PARTILHA DA HERANÇA
PROCESSO DE INVENTÁRIO
LEGÍTIMA
INOFICIOSIDADE
Sumário

1 – A partilha deve ser feita por meio de inventário quando não haja acordos dos interessados directos na partilha, quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária ou quando algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo.
2 – Os herdeiros legitimários e, para defesa da sua legítima, têm um meio de reagir contra as disposições de carácter gratuito que o autor da sucessão tenha realizado, entre vivos ou mortis causa, que ofendam a sua legítima: a redução por inoficiosidade
3 – Em caso de redução inoficiosa de liberalidades, a norma que determina o recurso ao processo de inventário tem como pressuposto a existência de mais do que um herdeiro e a necessidade de realização de operações de liquidação e partilha.
4 – A concluir-se pela inoficiosidade, a concretização de tal redução encontrar-se-á sujeita aos trâmites e operações previstos no artigo 1119.º do Código de Processo Civil, as quais só possíveis através do processo de inventário e do referido incidente, especialmente previsto para o efeito.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 7791/23.9T8STB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Central de Competência Cível de Setúbal – J2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção comum proposta por (…), (…), (…), (…) e (…) contra (…) e (…), os Autores vieram interpor recurso do despacho saneador.
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Os Autores pediram que o Réu marido fosse condenado a proceder ao pagamento de € 96.445,83.
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Em benefício da respectiva pretensão, os Autores alegaram que o Réu marido foi beneficiário de um legado por morte de (…).
Mais assinalaram que a (…) sucederam como herdeiros legitimários (…) e (…), sendo que os Autores são herdeiros da primeira.
Em 24/05/2021 foi celebrado entre os Autores, (…) e o Réu marido um acordo com vista à partilha de bens e este último procedeu à venda do prédio em questão sem respeitar a exigência de devolução de parte do valor, afectando assim a meação do património da dita (…) e a legítima dos seus herdeiros.
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Devidamente citada, a parte passiva invocou a ilegitimidade da Ré mulher e, bem assim, a excepção de nulidade de todo o processo decorrente de erro na forma de processo.
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A parte activa foi notificada para exercer o contraditório relativamente à matéria de excepção, o que fez.
Na perspectiva dos Autores a acção não se destina à declaração da inoficiosidade do legado instituído a favor do Réu marido, mas antes a reparar um prejuízo resultante da não redução desse legado aquando da partilha dos bens dos de cujus.
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Designada data para a realização da audiência prévia, o Tribunal a quo declarou a ilegitimidade passiva da Ré (…), absolvendo-a da instância.
Mais decidiu julgar procedente a excepção dilatória de erro na forma do processo, com a consequente anulação de todos os actos praticados, absolvendo da instância o Réu (…).
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Inconformados com tal decisão, os recorrentes apresentaram recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«a) Os ora recorrentes deduziram no douto Tribunal a quo, o seguinte pedido:
1. Em conformidade com a matéria supra alegada, seja o R. marido condenado a proceder ao pagamento de € 96.445,83 aos AA.;
2. Seja o R. marido condenado em custas e demais encargos no processo.”
b) Os recorrentes formularam o referido pedido com fundamento no facto de terem celebrado um acordo de partilha com o recorrido (…), referente aos bens deixados por óbito do sr. (…) e da sra. (…), acordo esse que o recorrido não cumpriu.
c) Em sede de contestação os recorridos vieram impugnar a factualidade e invocar a exceção dilatória de ilegitimidade passiva da recorrida (…), assim como, o erro na forma do processo e a exceção perentória de caducidade do exercício do direito à ação de redução de liberalidades inoficiosas.
d) O douto Tribunal a quo proferiu despacho saneador no qual foram julgadas procedentes as exceções de ilegitimidade passiva da recorrida (…), assim como a exceção dilatória de erro na forma de processo, com a consequente anulação de todos os atos praticados e consequente absolvição dos recorridos da instância.
e) Os recorrentes não pretendem a partilha de quaisquer bens deixados pelo sr. (…) e pela sra. (…).
f) Os recorrentes não pretendem que seja reduzido o legado instituído ao recorrido (…).
g) Os recorrentes fundam a sua pretensão no incumprimento do acordo de partilha realizado com o recorrido (…).
h) Com vista a concretizar e explicar o que levou as partes a celebrar tal acordo, os recorrentes dão conta de toda a realidade que o antecedeu, assim como de toda a realidade que o precedeu.
i) As operações de partilha mencionadas surgem apenas como complemento à alegação do incumprimento, destinando-se a concretizar e demonstrar qual era efetivamente a vontade das partes aquando da celebração do acordo.
j) Tendo em conta que a adequação da forma de processo é escolhida em função do pedido formulado pelos recorrentes, errou o Tribunal a quo ao julgar procedente a exceção dilatória de erro na forma de processo.
k) Os recorrentes formulam um pedido que apenas a presente ação pode concretizar, e não pretendem, como não peticionam, a partilha de quaisquer bens ou redução de qualquer legado.
l) Pelo que, ao erradamente julgar procedente a exceção de erro na forma de processo, violou o Tribunal a quo, por incorreta aplicação, o disposto no artigo 196.º do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicável deverá o douto Despacho do Tribunal a quo ser substituído por outro que julgue improcedente a exceção de erro na forma de processo, em conformidade com a matéria supra alegada, prosseguindo os presentes autos com as consequências legais que Vossas Exas. venham a entender ser a legalmente admissíveis, assim se fazendo a costumada Justiça!».
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O Réu marido respondeu ao recurso apresentado, defendendo a manutenção da decisão recorrida.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da excepção de erro na forma de processo.
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III – Dos factos apurados:
Os factos com interesse para a justa resolução do litígio são os que constam do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
O Tribunal a quo julgou procedente a excepção de erro na forma de processo, estribando a sua posição no seguinte argumentário: «nesta ação os AA. vêm fazer uma série de operações de partilha para chegar à conclusão de que o legado do imóvel em causa ao aqui Réu pelo de cujus (…) ofende a legítima das herdeiras legitimárias deste, ou seja, a sua única filha (…) e a viúva (…) e a partir daí, fazendo mais contas de partilha, por serem os AA. herdeiros testamentários da (…), entretanto falecida, vêm os mesmos alegar que o R. (legatário) lhes deve a quantia peticionada nos autos.
Ora, algum montante que o Réu tivesse que pagar aos Autores – enquanto herdeiros testamentários da viúva, entretanto falecida, (…) –, na ausência de acordo entre todos os herdeiros, incluindo o legatário, só podia ser apurado no processo próprio, ou seja, no processo de inventário, onde, depois de relacionados todos os bens das heranças de (…) e (…), se verificasse se existia ou não necessidade de redução da liberalidade (legado) por inoficiosidade e, em caso afirmativo, qual o valor de tal redução e proporção em que o mesmo seria dividido por cada um dos herdeiros (incluindo a herdeira legitimária … que nem sequer é parte nestes autos!)».
Os recorrentes contestam este entendimento e fundamentam a sua discordância na circunstância de não pretenderem «que seja reduzido o legado instituído ao recorrente (…)» e adiantam que «fundam a sua pretensão no incumprimento do acordo de partilha realizado com o recorrido (…)».
Por seu turno, o recorrido defende que «o pretendido pelos mesmos era uma operação de partilha, entendendo que da mesma resultaria um crédito a seu favor».
Vejamos:
O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de realizar-se partilha judicial, a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão e a servir de base a eventual liquidação da herança.
O processo de inventário assume assim duas finalidades: (i) pôr termo à comunhão hereditária, com a consequente realização da partilha dos bens da herança ou (ii) a de relacionação de bens hereditários para eventual liquidação da herança.
A partilha deve ser feita por meio de inventário quando não haja acordos dos interessados directos na partilha, quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária ou quando algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo. Nestes dois últimos casos, a lei entende que um dos herdeiros é merecedor de uma tutela especial, que justifica um procedimento mais exigente[1].
Para além de a presente acção não abranger todos os interessados directos na partilha, continuam a existir bens por partilhar e o dito acordo de partilha não estabelece qualquer critério de divisão de bens e apenas impõe a venda de dois bens imóveis por um valor mínimo.
Desta forma, ao contrário daquilo que os Autores sugerem, as operações de partilha mencionadas não surgem apenas como complemento à alegação do incumprimento, antes pressupõem a realização prévia de operações de partilha.
Isto é, estão aqui em causa operações de liquidação da herança, que impõem previamente a necessidade de relacionação, avaliação e partilha de bens em processo de inventário.
Os herdeiros legitimários e, para defesa da sua legítima, têm um meio de reagir contra as disposições de carácter gratuito que o autor da sucessão tenha realizado, entre vivos ou mortis causa, que ofendam a sua legítima: a redução por inoficiosidade[2].
Dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários e esta matéria mostra-se regulada nos artigo 2168.º[3] e seguintes do Código Civil, revelando aqui especial interesse a questão das liberalidades feitas em vida[4]. E, no plano adjectivo, o instituto está precipitado no artigo 1118.º[5] do Código de Processo Civil.
Pires de Lima e Antunes Varela assinalam que a mancha da inoficiosidade tanto pode atingir, efectivamente, as liberalidades entre vivos (doações) e por morte (legados ou instituições de herdeiros), como as próprias despesas sujeitas a colação (artigos 2110.º, n.º 2[6] e 2104.º, n.º 2[7])[8].
As liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida e a mesma não opera automaticamente, exigindo-se assim o impulso processual dos afectados com a liberalidade.
Haverá uma redução, a concretizar nos termos estatuídos nos artigos 2172.º e 2173.º[9]in casu, das feitas em vida –, das liberalidades excessivas que o autor da sucessão realizou e que atingem o preenchimento da legítima dos mesmos, podendo tal operação «converter-se em revogação, quando a mancha da inoficiosidade cubra a liberalidade afectada em toda a sua extensão»[10].
Assim, a exemplo do acórdão convocado na decisão recorrida[11], impõe-se concluir que:
i) Haverá lugar a processo de inventário sempre que a atribuição dos bens do de cujus envolva operações de partilha, ou seja, sempre que haja mais do que um herdeiro, mesmo no caso de existência de um bem doado em vida do de cujus e alienado.
ii) A decisão sobre a inoficiosidade, destinada a aferir da existência ou inexistência de inoficiosidade e a determinar a restituição dos bens à herança, pode ser exercitada pela via de incidente em processo de inventário, seguindo os tramites para tal especialmente previstos no artigo 1118.º do CPC ou, em certos casos, pela via de uma acção autónoma (ex., no caso de um único herdeiro).
iii) a concluir-se pela inoficiosidade, a concretização de tal redução encontrar-se-á sujeita aos trâmites e operações previstos no artigo 1119.º[12] do CPC, envolvendo, nomeadamente, a escolha pelo donatário dos bens que preencherão a sua quota abrindo mão dos demais, que serão sujeitos a licitação, operações estas só possíveis através do processo de inventário e do referido incidente, especialmente previsto para o efeito.
Deste modo, não obstante o nomen juris que a parte activa utilizou na petição inicial, aquilo que está verdadeiramente em causa é a declaração de inoficiosidade da doação que foi feita em benefício do Réu marido.
E esse é, na realidade, o fundamento e a causa de pedir remota aqui esgrimida, devendo assim a pretensão ser discutida em sede de processo de inventário. Não tem aqui aplicação a disciplina correctiva do artigo 193.º do Código de Processo Civil, por via da existência de um quadro de incompetência em razão da matéria, tal como é referido na decisão recorrida.
Em função disso, julga-se assim improcedente o recurso apresentado, mantendo-se a decisão recorrida.
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V – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 25/06/2025
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Cristina Maria Xavier Machado Dá Mesquita
Mário Branco Coelho

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[1] Isabel Menéres Campos Código Civil Anotado, Livro V (coordenação Cristina Araújo Dias), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 131.
[2] Cristina Araújo Dias, Código Civil Anotado, Livro V (coordenação Cristina Araújo Dias), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 235.
[3] Artigo 2168.º (Liberalidades inoficiosas)
1 - Dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários.
2 - Não são inoficiosas as liberalidades a favor do cônjuge sobrevivo que tenha renunciado à herança nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 1700.º, até à parte da herança correspondente à legítima do cônjuge caso a renúncia não existisse. e seguintes do Código de Civil e que são aquelas que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários.
[4] Artigo 2173.º (Redução de liberalidades feitas em vida):
1. Se for necessário recorrer às liberalidades feitas em vida, começar-se-á pela última, no todo ou em parte; se isso não bastar, passar-se-á à imediata; e assim sucessivamente.
2. Havendo diversas liberalidades feitas no mesmo acto ou na mesma data, a redução será feita entre elas rateadamente, salvo se alguma delas for remuneratória, porque a essa é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo anterior.
[5] Artigo 1118.º (Requerimento de redução de legados ou doações inoficiosas):
1 - Qualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do donatário ou legatário visado, até à abertura das licitações, a redução das doações ou legados que considere viciadas por inoficiosidade.
2 - No requerimento apresentado, o interessado fundamenta a sua pretensão e especifica os valores, quer dos bens da herança, quer dos doados ou legados, que justificam a redução pretendida e, de seguida, são ouvidos, quer os restantes herdeiros legitimários, quer o donatário ou legatário requerido.
3 - Para apreciação do incidente, pode proceder-se, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, à avaliação dos bens da herança e dos bens doados ou legados, se a mesma já não tiver sido realizada no processo.
4 - A decisão incide sobre a existência ou inexistência de inoficiosidade e sobre a restituição dos bens, no todo ou em parte, ao património hereditário.
[6] Artigo 2110.º (Despesas sujeitas e não sujeitas a colação)
1. Está sujeito a colação tudo quanto o falecido tiver despendido gratuitamente em proveito dos descendentes.
2. Exceptuam-se as despesas com o casamento, alimentos, estabelecimento e colocação dos descendentes, na medida em que se harmonizem com os usos e com a condição social e económica do falecido.
[7] Artigo 2104.º (Noção):
1. Os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação.
2. São havidas como doação, para efeitos de colação, as despesas referidas no artigo 2110.º
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pág. 273.
[9] Artigo 2173.º (Redução de liberalidades feitas em vida):
1. Se for necessário recorrer às liberalidades feitas em vida, começar-se-á pela última, no todo ou em parte; se isso não bastar, passar-se-á à imediata; e assim sucessivamente.
2. Havendo diversas liberalidades feitas no mesmo acto ou na mesma data, a redução será feita entre elas rateadamente, salvo se alguma delas for remuneratória, porque a essa é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo anterior.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pág. 273.
[11] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/02/2021, consultável em www.dgsi.pt.
[12] Artigo 1119.º (Consequências da inoficiosidade):
1 - Quando se reconheça que a doação ou o legado são inoficiosos, o requerido é condenado a repor, em substância, a parte que afetar a legítima, embora possa escolher, de entre os bens doados ou legados, os necessários para preencher o valor que tenha direito a receber.
2 - Sobre os bens restituídos à herança pode haver licitação, a que não é admitido o donatário ou legatário requerido.
3 - Quando se tratar de bem indivisível, o beneficiário da doação ou legado inoficioso deve restituir a totalidade do bem, quando a redução exceder metade do seu valor, abrindo-se licitação sobre ele entre os herdeiros legitimários e atribuindo-se ao requerido o valor pecuniário que tenha o direito de receber.
4 - Se, porém, a redução for inferior a metade do valor do bem, o legatário ou donatário requerido pode optar pela reposição em dinheiro do excesso.