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RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO VIOLENTO
COACÇÃO FÍSICA
Sumário
1. A violência no esbulho tanto pode ser exercida sobre pessoas como sobre coisas, mas neste último caso essa violência deverá traduzir-se numa forma de coacção moral do possuidor. 2. Ocorre coacção física indirecta quando o possuidor fica impossibilitado de fruir da coisa por um obstáculo físico criado ou erigido pelo esbulhador. 3. É o que acontece quando o esbulhador se dirige a certo imóvel, do qual não era o possuidor, e contra a vontade do seu proprietário, arromba e muda a fechadura, passando a recusar abandonar o imóvel. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Sumário: (…)
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
No Juízo Central Cível de Faro, (…) requereu procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra (…), alegando ser proprietário de determinada fracção, e que o Requerido ali se introduziu, contra a sua vontade, arrombando e mudando a fechadura da porta, e ali colocando vários objectos, recusando-se a abandonar o local.
O procedimento foi proposto por apenso a acção declarativa com processo comum que o Requerente havia proposto dias antes (a acção declarativa deu entrada a 22.01.2025, o procedimento cautelar a 28.01.2025), na qual peticiona que o Réu reconheça o seu direito de propriedade sobre a fracção e seja condenado na sua restituição е entrega ao Autor, livre e desimpedida de pessoas e bens, salvo о mobiliário e equipamento pertencente a este último, e a abster-se de qualquer conduta ou omissão que perturbe ou esbulhe a posse do Autor sobre a mesma fracção.
Dispensou-se o prévio contraditório do Requerido e realizou-se a inquirição das testemunhas arroladas.
Após, foi proferida sentença, decretando a providência requerida.
Realizada a entrega do imóvel ao Requerente, e citado o Requerido, este deduziu oposição, alegando ter acordado com o Requerente o arrendamento da fracção, no dia 08.09.2024, pela renda mensal de € 690,00, valor que não incluía o custo da água e da electricidade consumidas. O Requerido entregou ao Requerente uma cópia do seu cartão de cidadão para a preparação do contrato de arrendamento e emissão dos recibos, e entregou também a quantia de € 826,00, sendo € 690,00 pela primeira renda e o restante pelo valor atribuído ao consumo de água e electricidade. O apartamento seria habitado pelo Requerido e mais 2 pessoas, com conhecimento e consentimento do Requerente. O Requerente entregou a chave do apartamento ao Requerido, que ficou encarregado de trocar a fechadura por uma nova, o que fez, ficando o Requerente com cópias das novas chaves. Porém, o Requerente acabou por não assinar o prometido contrato de arrendamento, mas emitiu recibos de renda a favor de terceiro. E aproveitou-se de uma deslocação do Requerido a Marrocos para mudar a fechadura na sua ausência. Mais pediu a condenação do Requerente como litigante de má fé.
Requereu a inquirição de três testemunhas, sendo duas a apresentar e a terceira um agente da GNR que já havia sido inquirido na primeira fase do processo.
Foi proferido despacho admitindo a oposição, bem como o rol de testemunhas indicado pelo Requerido, mas indeferindo a reinquirição do agente da GNR, “uma vez que o mesmo já foi ouvido”.
Deste despacho não foi interposto recurso.
A decisão recorrida decidiu julgar improcedente a oposição e manter a providência decretada.
Mais indeferiu o pedido de condenação do Requerente como litigante de má-fé.
Desta decisão recorre o Requerido, concluindo:
1. A sentença recorrida violou, grosseiramente, o princípio do contraditório, imposto pelo n.º 3 do artigo 3.º do CPC.
2. A sentença recorrida violou dever de fundamentação, imposto pelos artigos 154.º do CPC e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
3. A sentença recorrida violou o princípio da igualdade das partes.
4. O Tribunal a quo não se mostrou imparcial, violando os artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 47.º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.
5. O Tribunal ignorou que o requerente mentiu, prestando falsas declarações.
6. O Tribunal a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, enquanto ignorou outras que devia conhecer, por serem de conhecimento oficioso.
7. A declaração atribuída a (…), “cancelando” o contrato de arrendamento, indicia ser falsa.
8. Se, de facto, (…) assinou o papel junto aos autos pelo requerente, fê-lo sem consciência da declaração, pelo que tal declaração não produz efeitos, de acordo com o disposto no artigo 246.º do Código Civil.
9. A sentença recorrida é nula por falta de fundamentação – alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
10. O Tribunal a quo errou na avaliação das provas.
11. O Tribunal a quo errou no enquadramento jurídico da situação sub judice.
12. O Tribunal a quo não pode ignorar que o requerente, enquanto locador, não tinha os direitos que se arrogava, nomeadamente a posse que justificava o deferimento da providência.
13. O requerente não podia, nomeadamente: entrar no apartamento arrendado na ausência dos inquilinos, sem conhecimento nem permissão destes; mudar as fechaduras na vigência dos contratos e cortar a água e a electricidade.
14. Na vigência dos contratos de arrendamento, o requerente não tinha, pura e simplesmente, a posse que justificava o eventual deferimento da providência, coisa que o tribunal a quo tinha a obrigação de saber.
15. É manifesto que o requerente está enganado quanto aos poderes que a qualidade de senhorio lhe confere e, simultaneamente, inconsciente das obrigações que, enquanto tal, assumiu.
16. O Tribunal a quo não pode ignorar que o requerente, enquanto locador, não tinha os direitos que se arrogava, nomeadamente a posse que justificava o deferimento da providência por ele reconhecida.
17. O conflito patente nos autos é entre o interesse de um senhorio, que tem um apartamento arrendado e que até recebe as rendas, e um cidadão que, mal ou bem, tinha nesse apartamento o seu domicílio.
18. Os arrendatários, nomeadamente o (…), é que tinham o direito de usar, mesmo contra o locador, o aqui requerente, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes (artigo 1037.º, n.º 2, do Código Civil).
19. O Tribunal a quo ignorou o direito do Requerido ao domicílio e ao respeito pela vida privada.
20. O requerente agiu como litigante de má fé.
21. O Estado, para garantir o direito à tutela jurisdicional efectiva tem de proporcionar, aos cidadãos, a confiança de que a administração da justiça é justa, cumprindo assim o dever enunciado pelo TEDH através da teoria das aparências – de que num Estado de Direito a administração da justiça para além de ser justa deve parecer justa, sob pena de desconfiança no próprio Estado de Direito democrático.
Não foi oferecida resposta.
Cumpre-nos decidir.
A decisão recorrida fixou a seguinte matéria de facto indiciariamente provada:
1. A fracção autónoma designada pela letra “L”, destinada a habitação, Tipo T-2, correspondente ao 3.º andar frente, do prédio urbano sito em Rua do (…), Lote 4, freguesia de (…), cidade e concelho de Loulé, inscrito na respectiva matriz predial urbana daquela freguesia sob o artigo (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…) pertence ao Requerente.
2. Enquanto senhorio, o Requerente arrendou, sucessiva e simultaneamente, o seguinte:
a) A (…) “um quarto” na fracção autónoma acima referenciada, com início em 1 de Setembro de 2022, mediante o pagamento da renda mensal de € 200,00 (duzentos euros);
b) A (…) “um quarto” na fracção autónoma acima referenciada, com início em 1 de Junho de 2024, mediante o pagamento da renda mensal de € 230,00 (duzentos e trinta euros);
c) A (…) “um quarto” na fracção autónoma acima referenciada, com início em 1 de Junho de 2024, mediante o pagamento da renda mensal de € 230,00 (duzentos e trinta euros).
3. Tais quartos foram arrendados aos supra referidos arrendatários para sua “habitação própria e exclusiva”, não podendo os mesmos “sublocar ou ceder, no todo ou em parte, onerosa ou gratuitamente, o local arrendado, sem consentimento expresso e autorização escrita” do Requerente.
4. O Requerente emitiu o correspondente recibo de renda electrónico, em nome de (…), referente à renda do mês de Junho de 2024, pelo valor de € 230,00 (duzentos e trinta euros).
5. O Requerente emitiu o correspondente recibo de renda electrónico, em nome de (…), referente à renda do mês de Julho de 2024, pelo valor de € 230,00 (duzentos e trinta euros).
6. O Requerente emitiu o correspondente recibo de renda electrónico, em nome de (…), referente à renda do mês de Agosto de 2024, pelo valor de € 230,00 (duzentos e trinta euros).
7. O Requerente emitiu o correspondente recibo de renda electrónico, em nome de (…), referente à renda do mês de Setembro de 2024, pelo valor de € 230,00 (duzentos e trinta euros).
8. O Requerente emitiu ainda recibo de renda electrónico, em nome de (…), referente à renda do mês de Setembro de 2024.
9. Em data não concretamente apurada, mas certamente no final do mês de Setembro de 2024, os referidos arrendatários deixaram de habitar na fracção controvertida.
10. Nessa altura, outro indivíduo do sexo masculino passou a ser visto a entrar e sair da fracção em causa, ali se deslocando esporadicamente.
11. Em data não concretamente apurada, mas posteriormente à data referida em 4, e sem conhecimento ou autorização do Requerente, foi mudada a fechadura da fracção em causa, sem que lhe fosse facultada uma cópia da chave.
12. Desconhecendo o Requerente quem ocupava a fracção em causa e sem que este tivesse acesso à mesma.
13. No dia 25 de Setembro de 2024 o Requerente intentou uma acção de despejo contra os supra três identificados arrendatários e outros, a qual se encontra pendente no Juiz 1, Juízo Local Cível de Loulé, Tribunal Judicial da Comarca de Faro, sob o n.º 2584/24.9T8LLE, invocando a sublocação ou cedência não autorizada a terceiros.
14. Na pendência de tal processo, os três referidos arrendatários comunicaram ao Requerente o “cancelamento” dos respectivos contratos.
15. Em finais de Setembro, o Requerente cortou a água e a electricidade ao apartamento, e retirou mesmo o contador da água.
16. No início do mês de Novembro de 2024 o Requerente foi informado por vizinhos que, há cerca de 2 ou 3 semanas, não viam qualquer movimento de entrada ou saída da fracção, tudo indiciando que mesma não se encontrava ocupada e, pelo contrário, estaria abandonada.
17. Dia 13 de Novembro o Requerido tinha ido a Marrocos.
18. O Requerente deslocou-se à fracção e, após várias tentativas, confirmou que ninguém se encontrava no seu interior.
19. Tendo procedido à mudança da fechadura da fracção e inspeccionado o seu interior, sem detectar sinais ou indícios de presença humana recente.
20. E, desta forma, manteve-se na posse da chave de acesso da fracção e aí se deslocando, diversas vezes, durante as semanas seguintes.
21. Na tarde do dia 31 de Dezembro de 2024, o Requerente foi alertado por vizinhos que o tal indivíduo, que anteriormente se deslocava à fracção, havia forçado e arrombado a fechadura do apartamento, se introduzido no seu interior e mudado a referida fechadura.
22. Acto contínuo, o Requerente apelou à presença da GNR do destacamento de Loulé, os quais procederam à identificação do referido indivíduo, isto é, o ora Requerido.
23. O qual se recusou a abandonar a fracção autónoma em causa.
24. Ali depositando diversas caixas com artigos de calçado.
25. O que perdura até hoje.
26. Não tendo facultado ao Requerente qualquer cópia da chave da nova fechadura.
Aplicando o Direito. Da nulidade da decisão recorrida
Argumenta o Recorrente que a sentença incorreu em nulidade, alegando a violação do princípio do contraditório, a violação do princípio da igualdade das partes, a ajuda do tribunal às respostas do Requerente, a prestação de falsas declarações pelo Requerente, o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento e o não conhecimento de outras de conhecimento oficioso, bem como a falta de fundamentação da sentença.
No que respeita à invocação de falta de fundamentação – alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil – diremos que apenas ocorre quando houver falta absoluta dos fundamentos de facto ou de direito, e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, incompleta, não convincente, medíocre ou até errada, porquanto essa situação determinará a sua revogação ou alteração por via de recurso, mas não a respectiva nulidade.
Citando Alberto dos Reis[1], “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.”
Também Teixeira de Sousa[2] afirma que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (…). O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível.”
Não sendo exigível que a fundamentação seja longa nem exaustiva, bastando que o Tribunal justifique a sua posição, ainda que se forma concisa ou pouco persuasiva, faz-se notar, de todo o modo, que a sentença recorrida especificou os fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão.
O Recorrente alega que a sentença recorrida violou dever de fundamentação, imposto pelos artigos 154.º do Código de Processo Civil e 205.º, n.º 1, da Constituição, mas o que as alegações revelam, fundamentalmente, é uma discordância da análise jurídica realizada na sentença. O Recorrente entende que tinha no imóvel o seu domicílio, por o ter arrendado para habitação ao Recorrido, tendo pago a renda do mês de Setembro de 2024, mas a sentença entendeu que tal não estava provado, e retirou as consequências jurídicas decorrentes do incumprimento desse ónus de prova.
Quanto ao fundamento de nulidade constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º – excesso de pronúncia e omissão de pronúncia – diremos que esta nulidade apenas ocorre quando o juiz não resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, ou conheça de outras questões não suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso das mesmas.
Referia o Prof. Alberto dos Reis[3], que “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (…), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (…) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.”
No caso, embora nas conclusões de recurso tal não seja evidente, pela leitura das alegações pode-se depreender que o Recorrente entende que a sentença incorreu em omissão de pronúncia, ao não apreciar a questão do indeferimento do pedido de apoio judiciário, a falsidade dos documentos pelos quais os arrendatários mencionados no ponto 2 do elenco fáctico “cancelaram” os seus contratos de arrendamento, e o erro na avaliação das provas, vendo-se o Requerido “impedido de contra-interrogar a única testemunha cujo depoimento lhe interessava, sem que, para tal, o tribunal a quo tivesse adiantado qualquer fundamento.”
Lendo a sentença, esta aprecia a questão na perspectiva da falta de prova dos fundamentos fácticos alegados na oposição do Recorrente, e na demonstração do direito de propriedade do Recorrido e na prática de actos de esbulho, pelo que confirmou o decretamento da providência.
Importando não confundir argumentos com questões, certo é que as questões colocadas nos articulados foram conhecidas na sentença – talvez não com o resultado que o Recorrente pretenderia, mas não existe, de todo, a invocada omissão de pronúncia
Pode o Recorrente não concordar com os argumentos e conclusões da decisão recorrida, mas tal juízo apenas poderá fundar a revogação da sentença por erro de direito, mas não a sua anulação.
Note-se, ainda, quanto ao tema relacionado com o alegado indeferimento do pedido de apoio judiciário, é o próprio Recorrente quem reconhece que essa questão já nem está pendente, pois a Segurança Social acabou por conceder o pedido – sendo certo que o tribunal apenas seria colocado na posição de conhecer do pedido de apoio judiciário acaso tivesse sido deduzida impugnação judicial da decisão de indeferimento, nos termos dos artigos 27.º e 28.º da LAJ (Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho), algo que não aconteceu.
Quanto aos temas relacionados com a violação do princípio do contraditório e do princípio da igualdade das partes, a ajuda do tribunal às respostas do Requerente, a prestação de falsas declarações por parte deste, e a falsidade de documentos, diremos o seguinte: para além da questão relacionada com a pretendida reinquirição de uma testemunha estar coberta por despacho judicial que formou caso julgado formal, por dele não ter sido interposta apelação autónoma (o artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil prevê a apelação autónoma do despacho de rejeição de meios de prova), diremos que as outras questões teriam o seu lugar privilegiado de apreciação em sede de impugnação da decisão de facto, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Sucede que, como veremos, o Recorrente não cumpriu minimamente os requisitos que permitiriam a este tribunal apreciar a pretendida impugnação, motivo pelo qual esta deve ser rejeitada. Julgam-se, pois, improcedentes as arguições de nulidade invocadas pelo Recorrente.
Da impugnação da decisão de facto
Nas conclusões do seu recurso, o Recorrente alega que o tribunal errou na avaliação das provas, mas não cumpre minimamente, quer nas alegações, quer nas conclusões, o ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.
Alega a falsidade de documentos pelos quais os arrendatários do imóvel teriam cancelado os seus contratos de arrendamento, mas não realiza qualquer esforço de concretização dos meios probatórios que impusessem decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, nem indica as passagens da prova gravada em que funda o seu recurso, ou sequer transcreve os excertos eventualmente relevantes.
Resulta do artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que, entre outros requisitos, o recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: “a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
O que se depreende ao ler as alegações, é o inconformismo do Recorrente quanto à decisão de facto, mas não concretiza os motivos da sua discordância, de forma pormenorizada, nem os concretos pontos de facto que pretende impugnar ou os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa.
O que existe é, apenas, uma alegação genérica de discordância, que não basta.
A este propósito, afirmou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.02.2024, proferido no Proc. 18321/21.7T8PRT.P1.S1 e publicado no endereço da DGSI:
“I – O recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa relativamente a esses factos e, enuncie a decisão alternativa que propõe. II – A exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. III – A especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no artigo 662.º/1, do CPCivil. IV – O recorrente terá de tomar posição especifica sobre os motivos da discordância, indicando e explicitando de forma pormenorizada, individualizada e minuciosa os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa e a decisão que entenda ser a correcta, não sendo para o efeito suficiente uma genérica ou exemplificativa afirmação dessa discordância. V – A lei comina a inobservância destes requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 640.º/1, do CPCivil.”
Deste modo, quanto à pretendida impugnação da matéria de facto, declara-se a sua rejeição – artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Dos requisitos da restituição provisória da posse
Na linha de jurisprudência adoptada nesta Relação de Évora – nomeadamente nos Acórdãos de 07.12.2017 (Proc. 1536/17.0T8BJA.E1), de 19.12.2022 (Proc. 427/22.7T8SSB-A.E1) de 26.10.2023 (Proc. 340/23.0T8GDL.E1) e de 30.01.2025 (Proc. 293/24.8T8CBA.E1) – acompanhado por jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – em especial, no Acórdão de 09.11.2022 (Proc. n.º 150/22.2T8PTG.E1.S1), todos publicados no endereço da DGSI – entendemos que a violência no esbulho tanto pode ser exercida sobre pessoas como sobre coisas, mas, neste último caso essa violência deverá traduzir-se numa forma de coacção moral do possuidor.
Com efeito, o conceito de coacção a que se refere o artigo 255.º do Código Civil, por remissão do n.º 2 do artigo 1261.º, refere-se a pessoas, pois as coisas, em si mesmas, são insusceptíveis de coacção. Logo, é necessário que a acção exercida sobre coisas produza um constrangimento do possuidor de tal forma que este se veja obrigado a permitir o desapossamento, ficando colocado numa situação de incapacidade de reacção.
Como se escreveu no Acórdão desta Relação de 30.01.2025, supra citado, “a coacção física é directa quando recai sobre o próprio possuidor, e indirecta quando o possuidor fica impossibilitado de fruir da coisa – e, portanto, de exercer a posse sobre ela – por um obstáculo físico criado ou erigido pelo esbulhador. Logo, a necessidade de vencer um obstáculo para o exercício da posse revela ter ocorrido esbulho violento.”
Neste sentido, menciona-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.11.2022, que a jurisprudência tem considerado que “mudanças de fechaduras e substituições de cadeados para impedir a utilização de prédios – na medida em que pressupõem a destruição (e o inerente emprego de força física) de coisas (as anteriores fechaduras e cadeados) que constituíam obstáculo ao esbulho – preenchem o conceito de violência relevante; mas também se considerou que a mera colocação (sem qualquer prévia destruição e sem que qualquer obstáculo haja sido vencido) de fechaduras e cadeados não integra o conceito de violência.”
No caso, o Recorrente não alega a sua qualidade de arrendatário do imóvel – diz que os arrendatários eram outras pessoas, mas que com ele não se chegou a formar qualquer contrato de arrendamento, ou sequer de sublocação concedida pelos efectivos arrendatários.
Certo é que está demonstrado que os arrendatários, identificados no ponto 2 dos factos provados, deixaram de habitar a fracção, pelo menos no final de Setembro de 2024, e vieram a comunicar ao Requerente da providência a cessação dos seus contratos de arrendamento. Em finais de Setembro o Recorrente passou a ser visto a deslocar-se esporadicamente ao imóvel – mas não está demonstrado que ali tivesse estabelecido o seu domicílio, pois não está provado que ali pernoite, ali tome as suas refeições, e ali receba convidados e amigos – mas no início de Novembro de 2024 deixou de se deslocar ao imóvel, aparentando então estar abandonado.
Está provado que em 13.11.2024 o Recorrente estava em Marrocos e, face ao aparente abandono do imóvel e à ausência de sinais de ser habitado por quem quer que seja – e à cessação dos contratos de arrendamento comunicada pelas pessoas que eram seus arrendatários – o Requerente da providência deslocou-se ao imóvel, confirmou que ali não se encontrava ninguém, pelo que procedeu à mudança da fechadura, depois de inspeccionar o interior, sem detectar sinais ou indícios de presença humana recente.
Este acto do Requerente da providência de mudança de fechadura, sem qualquer destruição prévia de anterior fechadura (é o próprio Recorrente quem afirma na sua oposição que o senhorio tinha recebido cópia das chaves), e sem que o imóvel estivesse habitado por quem quer que seja, não integra o conceito de violência, na linha da jurisprudência supramencionada.
Demonstrou-se, também, que nas semanas seguintes o Requerente da providência manteve-se na posse da chave da fracção, aí se deslocando por diversas vezes, até que, na tarde do dia 31.12.2024, foi alertado por vizinhos que o Requerido havia forçado e arrombado a fechadura do apartamento, se introduzido no seu interior e mudado a referida fechadura.
Para além do imóvel não ser o domicílio do Recorrente, pois não está provado que ali pratique os actos que normalmente caracterizam a habitação de um imóvel – aliás, está provado, apenas, que utiliza o locado para depósito de caixas com artigos de calçado, mas a pernoita, a tomada de refeições e a realização de actos de convívio social, não ficou provado – certo é que temos a destruição da fechadura colocada pelo proprietário do imóvel, por quem não demonstrou ser arrendatário do imóvel nem ali habitar.
Como tal, está demonstrado o esbulho violento, pela prática pelo Recorrente de um acto de destruição contrário à vontade do legítimo possuidor e proprietário do imóvel, e tanto basta para o decretamento da providência.
Alega o Recorrente a violação do direito do arrendatário à posse da coisa locada e à protecção do seu domicílio.
Porém, ele mesmo admite não ser o arrendatário, e também não está provado que o Requerente da providência lhe tenha concedido o gozo e fruição do imóvel, para sua habitação.
Como igualmente não está provado que no imóvel alguma vez o Recorrente tivesse estabelecido o seu domicílio – o que se provou é que ali apenas deposita caixas com artigos de calçado, mas tal não demonstra que ali seja o centro da sua vida pessoal e familiar.
Daí que a alegada violação do direito ao domicílio e ao respeito pela vida privada nem sequer se coloque nos autos.
Quanto à eventual litigância de má-fé do Requerente da providência, os autos não demonstram que este tivesse agido em juízo em violação dos deveres de probidade processual a que está sujeito.
Na verdade, não está demonstrado ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, ou que tenha alterado a verdade dos factos ou omitido outros com relevância para a decisão da causa, ou que tenha omitido o dever de cooperação, ou sequer que tenha feito um uso manifestamente reprovável dos meios processuais, pelo que não existe qualquer fundamento para a sua condenação como litigante de má-fé, ao abrigo do artigo 542.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, pelo que também improcede esta parte do recurso.
Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo Recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Évora, 25 de Junho de 2025
Mário Branco Coelho (relator)
Maria Domingas Simões (que apresenta a seguinte declaração de voto):
Subscrevo o acórdão por considerar que dos factos apurados de 21 a 25, resulta sentir-se o requerente coagido, tanto assim que recorreu à GNR para se deslocar ao local, permitindo dar como verificada a violência que deve caracterizar o esbulho, a fim de legitimar o recurso ao procedimento cautelar nominado aqui em causa.
Mário João Canelas Brás
__________________________________________________
[1] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140.
[2] In Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143.