DEFICIÊNCIAS DA GRAVAÇÃO DA PROVA
ARGUIÇÃO
REAPRECIAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA
Sumário

I. A deficiente qualidade da gravação sonora do depoimento de uma testemunha prestado em audiência final só provoca a nulidade do acto se dela resultar a impossibilidade de se conhecer o teor do depoimento e se essa impossibilidade for suscetível de influir no exame e decisão da causa, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
II. A improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto prejudica a apreciação da questão de direito suscitada no recurso, se a solução jurídica propugnada pelo recorrente depender apenas da alteração da factualidade provada e não provada.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Sumário: (…)

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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1. Relatório:
(…) intentou a presente ação de processo comum, contra (…), pedindo a condenação do Réu:
a) a retirar o algeroz que se encontra implantado no anexo do A.;
b) a retirar parte do telhado que se encontra implantado no prédio do A.;
c) a pagar ao A. o montante de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros) a título de danos patrimoniais, acrescido de juros à taxa legal;
d) a pagar ao A. o montante de € 2.250,00 (dois mil e duzentos e cinquenta euros) a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros a taxa legal.
Para tanto, alegou que, durante o ano de 2020, o réu efetuou obras no seu prédio, o que causou danos no prédio do autor, que impossibilitaram a sua utilização e lhe criaram grande tristeza e ansiedade.
O Réu contestou. Após a realização da audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o Réu dos pedidos formulados.
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O Autor interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões, em síntese:
a) O Recorrente não se conforma com a Sentença recorrida, desde logo porque a prova produzida nas várias sessões de Audiência de Discussão e Julgamento leva a que alguns dos factos dados como não provados, devessem ter sido dados como provados, impondo-se assim a alteração da resposta à matéria de facto em conformidade com o que resultou daquela prova produzida.
b) Por outro lado, a sentença ora recorrida é nula, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil, dado que “a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou decisão da causa” e
c) “Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente”.
d) O artigo 155.º do Código do Processo Civil estabelece a obrigatoriedade de gravação da audiência final, devendo a gravação ser efetuada em sistema vídeo ou sonoro e disponibilizada às partes no prazo de dois dias a contar do respetivo ato.
e) Nos presentes autos, o Recorrente requereu a 09.04.2024, que lhe fosse disponibilizada cópia das gravações de audiência de discussão e julgamento, tendo o Tribunal acedido a esse pedido a 10.04.2024 e o tribunal informado da deficiência da gravação a 18.04.2024.
f) Concretamente, a primeira gravação, referente ao depoimento da testemunha do A., é a que se encontra em deficiente condição, sendo impercetível e contém um barulho de fundo que muito contribui para a inviabilização da sua audição.
g) Motivo pelo qual, e sem necessidade de considerações adicionais, é nula a sentença ora recorrida, nulidade que se invoca desde já com as respetivas cominações legais.
h) A requerida anulação da gravação conduzirá necessariamente à anulação da sentença proferida – na qual se decidiu a matéria de facto.
i) Há violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 1, 20.º, n.º 4 e 204.º da CRP, em virtude do recorrido se ver coartado no seu direito de recorrer, por estar deficientemente gravado o depoimento da única testemunha que apresentou.
j) Em face da prova produzida deveria o Tribunal a quo dar como provados os factos constantes das alíneas a) a f) julgados não provadas.
k) E, em consequência, condenar-se o Réu, nos termos peticionados.
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Foram apresentadas contra-alegações, que terminaram com as seguintes conclusões:
a. A deficiente qualidade da gravação sonora do depoimento de uma testemunha prestado em audiência final só provoca a nulidade do acto se dela resultar a impossibilidade de se conhecer o teor do depoimento e se essa impossibilidade for suscetível de influir no exame e decisão da causa, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, que não é o caso da testemunha (…).
b. Isto porque na verdade, o recorrente transcreveu o depoimento desta testemunha na parte que lhe interessava, não esclarecendo se a parte supostamente impercetível corresponde a uma parte extensa.
c. Por termo de 03/05/2024, conclui-se o seguinte: “Em 03-05-2024, conforme ordenado no despacho que antecede, informo V. Exa. que no inicio da gravação, houvesse algum ruído, mas percebe-se o conteúdo do depoimento da testemunha”.
d. Pelo que, a gravação não é impercetível, ao contrário daquilo que o recorrente alega, não estando reunidos os pressupostos para a determinação da nulidade da sentença.
e. A Reconvenção apresentada pelo Réu não foi declarada improcedente, pelo contrário, tal articulado não foi admitido, e, por isso, nunca foi apreciado e conhecido.
f. Não se provou a prática por parte do Réu de qualquer facto ilícito, nem a existência de nexo de causalidade entre a realização das obras que realizou e quaisquer danos que se viessem a apurar ter ocorrido no prédio do autor.
g. O depoimento de (…) não oferece qualquer credibilidade, tendo em conta as várias contradições, e não se mostra idóneo a fazer prova de que o Réu cortou a nespereira, facto que este sempre negou.
h. Sendo a impugnação de matéria de facto uma autêntica questão fundamental, suscetível de conduzir a decisão diferente, deve ela ser incluída nas conclusões das alegações, de forma sintética mas obviamente com indicação precisa dos pontos de facto impugnados, e dos concretos meios de prova que impõem decisão diversa, como resumo do que a tal respeito tenha sido referido no corpo das alegações, o que não foi feito no recurso em análise.
i. Deve assim ser rejeitado o recurso relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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Colhidos os Vistos, cumpre apreciar e decidir:
i. Questão prévia: Da deficiente gravação do depoimento prestado pela testemunha (...) e suas consequências;
ii. Da admissibilidade da impugnação da decisão de facto;
iii. Da impugnação da decisão de facto;
iv. Reapreciação jurídica da causa.
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2. Apreciação do Recurso:
2.1. Questão prévia: da deficiente gravação do depoimento da testemunha indicada pelo Autor/Recorrente
Resultam dos autos os seguintes factos com relevância para a decisão desta questão prévia:
1) No dia 20-09-2023, pelas 09:30 horas, realizou-se a 1.ª sessão da audiência final do presente processo tendo sido ouvida a testemunha indicada pelo Autor, (…).
2) O depoimento desta testemunha foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 10 horas e 06 minutos e termo pelas 10 horas e 52 minutos;
3) No dia 20-09-2023, ficou registado no citius através da Ref..ª 94306379 a “Disponibilização de registos de gravação de sessão”.
4) No dia 04-10-2023, pelas 13:30 horas, realizou-se a 2.ª sessão da audiência final, tendo sido proferidas alegações orais pela mandatária do Autor e pelo Patrono da Ré.
5) Nesse mesmo dia 04-10-2023 ficou registado no citius “A disponibilização de registos de gravação de sessão”.
6) A sentença foi proferida no dia 27-02-2024.
7) No dia 28-02-2024 foi requerida a retificação da sentença.
8) Por despacho de 09-04-2024, foi determinada, nos termos do artigo 614.º, n.º 1, do CPC, a retificação da sentença, passando a considerar-se não escritos os factos não provados referentes à reconvenção, a parte decisória e de condenação em custas relativas à reconvenção.
9) A 09-04-2024 (…), Autor nos presentes autos, requereu a disponibilização da gravação da audiência de julgamento realizada.
10) Em 10-04-2024, a Escrivã Auxiliar atribuiu à lustre Mandatária do autor, conforme solicitado no requerimento ref.ª 48541802 datado de 09-04-2024, acesso externo à prova gravada no âmbito da audiência de julgamento realizada nos presentes autos.
11) Em 18-04-2024 (…), Autor nos presentes autos, invocou a má qualidade da gravação do julgamento, em especial no que tange ao depoimento da testemunha do A., (…) na fase inicial do julgamento, quando inquirida pela mandatária do A., sendo tal depoimento totalmente impercetível.
12) Por despacho de 22-04-2024 a Mma. Juíza determinou que a secção verificasse a qualidade da gravação, nomeadamente se a mesma estava impercetível.
13) A sra. Escrivã Adjunta consignou, por termo: “Em 03-05-2024, conforme ordenado no despacho que antecede, informo V. Exa. que no início da gravação, houvesse algum ruído, mas percebe-se o conteúdo do depoimento da testemunha”.
14) Em 10-09-2024 foi então proferido o seguinte despacho, pelo Tribunal a quo:
“Através do requerimento de 18.04.2024 (ref. Citius n.º 10593700), o Autor … («…») veio arguir a nulidade da gravação, nomeadamente no que tange ao depoimento da testemunha (…), nos termos do artigo 155.º, n.º 4, do Código de Processo Civil («CPC»).
Em 22.04.2024, foi determinado que a Secretaria procedesse à verificação da qualidade da gravação, tendo sido lavrado termo, em 03.05.2024, do qual resulta que, pese embora algum ruído, mostra-se percetível o conteúdo do depoimento da testemunha (…).
Deste modo, perante a informação da Secretaria, será de desestimar, sem necessidade de considerações adicionais, a arguição da nulidade efetuada pelo Autor, nos termos dos artigos 155.º, n.º 4 e 195.º, ambos do CPC”.
15) Já neste Tribunal da Relação, atenta a imperceptibilidade do depoimento, mas a afirmação constante do despacho que antecede, determinou-se o regresso dos autos à primeira instância para, caso a sra. Juíza assim o entendesse e ainda se mostrasse possível, determinar que a sra. Escrivã que elaborou o termo, ou outro funcionário judicial da secretaria, procedesse à transcrição do depoimento da testemunha (…).
16) Procedeu-se à transcrição do depoimento da testemunha, conforme consta dos autos, tendo sido registado 62 vezes a palavra (impercetível).
17) As partes foram notificadas desta transcrição e nada disseram.
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No recurso que interpôs, o autor, para além de impugnar a decisão quanto à matéria de facto, pretende a declaração de nulidade da sentença com fundamento na deficiente gravação da prova invocando ser imperceptível o depoimento da testemunha (…).
Resulta dos factos provados que, ao contrário do decidido no despacho de 10 de setembro de 2024, a gravação padece, efetivamente, de algumas deficiências já que não é audível a totalidade do depoimento da referida testemunha.
A deficiência da gravação configura uma irregularidade processual, que produz a nulidade do acto se influir no exame ou na decisão da causa, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, ou seja, quando se repercute na apreciação da prova e, em consequência, na decisão.
Esta irregularidade tem um regime especial de arguição, previsto no artigo 155.º do CPC, que dispõe nos seguintes termos:
3 - A gravação dos depoimentos deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato.
4 – A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada no prazo de dez dias, a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.”
Dos factos supra elencados resulta que ficou consignado no citius que a gravação da sessão da audiência final em que foi ouvida a testemunha (…), sessão de 20-09-2024, ficou disponível para as partes a partir do próprio dia 20 de setembro de 2024.
Por conseguinte, o vício da gravação para ser apreciado teria que ter sido invocada até ao dia 30 de setembro de 2023, o que não sucedeu. Com efeito e conforme resulta dos factos provados apenas em 18-04-2024, é que o Autor, (…), invocou a má qualidade da gravação do julgamento, em especial no que tange ao depoimento da testemunha do Autor, (…).
Todavia, o autor alegou que a gravação só lhe foi disponibilizada em 10-04-2024.
De facto, resultou dos autos que a secretaria consignou: “Em 10-04-2024, a Escrivã Auxiliar atribuiu à ilustre mandatária do autor, conforme solicitado no Requerimento Ref.ª 48541802, datado de 09-04-2024, acesso externo à prova gravada no âmbito da audiência realizada nos presentes autos.”.
Desta declaração resulta que não obstante constar no citius que a gravação já havia sido disponibilizada, o mesmo não terá acontecido.
Aliás, assim se compreende que não obstante a gravação em causa ser de setembro de 2023, o autor apenas tenha invocado a deficiência da gravação em abril de 2024 e ainda assim a sra. Juíza tenha determinado que se averiguasse da qualidade da gravação.
O facto é que não tendo a secção disponibilizado no prazo de 2 dias o acesso, a parte tinha o ónus de o solicitar.
Neste sentido, decidiu-se no Acórdão do STJ de 08-09-2021[1], relatado pela Exma. Conselheira Maria da Graça Trigo, que:
“IV. A previsão do n.º 3 do artigo 155.º do CPC segundo a qual a gravação da audiência final deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto, não envolve a realização de qualquer notificação às partes de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes, quando estas o requeiram.
V. O prazo de dez dias, a contar da referida disponibilização, previsto no n.º 4 do artigo 155.º do CPC, faz recair sobre as partes um dever de diligência em averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância.
VI. Na hipótese de a secretaria não disponibilizar a gravação no prazo de dois dias a contar do acto, a parte tem o ónus de, através de requerimento dirigido ao juiz, suscitar a questão; caso se confirme o incumprimento do prazo do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, o prazo do n.º 4 do mesmo artigo só começará a contar-se a partir do momento em que a secretaria passe a ter a gravação ao dispor das partes”.
No caso concreto, o Autor solicitou a disponibilização da gravação, o que sucedeu em 10-04-2024 e no prazo de 10 dias invocou a nulidade da gravação, que foi indeferida, por se ter entendido que não existia qualquer deficiência na gravação.
Ora, olhando à transcrição que foi realizada é manifesto que houve uma deficiência na gravação, tanto que durante o depoimento, por 62 vezes, foi referido que não era percetível o que a testemunha estava a dizer.
Porém, estamos perante uma nulidade secundária, pelo que nos termos conjugados dos artigos 155.º, n.º 4 e 195.º do Código Processo Civil, a deficiência da gravação só invalida o depoimento e, consequentemente, a sentença se de todo o acto não puder ser aproveitado. Ora, lida a transcrição do depoimento, em conjugação com a motivação da decisão de facto constante da sentença, as alegações e contra-alegações é possível concluir que se compreende o depoimento. Assim, a deficiente gravação não afeta a perceção do depoimento e é possível face à transcrição apreciar a impugnação da decisão de facto que foi deduzida.
Por outro lado, a deficiente gravação não prejudicou efetivamente o direito de recurso do autor / recorrente que logrou transcrever parte do depoimento e impugnar a matéria de facto que considera erradamente julgada.
Assim, não obstante se reconhecer a deficiente qualidade da gravação sonora do depoimento prestado pela testemunha (…) na audiência final, não resulta dessa deficiência a impossibilidade de se conhecer o teor do depoimento, nem a mesma influencia o exame e a decisão, pelo que ao abrigo do disposto no artigo 195.º do CPC, que reflete o principio do aproveitamento dos atos, a nulidade suscitada deve ser desatendida.
Importa ainda referir que não se verifica a violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 1, 20.º, n.º 4 e 204.º da CRP, pois precisamente para garantir que todos tenham acesso à procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais é que a lei processual estabelece que nem todas as irregularidades e nulidades conduzem à destruição dos actos, devendo apenas ser invalidade o acto que não possa ser aproveitado. O recorrente não foi impedido de exercer o direito de recorrer. Aliás, o recorrente transcreveu o depoimento, impugnou a decisão de facto e não clarificou que a parte impercetível correspondia a uma parte relevante. Aliás, após a recepção da transcrição também nada disse.
Assim, concluímos que a deficiente qualidade da gravação sonora do depoimento de uma testemunha prestado em audiência final só provoca a nulidade do acto se dela resultar a impossibilidade de se conhecer o teor do depoimento e se essa impossibilidade for suscetível de influir no exame e decisão da causa, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, que não é o caso da testemunha (…).
Em face de todo o exposto, importa concluir que bem andou o Tribunal a quo em desatender a nulidade arguida, nos termos do disposto nos artigos 155.º, n.º 4 e 195.º, ambos do CPC.
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2.2. O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:
1. O A. é dono do prédio misto sito em (…), freguesia de (…), concelho de Ferreira do Zêzere, composto de casa de habitação de rés do chão com cinco divisões e primeiro andar com uma divisão, com o valor patrimonial de € 15.043,12, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) e terra de cultura arvense, com nogueiras e uma eira, com o valor patrimonial de € 175,98, inscrito na matriz rústica sob o artigo (…).
2. Tal prédio adveio à sua posse em 8 de novembro de 2012, através de escritura de habilitação e partilha por óbito de seus pais (…) e mulher (…), outorgada no Cartório Notarial de Ferreira do Zêzere.
3. O R. é dono do prédio misto sito em (…), composto de casa de habitação de rés-do-chão e um anexo para arrecadação, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), com o valor patrimonial de € 12.568,92 e rústica (…), da secção I, com o valor patrimonial de € 131,18, por partilha subsequente a divórcio, que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial.
4. O prédio do R. confronta a sul com o prédio do A..
5. Em data não apurada do ano de 2020, o R. iniciou a realização de obras na sua referida casa de habitação.
6. Para tanto, e porque o A. se encontrava ausente em França onde reside, o R. ocupou parte do logradouro do prédio misto do A., onde colocou entulho e outros resíduos como telhas partidas, tábuas, ferro, e outros materiais.
7. No Verão de 2020, quando o A. se deslocou a Portugal de férias, deparou-se com a situação supra descrita, o que lhe causou profundo mau estar e revolta.
8. O A. sente-se profundamente desagradado com a situação, uma vez que herdou a casa que era dos seus progenitores, pelo que sente uma profunda relação afetiva com a mesma, pois foi ali que nasceu e foi criado, onde tem as suas memórias de infância e juventude.
9. O Réu retirou os materiais sobrantes das obras do terreno do Autor assim que instado para o efeito.
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2.3. O Tribunal considerou não provados os seguintes factos:
a) O R. procedeu ao corte de uma nespereira de grande porte, com mais de 50 anos, que se encontrava no terreno do A..
b) Danificou, ainda, parte do telhado de um anexo que se encontra junto à casa do R., partindo telhas e derrubando a parede em pedra da mesma, pelo que atualmente chove dentro do referido anexo.
c) O R., aquando da realização das obras estendeu o seu telhado em folha de zinco para o prédio do A., numa extensão de cerca de 80 cm.
d) Na mesma altura o R. colocou parte de um algeroz em cima do telhado do A..
e) Estas obras – descritas em 7 e 8 – ocupam o logradouro do prédio do A., e foram feitas sem autorização deste.
f) Tendo o R. entrado no anexo do A. supra referido, danificando a porta em madeira do mesmo.
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2.4. Da admissão do recurso da decisão sobre a matéria de facto
Cumpre, antes do mais, apreciar e decidir se é de admitir ou rejeitar o recurso da decisão relativa à matéria de facto.
Nos termos do artigo 640.º do CPC (que estabelece os requisitos que o recorrente tem que cumprir para que o Tribunal de Recurso reaprecie a decisão quanto à matéria de facto), sob pena de rejeição, “por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente” [2], o recorrente deve especificar, na impugnação:
a. os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados[3];
b. os meios probatórios que imponham decisão diversa e, no caso de prova gravada, com indicação exata das passagens da gravação relevantes.
c. a decisão pretendida;
Analisado o teor do recurso, no que se refere ao mencionada em a., verificamos, que o Recorrente especifica, nas conclusões, os seguintes concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados:
- os factos dados como não provados de a) a f);
No que se refere ao requisito referido em b., o Recorrente especifica em concreto as passagens da gravação dos depoimentos que considera pertinentes, inclusive transcrevendo parte do depoimento, e alude a documentos juntos.
Finalmente, quanto ao pressuposto constante em c., a Recorrente declara pretender que se dê como provados os referidos factos, que foram considerados não provados.
Face ao exposto, admite-se a impugnação da matéria de facto, procedendo-se, assim, de imediato à sua apreciação.
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2.5. Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto:
A Recorrente considera que deve ser dado como provado o seguinte:
I. O R. procedeu ao corte de uma nespereira de grande porte, com mais de 50 anos, que se encontrava no terreno do A..
II. Danificou, ainda, parte do telhado de um anexo que se encontra junto à casa do R., partindo telhas e derrubando a parede em pedra da mesma, pelo que atualmente chove dentro do referido anexo.
III. O R., aquando da realização das obras estendeu o seu telhado em folha de zinco para o prédio do A., numa extensão de cerca de 80 cm.
IV. Na mesma altura o R. colocou parte de um algeroz em cima do telhado do A..
V. Estas obras – descritas em 7 e 8 - ocupam o logradouro do prédio do A., e foram feitas sem autorização deste.
VI. Tendo o R. entrado no anexo do A. supra referido, danificando a porta em madeira do mesmo.
Da motivação da decisão de facto, resulta que os referidos factos foram dados como não provados com a seguinte fundamentação:
“O estado emocional do A (factos 7 e 8) decorre do depoimento da testemunha (…), companheira do autor (…), que o acompanhou e descreveu a relação que o autor tem com a referida casa e o sentimento por este manifestado ao contatar o estado de degradação da mesma.
Porém, deste depoimento não resulta a origem da referida degradação, pois que a testemunha afirmou tratar-se de casa centenária, cujas obras de requalificação serão realizadas à medida das possibilidades do autor, sendo certo que ambos residem em França, não procedendo a manutenção diária da casa. Em consequência, os factos vertidos de I a VI resultaram não provados, pois que nenhuma prova foi feita sobre a relação entre as obras realizadas pelo réu e eventuais danos no prédio do autor. Deste depoimento também não resultou seguro que as referidas obras efetuadas pelo réu ocupassem parte do prédio do autor, pois que o depoimento da referida testemunha limitou-se a afirmá-lo sem corroboração de outro meio de prova.
Aliás, tal foi expressamente negado pelo réu (…) e pelas testemunhas (…), que foi casada com o réu até 2012, (…), companheira do réu, e (…), amigo do réu, que conhecem bem o local e descreveram-no de forma segura e objetiva, merecendo credibilidade. Todos prestaram um depoimento coerente entre si e coincidente com as declarações de parte do réu e bem assim com o conteúdo das fotografias juntas aos autos. A testemunha (…), companheira do réu, confirmou a colocação de entulho junto ao prédio do autor – e que o mesmo foi retirado alguns dias depois - e negou que as obras do telhado e caleira ocupassem o terreno do autor e bem assim que o réu tivesse procedido ao corte de uma nespereira pertença do autor. Também a testemunha (…), amigo do réu, negou tal ocupação de terreno, tendo todas as referidas testemunhas, incluindo (…), que foi casada com o réu até 2012, referido que há muito que a habitação do autor se encontra degradada”.
Considerando esta fundamentação que confronta e valora toda a prova produzida de forma clara, objetiva e coerente, consideramos que o depoimento da testemunha (…) ainda que conjugado com as fotografias juntas à petição inicial não conduz à alteração da decisão de facto.
Com efeito, da leitura da transcrição do depoimento da referida testemunha resulta que a testemunha afirmou que o autor gostava muito da nespereira porque estava ligado à sua infância. No entanto, admitiu que não viu o réu a cortar a nespereira. O facto de mencionar ter ouvido o réu a dizer ao autor que tinha cortado a nespereira não é suficiente para abalar a resposta dada pelo Tribunal de primeira instância, que assistiu à produção de toda a prova e considerou merecer maior credibilidade, pelo menos nesta aparte, o depoimento da testemunha (…), companheira do réu, que negou que este tivesse procedido ao corte da árvore pertença do autor.
Relativamente aos alegados danos no anexo, a testemunha (…) não referiu expressamente que as obras tenham causado danos no anexo, resultando pelo contrário do depoimento que o anexo já se encontrava degradado há muito tempo, tendo o Autor inclusive a intenção de realizar obras no mesmo. Assim, deste depoimento não resulta – como bem se assinala na sentença - que a origem da degradação do anexo tivessem sido as obras realizadas pelo Réu. Ademais, como se refere na sentença, tal nexo foi expressamente negado pelo réu (…) e pelas testemunhas (…), (…), companheira do réu, e (…).
Finalmente, no que concerne à alegação de que as construções e obras realizadas ocupam área que pertence ao Autor; o depoimento da testemunha (…) foi titubeante designadamente quando confrontada com as fotografias juntas aos autos, e por isso incapaz de abalar a convicção formada pelo Tribunal, com o depoimento das testemunhas (…) e (…), que negaram que as obras do telhado e caleira ocupassem o terreno do autor.
Em suma, inexiste qualquer razão para alterar a convicção da decisão de facto da primeira instância, que se mostra corretamente elaborada, de acordo com o disposto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
Improcede, assim, in totum, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
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2.6. Reapreciação jurídica da causa
No recurso propugna o recorrente que havendo alteração da matéria de facto nos termos propostos pelo recorrente, impõe-se consequentemente uma decisão diversa da proferida: a procedência total da ação.
Conforme supra se decidiu, a impugnação da decisão quanto à matéria de facto foi julgada totalmente improcedente e, por conseguinte, porque a alteração da decisão provinha dessa alteração fica prejudicada a questão de direito.
Trata-se de situação similar à ocorrida no Processo n.º 110/24.9T8LGA, onde o Tribunal da Relação de Évora, decidiu por acórdão datado de 16-12-2024[4]:
“I - A eventual contradição entre a factualidade provada e a decisão proferida, sem prejuízo de poder estar em causa um erro de julgamento, não configura a causa de nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), 1.ª parte, do CPC, relativa à oposição entre os fundamentos e a decisão;
II - A invocação de supostas contradições entre factos considerados provados e não provados, configurando imputação de vícios à decisão sobre a matéria de facto, constitui fundamento de impugnação da decisão de facto, a qual se encontra sujeita aos ónus impostos pelo artigo 640.º do CPC;
III - A improcedência da impugnação da decisão relativa à matéria de facto importa se considere prejudicada a apreciação da questão de direito suscitada na apelação, se a solução que a recorrente defende para o litígio assenta na alteração da factualidade provada”.
Ainda assim, sempre se dirá que bem andou o Tribunal em, face aos factos que foram dados como demonstrados, julgar totalmente improcedente a presente ação, por não se encontrarem verificados os pressupostos do dever de indemnização por facto ilícito, previsto no artigo 483.º do Código Civil, sendo que nos termos do artigo 342.º, n.º 1 e 487.º, n.º 1, do mesmo diploma, o ónus da prova dos referidos pressupostos incumbia ao Autor. No caso, o autor alegou factos que imputou ao Réu e que lhe teriam causado danos, mas esses factos não resultaram provados.
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As custas deverão ser suportadas pelo Autor/Recorrente, atenta a total improcedência do recurso (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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3. Decisão:
Pelo exposto, decide-se julgar a apelação totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
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Évora, 15 de julho de 2025
Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)
José António Moita (1.ª Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunta)


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[1] Acessível in
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bd6eff546b3dba658025874b0039e859?OpenDocument
[2] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina – 7:ª edição, pág. 198.
[3] Que conforme se decidiu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 10-10-2024, no Proc. n.º 1109/21.2T8ENT.E1, publicado in www.dgsi.pt: “(os concretos pontos de facto impugnados) devem ser feitos nas respetivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão.”
[4] Acessível in:
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/1ae91291717e836580258c0a00348a42?OpenDocument