RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
DESPESAS DE SAÚDE E E MEDICAMENTOSAS
DIREITO DE SUB-ROGAÇÃO DA ADSE
Sumário

I - A omissão de apreciação no acórdão do recurso interposto por uma das partes, configura a nulidade prevista no art.º 615º/1 d) CPC, que fica suprida com a apreciação desse recurso em novo acórdão, o qual passa a constituir parte integrante e complemento do primitivo acórdão.
II - O Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) não suporta o reembolso de despesas de saúde e medicamentosas que têm como causa ato ilícito de terceiro, no caso acidente de viação. O Instituto assegura a proteção aos seus beneficiários nos domínios da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento e da reabilitação.
III - Não fora o facto de a autora beneficiar deste subsistema e seria o terceiro responsável pelo facto ilícito e pelas lesões causadas à autora e que determinaram os cuidados médicos e medicamentosos, quem teria de suportar tais despesas com os tratamentos.
IV - O Instituto de Proteção e Assistência na doença IP (ADSE I.P.) fica sub-rogado nos direitos do lesado – art.º 592º CC – e assiste-lhe o direito a ser reembolsado pelo Fundo de Garantia Automóvel, na posição do lesado, ao abrigo do disposto nos art.º 47º, 48º e 49º do DL 291/2007 de 21 de agosto.

Texto Integral

Conferência-Nulidade-Atendida-Proc. 3088/18.4T8AVR.P1


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SUMÁRIO[1] (art.º 663º/7 CPC):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)


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I. Relatório

Em 03 de maio de 2025 proferiu-se sentença (ref. Citius 132435950), com a decisão que se transcreve:

“Por todo o exposto, julgo a ação parcialmente procedente por provada, condenando-se, solidariamente, o Fundo de Garantia Automóvel e o Réu AA:

A - A pagar à Autora:

- A quantia de 52.893,09 €, (cinquenta e dois mil, oitocentos e noventa e três euros e cinquenta cêntimos - 2685,50 € + 2582,59 € +3125.00 € + 19.500,00 € + 25.000,00 €) a título de danos patrimoniais e de danos morais;

- A estas quantia acrescerão os juros legais de 4%, contados desde a citação no que se refere à quantia de 2685,50 € +3125.00 €, contados desde a notificação da ampliação do pedido, no que se refere às quantias de 2582,59 € e contados desde a prolação da sentença no que se refere aos montantes de19.500,00€ e 25.000,00€,

- As quantias correspondentes a todas as despesas futuras (médicas, medicamentosas, paramédicas e na aquisição de material que se revele necessário) que esta venha a ter que suportar em consequência da incapacidade que lhe determinou o acidente de que tratam os presentes autos;

B – A pagar ao Instituto de Proteção e Assistência na doença IP (ADSE I.P.) a quantia de 6.443,59 € (seis mil quatrocentos e quarenta e três euros e cinquenta e nove cêntimos) quantia acrescida de juros legais contados desde a notificação do pedido de reembolso”.


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Em 06 de maio de 2024 procedeu-se à notificação da sentença.

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Em 11 de junho de 2024 o Fundo de Garantia Automóvel veio interpor recurso da sentença (ref. Citius 16273937).

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Nas alegações de recurso formulou as seguintes conclusões:

1) As obrigações do Recorrente FGA e as suas relações com as entidades e sistemas de segurança social (como é o caso da ADSE) encontram-se reguladas pelo Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto;

2) O legislador criou um normativo legal que consagra os limites especiais à responsabilidade do FGA – Cf., inter alia, o artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto;

3) Conclui-se, assim, da letra do n.º 3 e do n.º 4 do referido artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto, que o Recorrente FGA nunca poderia ser demando pela ADSE – e, a fortiori, condenado nessa demanda –, em virtude de o mesmo não ser, do lado passivo, parte materialmente legitima.

4) Na verdade, o citado artigo 51.º tem como epígrafe “limites especiais à responsabilidade do Fundo” e aparece depois da definição do âmbito geográfico e material da função garantística do FGA contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente.

5) É evidente que o Recorrente FGA não é um responsável civil.

6) A expressão “sobre quem impenda a obrigação de segurar” – prevista no n.º 4 do citado artigo 51.º – deve ser entendida como reportada às empresas de seguros, e não ao FGA, a quem não é cometida legalmente qualquer “obrigação” de segurar.

7) Essa “obrigação” será sempre do causador do acidente ou de quem impenda a obrigação de segurar

Sem conceder,

8) Com o pagamento do montante global de € 6.443,59, a ADSE subrogou-se nos direitos da Autora BB, assistindo-lhe, nessa conformidade, legitimidade ativa para deduzir um pedido de reembolso.

9) No entanto, veja-se que, a sub-rogação, sendo uma forma de transmissão de obrigações, coloca o sub-rogado na titularidade do crédito primitivo (para o qual se lhe transmite).

10) Pelo que, se os primitivos lesados – por força do disposto no n.º 3 do artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/07, de 21 de agosto – não podem demandar diretamente o FGA para lhe peticionar o pagamento de uma indemnização na parte em que esta não ultrapassasse o valor já pago pela ADSE, por maioria de razão, a ADSE, porque se encontra sub-rogada nos direitos daqueles, também não o poderá fazer.

11) Face ao exposto, resulta, inequivocamente, que o presente pedido se encontra excluído do âmbito de competências do FGA, considerando o disposto no artigo 51.º n.º 3 do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.

12) O Tribunal a quo violou, entre outros, o disposto no artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto e o artigo 30.º do Código de Processo Civil.

Termina por pedir que se julgue procedente, por provado, o presente recurso absolvendo o Réu FGA do pedido do Instituto de Proteção e Assistência na Doença (ADSE).


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Não foi apresentada resposta ao recurso.

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Em 26 de maio de 2025 proferiu-se acórdão (ref. Citius 19409076), com a decisão que se transcreve:

“Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e o recurso subordinado e confirmar a sentença.

Custas a cargo:

- dos réus/apelantes, na apelação;

- da autora, no recurso subordinado”.


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As partes foram notificadas do teor do acórdão em 26 de maio de 2025.

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Em requerimento junto aos autos em 02 de junho de 2025 (ref. Citius 421900) veio o apelante Fundo de Garantia Automóvel suscitar a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, com fundamento no art.º 615º/1 d) CPC.

Termina o requerimento com as seguintes conclusões (manteve-se a numeração indicada na peça processual):

22. O FGA foi notificado da sentença proferida no âmbito destes autos, a qual condenou o FGA, entre outros, a pagar ao Instituto de proteção e assistência na doença IP a quantia de € 6.443,59, acrescida de juros legais contados desde a notificação do pedido de reembolso.

23. O FGA interpôs recurso do suprarreferido segmento decisório na data de 11.06.2024, pela referência citius n.º 16273937, pagando a competente taxa de justiça (face ao valor desse recurso) pelo DUC com a referência n.º 702780091644046.

24. O Tribunal recorrido (através do acórdão prolatado a 26.05.2025) não apreciou, nem se pronunciou expressamente sobre o suprarreferido recurso que recaiu sobre a mencionada decisão de mérito.

25. Pelo que é mister concluir pela sua nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

26. Neste sentido, deve o Tribunal pronunciar-se sobre o dito recurso e, por sua vez, absolver o FGA do pedido formulado pelo Instituto de Proteção e Assistência na doença IP, uma vez que a condenação do FGA a esse título é legalmente impossível, porquanto esse pedido se encontra excluído do âmbito de competências do FGA, considerando o disposto no artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.

Termos em que, deve a presente arguição de nulidade ser julgada procedente e, em consequência, determinar-se que a nulidade acima exposta seja suprida nos termos anteriormente referidos.


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Não foi apresentada resposta à reclamação.

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Cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto da conferência

As questões a decidir consistem em apreciar:

- se o acórdão é nulo, por omissão de pronúncia, com fundamento no art.º 615º/1/d) do CPC;

- se atendida a reclamação e apreciados os fundamentos do recurso, se deve considerar que o Fundo de Garantia Automóvel não é responsável pelo reembolso das quantias reclamadas pelo Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE, IP).


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2. Os factos

Com relevância para a apreciação da reclamação cumpre ter presente os termos do relatório.


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3. O direito

O réu Fundo de Garantia Automóvel veio suscitar a nulidade, por omissão de pronúncia, do acórdão proferido em 26 de maio de 2025, pelo Tribunal da Relação do Porto, com fundamento no art.º 615º/1/d) e art.º 616º/1CPC.

Decorre do disposto no art.º 666º CPC, conjugado com o art.º 613º, 615º/ 4 e art.º 617º/6 CPC, que arguida qualquer nulidade do acórdão ou pedido de retificação ou reforma, não sendo o acórdão suscetível de recurso ordinário, compete ao tribunal que proferiu a decisão apreciá-la, sendo lícito ao tribunal que proferiu a decisão supri-la.

Em segunda instância, a decisão é tomada em conferência, conforme determina o art.º 666º/2 CPC.

Estando em causa acórdão que confirmou a decisão da primeira instância, sem voto de vencido, não é o mesmo suscetível de recurso de revista e por isso, cumpre apreciar da nulidade suscitada (art.º 615º/4 CPC).


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As nulidades da sentença/acórdão são vícios que afetam a validade formal da sentença/acórdão em si mesma e que, por essa razão, projetam um desvalor sobre a decisão, do qual resulta a inutilização do julgado na parte afetada.

A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites[2].

As nulidades da sentença incluem-se nos “vícios de limites” considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do art.º 615º CPC, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia[3].

O Professor ANTUNES VARELA no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do art.º 668º CPC, e atual art.º 615º CPC, advertia que: “[…] não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário[…]”[4].

A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar ou o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento constitui um dos fundamentos de nulidade da sentença, previsto art.º 615º/1 d) CPC.

A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar e o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, constitui um vício relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” - art.º 608º/2 CPC.

Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

A respeito do conceito “questões que devesse apreciar” refere ANSELMO DE CASTRO que deve “ser tomada em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sob os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”[5].

LEBRE DE FREITAS por sua vez tem a respeito de tal matéria uma visão algo distinta, pois considera que devendo: “o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.º 660º/2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado”[6].

Para melhor precisar o seu entendimento remete para o estudo do Professor ALBERTO DOS REIS cuja passagem se transcreve:

“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “ não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art.º 511º/1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”[7].

Seguindo os ensinamentos dos ilustres Professores, atendendo ao regime processual vigente, afigura-se-nos ser esta a interpretação que melhor reflete a natureza da atividade do juiz na apreciação e decisão do mérito das questões que lhe são colocadas, pois o juiz não se encontra vinculado às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 5º CPC).

Importa ter presente que o objeto do recurso se define pelas conclusões da alegação, pelo que, os vícios que possam ser imputados ao acórdão estão sempre relacionados com o objeto do recurso tal como ficou definido nas conclusões de recurso (art.º 639ºCPC).

No caso concreto, o apelante/reclamante Fundo de Garantia Automóvel suscita a nulidade do acórdão proferido em 26 de maio de 2025, com fundamento em omissão de pronúncia, porque se omitiu a apreciação do recurso por si interposto.

Com efeito, compulsados os autos constata-se que o réu Fundo de Garantia Automóvel para além de acompanhar o recurso interposto pelo corréu (art.º 634º CPC), também interpôs recurso autónomo da sentença, o qual não foi apreciado no acórdão que apreciou os diferentes recursos interpostos pelas partes nesta ação. Omitiu-se, assim, a apreciação de uma questão, suscitada no processo e que se prende com o mérito da causa, na medida em que está em causa apurar se o Réu/apelante Fundo de Garantia Automóvel também é responsável pelo pagamento das quantias reclamadas pelo Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP(ADSE,IP).

Pelo exposto, a reclamação deve ser atendida e suprindo a nulidade cometida, passa a apreciar-se dos fundamentos do recurso.


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- Da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel pelo pagamento das quantias reclamadas pelo Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP(ADSE, IP) -

O apelante insurge-se contra o segmento da sentença que condenou solidariamente o Fundo de Garantia Automóvel e o réu AA a pagar ao Instituto de Proteção e Assistência na doença IP (ADSE I.P.) a quantia de 6.443,59 € (seis mil quatrocentos e quarenta e três euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescida de juros legais contados desde a notificação do pedido de reembolso.

Na sentença, fundamentou-se a decisão, como se passa a transcrever:

“Passando agora ao pedido formulado pelo Estado:

Em causa estão quantias pagas pela ADSE relativas a despesas médicas tidas pela Autora.

O FGA vem invocar a prescrição do direito do Estado.

Vejamos:

O fundamento da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel é, a existência de responsabilidade por factos ilícitos por parte do Réu AA que circulava sem seguro obrigatório e o direito de regresso do Estado relativamente às quantias pagas ao lesado, nos termos do art.º 51º n.º 4 do DL 291/2007 de 21 de agosto.

Estabelece e artigo que as entidades que satisfaçam os pagamentos previstos nos números anteriores têm direito de regresso contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente.

Nesses pagamentos incluem-se, nos termos do n.º 3, os efetuados pela ADSE.

Nos termos do art.º 498º n.º 1 do Código Civil o direito de indemnização nela fundado prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete.

Estando em causa um direito de regresso, o prazo de 3 anos fixado no art.º 498º n.º 1 do Código Civil, conta-se a partir da data dos pagamentos – art.º 498º n.º 2 do Código Civil.

Os pagamentos feitos pelo Estado ocorreram desde setembro de 2015 até janeiro de 2019.

O Estado deduziu o pedido em 15 de fevereiro de 2019.

Ora, considerando o último pagamento efetuado, é óbvio que ainda não ocorrera a prescrição à data da contestação do FGA

Discute-se se o prazo de prescrição deve ocorrer separadamente para cada pagamento ou se se deve atender à data do último.

Ora, estando em causa um único lesado, tratando-se de prestações similares e regulares, atinentes ao pagamento de despesas de saúde, entende-se que se deve, de facto atender à data do último pagamento para que se inicie o decurso do prazo de prescrição É o que se refere no Acórdão do STJ de 26/11/2020, processo 2325/18-0T8VRL.G1.S1 –

I - Para efeitos do disposto no art.º 498º, nº 2, do CC, no caso de fracionamento do pagamento da indemnização, deve atender-se, em regra, à data do último pagamento efetuado.

II - Pode, no entanto, autonomizar-se o pagamento de cada parcela, desde que se esteja perante danos normativamente diferenciados”.

Improcede, pois a invocada prescrição.

E nos termos do art.º 51º n.º 3 acima referido tem o Estado direito ao reembolso das quantias pagas, procedendo, assim o pedido formulado pelo Estado”.

O Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE,IP) veio reclamar o pagamento da quantia de 6.443,59 € (seis mil quatrocentos e quarenta e três euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescida de juros legais contados desde a notificação do pedido de reembolso, a título de reembolsos ou comparticipações nas despesas de saúde que a autora efetuou em consequência do sinistro dos autos.

Considera o apelante que ao abrigo do art.º 51º/3 do DL 291/2007 de 21 de agosto, o Fundo de Garantia Automóvel não é responsável pelo seu pagamento, porque assume a posição de garante e não de responsável civil e mesmo considerando-se o Instituto sub-rogado nos direitos do lesado, não pode ver reconhecido o direito que reclama, quando o mesmo não é reconhecido ao lesado.

A questão a apreciar consiste em saber se o Fundo de Garantia Automóvel é responsável pelo pagamento das quantias reclamadas pelo Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE,IP) a título de comparticipações e reembolsos das despesas de saúde que a autora realizou em consequência do sinistro dos autos.

Na análise da questão cumpre ter presente o seguinte regime legal:

Artigo 47º

Fundo de Garantia Automóvel

1 - O Fundo de Garantia Automóvel garante a reparação dos danos decorrentes de acidentes rodoviários nas situações e termos previstos na secção seguinte.

 2 - O Fundo de Garantia Automóvel é dotado de autonomia administrativa e financeira.

3 - A gestão do Fundo de Garantia Automóvel é assegurada pela ASF.

4 - O Fundo de Garantia Automóvel, existente nos termos do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, mantém todos os seus direitos e obrigações.

5 - O Fundo de Garantia Automóvel pode efetuar o resseguro das suas responsabilidades.

[…]

Artigo 48.º

Âmbito geográfico e veículos relevantes

1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º e nos artigos 57.º-C e 57.º-D, o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz, nos termos da presente secção, as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados:

a) Por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório e, seja com estacionamento habitual em Portugal, seja matriculados em países que não tenham serviço nacional de seguros, ou cujo serviço não tenha aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros;

b) Por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório sem chapa de matrícula ou com uma chapa de matrícula que não corresponde ou deixou de corresponder ao veículo, independentemente desta ser a portuguesa;

c) Por veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ainda que com estacionamento habitual no estrangeiro;

d) Por veículo retirado e proibido de utilização, ainda que de forma temporária, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 4.º.

2 - No caso previsto na alínea c) do número anterior, é aplicável o previsto no artigo 54.º relativamente ao responsável civil.

Artigo49.º

Âmbito material

1 - O Fundo de Garantia Automóvel garante, nos termos do n.º 1 do artigo anterior, e até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por:

a) Danos corporais, quando causados por veículo não identificado ou em relação ao qual não haja seguro válido e eficaz;

b) Danos materiais, quando causados por veículo em relação ao qual não haja seguro válido e eficaz;

c) Danos materiais, quando, sendo causados por veículo não identificado, exista, em simultâneo, direito a uma indemnização por danos corporais significativos;

d) Danos corporais e materiais, quando causados por veículo objeto de seguro por empresa de seguros sujeita a um processo de insolvência ou de liquidação.

2 - Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, consideram-se danos corporais significativos a lesão corporal que determine:

a) Morte ou internamento hospitalar igual ou superior a sete dias; ou

b) Incapacidade temporária absoluta por período igual ou superior a 60 dias; ou

c) Incapacidade parcial permanente igual ou superior a 15 /prct..

3 - (Revogado.)

Artigo 51.º

Limites especiais à responsabilidade do Fundo

1 - Caso o acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º seja também de trabalho ou de serviço, o Fundo só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes, incumbindo, conforme os casos, às empresas de seguros, ao empregador ou ao Fundo de Acidentes de Trabalho as demais prestações devidas aos lesados nos termos da lei específica de acidentes de trabalho ou de serviço, salvo inexistência do seguro de acidentes de trabalho, caso em que o FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente.

2 - Se o lesado por acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º beneficiar da cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios, a reparação dos danos do acidente que sejam subsumíveis nos respetivos contratos incumbe às empresas de seguros, ficando a responsabilidade do Fundo limitada ao pagamento do valor excedente.

3 - Quando, por virtude de acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º, o lesado tenha direito a prestações ao abrigo do sistema de proteção da segurança social, o Fundo só garante a reparação dos danos na parte em que estes ultrapassem aquelas prestações.

4 - As entidades que satisfaçam os pagamentos previstos nos números anteriores têm direito de regresso contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente.

5 - O lesado pelo acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º não pode cumular as indemnizações a que tenha direito a título de responsabilidade civil automóvel e de beneficiário de prestações indemnizatórias ao abrigo de seguro de pessoas transportadas.

6 - O pagamento pela empresa de seguros da indemnização prevista no n.º 2 não dá, em si, lugar a alteração de prémio do respetivo seguro quando o dano reparado for da exclusiva responsabilidade do interveniente sem seguro.

A questão da reclamação das despesas suportadas por terceiros em ação em que é demandado o réu Fundo de Garantia Automóvel não tem obtido na jurisprudência um tratamento uniforme.

A respeito das quantias reclamadas pelo Centro Nacional de Pensões, a título de pensão de sobrevivência e subsídio por morte e em relação às comparticipações da Segurança Social, a jurisprudência não tem adotado uma posição uniforme sobre a questão, sendo que neste Tribunal da Relação do Porto, se destacam, entre outros, os acórdãos proferidos em 04 de maio de 2023, Proc. 2120/20.6T8PNF.P1 e Ac. 04 de julho de 2024, Proc. 11004/19.0T8PRT.P1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt, que consideram que o Fundo de Garantia Automóvel não responde pelo pagamento de tais quantias e o Ac. Rel. Porto 11 de setembro de 2023, Proc. 18386/18.9T8PRT.P1 (acessível em www.dgsi.pt) que entende que tais valores são suportados pelo Fundo de Garantia Automóvel (cita-se jurisprudência no mesmo sentido).

O apelante sustenta a sua posição na primeira corrente, citando jurisprudência nesse sentido, mas em que estava em causa as quantias reclamadas pelo Centro Nacional de Pensões, a título de pensão de sobrevivência e subsídio por morte e comparticipações da Segurança Social.

Contudo, na situação concreta, não se reclamou o pagamento de prestações ao abrigo do sistema de proteção da Segurança Social, a que se reporta o art.º 51º/3 do DL 291/2007 de 21 de agosto, motivo pelo qual a despesa reclamada não se enquadra na previsão deste preceito.

O Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) reclamou as comparticipações que pagou à autora.

O Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) (cujo regime consta do Decreto-Lei n.º 7/2017, de 9 de janeiro, na redação do DL n.º 33/2018, de 15/05) é um instituto público de regime especial e de gestão participada, nos termos da lei integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio (art.º 1º do Decreto-Lei n.º 7/2017, de 9 de janeiro, na redação do DL n.º 33/2018, de 15/05) e tem em vista assegurar a proteção aos seus beneficiários nos domínios da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento e da reabilitação (art.º 3º do diploma citado).

Nos termos do art.º 21º do citado diploma: “A ADSE, I. P., sucede nas atribuições da Direção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas.
2 - As posições jurídicas detidas pela Direção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas transmitem-se para a ADSE, I. P., nelas se incluindo a universalidade de bens e direitos, o ativo e passivo, o património físico e jurídico e as posições em contratos em vigor, incluindo os relativos aos seus trabalhadores, constituindo o presente Decreto-Lei título bastante para todos os efeitos legais”.

O Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) veio reclamar as comparticipações que pagou à autora, porque a autora é beneficiária deste subsistema e beneficiou das comparticipações durante o período em que se encontrou em tratamento na sequência do acidente de viação em análise nestes autos.

Porém, o Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) não suporta o reembolso de despesas de saúde e medicamentosas que têm como causa ato ilícito de terceiro, no caso acidente de viação. O Instituto assegura a proteção aos seus beneficiários nos domínios da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento e da reabilitação.

Não fora o facto de a autora beneficiar deste subsistema e seria o terceiro responsável pelo facto ilícito e pelas lesões causadas à autora e que determinaram os cuidados médicos e medicamentosos, quem teria de suportar tais despesas com os tratamentos.

Desta forma, o Instituto de Proteção e Assistência na doença IP (ADSE I.P.) ficou sub-rogado nos direitos do lesado (a autora) – art.º 592º CC – e assiste-lhe o direito a ser reembolsado pelo Fundo de Garantia Automóvel, na posição do lesado, ao abrigo do disposto nos art.º 47º, 48º e 49º do DL 291/2007 de 21 de agosto.

O regime previsto no art.º 51 do DL 291/2007 de 21 de agosto visa acautelar uma duplicação de indemnizações pelos mesmos danos.

No caso concreto, não se provou que a autora através do pedido formulado viu satisfeito na integra a indemnização das despesas de saúde e medicamentosas e por isso, não se pode afirmar que existe duplicação da indemnização.

Refira-se, por fim, que o facto do Fundo de Garantia Automóvel ser demandado como garante, não o dispensa de suportar a indemnização pelos danos sofridos pelo lesado, porque responde pela indemnização até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (art.º 49º/1 a) DL 291/2007 de 21 de agosto).

Assiste-lhe o direito, em ação de regresso, a reclamar os pagamentos que realizou, como prevê o art.º 54º DL 291/2007 de 21 de agosto.

É de considerar, ainda, que o Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) e o Fundo de Garantia Automóvel são entidades que prosseguem fins de natureza social e de ordem pública. São dotados de autonomia administrativa e financeira. O respetivo fim e âmbito de ação encontra-se determinado na lei e as receitas que obtêm destinam-se apenas a satisfazer os fins respetivos. Estando o Fundo de Garantia Automóvel vocacionado para suportar as indemnizações em situações muito particulares deve assumir o seu pagamento independentemente do responsável civil o fazer, sabendo-se que muitas vezes o responsável civil não o faz, por não ter suporte económico para o fazer, ou até por ser desconhecido, ficando penalizada a instituição que assumiu o pagamento de despesas que não eram da sua responsabilidade, quando o Fundo de Garantia Automóvel dispõe de um fundo próprio para suportar tais encargos.

Rejeitar, como pretende o apelante, a obrigação de indemnizar vai penalizar os beneficiários do Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) que fizeram os seus descontos e vêm as suas receitas afetas a despesas que não são da responsabilidade do Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.), sendo certo que o Fundo dispõe de receitas próprias para garantir o pagamento.

Conclui-se, assim, que não merece censura a sentença que condenou o Fundo de Garantia Automóvel no pagamento das quantias reclamadas pelo Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE I.P.).

Contudo, porque a conduta da autora concorreu para a produção do sinistro (segmento da sentença que não foi alterado no recurso interposto pelo réu AA) e se fixou a responsabilidade dos dois condutores na proporção de 50%, é nessa mesma proporção que assiste o direito ao reembolso, ou seja, € 3 221, 80 (três mil duzentos e vinte e um euros e oitenta cêntimos).

Procedem, em parte, as conclusões de recurso.


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As custas na reclamação, porque dela tirou proveito, são suportadas pelo reclamante Fundo de Garantia Automóvel e na apelação, pelo recorrente Fundo de Garantia Automóvel (art.º 527º CPC).

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O acórdão agora proferido passa a constituir parte integrante e complemento do acórdão proferido em 26 de maio de 2025 (art.º 617º/2 CPC).


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III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em atender a reclamação e julgar, em parte, procedente a apelação do Fundo de Garantia Automóvel e nessa conformidade, condenar solidariamente o Fundo de Garantia Automóvel e o réu AA a pagar ao Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE I.P.) a quantia de €3 221,80 (três mil duzentos e vinte e um euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros a contar da data da notificação.


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Custas da reclamação, a cargo do Fundo de Garantia Automóvel.

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Na apelação, as custas são suportadas pelo recorrente Fundo de Garantia Automóvel.


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O acórdão agora proferido passa a constituir parte integrante e complemento do acórdão proferido em 26 de maio de 2025 (art.º 617º/2 CPC).


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Porto, 10 de julho de 2025

(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)

Assinado de forma digital por

Ana Paula Amorim

Juiz Desembargador-Relator

António Mendes Coelho

1º Adjunto Juiz Desembargador

Maria Fernanda Fernandes de Almeida

2º Adjunto Juiz Desembargador



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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.

[2] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. III, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1982, pág. 297.

[3] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, ob. cit., pág. 308.

[4]ANTUNES VARELA, J.M.BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 686.

[5] ANSELMO DE CASTRO Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, Almedina, 1982, pág. 142.
[6] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pág. 704.

[7] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora Lim., 1984, pág. 143.

No mesmo sentido pode ainda ler-se o ANTUNES VARELA J. M. BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, ob. cit., pág. 688.