e até integral e efectivo pagamento; e
b) Absolve-se a Ré da restante parte do pedido contra si deduzido pelos Autores.
Custas da acção por ambas as partes na proporção do decaimento – artigo 527.º do NCPC.
Registe e notifique.
Inconformada, a ré interpôs recurso da sentença, pugnando pela revogação do respetivo segmento condenatório e prolação de decisão que a absolva totalmente do pedido, terminando as alegações com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«A) A Recorrente não se conforma com a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo quanto à decisão da matéria de facto na parte que deu como provados os factos enunciados nos Pontos 2, 6 e 18 dos Factos Provados.
B) No ponto 2 dos Factos Provados pelo Tribunal a quo refere-se que: “A Ré propôs fosse efetuada a reserva da futura fração autónoma mediante o pagamento da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), valor esse que seria posteriormente descontado ao montante do sinal a ser pago pelos Autores no momento da outorga do contrato promessa de compra e venda.”
C) De acordo com a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo este facto encontra-se admitido por acordo.
D) Sucede que, este facto isolado não é suficiente para compreender todo o processo negocial levado a cabo entre as partes antes da celebração do Acordo de Reserva, que não é despiciendo para compreender o conteúdo do mesmo.
E) A proposta da Recorrente de que a reserva da futura fração autónoma designada pela letra F do prédio urbano sito em (…), União de Freguesias de (…), concelho de Tavira, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o n.º (…), fosse efetuada mediante o pagamento do valor de € 15.000,00 (quinze mil euros) foi uma contraproposta da Recorrente face a uma primeira proposta dos Recorridos.
F) Quando manifestaram a intenção de adquirir a fração autónoma em discussão nos presentes autos, os Recorridos solicitaram que o montante pago para reserva da fração autónoma fosse reembolsável por um determinado período de tempo, em concreto, pelo período de oito semanas.
G) Foi face ao pedido dos Recorridos que a Recorrente contrapropôs que, existindo esse prazo, o valor da reserva fosse superior ao que tinha solicitado para a reserva das restantes frações autónomas do mesmo imóvel – € 15.000,00 (quinze mil euros) ao invés de € 10.000,00 (dez mil euros).
H) A propósito desta negociação veja-se as declarações de parte da Recorrente, na pessoa do seu gerente (…), na sessão de 07/10/2024, minutos 01:09:00 a 01:22:50 (gravação constante do ficheiro informático denominado Diligencia_ 446-23.6T8TVR_2024-10-07-14-14-01):
(…)
I) E ainda o depoimento prestado pela testemunha (…) na sessão de 07/10/2024, minutos 00:12:25 a 00:20:00 (gravação constante do ficheiro informático denominado Diligencia_446-23.6T8TVR_2024-10-07-14-14-01):
(…)
J) Não é despiciendo que a proposta da Recorrente quanto ao montante pago a título de reserva veio no seguimento de uma primeira proposta dos Recorridos quanto ao estabelecimento de um prazo durante o qual esse montante pago a título de reserva seria reembolsável uma vez que, assim se percebe que, houve, de facto, uma negociação, excecional, prévia à celebração do Acordo de Reserva com vista ao estabelecimento das consequências associadas a uma eventual desistência de alguma das partes relativamente ao negócio definitivo.
K) Termos em que se requer que o Tribunal ad quem dê como provado, a respeito do facto provado n.º 2, o seguinte:
“2. Na sequência da proposta dos Autores de estabelecimento de um prazo de oito semanas durante o qual o montante pago a título de reserva seria reembolsável, a Ré contrapropôs que fosse efetuada a reserva da futura fração autónoma mediante o pagamento da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), por contraposição ao montante das reservas que a mesma cobrou para as restantes frações autónomas do imóvel, valor esse que seria posteriormente descontado ao montante do sinal a ser pago pelos Autores no momento da outorga do contrato promessa de compra e venda.”
L) Ou, em alternativa, e caso assim não se entenda, que o Tribunal ad quem acrescente um novo facto provado, com o seguinte teor:
“Os Autores propuseram à Ré estabelecer no “Acordo de Reserva” um período de oito semanas durante o qual o montante pago a título de reserva seria reembolsável em qualquer circunstância”.
M) Nos pontos 6 e 18 dos Factos Provados pelo Tribunal a quo refere-se que:
“6. Os Autores, face à inércia, da Ré, perderam a confiança nesta e na celebração do negócio e por conseguinte perderam o interesse na aquisição daquele imóvel.
18. Com tal conduta, não tendo facultado a licença de construção, os Autores perderam a confiança na celebração do negócio e na própria Ré, tendo perdido a vontade e interesse em contratar e, por conseguinte, tendo perdido a restituição do valor da reserva.”
N) Face à prova produzida a Recorrente não pode concordar com estes factos dados como provados, que estão em clara contradição com o Ponto 24 dos Factos Provados e com o Ponto 1 dos Factos dados como Não Provados.
O) Foi dado como provado que os Recorridos aquando da celebração do Acordo de Reserva sabiam que inexistia, ainda, o alvará de licença de construção (cfr. Ponto 24 dos Factos Provados).
P) Os Recorridos também reconhecem no artigo 11.º da Douta PI que a licença de construção era condição essencial à celebração do Contrato-Promessa de Compra e Venda.
Q) Também resultou das declarações de parte da Recorrida (…), na sessão de 07/10/2024, minutos 00:33:00 a 00:50:19 (gravação constante do ficheiro informático denominado Diligencia_446-23.6T8TVR_2024-10-07-14-14-01) que não foi dado (pela Recorrente aos Recorridos) qualquer prazo / expectativa quanto à emissão da licença de construção:
(…)
R) Mais, o Tribunal a quo também não considerou como provado o seguinte: “Com a menção, que ficou a constar no “Acordo de Reserva”, “€ 15.000,00 (quinze mil euros/Fifteen Thousand Euros) – reembolsável pelo período de 8 semanas/Fully refundable for a period of 8 weeks”, compreenderam os Autores que o contrato promessa de compra e venda viria a ser celebrado dentro desse mesmo prazo” (cfr. Ponto 1 dos Factos Não Provados).
S) Assim, não existe qualquer fundamento que permita concluir que os Recorridos tinham qualquer expectativa, em termos temporais, quanto à celebração do Contrato-Promessa de Compra e Venda, que tenha sido frustrada e que tenha determinado a quebra da confiança na Recorrente e na celebração do negócio definitivo.
T) Não se compreende que inércia da Recorrente é que o Tribunal a quo considerou como suscetível de quebrar a confiança dos Recorridos na celebração do negócio definitivo, inércia essa que não resultou provada da prova produzida, bem ao contrário.
U) Logo após assinatura do Acordo de Reserva foram trocados diversos e-mails relativos aos documentos necessários para a celebração do Contrato-Promessa de Compra e Venda e até mesmo minutas desse mesmo contrato, o que resulta provados dos Docs. n.º 1 e 4 da Contestação e foi confirmado pela testemunha (…) e pela própria Recorrida (…).
V) O Contrato-Promessa de Compra e Venda apenas não foi celebrado até ao dia 04/05/2022, data em que os Recorridos manifestaram, pela primeira vez, o seu desinteresse na celebração do negócio definitivo, por falta de emissão da licença de construção. Falta essa que, reitere-se, era do conhecimento dos mesmos aquando da assinatura do Acordo de Reserva, não lhes tendo sido garantido pela Recorrente qualquer prazo para a respetiva emissão.
W) Termos em que se requer a alteração da decisão de facto relativa aos Pontos 6 e 18 dos Factos Provados, devendo ser tidos como não provados, em estrita observância ao n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil.
X) E, adicionalmente, face à prova produzida, em concreto, às declarações de parte da Recorrida, acima transcritas, deverá o Tribunal ad quem acrescentar um novo facto provado, com o seguinte teor:
“Não foi dado aos Recorridos pela recorrente qualquer prazo para a emissão da licença de construção.”
DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE DIREITO
Y) A Recorrente também não se conforma com decisão relativa à matéria de direito, na parte que julgou a ação parcialmente procedente e, consequentemente, condenou a Ré à restituição aos Autores do montante de € 15.000,00 (quinze mil euros), acrescido dos juros moratórios respetivos contados desde a data de interpelação para o efeito.
Z) O Tribunal a quo entendeu que o montante pago a título de reserva pelos Recorridos teve como causa justificativa apenas a imputação dessa quantia no sinal objeto do Contrato-Promessa e, num segundo momento, no preço objeto do contrato de compra e venda.
AA) E que, por isso, tendo-se verificado a rutura do negócio, por desistência dos Recorridos, a prestação efetuada pelos mesmos deixou de ter em vista esse efeito que fora perspetivado pelas partes, tendo, por isso, estes o direito à devolução do montante pago a título de reserva sob pena de se aplicar o instituto do enriquecimento sem causa relativamente à Recorrente.
BB) Salvo o devido respeito, este entendimento do Tribunal desconsiderou todo o processo negocial, a relação estabelecida entre as partes e mesmo o que a doutrina e jurisprudência dos nossos Tribunais têm escrito sobre este tipo de contratos não tipificados na lei.
CC) As partes negociaram o montante da reserva e um prazo durante o qual esse montante seria reembolsável.
DD) Ao contrário do que os Recorridos tentaram fazer parecer na douta PI o prazo das oito semanas não foi acordado como um prazo para a celebração do Contrato-Promessa de Compra e Venda, tal não resultou provado da prova produzida (cfr. Ponto 1 dos Factos Não Provados).
EE) Ou seja, o prazo de oito semanas foi somente negociado pelas partes como um prazo durante o qual o montante pago a título de reserva seria reembolsável, como um período de reflexão para os Recorridos consolidarem a sua intenção de prosseguir com o negócio ou, em alternativa, exercerem o direito ao reembolso do valor da reserva.
FF) Findo esse prazo a reserva deixaria de ser reembolsável, caso contrário a aposição dessa cláusula / prazo no Acordo de Reserva careceria de qualquer utilidade.
GG) Esta interpretação, que resulta clara do Acordo de Reserva assinado entre as partes (numa interpretação a contrario sensu) foi também confirmada pelo gerente da Recorrente.
HH) E mesmo que assim não se entenda, o que se admite por mera cautela de patrocínio, veja-se que a propósito deste tipo de Contratos /Acordos de Reserva, ainda que não tipificados na lei, é entendimento da jurisprudência e da doutrina que o mero estabelecimento de um montante que deve ser pago a título de reserva é suficiente para que se entenda que as partes pretenderam valorar as consequências da respetiva responsabilidade pré-contratual.
II) Neste sentido veja-se o que se referiu veja-se o que se referiu no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-07-2023, Processo n.º 25178/20.3T8LSB.L1-7, disponível em formato digital em www.dgsi.pt: “É normal que, quando as partes celebrem um contrato de reserva de imóvel, a vontade relativa ao contrato final ainda não se encontre suficientemente consolidada, pretendendo as partes manter a liberdade de contratar. No entanto, compreende-se ainda assim dentro da liberdade contratual o estabelecimento entre as partes das consequências jurídicas do direito ao arrependimento nessa fase pré-contratual relativamente ao contrato de alienação, ou ao contrato-promessa de alienação, como se fosse um “contrato-promessa precário”, no qual o arrependimento é permitido, sem possibilidade de execução específica, tendo como preço da desistência o valor da reserva, que funciona na prática como “sinal penitencial”.
JJ) E ainda o que se referiu no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-09-2022, Processo n.º 27005/18.2T8PRT.P1, também disponível em formato digital em www.dgsi.pt, no qual se referiu que: “A reserva tem aqui uma função semelhante à que é usualmente atribuída ao sinal penitencial, na dicotomia que no âmbito de um contrato promessa o opõe ao sinal (penal) confirmatório. É que o sinal (meramente) penitencial é “o preço da liberdade” de não contratar, sem a sujeição a outras consequências, é o correspectivo da faculdade de arrependimento que as partes se reservam. O estabelecimento de um preço para esta liberdade, quer no âmbito de um contrato promessa, quer no âmbito de um mero “contrato de reserva” como o presente, faz igual sentido, quer quando se perspective o interesse de quem pretende (se obriga a) vender – tratando-se aí de reparar ou compensar o prejuízo que representa a imobilização do bem na sua esfera jurídica onde fica guardado durante determinado prazo para quem o pretende (se obrigou a) comprar – quer quando se perspective o interesse desta parte – compensando aqui as expectativas que se vêem frustradas com a decisão de não vender. E são as partes, com este mero sistema de reserva, no domínio ainda pré contratual (ou com o regime do sinal no contrato promessa e a respectiva presunção de exclusão da execução especifica do mesmo), quem, no âmbito da sua liberdade contratual e em função do preço que encontram para reserva (ou para o sinal), acabam por valorar as consequências da respectiva responsabilidade pré contratual, (ou contratual), ali, quando fazem abortar as negociações, recusando-se a celebrar o contrato a que as mesmas tendiam, aqui, quando deixam de cumprir as respectivas obrigações” – acórdão da Relação de Lisboa de 24/9/2014, consultável em www.dgsi.pt.”
KK) Ou seja, e conforme resulta dos Acórdãos supra citados, as partes ao celebrarem um Acordo de Reserva, em função do preço que estabelecem para essa reserva, valoram e estabelecem as consequências da respetiva responsabilidade pré contratual.
LL) Se assim não fosse o pagamento dessa reserva careceria de qualquer utilidade.
MM) A reserva quando pensada na perspetiva do “Promitente-Vendedor” tem o intuito de acautelar as suas expectativas quanto à celebração do negócio definitivo e compensá-lo em caso de frustração das mesmas, uma vez que este, além de se ver obrigado a celebrar o negócio de compra e venda, se vê também obrigado, de imediato, a retirar o imóvel do mercado, ficando sujeito à eventual perda de propostas mais vantajosas.
NN) Neste sentido, veja-se o que se referiu no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-07-2023, Processo n.º 25178/20.3T8LSB.L1-7, consultável em www.dgsi.pt: “ é como se tivesse sido estabelecida uma cláusula penal indemnizatória, lícita nos termos do artigo 810.º, n.º 1, do C.C., em que a compensação devida pela obrigação de manter o imóvel fora do mercado durante determinado período de tempo, com os consequentes prejuízos daí decorrentes para o vendedor, deveria ser indemnizada pelo pagamento do valor da reserva que é fixado, por comum acordo, como adequado à reparação desses potenciais danos e é tido como suficiente para garantir a tutela da confiança relativa à expressão do interesse do comprador perante o vendedor na concretização do negócio visado.”
OO) No douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26/09/2022, Processo n.º 27005/18.2T8PRT.P1, consultável em www.dgsi.pt, que referiu que: “O valor da reserva, quando se perspetive o interesse de quem pretende vender, destina-se a reparar o prejuízo que representa a imobilização do bem na sua esfera jurídica onde fica guardado durante determinado prazo para quem o pretende comprar, e quando se perspetive o interesse desta parte, implica a compensação pelas expectativas que se vêem frustradas com a decisão de não vender.
PP) E ainda o que referiu o professor João Calvão da Silva in “Sinal e Contrato-Promessa”, 6.ª edição, Revista e Aumentada, Coimbra, 1998, páginas 35 e 36: “Naturalmente, nada obsta a que, em conformidade com a autonomia da vontade, as partes celebrem um autónomo contrato de opção atributivo de um direito potestativo de opção relativo à celebração de um (definitivo) contrato principal ou mesmo de um contrato-promessa. Por exemplo: A, interessado em adquirir um andar, encontra um de que gosta, pertencente a B. Não quer todavia, celebrar já o contrato-promessa de compra e venda, pois deseja continuar a ver outros andares. Mas como receia que B se vincule a vendê-lo a outrem convenciona com ele a «reserva de opção», por prazo determinado, relativa à conclusão de um contrato-promessa bilateral, contra o pagamento de uma certa quantia pecuniária. (…) E qual o tratamento jurídico a dar à contrapartida pecuniária de reserva de opção? Há que distinguir:
5) Se a contrapartida tiver sido entregue a B no momento da conclusão do contrato de opção e A exercer o seu direito, deverá valer como sinal se o dever de restituição não resultar da interpretação contratual;
6) Se a contrapartida foi entregue e A não exerce a opção de que é beneficiário, será retida por B como “preço” da opção concedida;
7) Se a contrapartida não foi entregue e A exerce a opção, não será devida;
8) Se a contrapartida não foi entregue e A não exerce a opção, será devida como «preço» (de pagamento) da opção concedida.”
(…)
QQ) Ou seja, mesmo que se entenda que do Acordo de Reserva celebrado não resulta claro, por uma interpretação a contrario sensu que foi confirmada pelo gerente da Recorrente, que após as oito semanas o montante pago a título de reserva deixaria de ser reembolsável, o entendimento da jurisprudência e da doutrina a propósito destes contratos de reserva não tipificados na lei é o de que o montante pago a título de reserva é acordado pelas partes exatamente para acautelar a frustração de expectativas de qualquer uma delas na celebração do negócio definitivo.
RR) Em especial as expectativas do Promitente-Vendedor que além de se ver obrigado a alienar o imóvel, se vê obrigado a retirar o mesmo do mercado, perdendo eventuais propostas mais vantajosas.
SS) Importa ainda referir que também não será defensável, conforme parece andar a decisão recorrida, que o arrependimento dos Recorridos quanto à celebração do negócio definitivo é imputável à Recorrente (em especial a uma inércia da mesma) o que confere o direito aos Recorridos de devolução do montante pago a título de reserva.
TT) A Recorrente cumpriu integralmente todas as obrigações por si assumidas no Acordo de Reserva, mantendo o imóvel fora do mercado reservado para os Recorridos durante cinco meses e não se remeteu ao silêncio após assinatura do Acordo de Reserva, tendo trocado correspondência com os representantes dos Recorridos sobre a minuta do Contrato-Promessa de Compra e Venda que deveria ser assinada.
UU) Com efeito, não se compreende que inércia ou omissão por parte da Recorrente é que pode justificar uma quebra da confiança dos Recorridos quer na Recorrente, quer na celebração do negócio definitivo.
VV) Até porque, reitere-se, não resultou provado da prova produzida que tenha sido acordado entre as partes qualquer prazo para a celebração do Contrato-Promessa de Compra e Venda, conforme alegaram os mesmos em sede de Petição Inicial.
WW) Os Recorridos, ao não solicitarem a devolução do montante pago a título de reserva no prazo de oito semanas, criaram na Recorrente uma legítima expectativa de que o negócio prosseguiria e foi essa expectativa que foi frustrada com o arrependimento dos Recorridos.
XX) Salvo o devido respeito, a decisão recorrida interpreta de forma errada a relação estabelecida entre as partes e os efeitos por elas acordados no âmbito da liberdade contratual relativos à frustração do negócio definitivo.
YY) A condenação da Recorrida na devolução integral do valor pago pelos Recorridos desconsidera o equilíbrio entre as partes, contrariando os princípios da boa-fé e da justa repartição dos riscos em negócios preliminares, especialmente nos Acordos de Reserva.
ZZ) Termos em que deverá ser parcialmente revogada a sentença sob recurso, quanto à decisão sobre a matéria de facto e quanto à decisão de direito nos termos expostos, e, em consequência, serem os pedidos deduzidos pelos Recorridos julgados integralmente improcedentes, por não provados.»
Os autores apresentaram contra-alegações, sustentando dever ser rejeitada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, por incumprimento de ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, e pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- obrigação de restituição pela ré, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, da quantia entregue pelos autores;
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1. Os Autores pretendiam adquirir a fração autónoma designada pela letra F do prédio a construir no prédio urbano sito em (…), União de Freguesias de (…), concelho de Tavira, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o n.º (…).
2. A Ré propôs fosse efetuada a reserva da futura fracção autónoma mediante o pagamento da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), valor esse que seria posteriormente descontado ao montante do sinal a ser pago pelos Autores no momento da outorga do contrato promessa de compra e venda.
3. Os Autores efetuaram o pagamento e foi-lhes entregue um escrito intitulado de “Acordo de Reserva”, com o seguinte teor:“ACORDO DE RESERVA
RESERVATION AGREEMENT
Proprietário/Owner: (…), Lda.
NIF/Fiscal Number: (…)
Sede/Head Office: Praceta (…), 4 - 8800-391 Tavira
Proponentes/proponent: (…) and (…)
Passaporte n.º/Passport n.º; (…) – (…) / (…) – (…)
NIF/ Fiscal number: (…) – NIF (…) / (…) – N1F (…)
Morada/Address: 1400 (…) Road, #1013, (…), Ontario, L5E 3E1 Canada
Proposta/proposal: (…) Apartments - Fracção/fraction: F with garden and pool.
Preço/Price: € 460.000,00 (quatrocentos e sessenta mil euros/Four Hundred and Sixty Thousand Euros)
Reserva/Reservation: € 15.000,00 (quinze mil euros/Fifteen Thousand Euros) - reembolsável pelo período de 8 semanas/ Fully refundable for a period of 8 weeks
Nota/Note: Transferência Executada para a Conta com o / Transfer Executed to Account with the IBAN: PT50 (…)
Condições Gerais / General Conditions :
O Montante entregue a título de Reserva e parte do sinal, será descontado na assinatura do Contrato de Promessa de Compra e Venda (CPCV) / The amount delivered as a reserve and part of the deposit, will be deducted from the signing of the Promissory Purchase and Sale Agreement.
€ 15.000,00 (Quinze Mil Euros/ Fifteen Thousand Euros) de Reserva / Reservation.
10% no Contrato de Promessa de Compra e Venda com o início da construção / 10% on the Purchase and Sale Promise Contract with the start of construction.
5% de reforço de sinal 90 dias depois da assinatura do CPCV / 5% signal reinforcement 90 days after signing the Promise Purchase and Sale Agreement.
5% de reforço de sinal 180 dias depois da assinatura do CPCV / 5% signal reinforcement 180 days after signing the Promise Purchase and Sale Agreement.
5% de reforço de sinal 270 dias depois da assinatura do CPCV / 5% signal reinforcement 270 days after signing the Promise Purchase and Sale Agreement.
5% de reforço de sinal 360 dias depois da assinatura do CPCV/5% signal reinforcement 360 days after signing the Promise Purchase and Sale Agreement.
5% de reforço de sinal 450 dias depois da assinatura do CPCV/5% signal reinforcement 450 days after signing the Promise Purchase and Sale Agreement.
5% de reforço de sinal 540 dias depois da assinatura do CPCV/5% signal reinforcement 540 days after signing the Promise Purchase and Sale Agreement.
60% com a assinatura da escritura de Compra e Venda, até 90 dias depois do último reforço de sinal/60% with the signing of the Purchase and Sale deed, up to 90 days after the last signal reinforcement.
Tavira, 24 de Janeiro 2022/ Tavira, january 24, 2022
O Comprador/The Buyer:
O Vendedor/The Seller:
(…)”.
4. No decurso das oito semanas após o “Acordo de Reserva” do imóvel, a então mandatária dos Autores solicitou sucessivamente à Ré os documentos necessários à redação da minuta do contrato promessa de compra e venda, nomeadamente a licença de construção.
5. Até ter-se esgotado o prazo de 8 (oito) semanas após o “Acordo de Reserva” a Ré não enviou a licença de construção, o que, por conseguinte, inviabilizou a outorga do contrato promessa de compra e venda até ao termo desse prazo.
6. Os Autores, face à inércia da Ré, perderam a confiança nesta e na celebração do negócio e por conseguinte perderam o interesse na aquisição daquele imóvel.
7. Na senda, os Autores solicitaram à sua então mandatária que informasse a Ré da sua intenção de desistir do negócio, bem como que solicitasse a devolução do montante de € 15.000,00 (quinze mil euros), entregue a título de reserva.
8. O prazo de 8 (oito) semanas após o “Acordo de Reserva” esgotou-se, não se tendo outorgado o contrato promessa nesse prazo, pois a Ré não disponibilizou a licença de construção necessária à redação e outorga do contrato promessa de compra e venda.
9. Aos 4 de Maio de 2022 a mandatária dos Autores enviou email à Ré a solicitar a devolução do valor pago, conforme email com o seguinte teor:
“(…)
Venho pelo presente solicitar a devolução do valor da reserva (quinze mil euros) referente ao assunto em epígrafe, em virtude de, até à data, não nos ter solicitado todos os documentos necessários para a finalização do contrato promessa de compra e venda e em consequência este não ter sido assinado, pelo que, os clientes não pretendem prosseguir com a presente compra.
Anexo os detalhes da nossa conta clientes.
(…)”.
10. A Ré recusou-se a devolver o valor entregue pelos Autores, fundamentando a sua posição no facto de já ter decorrido o prazo de 8 (oito) semanas para reembolso do mesmo.
11. A Ré não enviou a licença de construção necessária para a redação e outorga do contrato promessa naquele prazo de 8 (oito) semanas após o “Acordo de Reserva”.
12. Até aos 04/05/2022 não havia sido facultada pela Ré a referida licença de construção.
13. Inconformados com a resposta da Ré, os Autores remeteram, no dia 12 de julho de 2022, carta para que aquela procedesse à devolução do valor, com o seguinte teor:
“(…)
Exmos. Senhores
(…), Lda.
Rua (…), em (…)
8800-360 Tavira
C/ Registada com AR
12 de Julho de 2022
Assunto: Interpelação extrajudicial para devolução de quantia entregue a título de reserva da futura fração autónoma provisoriamente designada pela letra “F” do prédio urbano, sito em Rua de (…), União de freguesias de (…), concelho de Tavira, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o n.º (…).
Exmos. Senhores,
Venho pela presente, em representação dos N/ Constituintes (…) e (…), solicitar a devolução da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) que vos foi entregue a título de reserva do prédio acima identificado.
A referida quantia foi entregue a V. Exas. mediante o acordo de que seria outorgado o contrato promessa de compra e venda do imóvel no prazo de oito semanas, o que não se verificou, pois apesar de os N/ Constituintes vos terem solicitado o envio da licença de construção por forma a redigir e organizar a outorga do contrato, V/ Exas. não enviaram o documento solicitado.
Pelo exposto, os N/ Constituintes perderam totalmente a confiança e o interesse na celebração de qualquer negócio com V. Exas., pelo que solicitam a devolução imediata e em singelo do montante entregue a título de reserva.
Para o efeito, e de modo a evitar o recurso à via judicial e à cobrança coerciva do valor, deverão efetuar a devolução da quantia devida, impreterivelmente, até ao próximo dia 25 de Julho de 2022, sendo que para o efeito deverão V/ Exas. contactar o nosso escritório, cujos contactos se encontram em rodapé.
Caso não obtenha resposta à solicitação da devolução da quantia, tomarei o vosso silêncio como indicação para avançar para tribunal, o que farei ainda no decorrer do presente mês.
Certa de que irão ponderar os inconvenientes que um procedimento judicial poderá acarretar, apresentamos a V/ Exas. os nossos melhores cumprimentos,
Atentamente,
A Advogada, (…)”.
14. A Ré, em resposta à interpelação, recusou-se novamente a restituir o valor de € 15.000,00 (quinze mil euros).
15. Os Autores aguardaram durante quase quatro meses pela outorga do referido contrato promessa de compra e venda, o que não se verificou.
16. Os Autores despenderam várias horas da sua vida a tentar resolver este problema, sem sucesso, o que lhes tem causado angústia.
17. Por a Ré ter recusado ao pedido dos Autores para a devolução dos € 15.000,00 (quinze mil euros), os Autores sofreram incómodo, transtorno, inquietação, tristeza e angústia.
18. Com tal conduta, não tendo facultado a licença de construção, os Autores perderam a confiança na celebração do negócio e na própria Ré, tendo perdido a vontade e interesse em contratar e, por conseguinte, tendo pedido a restituição do valor da reserva.
19. A Ré pretendia alienar a fração autónoma referida em 1.
20. Tendo sido celebrado o referido “Acordo de Reserva”, assinado pelos Autores e pela gerência da Ré.
21. Em resultado do “Acordo de Reserva” foi pelos Autores entregue à Ré a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) para reserva do imóvel.
22. A celebração do “Acordo de Reserva” e o pagamento da reserva visaram formalizar a intenção das partes em celebrar o contrato promessa de compra e venda e garantir que a Ré retiraria o imóvel do mercado ficando este reservado para os Autores, sem prejuízo de estes se poderem vir a arrepender no prazo de oito semanas com direito ao reembolso do montante pago a título de reserva.
23. Os Autores não solicitaram à Ré o reembolso da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) durante o período de 8 semanas após a data do referido “Acordo de Reserva”.
24. Aquando da celebração do referido “Acordo de Reserva” os Autores sabiam que inexistia ainda o alvará de licença de construção do imóvel.
25. O alvará de licença de construção do imóvel foi emitido em 26 de Maio de 2022.

2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:
1. Com a menção, que ficou a constar no “Acordo de Reserva”, “€ 15.000,00 (Quinze Mil Euros/Fifteen Thousand Euros) – reembolsável pelo período de 8 semanas/ Fully refundable for a period of 8 weeks”, compreenderam os Autores que o contrato promessa de compra e venda viria a ser celebrado dentro desse mesmo prazo.
2. Através da leitura do documento intitulado “Acordo de Reserva” é possível concluir que a outorga do contrato promessa de compra e venda seria celebrada naquele período de tempo de 8 (oito) semanas, sendo que o prazo de 8 (oito) semanas serviria para obter e organizar toda a documentação necessária a outorga do referido contrato.
3. O montante de € 15.000,00 (quinze mil euros) foi entregue à Ré apenas e só como antecipação parcial do pagamento do preço.
4. O facto de os Autores terem despendido várias horas da sua vida a tentar resolver este problema, sem sucesso, tem causado aos Autores noites sem conseguir dormir.
5. A verba de € 15.000,00 (quinze mil euros) foi entregue à Ré exclusivamente com vista à celebração do contrato promessa de compra e venda e do contrato de compra e venda como adiantamento parcial do preço que seria devido se o negócio viesse a ser concluído.
6. O prazo acordado de oito semanas foi também concedido aos Autores para confirmarem a sua efetiva intenção de celebração do mesmo, e foi acordado como sendo um limite temporal durante o qual seria razoável à Ré ter o imóvel fora do mercado sem a efetiva e final confirmação por parte dos Autores quanto à sua intenção de celebração do negócio.
7. O prazo de oito semanas foi estabelecido e acordado por se considerar que, após o termo do mesmo, já não seria justo que os Autores se pudessem arrepender sem que a esse arrependimento estivesse associada uma contrapartida destinada a compensar a Ré por manter o imóvel fora do mercado na expectativa de celebrar o negócio com os Autores, e após o período de oito semanas acordado a reserva já não era reembolsável.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A apelante põe em causa a decisão sobre a matéria de facto incluída na sentença recorrida, defendendo a modificação do facto julgado provado sob o ponto 2 de 2.1.1. ou, em alternativa, o aditamento de um ponto à factualidade provada, bem como a exclusão da matéria provada dos factos constantes dos pontos 6 e 18 de 2.1.1. e o aditamento de outro ponto à factualidade assente.
Nas contra-alegações apresentadas, os apelados pronunciam-se no sentido da rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, por incumprimento dos ónus impostos pelo artigo 640.º do CPC.
Vejamos se lhes assiste razão.
Sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o citado artigo 640.º o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Explicando o sistema vigente quando o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, afirma António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 165-166), o seguinte: “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)”.
Analisando as alegações de recurso, verifica-se que a recorrente indica nas conclusões, bem como no corpo das alegações, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – os factos julgados provados sob os pontos 2, 6 e 18 de 2.1.1. – e a solução que preconiza relativamente a tais questões de facto – a modificação do facto julgado provado sob o ponto 2 ou o aditamento do facto que especifica à matéria assente, a exclusão da matéria provada dos factos constantes dos pontos 6 e 18 de 2.1.1. e o aditamento a tal factualidade do ponto que indica –, assim dando cumprimento aos ónus constantes das alíneas a) e c) do n.º 1 do citado preceito.
Mais se verifica que a apelante indica, relativamente a cada um dos factos impugnados, determinados meios probatórios e outros elementos, designadamente factos tidos por provados, que entende imporem decisão diversa da proferida, sendo que transcreve excertos de depoimentos prestados na audiência final e especifica as passagens das gravações em causa, elementos estes que impõem sejam considerados cumpridos os ónus estabelecidos na alínea b) do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 daquele preceito.
Nesta conformidade, carece de fundamento a rejeição da impugnação da decisão de facto, nos termos preconizados pelos apelados.
Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, dispõe o artigo 662.º do CPC, no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Esta reapreciação da decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto deve, de forma a assegurar o duplo grau de jurisdição, ter a mesma amplitude que o julgamento efetuado na 1.ª instância, o que importa a apreciação da prova produzida, com vista a permitir à Relação formar a sua própria convicção.
A apelante defende a modificação do ponto 2 de 2.1.1. – com a redação: A Ré propôs fosse efetuada a reserva da futura fracção autónoma mediante o pagamento da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), valor, esse, que seria posteriormente descontado ao montante do sinal a ser pago pelos Autores no momento da outorga do contrato promessa de compra e venda –, pretendendo que passe a ter a redação seguinte: «Na sequência da proposta dos Autores de estabelecimento de um prazo de oito semanas durante o qual o montante pago a título de reserva seria reembolsável, a Ré contrapropôs que fosse efetuada a reserva da futura fração autónoma mediante o pagamento da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), por contraposição ao montante das reservas que a mesma cobrou para as restantes frações autónomas do imóvel, valor esse que seria posteriormente descontado ao montante do sinal a ser pago pelos Autores no momento da outorga do contrato promessa de compra e venda.»
Em alternativa à indicada modificação da redação do ponto 2, defende a apelante o aditamento à factualidade provada de um ponto com a redação seguinte: «Os Autores propuseram à Ré estabelecer no “Acordo de Reserva” um período de oito semanas durante o qual o montante pago a título de reserva seria reembolsável em qualquer circunstância».
Extrai-se da fundamentação da sentença recorrida que o facto constante do ponto 2 foi julgado provado com base no acordo das partes, o que não vem posto em causa na apelação.
A apelante pretende que tal facto seja complementado pelo aditamento, ao ponto 2, do segmento supra indicado, que consiste na especificação de que a proposta a que alude esse ponto, apresentada pela ré, consistiu numa contraproposta a uma proposta anteriormente apresentada pelos autores, no sentido do estabelecimento de um prazo de oito semanas durante o qual o montante pago a título de reserva seria reembolsável em qualquer circunstância; em alternativa, requer a apelante que tal especificação seja acrescentada à factualidade assente através do aditamento de um ponto.
No entanto, previamente à reapreciação da prova produzida, há que verificar se o facto em causa, que a apelante pretende seja aditado à matéria provada, se inclui na globalidade da matéria de facto carecida de prova, isto é, se cabe nos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto.
O artigo 5.º do CPC, com a epígrafe Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal, dispõe, no n.º 1, o seguinte: Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. O n.º 2 do preceito acrescenta: Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Analisando os articulados apresentados pelas partes, verifica-se que o facto em apreciação, que a apelante pretende se acrescente ao ponto 2 ou se adite autonomamente à matéria provada, não foi alegado, seja pela ré ou pela parte contrária.
Como tal, não se tratando de um facto alegado pelas partes nos seus articulados, nem se vislumbrando que se trate (o que não foi sequer invocado pelo recorrente) de um facto instrumental, de um facto complementar ou concretizador dos que as partes hajam alegado ou de um facto notório, cumpre concluir, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, do CPC, que não se trata de um facto a considerar pelo juiz, assim não integrando a matéria de facto carecida de prova.
Nesta conformidade, não se tratando de um facto a considerar pelo juiz, não há que proceder à pretendida reapreciação da prova produzida, no que respeita ao aditamento à matéria provada do ponto supra indicado, dado que o elemento que a recorrente pretende seja acrescentado não integra a matéria de facto carecida de prova.
Improcede, nesta parte, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Mais defende a apelante a exclusão da matéria provada dos factos constantes dos pontos 6 e 18, com a redação seguinte:
6 - Os Autores, face à inércia da Ré, perderam a confiança nesta e na celebração do negócio e por conseguinte perderam o interesse na aquisição daquele imóvel;
18 – Com tal conduta, não tendo facultado a licença de construção, os Autores perderam a confiança na celebração do negócio e na própria Ré, tendo perdido a vontade e interesse em contratar e, por conseguinte, tendo pedido a restituição do valor da reserva.
No que respeita ao ponto 18, verifica-se que o respetivo teor foi invocado pelos autores na parte da petição inicial relativa aos fundamentos de direito, concretamente no artigo 41º, inserido no capítulo II, denominado «Do Direito».
Analisando este ponto, não poderá deixar de se considerar que o respetivo teor assume natureza conclusiva, baseada num conceito jurídico, a saber, a perda do interesse na prestação, que configura um dos elementos jurídicos invocados pelos autores como fundamento da solução que preconizam para o presente pleito.
Quanto ao ponto 6, não obstante ter sido alegado pelos autores na parte da petição inicial relativa aos fundamentos de facto, concretamente no artigo 8º do capítulo I, denominado «Dos Factos», verifica-se que o respetivo teor, semelhante ao constante do ponto 18, igualmente assume natureza conclusiva, baseada no aludido conceito jurídico de perda do interesse na prestação, que constitui um dos fundamentos da peticionada condenação da ré a restituir determinado montante que os autores sustentam ser-lhes devido.
Como tal, considerando que o teor dos pontos 6 e 18 não constitui matéria de facto, antes assumindo natureza conclusiva, cumpre determinar a respetiva exclusão da factualidade julgada provada, assim procedendo, ainda que por fundamento diverso, a impugnação deduzida pela apelante a esta parte da decisão de facto, o que torna inútil a pretendida reapreciação dos elementos invocados para o efeito pela recorrente.
Defende, ainda, a apelante o aditamento à factualidade julgada provada de um ponto com a redação seguinte: «Não foi dado aos Recorridos pela recorrente qualquer prazo para a emissão da licença de construção». Para o efeito, a apelante requer a reapreciação das declarações de parte prestadas pela autora na audiência final.
Trata-se de facto alegado pela ré na contestação, designadamente no artigo 33º, o qual não foi julgado provado ou não provado pela 1.ª instância.
No entanto, com relevo para a questão em apreciação, extrai-se da fundamentação da decisão de facto constante da sentença recorrida o seguinte:
(…) a Autora, nas suas declarações de parte, referiu num primeiro momento que no “Acordo de Reserva” ficou a constar o prazo de oito semanas para ser feito o contrato promessa de compra e venda e para “eles obterem a licença de construção”. Porém, mais tarde, nas suas declarações, a Autora reconheceu que quando assinou o “Acordo de Reserva” sabia que não havia ainda licença de construção e que o vendedor não deu prazo para a obter, e, apesar de primeiramente ter afirmado que no “Acordo de Reserva” está que o contrato promessa seria assinado em oito semanas, reconheceu depois que isso não está lá escrito, mas que para si era lógico que o contrato promessa era para ser feito em oito semanas.
Ora, nada convenceram as declarações da Autora nesta parte: é que, lendo e relendo o “Acordo de Reserva” o que dele se retira é que nele ficou previsto que o contrato promessa teria lugar “no início da construção” e que a única realidade associada ao período de oito semanas foi o reembolso do montante da reserva. Ademais, a própria Autora reconheceu que o vendedor não deu prazo para a obtenção da licença de construção, ou seja, que tal matéria nem sequer foi discutida para a assinatura do “Acordo de Reserva”. A “inferência lógica” a que se referiu a Autora ficou sem sustentação, não se descortinando com razoabilidade com que apoio poderia a Autora ter feito essa inferência.
Nesta parte também nada convenceram as declarações prestadas pelo Autor, que de igual modo referiu que a sua dedução, a sua leitura do “Acordo de Reserva”, é que as oito semanas seriam o tempo que a Ré precisaria para ter toda a documentação para a feitura do contrato promessa, seria o prazo para a Ré obter a licença de construção. Mas, questionado sobre se alguém lhe comunicou que seria assim ou se é a sua leitura pessoal, não deu conta que alguém lho tenha comunicado, limitando-se a afirmar que “estava implícito”. Ora, reiterando-se aqui as considerações tecidas acerca das declarações de parte da Autora, a verdade é que não vislumbramos com razoabilidade com que apoio poderia o Autor ter feito essa inferência, essa leitura do “Acordo de Reserva”, quando é certo que também não deu nota que a Ré alguma vez tenha veiculado ou transmitido que o contrato promessa seria a realizar em oito semanas após o “Acordo de Reserva” ou que a licença de construção estaria emitida nesse prazo.
(…).
Foram reapreciadas as declarações de parte prestadas pela autora e pelo autor na audiência final, verificando-se que de ambas decorre que a ré não lhes indicou qualquer prazo para a obtenção da licença de construção, conforme consignou a 1.ª instância no excerto transcrito, o que impõe se considere provado o facto em apreciação.
Em suma, na parcial procedência, ainda que por fundamentos parcialmente diversos, da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, decide-se o seguinte:
i) excluir os pontos 6 e 18 da factualidade provada;
ii) aditar à matéria de facto julgada provada o ponto seguinte:
26. Aquando da celebração do acordo de reserva a que alude o ponto 3, a ré não indicou aos autores qualquer prazo para a obtenção da licença de construção do imóvel;
iii) indeferir, no mais, a impugnação da decisão de facto.

2.2.2. Obrigação de restituição com fundamento em enriquecimento sem causa
Vem posta em causa na apelação a obrigação de restituição pela apelante aos apelados da quantia de € 15.000,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, considerada verificada na decisão recorrida com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.
Está em causa, nos presentes autos, uma relação jurídica qualificada pela 1.ª instância como contrato de reserva de imóvel, estabelecida entre os autores e a ré, no âmbito de um processo negocial entre ambos encetado com vista à futura compra, pelos primeiros à segunda, de determinada fração autónoma de imóvel a construir, antecedida pela celebração de contrato-promessa de compra e venda relativo ao aludido bem, o que não vem posto em causa na apelação, encontrando-se as partes de acordo a este respeito.
Mais se considerou, na decisão recorrida, que a quantia de € 15.000,00 cuja restituição vem peticionada nos presentes autos, foi entregue pelos autores à ré em cumprimento daquele contrato de reserva de imóvel, o que igualmente não vem questionado no recurso.
Extrai-se da decisão recorrida que a obrigação de restituição de tal montante foi considerada verificada pelos motivos seguintes:
(…)
A prestação efectuada pelos Autores à Ré, ou seja, a entrega da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), constituiu uma prestação acordada pelas partes no “Acordo de Reserva” em vista à celebração futura de um contrato promessa e de uma contrato de compra e venda, uma prestação assim acordada pelas partes em vista à imputação dessa quantia no sinal objecto do contrato promessa e, num segundo momento, a imputar no preço objecto do contrato de compra e venda.
Ora, verificou-se a ruptura de todo aquele processo negocial, tendo os ora Autores desistido do negócio que as partes tinham em vista.
Assim, a prestação assim efectuada pelos Autores e recebida pela Ré deixou de ter causa justificativa, deixou de ter em vista o efeito que fora perspectivado pelas partes (a sua afectação ao sinal do contrato promessa a celebrar, e ao preço do contrato de compra e venda a outorgar) – artigo 473.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil –, ficando a Ré constituída na obrigação de restituir aos Autores o montante da reserva (€ 15.000,00), a título de enriquecimento sem causa.
Assim poderia não ser se o “Acordo de Reserva” tivesse estipulado o direito de a Ré fazer sua a quantia percebida a título de reserva, para o caso de ruptura do processo negocial e desistência quanto ao avançar das negociações para a concretização do contrato promessa e/ou do contrato de compra e venda.
Sucede que, em bom rigor, o “Acordo de Reserva” não o previu, tendo-se limitado a estabelecer que a reserva era “reembolsável pelo período de 8 semanas”.
Não cremos possa concluir-se que, com tal enunciado (reserva “reembolsável pelo período de 8 semanas”), seja permitido interpretar o “Acordo de Reserva” no sentido de que após a oito semanas a reserva deixava de ser reembolsável, por argumento a contrario e com recurso à teoria da impressão do destinatário – artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil.
Com efeito, veja-se que o “Acordo de Reserva” não disciplinou também o reembolso do montante da reserva para o caso da recusa da Ré em prosseguir o processo negocial após o decurso das oito semanas, muito menos previu tal reembolso em dobro para o caso de arrependimento da Ré após o decurso das oito semanas. Os termos lacónicos do “Acordo de Reserva” assinado pelas partes não permitem, face ao seu teor, concluir por um sentido das declarações negociais aí manifestadas que pretendesse disciplinar o destino do fundo de reserva para o caso de ruptura das negociações após o decurso do prazo de oito semanas, fosse por recusa dos Autores fosse por recusa da Ré ao prosseguimento do processo negocial.
E na falta dessa disciplina que tenha sido estabelecida pelas partes, aplica-se o regime geral.
Dito de outra forma, do “Acordo de Reserva” nada ficou a constar quanto às consequências da rutura das negociações das partes após aquele prazo de oito semanas, no que respeita ao montante de € 15,000,00 (quinze mil euros) entregue a título de reserva.
Por outro lado, a Ré não invocou tenha sofrido danos ou prejuízos causados culposamente pelos Autores, a título de responsabilidade pré-contratual, com a ruptura negocial comunicada pelos Autores – cfr. artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil.
Daí que, encontra-se a Ré obrigada à restituição aos Autores do montante de € 15.000,00 (quinze mil euros), acrescido dos juros moratórios respectivos contados desde a data da interpelação para o efeito, e que foi o dia 04 de Maio de 2022 – artigos 805.º, n.º 1 e 806.º do Código Civil
Discordando deste entendimento, a apelante sustenta que o montante pago pelos autores a título de reserva não teve como causa justificativa, apenas, a imputação dessa quantia no sinal a estipular no contrato-promessa e, num segundo momento, no preço do contrato de compra e venda; afirma que as partes negociaram o montante a entregar pelos autores para efeitos da reserva e o estabelecimento de um prazo durante o qual esse montante seria reembolsável, tendo o prazo de oito semanas sido acordado como um período de reflexão que permitisse aos autores consolidarem a sua intenção de prosseguir com o negócio ou, em alternativa, exercer o direito ao reembolso do valor da reserva; alega a apelante que, findo o aludido prazo de oito semanas, o montante entregue para reserva deixaria de ser reembolsável, acrescentando que, caso assim se não entenda, a aposição dessa cláusula no acordo de reserva careceria de qualquer utilidade.
Face ao decidido pela 1.ª instância e ao objeto do recurso, impõe-se apreciar se a factualidade julgada provada permite considerar preenchidos os requisitos da obrigação de restituição da aludida quantia com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.
O enriquecimento sem causa encontra-se previsto no artigo 473.º do Código Civil, cujo n.º 1 dispõe: Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou; acrescenta o n.º 2: A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
A obrigação de restituir fundada em enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, conforme se extrai do artigo 474.º do mesmo Código, que estatui: Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.
Resulta do artigo 473.º que o enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa de três pressupostos, a saber: a) o enriquecimento de alguém; b) que este enriquecimento seja obtido à custa de outrem; c) a falta de causa justificativa. Decorre do artigo 474.º, por seu turno, que o recurso a este instituto depende da inexistência de outro meio jurídico idóneo para a restituição, bem como que não opera se a lei negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.
No caso presente, provou-se que, no decurso de negociações encetadas com vista à compra, pelos autores à ré, de fração autónoma de um prédio a construir no imóvel identificado no ponto 1, a ré apresentou a proposta a que alude o ponto 2 – no sentido de que fosse efetuada a reserva da futura fração autónoma mediante o pagamento da quantia de € 15.000,00, valor que seria posteriormente descontado ao montante do sinal a ser pago pelos autores aquando da outorga do contrato-promessa de compra e venda –, vindo as partes a acordar na reserva dessa futura fração autónoma nos termos exarados no documento escrito intitulado Acordo de Reserva, datado de 24-01-2022, que subscreveram, cujo teor se encontra transcrito sob o ponto 3.
Analisando o teor do documento intitulado Acordo de Reserva subscrito pelas partes, verifica-se que dele consta o seguinte:
- elementos de identificação da ré, designada por “Proprietário”, e dos autores, designados “Proponentes”;
- sob a designação “Proposta”, especificação da fração F do empreendimento aí identificado;
- sob a designação “Preço”, indicação da quantia de € 460.000,00;
- sob a designação “Reserva”, indicação do valor de € 15.000,00, seguida da expressão “reembolsável pelo período de 8 semanas”;
- a título de “Nota”, indicação de que foi executada transferência para a conta cujo IBAN se especifica;
- a título de “Condições Gerais”, a indicação de que “O Montante entregue a título de Reserva e parte do sinal, será descontado na assinatura do Contrato de Promessa de Compra e Venda (CPCV)”, seguida da especificação “€ 15.000,00 (…) de Reserva” e de um plano de pagamentos, a começar “no Contrato de Promessa de Compra e Venda com o início da construção”, a que se seguem reforços de sinal escalonados no tempo e a terminar com “a assinatura da escritura de Compra e Venda, até 90 dias depois do último reforço de sinal”.
Decorre destes elementos que as partes acordaram na reserva pela ré de um imóvel –no caso, um bem futuro –, mediante a entrega pelos autores da quantia de € 15.000,00, visando a celebração entre ambos de um contrato-promessa de compra e venda relativo a esse bem, em termos que parcialmente estipularam; mais acordaram que esse valor de € 15 000 é “reembolsável pelo período de 8 semanas”, bem como que será imputado no valor devido a título de sinal aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda.
Mostra-se acertada a qualificação, constante da decisão recorrida, da relação jurídica estabelecida entre autores e ré como contrato de reserva de imóvel, visando a futura celebração de um de contrato-promessa de compra e venda relativo a esse bem.
O contrato de reserva de imóvel é um contrato atípico, em sentido estrito, dado que não se encontra previsto na lei, sendo-lhe aplicáveis, além das cláusulas acordadas pelos contraentes, as normas do Código Civil que consagrem regras gerais, bem como as disposições reguladoras de contratos nominados com os quais apresente maior afinidade.
Analisando o acordo efetuado, verifica-se que são estabelecidos determinados termos relativos ao negócio visado com a reserva, isto é, ao contrato-promessa de compra e venda – o imóvel a que respeita, o preço da venda e o valor do sinal, os termos e prazos para o pagamento de tais montantes – e estipulada a entrega pelos autores da quantia de € 15.000,00 a título de reserva, “reembolsável pelo período de 8 semanas”, a imputar no valor devido a título de sinal aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda.
Decorre do contrato celebrado que a entrega pelos autores da quantia de € 15.000,00 foi acompanhada pela assunção, por parte da ré, das obrigações seguintes: i) a obrigação de reservar o imóvel que as partes ponderavam transacionar, isto é, de não aceitar outra proposta de aquisição daquele bem, bem como de celebrar o contrato-promessa com os autores nos termos acordados; ii) a obrigação de restituição do montante entregue, caso os autores pretendessem desvincular-se da acordada celebração do contrato-promessa, sendo estabelecido o prazo de oito semanas para o efeito; iii) a obrigação de imputação dessa quantia no valor devido a título de sinal aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda.
O contrato celebrado prevê um conjunto de obrigações recíprocas que incumbem aos contraentes e confere aos autores o direito ao arrependimento, estabelecendo para o efeito o prazo de oito semanas, caso em que caberá à ré restituir o montante de € 15.000,00 recebido a título de reserva.
Explica Higina Castelo – «Reserva de imóvel: com vista à futura celebração de contrato relativo a bem imóvel», em Revista de Direito Civil, ano II (2017), n.º 4, págs. 807-808. Disponível em: https://www.revistadedireitocivil.pt/articles/reserva-de-imovel-com-vista-a-futura-celebracao-de-contrato-relativo-a-bem-imovel - o seguinte:
«O contrato de reserva apresenta-se como bilateral ou sinalagmático, na medida em que cada parte se obriga a realizar a sua prestação porque a parte contrária se obriga a efetuar a dela e para que esta se concretize, sendo cada prestação contrapartida e justificação da outra: o interessado na aquisição compromete-se a adquirir ou a celebrar o contrato-promessa de aquisição (sem prejuízo de poder alternativamente pagar pela sua desistência injustificada, com quantia que desde logo adianta), porque a parte contrária se compromete a alienar ou a celebrar contrato-promessa de alienação (também sem prejuízo de poder pagar pela sua desistência ad nutum, perdendo a adiantada quantia e, geralmente, outro tanto) e para que isso aconteça; o interessado na alienação compromete-se a alienar ou a celebrar o contrato-promessa de alienação porque a parte contrária se compromete a adquirir ou a celebrar contrato-promessa de aquisição, e para que isso aconteça. A concretização das prestações objeto destas obrigações implica que, no ínterim, as partes se comportem de determinada forma, diligenciando o necessário naquele sentido (obtenção de documentação, nomeadamente licenças de utilização e certificados energéticos, contratação de financiamento pelo adquirente, notificação dos preferentes, interrupção ou abstenção de negociação com terceiros).»
Na situação em apreciação, a ré assumiu a obrigação de restituição aos autores do montante de € 15.000,00 recebido a título de reserva, se os mesmos exercessem o direito ao arrependimento no prazo de oito semanas fixado para o efeito no contrato; encontrando-se assente que os autores não comunicaram a respetiva desistência da celebração do contrato-promessa no prazo de oito semanas estabelecido no contrato de reserva, dúvidas não há de que não incumbe à ré a obrigação de restituição de tal montante com fundamento no direito ao arrependimento consagrado neste contrato.
Acresce que, decorrendo do contrato celebrado que a entrega de tal quantia pelos autores foi acompanhada pela assunção de várias obrigações pela ré, designadamente a obrigação de reservar o imóvel que os autores ponderavam adquirir, não aceitando outras propostas de aquisição do bem, bem como a obrigação de celebrar o contrato-promessa com os autores nos termos acordados, não poderá considerar-se que a prestação tenha deixado de ter causa justificativa na sequência da desistência dos autores, conforme considerou a 1.ª instância, que apenas atendeu à obrigação de imputação dessa quantia no valor devido a título de sinal aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda, olvidando a mencionada obrigação de reserva do imóvel para celebração com os autores do acordado contrato-promessa.
Tendo-se provado que, como contrapartida da entrega pelos autores do montante de € 15.000,00, a ré, além da obrigação de imputação de tal montante no valor devido a título de sinal aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda, assumiu outras obrigações, designadamente a obrigação de reserva do imóvel para celebração com os autores do acordado contrato-promessa, não permite a factualidade provada considerar que a entrega daquela quantia à ré deixou de ter causa justificativa na sequência da desistência operada pelos autores, dado que a reserva do imóvel até tal desistência, comunicada pelos autores após o acordado período de oito semanas, constituiu uma causa para aquele dispêndio.
Não decorrendo da factualidade provada a inexistência de uma obrigação que tenha justificado o dispêndio patrimonial dos autores, antes se extraindo de tal factualidade a existência de uma causa justificativa para o efeito – a obrigação assumida pela ré de reservar o imóvel para celebração com os autores do acordado contrato-promessa –, causa essa que não deixou de existir, considerando que a ré reservou o imóvel até à desistência operada pelos autores, não poderá considerar-se preenchido o terceiro dos supra elencados pressupostos integradores do enriquecimento sem causa, o que afasta a verificação cumulativa dos requisitos do instituto.
É sabido que, face às regras de distribuição do ónus da prova estatuídas no artigo 342.º do Código Civil, salvo casos especiais, cabe àquele que invocar um direito fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (n.º 1), pelo que compete aos autores o ónus da prova da verificação dos requisitos do instituto do enriquecimento sem causa, que invocaram como fundamento da obrigação de restituição da quantia entregue a título de reserva.
Não permitindo a factualidade assente considerar verificada a inexistência de causa justificativa do enriquecimento da ré, cumpre concluir que os autores não lograram provar factos que preencham os requisitos cumulativos do instituto, que invocaram, do enriquecimento sem causa, o que impõe a improcedência da pretensão deduzida com tal fundamento.
Face ao objeto da apelação, afastada a obrigação de restituição pela ré da quantia entregue pelos autores com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, cumpre revogar a parte impugnada da decisão recorrida e absolver a ré da totalidade do pedido formulado pelos autores.
Procede, assim, a apelação.

Em conclusão: (…)

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação, em consequência do que se decide:
a) na improcedência da ação, absolver a ré do pedido formulado;
b) revogar, em conformidade, o segmento condenatório da decisão recorrida.
Custas pelos autores/apelados.
Notifique
Évora, 25-06-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Mário João Canelas Brás (1.ª Adjunto)
Maria Domingas Simões (2.ª Adjunta)