CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CRECHE
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS DECORRENTES DE LESÃO SOFRIDA POR CRIANÇA
Sumário

I – Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II - Num contrato de prestação de serviços celebrado entre a progenitora de uma criança e a entidade titular da creche, existe culpa efetiva desta sob a forma de negligência se na sala afeta a crianças com cerca de três anos de idade existe um armário didático que não está fixo ou preso e, na decorrência da sua queda parcial, uma menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito), ainda que essa queda parcial esteja relacionada com o comportamento ou a movimentação da criança em causa.
III - Esse contrato tem como partes igualmente os progenitores da criança, cuja responsabilidade a creche substitui no respetivo período laboral, pelo que estes têm igualmente direito de indemnização pelos danos não patrimoniais próprios derivados das lesões sofridas pela filha.

Texto Integral

Processo nº 171/23.8T8AMT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível ...


Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr.ª Maria Fernandes de Almeida
2º Adjunto Des. Dr.ª Teresa Sena Fonseca


5ª Secção



Sumário:
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I - RELATÓRIO




Acordam no Tribunal da Relação do Porto:




Os autores AA e mulher BB, por si e em representação da filha menor de ambos, CC, instauraram a presente ação comum, contra as rés “Infantário Creche–A..., IPSS” e “B...–Companhia de Seguros, S.A.”, pedindo a sua condenação a pagarem-lhe solidariamente:
a) À 3.ª autora CC, a quantia de € 6.000 euros, a título de indemnização dos morais sofridos em consequência do sinistro, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento;
b) Aos 1.º e 2.ª autores AA e mulher BB, a quantia de € 844,83 euros, a título de indemnização pelos danos patrimoniais em consequência do sinistro, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento;
c) A cada um dos 1.º e 2.ª autores AA e mulher BB, a quantia de € 2.000 euros, a título de indemnização dos morais sofridos em consequência do sinistro, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento.
Em respaldo da sua pretensão, traçaram os autores a seguinte narrativa fáctica:
- A 3.ª autora CC, nasceu em ../../2017 e é filha do 1.º autor AA e da 2.ª autora BB.
- Em 1 de Setembro de 2020 os pais da menor ajustaram com a 1.ª ré “Infantário-Creche A...” a prestação de serviços de jardim-de-infância para a menor;
- Entre a 1.ª ré “Infantário-Creche A...” e a 2.ª ré “B...–Companhia de Seguros, S.A.” foi ajustado um acordo de seguro do ramo de Acidentes Pessoais–Seguro Escolar, titulado pela apólice n.º ...01, com início de produção de efeitos em 25/10/2006 e em vigor à data de 12/07/2021, nos termos e com as coberturas resultantes das Condições Particulares, Gerais e Especiais e as seguintes coberturas e capitais máximos: a) Invalidez permanente: € 25.000 euros; b) Despesas de tratamento: € 2.500 euros; c) Responsabilidade civil dos alunos: € 1.500 euros; d) Responsabilidade civil do estabelecimento de ensino: € 5.000 euros. A este acordo aplica-se a Condição Especial 001– Seguro Escolar, com as respetivas cláusulas e tinha como pessoa segura, a menor, CC;
- Acontece que, o dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário tombou sobre a mão direita da menor;
- Em consequência da queda, a menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito), tendo sido transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2..., onde foi efetuado o diagnóstico de “esfacelo do 5.º dedo da mão direita, com amputação parcial da polpa do 5.º dedo da mão direita, com pequena exposição da falange óssea, sem atingimento ósseo nem ungueal”;
- Nessa decorrência sofreram os Autora danos patrimoniais e não patrimoniais.
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Citada a 1.ª ré “Infantário Creche–A..., IPSS”, a mesma contestou e defendeu-se, por exceção dilatória de ilegitimidade passiva, a qual, foi julgada improcedente e, por impugnação por contraversão do acidente, preconizando a improcedência da ação e formulou reconvenção dependente da procedência da ação, impetrando que, seja operada a compensação e limitar-se a obrigação de indemnização da 1.ª ré ao pagamento da quantia que exceder os valores recebidos pelos autores por parte da seguradora 2.ª ré e por parte da Segurança Social e cujos valores serão apurados em liquidação de sentença.
Mais apresentou uma diferente versão do acidente, invocando que:
- A menor encontrava-se no interior da sala correspondente à sua idade, juntamente com os demais colegas e educadora;
- A menor estava junto ao local denominado “espaço faz de conta” onde está instalado um conjunto de peças em miniatura, que simbolizam a “cozinha tradicional”, nas quais se encontra um “combinado”;
- A dada altura, a educadora detetou a existência de sangue no piso da sala que emanava da mão da menor;
- Já que a menor abrira a porta do “combinado” e, ao fechar, trilhou o dedo mínimo na ranhura da referida porta;
- A menor foi de imediato socorrida pela educadora presente na sala, sendo de seguida, conduzida ao Hospital pela 1.ª ré;
- O “combinado” foi adquirido pela 2.ª ré há mais de três anos, a entidade vendedora está devidamente certificada e é especialista em material didático e o objeto está homologado para o fim didático.
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Citada a 2.ª ré “B...–Companhia de Seguros, S.A.” a mesma contestou, confessando parcialmente o pedido, na medida em que aceita que a 2.ª ré deve ser condenada a pagar aos autores a quantia de € 227,50 euros relativa a despesas com medicamentos e transportes, contudo, sem juros de mora, por já ter oferecido aos autores tal pagamento, antes da propositura da ação por mera impugnação.
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Foi realizada a audiência prévia e efetuada perícia de avaliação do dano corporal sofrido pela menor.
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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com observância do legal formalismo aplicável.
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A final foi proferida decisão com a seguinte parte dispositiva:
“Em consequência do acima recenseado, julgo a ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência:
a) Condeno a 2.ª ré “B...–COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” a pagar aos autores a soma de € 374,17 euros (trezentos e setenta e quatro euros e dezassete cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral do pedido;
b) Absolvo as rés do restante pedido;
Fica prejudicada a apreciação da reconvenção formulada pela 1.a ré, nos termos do art.º 266 n.º 6 do CPC, por a mesma ser dependente da procedência da ação, absolvendo-se os autores/reconvindos da instância reconvencional.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os Autores interpor o presente recurso, rematando com as seguintes conclusões:
(…)
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Devidamente notificada contra-alegou a Ré B... concluindo pelo não provimento do recurso.

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Corridos os vistos legais cumpre decidir.

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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à pretendida alteração factual, ou sendo julgada improcedente a pretendida alteração, saber se o tribunal fez ou não uma correta subsunção jurídica dos factos que nos autos se mostraram assentes.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto que o tribunal recorrido deu como provada:
Provenientes do Saneador
A- 3.ª autora CC, nasceu em ../../2017 e é filha do 1.º autor AA e da 2.ª autora BB.
B- Em 1 de Setembro de 2020 os pais da menor ajustaram com a 1.ª ré “Infantário-Creche A...” a prestação de serviços de jardim-de-infância para a menor.
C- Entre a 1.ª ré “Infantário-Creche A...” e a 2.ª ré “B... – Companhia de Seguros, S.A.” foi ajustado um acordo de seguro do ramo de Acidentes Pessoais – Seguro Escolar, titulado pela apólice n.º ...01, com início de produção de efeitos em 25/10/2006 e em vigor à data de 12/07/2021, nos termos e com as coberturas resultantes das Condições Particulares, Gerais e Especiais e as seguintes coberturas e capitais máximos: a) Invalidez permanente: € 25.000 euros; b) Despesas de tratamento: € 2.500 euros; c) Responsabilidade civil dos alunos: € 1.500 euros; d) Responsabilidade civil ensino: € 5.000 euros. A este acordo aplica-se a Condição Especial 001 – Seguro Escolar, com as respetivas cláusulas e tinha como pessoa segura, a menor, CC.
No que respeita a invalidez permanente, aplica-se a Tabela de Desvalorização por Invalidez Permanente anexa às Condições Gerais da apólice–cf. Cláusula 23ª, n.º 1, das Condições Gerais da apólice.
Para que seja atribuída alguma incapacidade será necessário que a pessoa segura apresente alguma lesão com enquadramento na Tabela de Desvalorização, sendo, depois, determinada a percentagem de desvalorização da pessoa segura com base nessa tabela, sendo nesta cobertura, o capital máximo de € 25.000 euros aplicado aos casos de incapacidades de 100%, nos restantes casos, a indemnização será calculada com base na percentagem de incapacidade sobre o valor máximo do capital.
No que respeita à cobertura de “Despesas de tratamento” – compreendendo-se nestas as “relativas a honorários médicos e internamento hospitalar, incluindo assistência medicamentosa e de enfermagem, que forem necessários em consequência do acidente” e, ainda, no caso de ser necessário tratamento clínico regular e durante o período de duração do mesmo, “as despesas de deslocação da pessoa segura ao médico, hospital, clínica ou posto de enfermagem, desde que o meio de transporte utilizado seja adequado à gravidade lesão”–responde a 2.ª ré. até ao capital máximo contratado de 2.500,00€. (– Cláusula 26ª, n.ºs 1 e 3).
A cobertura de “Responsabilidade Civil do Estabelecimento de Ensino” garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, 1.ª ré, “relativamente à reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros, em consequência de acidentes que ocorram nas instalações do estabelecimento de ensino, até ao quantitativo máximo global indicado nas Condições Particulares da apólice”, no caso 5.000,00€. (Condição Especial 001, Cláusula 2ª, n.º 3) e nos termos do disposto na Condição Especial 001, Cláusula 3ª, n.º 3, al. b), para efeito da cobertura de responsabilidade civil referida no artigo anterior, não são considerados terceiros entre si as pessoas com qualquer vínculo ao tomador do seguro, nomeadamente os alunos.
Provenientes da audiência de julgamento
1- No dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário (frigorífico de brincar) tombou parcialmente, ficando apoiado nas portas;
2- A menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito);
3- O armário não estava fixado à parede;
4- A menor foi transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2...;
5- Onde foi efetuado o diagnóstico de “esfacelo do 5.º dedo da mão direita, com amputação parcial da polpa do 5.º dedo da mão direita, com pequena exposição da falange óssea, sem atingimento ósseo nem ungueal”;
6- Após limpeza e desinfeção foi realizada cirurgia segundo a técnica de Atasoy, com regularização dos bordos e plastia de encerramento com retalho em V-Y e anestesia troncular;
7- Após o que teve alta com prescrição de Benuron 40;
8- A menor ficou impedida de frequentar o infantário desde 12 de julho de 2021 até 31 de julho de 2021;
9- Tendo a 2.ª autora de recorrer a baixa-médica para assistência à família nesse período;
10- A menor frequentou as consultas na especialidade de cirurgia pediátrica no Centro Hospitalar do Porto, nos dias 14/07/2021; 19/07/2021; 21/07/2021; 23/07/2021; 28/07/2021 e 21/09/2021;
11- Percorrendo os pais, 756 km em viatura própria;
12- A menor, na última consulta de revisão, em 21/09/2021 recebeu alta clínica, tendo as lesões sido dadas como consolidadas, com a polpa da 5.ª falange distal da mão direita, alvo da cirurgia, bem cicatrizada, com bom volume de polpa e, leito ungueal uniforme;
13- A menor sentiu dores e mal-estar generalizado;
14- Tendo ficado com a mão direita totalmente imobilizada durante 2 semanas e 3 dias;
15- Sofrendo ansiedade, angústia, inquietação e tristeza, por não conseguir pegar em objetos, escrever ou desenhar;
16- Ficou com ligeira cicatriz polpar e atrofia na almofada da polpa digita, classificável de 2 em 7 (relatório do IML);
17- De quantum doloris de grau 4 em 7 (relatório do IML);
18- A 2.ª autora é contabilista certificada, auferindo o vencimento mensal de € 800 euros;
19- Entre 14 e 31 de julho de 2021, aquando da prestação de assistência à filha menor, deixou de auferir € 124,79 euros;
20- Os pais despenderam € 400 euros no relatório de avaliação médica;
21- Nas deslocações ao Centro Hospitalar, em portagens e estacionamento os pais despenderam € 320,04 euros;
22- Os pais sentiram pânico e temeram pela vida e integridade física da menor;
23- Sofrendo abalo com a perspetiva da filha ficar a sofrer de uma deformidade física e vir a sofrer baixa autoestima e diminuída auto-percepção;
24- Os pais sofreram nervosismo, mágoa, angústia, insónias e falta de apetite;
25- A menor encontrava-se no interior da sala correspondente à sua idade, juntamente com os demais colegas e educadora;
26- A menor estava junto ao local denominado “espaço faz de conta” onde está instalado um conjunto de peças em miniatura, que simbolizam a “cozinha tradicional”, nas quais se encontra um “combinado”;
27- A dada altura, a educadora detetou a existência de sangue no piso da sala que emanava da mão da menor;
28- A menor trilhou o dedo mínimo numa porta do armário;
29- A menor foi de imediato socorrida pela educadora presente na sala, sendo de seguida, conduzida ao Hospital pela 1.ª ré;
30- O “combinado” foi adquirido pela 2.ª ré há mais de três anos, a entidade vendedora está devidamente certificada e é especialista em material didático e o objeto está homologado para o fim didático;
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Factos Não Provados

Tema 1, parte “Que o armário/frigorífico de brincar tombasse sobre a mão direita da menor, ficando provado apenas que o armário tombou parcialmente, ficando apoiado nas portas abertas;
Tema 2 parte, isto é, que a amputação fosse consequência da queda;
Tema 4 parte segmento “em consequência da queda”;
Tema 8 parte segmento “em consequência da queda”;
Tema 13 parte segmento “em consequência da queda”;
Temas 16 e 18 (o relatório do IML não o sufraga, na medida em que afirma que não há lesões nem sequelas permanentes);
Tema 24 parte, segmento “em consequência da queda”;
Tema 30 Provado apenas que a menor trilhou o dedo mínimo na ranhura da porta do armário.

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III. O DIREITO

Como supra se referiu, a primeira questão que no recurso vem colocada prende-se com:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões o Réu/apelante abrange, com o recurso interposto, a impugnação da decisão da matéria de facto, não concordando com a resenha de algum dos factos dados como provados e não provados, sendo que, observa, de forma satisfatória, os ónus que sobre si recaem, pelo que deve ser conhecida a impugnação da decisão da matéria de facto nos moldes alegados.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[1]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetividade, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[2]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[3]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao Ré recorrente, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.
Os pontos 1-, 2-, 4-, 8-, 13-, 24- e 28-dos factos provados tem a seguinte redação:
1.No dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário (frigorífico de brincar) tombou parcialmente, ficando apoiado nas portas;
2- A menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito);
4- A menor foi transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2...;
8- A menor ficou impedida de frequentar o infantário desde 12 de julho de 2021 até 31 de julho de 2021;
13- A menor sentiu dores e mal-estar generalizado;
24- Os pais sofreram nervosismo, mágoa, angústia, insónias e falta de apetite;
28. A menor trilhou o dedo mínimo numa porta do armário;”
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Os Temas 1, 4, 8, 13, 24, 28 e 30, constantes dos factos não provados tem a seguinte redação:
“Tema 1, parte: Que o armário/frigorífico de brincar tombasse sobre a mão direita da menor,
ficando provado apenas que o armário tombou parcialmente, ficando apoiado nas portas
abertas;
Tema 2 parte, isto é, que a amputação fosse consequência da queda;
Tema 4 parte segmento “em consequência da queda”;
Tema 8 parte segmento “em consequência da queda”;
Tema 13 parte segmento “em consequência da queda”;
(…)
Tema 24 parte, segmento “em consequência da queda”;
Tema 30 Provado apenas que a menor trilhou o dedo mínimo na ranhura da porta do armário.”
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Pretendem os apelantes que os citados pontos passem, respetivamente, a ter a seguinte redação:
1- No dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário (frigorífico de brincar) tombou, tendo a menor CC sofrido ferimentos provocados pelo armário e associados a tal tombo;
2- Em consequência do acidente sofrido com o armário, a menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito);
4- Em consequência do acidente sofrido com o armário, a menor foi transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2...;
8- Em consequência do acidente sofrido com o armário, a menor ficou impedida de frequentar o infantário desde 12 de julho de 2021 até 31 de julho de 2021;
13- Em consequência do acidente sofrido com o armário, a menor sentiu dores e mal-estar generalizado;
24- Em consequência do acidente sofrido pela menor com o armário, os pais sofreram nervosismo, mágoa, angústia, insónias e falta de apetite;
28. A menor decepou a polpa do dedo mínimo em decorrência do acidente sofrido com o armário que tombou.
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Pretendem ainda os apelantes que seja aditado aos factos provados o seguinte:
“A Educadora estava sozinha na sala com um grupo de treze crianças, não estando presente qualquer auxiliar de educação”.
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Para o efeito convocam as suas declarações, as declarações de parte do representante legal da 1ª Ré e os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF.
Analisando.
Relativamente ao aditamento do facto supra, alegam os apelantes que se trata de um facto essencial para se aquilatar do cumprimento do dever de vigilância, bem como da ilegalidade da atuação da Primeira Ré, sendo que, tal facto terá resultado do depoimento da testemunha DD.
Acontece que, os factos essenciais têm de ser alegados/articulados pela parte (cf. artigo 5.º, nº 1 do CP Civil), apenas sendo lícito ao juiz considerar outros, não alegados, se forem complementares instrumentais, notórios ou que sejam do seu conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Nestes termos, não pode este tribunal aditar o facto à fundamentação factual ainda que tal facto tenta resultado da instrução da causa.
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Da leitura das alegações recursivas e respetivas conclusões e no que tange à impugnação da matéria de facto o nó górdio reside em se apurar o que esteve na origem das lesões sofridas pela Autora CC na 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito) que, como vem provado, sofreu a amputação parcial da sua polpa.
Como emerge da decisão recorrida o tribunal a quo deu como provado que a menor trilhou o dedo mínimo numa porta do armário (cf. ponto 28- dos factos provados).
Mas, salvo o devido respeito, não se pode sufragar tal entendimento.
Na verdade, a única testemunha-DD-que estava na sala quando o armário (combinado) tombou não soube explicar como terá ocorrido a lesão sofrida pela menor CC.
Efetivamente, ouvido o seu depoimento o que dele se retira são meras suposições do que terá acontecido, sendo que, no seu entender a lesão terá ocorrido na dobradiça da porta.
Ora, não tendo sido feita prova direta da circunstância em que ocorreu a lesão, como o tribunal, baseado apenas nas regras da experiência, pôde concluir que a menor trilhou o dedo mínimo numa porta do armário/combinado?
Em primeiro lugar analisando as fotografias juntas com a petição inicial que retratam a lesões sofridas pela menor na 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito), elas não são compatíveis com qualquer trilhamento.
Na verdade, o trilhamento, em princípio, causa esmagamento sem ferida aberta, ora o que se vê na imagem é que houve laceração e perda de tecido e, portanto, a lesão dificilmente pode ter sido provocada por trilhamento.
O que se verifica é a perda da unha e exposição da polpa, sendo que, a ausência clara de estrutura ungueal e tecido irregular, com possível perda tecidual, sugere amputação parcial.
Aliás, diga-se, que não se divisa como, dada a configuração do móvel em causa[4], podia ter ocorrido o trilhamento do dedo antes do armário/combinado ter tombado, como parece sugerir o tribunal recorrido na sua motivação da decisão da matéria de facto, além de que só um trilhamento extremo podia causar a referida lesão.
Diante do exposto a única conclusão segura, para além de toda a dúvida razoável, que se pode retirar de toda a prova produzida sob este conspecto, é que o armário/combinado tombou e que, nessa decorrência, a menor apresentava as lesões supra descritas na 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito).
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Desta forma, altera-se a redação dos pontos impugnados pela seguinte forma:
1- No dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário (frigorífico de brincar) tombou parcialmente, ficando apoiado nas portas;
2- Na decorrência do referido tombo a menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito);
4- Em consequência dessa amputação a menor foi transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2...;
8- Em consequência dessa amputação, a menor ficou impedida de frequentar o infantário desde 12 de julho de 2021 até 31 de julho de 2021;
13- Em consequência dessa amputação, a menor sentiu dores e mal-estar generalizado;
24- Em consequência dessa amputação os pais sofreram nervosismo, mágoa, angústia, insónias e falta de apetite.
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E, face à redação do ponto 2. elimina-se dos factos provados o ponto 28-.
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Alterada pela forma descrita a fundamentação factual a segunda questão que importa dilucidar é:
b)- saber se a subsunção jurídica operada pelo tribunal recorrido deve ser mantida ou alterada.
Como se evidencia da decisão recorrida aí exclui a existência de responsabilidade da 1ª na produção dos danos sofridos pelos Autores.
Será assim?
Analisando.
A relação que se estabeleceu entre os Autores AA e BB e a primeira Ré é uma relação contratual, a confiança da autora CC aos cuidados da ré no âmbito do funcionamento da respetiva creche tem na sua origem um negócio jurídico oneroso, nos termos do qual a ré se obrigou a determinadas prestações em benefício da autora referida CC e dos respetivos progenitores (substituindo-os no exercícios das responsabilidades parentais durante o período laboral destes) relacionadas com a exploração da creche e o desenvolvimento das atividades próprias de uma estrutura e organização com essa valência, mediante o pagamento por parte dos pais de uma determinada contrapartida monetária (cf. ponto dos factos provados e doc. nº 2 junto com a petição inicial).
Literalmente o referido contrato vincula a primeira Ré aos seguintes deveres de prestação:




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É verdade que nele não está aqui incluído qualquer dever de vigilância sobre a criança de modo a zelar pela respetiva saúde e integridade física e evitar lesões de qualquer natureza.
Todavia, parece evidente que não apenas a Ré está vinculada a esses deveres, como os mesmos são absolutamente essenciais num contrato desta natureza.
Não é com efeito imaginável ou concebível sequer que os pais possam entregar uma criança de três anos numa creche sem esta assumir o dever, que qualificamos mesmo como dever primário por excelência equivalente, aliás, ao dever que os próprios pais tinham para com a criança caso continuassem a tê-la sob a sua guarda em vez de a entregar na creche, de cuidar da criança, assegurar a segurança desta, evitar que esta sofra lesões seja de que natureza for e/ou tratá-la em caso de doença.
Aliás, o desenvolvimento integral de uma criança de três anos não pode em circunstância alguma prescindir desse dever de vigilância, atenção e ensino sobre os perigos e os modos de os evitar.
Deveres que, aliás, resultam da Portaria n.º 262/2011, de 31 de Agosto, que estabelece as normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento das creches e que no seu artigo 3.º dispõe: “a creche é um equipamento de natureza socioeducativa, vocacionado para o apoio à família e à criança, destinado a acolher crianças até aos 3 anos de idade, durante o período correspondente ao impedimento dos pais ou de quem exerça as responsabilidades parentais”, assinalando, portanto, que se trata de uma instituição que visa substituir os pais no pleno exercício das responsabilidades destes.
Por sua vez no artigo 4.º do mesmo diploma estabelecem-se como objetivos da creche, designadamente, os seguintes: “(…) colaborar com a família numa partilha de cuidados e responsabilidades em todo o processo evolutivo da criança; assegurar um atendimento individual e personalizado em função das necessidades específicas de cada criança; prevenir e despistar precocemente qualquer … situação de risco; proporcionar condições para o desenvolvimento integral da criança, num ambiente de segurança física e afetiva (…)”.
E no artigo 5.º, quanto às atividades e serviços a prestar pela creche, o mesmo diploma prevê, entre outras coisas, os cuidados adequados à satisfação das necessidades da criança, entre os quais se contarão evidentemente as necessidades de segurança.
Devemos, assim, concluir que ao celebrar com os pais da Autora CC o contrato de prestação de serviços ao abrigo da qual passou a acolher na sua creche a criança, a primeira Ré vinculou-se, perante aqueles, a zelar pela saúde e integridade física da criança, ou seja, a possuir instalações e equipamentos compatíveis com a idade das crianças, a sua falta de destreza, a sua curiosidade e ingenuidade naturais e a sua falta de perceção do perigo, de modo a eliminar a possibilidade de os movimentos e comportamentos comuns da criança a colocarem em situações de risco e lhes provocarem lesões da integridade física.
Tratando-se de uma responsabilidade contratual, presume-se a culpa do devedor (artigo 799.º do Código Civil), razão pela qual, para afastar a respetiva culpa na produção das lesões sofridas pela criança, a ré devia ter demonstrado que no caso tinha adotado todos os cuidados e desenvolvido todas as ações destinados a evitar os riscos previsíveis para a criança e que o acidente apenas se deu por razões de força maior ou incontroláveis.
Ora, não apenas não se fez essa prova, como se demonstrou a culpa efetiva da ré, sob a forma de negligência.
Com efeito, está provado que as lesões sofridas pela menor CC ocorreram porque quando ela estava na creche ocorreu a queda de um armário (frigorífico de brincar) na decorrência da qual a menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito), armário esse não estava fixo à parede (cf. ponto 3- dos factos provados).
Ora, à luz de um dever de cuidado que tenha especialmente em conta que a criança tinha três anos de idade e o estado de desenvolvimento próprio dessa idade, afigura-se-nos absolutamente exigível que, na sala onde as crianças estão na creche, não existam móveis ou equipamentos soltos com peso suscetível de causar lesões físicas e que possam cair e atingir alguém que se encontre no local.
E isso, deve ser assim, mesmo que a queda resulte de um contacto da própria criança, uma vez que esta não tem ainda consciência do perigo nem condições para se autodeterminar em função dele, pelo que quem dirige, orienta e determina a ocupação e gestão do espaço tem de prevenir comportamentos incautos da criança e adotar as medidas para obviar às respetivas consequências.
Nessa medida, entendemos que a ré incorreu em incumprimento ou cumprimento defeituoso dos deveres de prestação a que está vinculado pelo contrato de prestação de serviços e, consequentemente, demonstrada a respetiva culpa e o nexo de causalidade com os danos sofridos pelos Autores, está obrigada a indemnizar tais danos (artigo 798.º do Código Civil).[5]
E contra isso não se argumento que O “combinado” foi adquirido pela 1.ª ré há mais de três anos, a entidade vendedora está devidamente certificada e é especialista em material didático e o objeto está homologado para o fim didático” (cf. ponto 30- dos factos provados).
É que uma coisa é o objeto em causa estar homologado para o fim didático e ter sido adquirido a empresa certificada, outra coisa é ele não estar fixado para impedir que tombe, como aqui sucedeu.
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Analisemos agora os montantes indemnizatórios.

Da responsabilidade da segunda Ré.
Na sentença recorrida foi a referida Ré condenada a pagar aos Autores a quantia de € 374,17 euros (trezentos e setenta e quatro euros e dezassete cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral do pedido.
Relativamente a tal condenação nada temos a censurar à decisão recorrida.
Com efeito, a referida Ré à luz da alínea C) e do seguro de acidentes pessoais, só é contratualmente responsável pelos danos verificados relativos a despesas de tratamento (sendo elas, assistência médica, medicamentosa e despesas de deslocação para os tratamentos) até ao capital seguro de € 2.500 euros tomando em consideração que, não existe qualquer invalidez permanente.
Efetivamente, a responsabilidade civil da 1ª Ré não se encontra, no caso dos autos, garantida pelo contrato de seguro celebrado entre as Rés, razão pela qual não fazem, assim, qualquer sentido as conclusões dos Autores, na parte em que vêm pugnar pela condenação da referida Ré no pagamento de uma quantia superior à suprarreferida, nomeadamente no pagamento da quantia de 10.844,83€.
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Da responsabilidade da primeira Ré.
Danos sofridos pela Autora CC.
A titulo de danos não patrimoniais reclama esta Autora a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros).
Como é consabido, para a cabal compreensão da problemática da ressarcibilidade deste tipo de danos há a considerar que, como deflui do art.º 70º do Cód. Civil, na personalidade humana há uma organização somático-psíquica, cuja tutela encontra tradução na ideia de personalidade física ou moral.
Essa organização como refere Capelo de Sousa[6] “(...) é composta não só por bens ou elementos constitutivos (v.g. a vida, o corpo e o espírito), mas também por funções (v.g. a função circulatória e a inteligência), por estados (p. ex., a saúde, o prazer e a tranquilidade) e por forças, potencialidades e capacidades (os instintos, os sentimentos, a inteligência, o nível de educação, a vontade, a fé, a força de trabalho, a capacidade criadora, o poder de iniciativa, etc.)”.
E mais adiante[7], afirma o referido autor “dado que a personalidade humana do lesado não integra propriamente o seu património, acontece que da violação da sua personalidade emergem direta e principalmente danos não patrimoniais ou morais, prejuízos de interesses de ordem biológica, espiritual ou moral, não patrimonial que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, apenas podem ser compensados que não exatamente indemnizados, com a obrigação pecuniária imposta ao agente.”
Como a este propósito postula o nº 1 do art.º 496.ºdo Código Civil “[N]a fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, estipulando o seu nº 3 que “[O] montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º”.
O legislador fixou, assim, como critérios de determinação do quantum indemnizatur por danos não patrimoniais: a equidade (artigo 496.º, nº 3); o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, e as demais circunstâncias do caso (art.º 494.º ex vi da primeira parte do nº 3 do art.º 496.º).
A respeito deste tipo de responsabilidade a doutrina vem sublinhando[8] que a mesma assume uma dupla função: compensatória e punitiva.
Compensatória porquanto o quantum atribuído a título de danos não patrimoniais consubstancia uma compensação, uma satisfação do lesado, porque se atende à extensão e gravidade dos danos (art.º 496.º, nº 1).
A função punitiva advém da circunstância da lei enunciar que a determinação do montante da indemnização deve ser fixada equitativamente, atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso.
O art.º 496.º, nº 1 do Código Civil confia, deste modo, ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, não em função da adição de custos ou despesas, mas no intuito de arbitrar à vítima a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ela se viu afetada. Daí que os danos não patrimoniais não possam sujeitar-se a uma medição, mas sim a uma valoração.
A gravidade do dano dever aferir-se por um padrão objetivo e não por um padrão subjetivo derivado de uma sensibilidade requintada ou embotada. Na fixação do montante da compensação deve também atender-se aos padrões adotados pela jurisprudência, à flutuação do valor da moeda, à gravidade do dano tendo em conta as lesões, as suas sequelas e o sofrimento físico-psíquico experimentado pela vítima bem como outras circunstâncias do caso que se mostrem pertinentes.
Isto dito, importa agora ponderar o quadro factual que nos autos se mostra assente a este respeito.
Está provado que:
- No dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário (frigorífico de brincar) tombou;
- Na decorrência do referido tombo a menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito);
- Em consequência dessa amputação a menor foi transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2...;
- Em consequência dessa amputação, a menor ficou impedida de frequentar o infantário desde 12 de julho de 2021 até 31 de julho de 2021;
- A menor frequentou as consultas na especialidade de cirurgia pediátrica no Centro Hospitalar do Porto, nos dias 14/07/2021; 19/07/2021; 21/07/2021; 23/07/2021; 28/07/2021 e 21/09/2021;
- A menor, na última consulta de revisão, em 21/09/2021 recebeu alta clínica, tendo as lesões sido dadas como consolidadas, com a polpa da 5.ª falange distal da mão direita, alvo da cirurgia, bem cicatrizada, com bom volume de polpa e, leito ungueal uniforme;
- Tendo ficado com a mão direita totalmente imobilizada durante 2 semanas e 3 dias;
- Em consequência dessa amputação, a menor sentiu dores e mal-estar generalizado;
- Sofrendo ansiedade, angústia, inquietação e tristeza, por não conseguir pegar em objetos, escrever ou desenhar:
- Ainda hoje se queixa de dores na polpa do 5.º dedo da mão direita;
- Ficou com ligeira cicatriz polpar e atrofia na almofada da polpa digita, classificável de 3 em 7;
- Ficou a padecer de dores ligeiras ao utilizar o dedo na preensão;
- De quantum doloris de 3 a 4 em 7”.
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Ponderando os referidos danos, a idade da menor (três anos), onde a dor se revele mais intensa que num adulto, afigura-se equitativo, adequado e justo o valor peticionado, mas fixado por referência o momento atual.

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Danos sofridos pelos progenitores da menor.
A nível de danos patrimoniais para além dos que incumbe à 2ª Ré ressarcir e que acima se aludiu vem provado que:
“- Entre 14 e 31 de julho de 2021, aquando da prestação de assistência à filha menor, deixou de auferir € 124,79 euros;
- Os pais despenderam € 400 euros no relatório de avaliação médica”.
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Danos não patrimoniais
A este nível pedem os apelantes a quantia de € 4.000,00, ou seja, a quantia de € 2.000, 00, para cada um deles.
A questão que agora se coloca é a de saber se os pais da menor CC, também Autores, são titulares de qualquer direito a este nível sobre a demandada, porquanto não se trata de um direito próprio, mas sim meramente reflexo, uma vez que tem a sua origem na violação do direito de uma outra pessoa que é o verdadeiro lesado, a menor CC.[9]
O AUJ nº 6/2014, de 09/01[10], relativo aos danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge de vítima sobrevivente, veio uniformizar jurisprudência nos seguintes termos:
“Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave.”.
Sucede, contudo, que no caso, a responsabilidade da ré não advém do instituto da responsabilidade civil, mas sim do incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços ao abrigo do qual a ré acolhia e cuidava da autora CC na sua creche.
Ora no domínio das relações negociais vigora entre nós o regime da relatividade (artigo 406.º, nº 2, do Código Civil), por oposição aos direitos absolutos ou subjetivos que já são dotados de eficácia erga omnes.
A natureza relativa das obrigações prende-se com o seu aspeto estrutural e significa que os contratos apenas produzem efeitos entre as partes, que apenas o credor tem o direito de exigir do devedor o cumprimento da obrigação e que o devedor só está vinculado a esse cumprimento perante o credo–“res inter alios acta nec nocet nec prodest”–.
A consequência lógica da relatividade da obrigação é a de que o devedor só responde pelas consequências do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso da prestação causadas ao credor e só este lhe pode exigir a reparação das consequências danosas.
Por força disso temos de perguntar quem são afinal as partes no contrato de prestação de serviços em causa, se é apenas a criança, embora o contrato tenha sido celebrado pela sua mãe em sua representação, ou é afinal de contas a família da criança.
A nosso ver a resposta vai para a última das alternativas.
Embora seja a criança a beneficiária direta da prestação de serviços porque é ela que vai frequentar a creche e usufruir dos respetivos serviços e cuidados, este contrato tem por objeto a substituição do exercício das responsabilidades parentais no período em que os pais são obrigados a desenvolver a sua atividade profissional e não podem ocupar-se direta e pessoalmente da educação, alimentação, desenvolvimento e cuidados de que a criança necessita e que é obrigação sua proporcionar-lhe.
As creches são assim uma resposta social de apoio às famílias com crianças e o contrato celebrado para o aproveitamento dessa valência social visa o estabelecimento de um modo de colaboração com a família através da partilha com esta dos cuidados e responsabilidades do processo evolutivo da criança. Conforme já antes se escreveu o artigo 3.º da Portaria n.º 262/2011, de 31 de agosto, assinala que “a creche é um equipamento de natureza socioeducativa, vocacionado para o apoio à família e à criança, destinado a acolher crianças até aos 3 anos de idade, durante o período correspondente ao impedimento dos pais ou de quem exerça as responsabilidades parentais”.
Concluímos, pois, que os pais da autora CC são igualmente partes no contrato, ainda que este formalmente tenha sido subscrito apenas pela progenitora.
Logo, os pais podem exigir igualmente uma indemnização pelos danos que o incumprimento do contrato pela 1ª Ré lhes causou, não obstante esses danos tenham na origem falhas nos cuidados que eram devidos diretamente à autora sua filha.
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Isto dito, vem provada, sob este conspecto, a seguinte factualidade:
“- Os pais sentiram pânico e temeram pela vida e integridade física da menor;
- Sofrendo abalo com a perspetiva da filha ficar a sofrer de uma deformidade física e vir a sofrer baixa autoestima e diminuída auto-percepção;
Como assim, atendendo a todas as circunstâncias do caso que não relevam uma gravidade e repercussão temporal significativas, nem se revestiram de incerteza que pudesse prologar a angústia, e sendo certo que do outro lado temos uma instituição com a natureza IPSS que oferece uma resposta social relevante carecida de financiamento público, afigura-se-nos que o valor de 4.000€ de indemnização a favor do conjunto dos pais é excessivo e que se justifica no máximo o valor de 3.000,00 (€ 1.500,00), fixado por referência ao momento atual.
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Procedem, assim, em parte, as conclusões 1ª a 19ª formuladas pelos apelantes e, com elas, respetivo recurso.
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Na sua contestação a 1ª Ré requereu que fosse operada a compensação e, consequentemente, limitar-se a sua responsabilidade e obrigação ao pagamento da quantia que exceder o valor do contrato de seguro que celebrou com a 2ª Ré deduzidos que forem todos os montantes entretanto recebidos pelos Autores no âmbito do referido contrato de seguro, e da Segurança Social, cujos valores deverão ser apurados em liquidação.
Acontece que, não há que proceder a qualquer compensação tendo em conta os valores peticionados pelos Autores que em nada contendem com quaisquer outros que eventualmente a Segurança Social lhe tenha pago, sendo que, a 2ª Ré ainda nada pagou aos Autores no âmbito do contrato de seguro nem os valores que a recorrente terá de pagar aos mesmos se encontram cobertos pelo referido contrato.



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IV - DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogando a decisão recorrida condenam a 1ª Ré;

a)- a pagar aos Autores AA e mulher BB a quantia de € 524,79 (quinhentos e vinte e quatro euros e setenta e nove cêntimos) a titulo de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vincendos, contabilizados à taxa legal, desde a data da citação até integral e efetivo pagamento;

b)- a pagar aos mesmos Autores a quantia de € 3.000,00 (três mil euros) (mil e quinhentos para cada um deles) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a data do presente acórdão até integral pagamento;

c)- a pagar à Autora CC a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros), a título de danos não patrimoniais acrescida de juros de mora contados desde a data do presente acórdão até integral pagamento.
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No mais mantém-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação por apelantes e apelados na proporção do decaimento (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).









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Porto, 10 de junho de 2025.

Des. Dr. Manuel Fernandes

Des. Dr.ª Maria Fernandes de Almeida

Des. Dr.ª Teresa Sena Fonseca



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[1] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 348.
[2] Cr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Cf. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. fotografias juntas em audiência de julgamento.
[5] Cf. neste sentido Ac. desta Relação de 14/07/2021-Processo nº 454/19.1T8OBR.P1, consultável em www. dgsi.pt, e que aqui seguimos de perto.
[6] In O Direito geral da personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág. 200.
[7] Ob. citada, pág. 458.
[8] Cf., sobre a questão e por todos, Paula Meira Lourenço in A função punitiva da responsabilidade civil, Coimbra Editora, 2006, págs. 283 e seguintes.
[9] A responsabilidade por este tipo de danos, quando a sua gravidade o justifique, também ocorre no âmbito do ilícito contratual, como vem sendo decidido, tanto quanto se sabe, de forma unânime pelos tribunais superiores.
[10] Publicado no Diário da República, I série, de 22.5.2014, com vários votos de vencido.