MUDANÇA DE SERVIDÃO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - A admissibilidade da mudança da servidão está sempre subordinada a dois requisitos, que, sendo o requerente o proprietário do prédio serviente, são os seguintes: a) tem que ser vantajosa, em termos objetivos, para o proprietário do prédio serviente, no sentido de consistir numa efetiva utilidade para aquele prédio e não num mero interesse pessoal daquele proprietário; b) não pode prejudicar os interesses do proprietário do prédio dominante, interesses esses que têm de se revelar sérios e dignos de ponderação e não meros caprichos.
II - Em termos de ónus da prova, cabe ao interessado na mudança da servidão a prova dos apontados requisitos, atento o disposto no artigo 342º, nº1, do Código Civil.
III - Esse ónus probatório abrange necessariamente o sítio do exercício da servidão, ou seja, no caso, recai sobre os Autores o ónus da prova daqueles dois requisitos bem como do lugar preciso em que pretendem que a servidão passe a poder exercer-se.
IV - A mudança de servidão, para que possa ser avaliada pelo Tribunal a verificação dos respetivos requisitos, pressupõe uma base factual sólida e coerente sobre o local proposto para a “nova” servidão, não cabendo ao Tribunal definir o traçado do “novo caminho”, mas apenas aferir se o novo caminho sugerido, a existir, reveste os necessários requisitos para poder sustentar uma mudança de servidão.

( Sumário da exclusiva responsabilidade da Relatora – artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Processo nº 61/22.1T8PRD.P1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este

Juízo Local Cível de Paredes – ...

Relatora: Des. Teresa Pinto da Silva

1º Adjunto: Des. José Eusébio Almeida

2º Adjunto: Des. Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo


*


Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

AA e BB intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e mulher DD; EE e mulher FF e GG, tendo, em simultâneo, deduzido incidente de intervenção principal provocada, do lado ativo, de HH e II, pedindo:

a) A condenação dos Réus a reconhecerem que os Autores são os donos e legítimos possuidores do prédio sito na Rua ..., descrito nos arts. 1º, 2.º e 21.º a 23.º da petição inicial;

b) A condenação dos Réus a reconhecerem que as Chamadas são donas e usufrutuárias, respetivamente, e legítimas possuidoras do prédio denominado “...”, inscrito na matriz predial n.º ...08, da freguesia ..., concelho de Paredes e do prédio inscrito na matriz predial n.º ...04, da freguesia ..., concelho de Paredes, melhor descritos no art.º 4.º da petição inicial;

c) A declaração da mudança da servidão, constituída sobre o prédio dos Autores referido em a) e que foi reconhecida judicialmente nos autos que com o nº ... correram termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, para o caminho de servidão já existente e a que se alude nos arts. 46.º a 56.º e 68.º a 70.º da petição inicial, já reconhecido nas alíneas “S”, “T”, “U”, “V” e “W”, dos factos provados por acordo, na sentença proferida no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, no âmbito do processo ..., confirmados pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em 23-11-2017, já transitado, em face do consentimento expresso dos terceiros – HH e II e consentimento expresso dos Autores;

d) A condenação dos Réus a reconhecerem tal mudança de servidão;

e) A condenação dos Réus a absterem-se de passar pelo anterior caminho de servidão, abstendo-se de todos e quaisquer atos lesivos dos direitos dos Autores suprarreferidos.

Alegam, para tanto e em síntese, que os Autores são donos e legítimos proprietários e possuidores do terreno destinado a construção (antes prédio rústico denominado “Pequena ...”), situado na freguesia ..., Rua ..., que se encontra registado e inscrito a favor dos Autores, estando inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...96... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob nº. ...9/201001230, da freguesia ..., por compra a JJ e KK.

Os Réus são donos e legítimos proprietários e possuidores do prédio rústico denominado “...”, situado no Lugar ..., na freguesia ..., freguesia ... e, por sua vez, as Intervenientes são respetivamente usufrutuária e proprietária do prédio denominado “...”, inscrito na matriz predial n.º ...08, da freguesia ..., concelho de Paredes e do prédio inscrito na matriz predial n.º ...04, da freguesia ..., concelho de Paredes.

No âmbito do processo n.º ... que correu termos no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, em que eram Autores os aqui RR. EE, GG e CC e Réus os aqui AA., AA e BB, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, em 23-11-2017, confirmado por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de abril de 2018, que condenou os Réus, aqui AA. a:

"b) Reconhecerem que sobre o prédio dos RR, identificado nos artigos 13º e 14º da petição inicial incide um direito de servidão de passagem, com as características de medidas, modo, tempo, uso e lugar de exercício referidos nos factos provados, adquirido por usucapião;

c) Que o seu terreno fique onerado de modo a permitir a passagem de tratores e demais máquinas agrícolas em trânsito para e do prédio dos AA;

d) A reconhecerem os direitos acima mencionados;

e) A demolirem de imediato o muro ou muros melhor identificados nas fotografias sob docs. 9 e 10 e descritos na petição inicial, que impedem que os AA. utilizem o seu caminho, de forma a que este fique livre e desembaraçado de qualquer obstáculo, no percurso que é realizado sobre o terreno dos RR.;

f) A retirarem terras, materiais e outros objetos ou obras depositadas no caminho, removendo “in totum” todos e quaisquer obstáculos que se oponham ao exercício do direito de passagem dos AA. pelo prédio dos RR. e manter a referida servidão de forma permanente em toda a sua extensão e largura;

g) A restituírem aos AA. toda a parcela de terreno pertencente ao caminho de servidão de passagem;

h) A absterem-se de todos e quaisquer atos lesivos do direito dos AA. suprarreferidos."

Este caminho de servidão, reconhecido pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (vide factos provados 1), 2) e 3) daquele aresto), tem o seu início na Rua ..., freguesia ..., desenvolvendo-se pelo terreno de terceiros, designadamente pelo terreno de HH e II, cuja intervenção principal requerem, após o que entra pelo terreno dos AA., já identificado nos arts. 1º e 2º da petição inicial, até atingir o terreno dos RR. EE, GG e CC.

Em face da existência desse caminho de servidão, os AA. intentaram, em 24-09-2018, ação declarativa contra os aqui RR., que correu termos no Juízo Local Cível de Paredes, ..., sob o n.º ... onde foi peticionado:

“a) Que se condenem os RR. a reconhecer que os AA. são os donos e legítimos possuidores do prédio sito na Rua ..., descrito nos arts. 1º a 3º;

b) Que se declare extinta, por desnecessária, a servidão de passagem legal, constituída por usucapião sobre o prédio dos AA. referido em a) e, consequentemente, que a condenação referida em a) refira expressamente que os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio aí referido, que integra também a faixa de terreno por onde existiu extinto caminho de servidão declarado judicialmente nos autos que com o nº ... correram termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, pelo que a totalidade do prédio referido em a) está livre de quaisquer ónus ou encargos;

c) Ou, caso assim se não entenda e não se declare extinta a servidão de passagem sobre o prédio identificado em a), o que não se concede, requerem os AA. que se declare e ordene que essa servidão de passagem legal constituída por usucapião seja mudada para o caminho de servidão já existente e a que se alude nos arts. 25º a 35º, nos termos peticionados nos arts. 66º a 70º;

d) Ou, caso assim se não entenda e não se declare extinta a servidão de passagem sobre o prédio identificado em a) e nem mudada nos termos requeridos em c), o que não se concede, requerem os AA. que se declare que essa servidão de passagem legal constituída por usucapião seja mudada para os prédios da A. denominados “Campo ...” e “Campo ...”, supra descritos nos arts. 11º a 16º, com as características de medidas, modo, tempo, uso e lugar de exercício suprarreferidos nos arts. 71º a 78º, o que a A. mulher consente;

Caso em que, pela mudança da servidão de passagem para os prédios propriedade da A. mulher, devem os RR. ser condenados, solidariamente, a pagarem à A. mulher, valor de indemnização pelo encargo que consiste em colocar servidão de passagem sobre os prédios identificados nos arts. 11º a 16º, que ascende a quantia não inferior a 23.745,56€, montante que melhor se apurará em execução de sentença, tudo conforme peticionado nos arts. 98º a 107º, acrescido de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento;

e) Ou, caso assim não se entenda, o que se não concede, e no pressuposto de ser mantido o direito de servidão de passagem sobre o prédio dos AA. sito na Rua ..., com as características de medidas, modo, tempo, uso e lugar de exercício declarados e referidos em 21º a 24º desta peça, sem que seja procedente qualquer dos pedidos formulados em b), c) ou d), sejam os RR. condenados solidariamente a pagar aos AA. valor não inferior a 348.552,90€, montante que melhor será apurado em liquidação de sentença, valor de indemnização pelo encargo que consiste em manter servidão de passagem sobre o prédio dos AA., tudo conforme peticionado nos arts. 79º a 97º, acrescido de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.

f) Que se condenem os RR. a absterem-se de todos e quaisquer atos lesivos dos direitos dos AA. suprarreferidos;

g) Que se condenem os RR. no pagamento de custas e demais encargos legais.”

Nessa ação foi proferida sentença que decidiu:

- Julgar procedente, por provada, a exceção do caso julgado apenas quanto ao peticionado na alínea a) da petição inicial e, por consequência absolver, apenas quanto a esta alínea, da instância os réus CC, EE e GG;

- Julgar improcedentes, por não provados, os pedidos deduzidos nas alíneas b)., c)., d)., e), f) e g) da ação principal e, em consequência, absolver os Réus CC, EE e GG dos mesmos.

Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tendo alterado a matéria de facto. No mais julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida.

Tendo os Autores adquirido uma faixa de terreno com entrada a partir da Rua ..., entendem estar verificados todos os pressupostos para se operar a competente mudança de servidão de passagem constituída por usucapião onerando o seu prédio.

Em 20.03.2022 os Réus deduziram contestação, excecionando a ineptidão da petição inicial quanto ao incidente de intervenção principal por falta de alegação de factos concretos que tornem percetível qual o motivo da dedução, bem como com fundamento na contradição entre o pedido dos Autores e a causa de pedir porquanto começam por requerer a intervenção principal provocada mas depois não a formulam no pedido, requerendo a condenação dos Réus na alínea b) do seu pedido a reconhecer que as Chamadas são respetivamente dona e usufrutuária do prédio “...”, sem que previamente tenham pedido a sua intervenção e a justifiquem e sem terem alegado qualquer facto que conduza à propriedade e ao usufruto invocado para, posteriormente, pedirem a declaração de mudança de servidão com base no consentimento de terceiros, sem peticionarem a constituição de uma nova servidão.

Excecionam também a litispendência, referindo que, no dia 11.09.2018, os Autores puseram em juízo contra os réus um processo de declaração sob a forma de processo comum, que correu termos como processo nº. ..., no Juízo Local Cível de Paredes, que ainda corria os seus regulares termos quando a presente ação foi instaurada, em 08.01.2022, sendo o peticionado na alínea c) da petição inicial do processo nº. ... idêntico ao formulado na alínea c) da presente ação, e, por isso, concluem existir uma repetição da ação em dois processos diferentes, pugnando pela absolvição da instância dos Réus.

Mais excecionaram a existência de caso julgado quanto ao pedido formulado sob a alínea a), considerando que o mesmo já foi decidido no âmbito do processo nº. ..., decisão essa já transitada em julgado, bem como o abuso de direito, porquanto vêm pedir a mudança do local da servição quando, não obstante a sua condenação do âmbito do processo nº ..., continuam a impedir a passagem dos Réus pelo caminho que passa sobre o seu terreno, onerado pela servidão de passagem, que pretendem ver alterada, sendo certo que desde 2013, pelo menos, que a utilidade da servidão reconhecida naquele processo ficou condicionada ou impossibilitada, por causa da atuação dos Autores.

Mais alegam que o invocado nos pontos 78 a 94 integra um venire contra factum proprium, não podendo os Autores queixar-se e/ou vitimizar-se de uma situação que escolheram, pois que, não obstante tivessem previsto as consequências do comportamento destemido ao avançar com a construção da casa sobre o terreno onerado com a servidão de passagem, quiseram assumir estas consequências.

No mais, impugnam parte da factualidade alegada na petição inicial, concluindo pela procedência das exceções invocadas ou, caso assim não se entenda, pela improcedência, por não provada, da presente ação, e pela condenação dos Autores como litigantes de má fé, com a consequente condigna indemnização a favor dos Réus.

Os Autores, por requerimento de 6 de junho de 2022, exerceram o contraditório relativamente às exceções deduzidas pelos Réus na sua contestação, pugnando pela improcedência das mesmas, bem como pelo indeferimento do pedido de condenação como litigantes de má fé formulado pelos Réus, peticionando ainda a condenação dos Réus como litigantes de má-fé.

Por decisão de 12 de outubro de 2022 foi admitida a intervenção principal provocada, como associadas dos Autores, de HH

Em 11 de abril de 2023 realizou-se a audiência prévia, no âmbito da qual se determinou a abertura de conclusão a fim de ser proferido despacho saneador, nos termos do disposto no nº2 do artigo 595º, do Código de Processo Civil, atenta a complexidade das questões suscitadas.

Em 24 de abril de 2023 foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes, bem como o objeto do litígio e os temas da prova, admitidos os requerimentos probatórios e designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento, que veio a prolongar-se por nove sessões de julgamento (21 de setembro de 2023, 12 de outubro de 2023; 7 de dezembro de 2023; 11 de janeiro de 2024; 26 de janeiro de 2024; 18 de março de 2024; 22 de março de 2024; 25 de junho de 2024 e 27 de junho de 2024).

Em 3 de outubro de 2024 foi proferida sentença, da qual consta o seguinte dispositivo:

“Face ao exposto, julgo parcialmente procedente, por provada, a presente acção apenas quanto ao pedido formulado na alínea b) e, por conseguinte, condeno os Réus CC e mulher DD, EE e mulher FF e GG, a reconhecerem que as Chamadas HH, viúva, residente na Avenida ..., ..., ... e II, solteira, maior, residente na Avenida ..., ..., ... são donas e usufrutuárias, respectivamente, e legítimas possuidoras do prédio denominado “...”, inscrito na matriz predial n.º ...08, da freguesia ..., concelho de Paredes e do prédio inscrito na matriz predial n.º ...04, da freguesia ..., concelho de Paredes, melhor descritos no art.º 4.º da petição inicial, absolvendo-os dos demais pedidos formulados nas alíneas a)., c)., d) e e) da petição inicial.

Custas a cargo de ambas as partes na proporção de 90% a cargo dos autores e 10% a cargo dos réus, conforme o disposto no artigo 527º., nº. 1 do Código de Processo Civil.”


*


Inconformados com essa sentença, vieram os Autores dela interpor o presente recurso de apelação, para o que apresentaram alegações, culminando com as seguintes conclusões:

(…)

Concluem pelo provimento do recurso.


*


Não foram apresentadas contra-alegações.


*


Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo.


*


Recebido o processo nesta Relação, emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


*

Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pelos Recorrentes nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo Tribunal recorrido.

Mercê do exposto, da análise das conclusões vertidas pelos Recorrentes nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

1ª – Se a sentença recorrida padece das nulidades previstas nas alíneas b) e d) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil por omissão de pronúncia quanto aos factos alegados nos artigos 5º a 8º e 44º da petição inicial, bem como 95º a 103º e 106º e 121º do mesmo articulado.

2ª – Se foi validamente deduzida e procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença quanto aos factos provados sob os nºs 32) e 33), bem como quanto à ampliação da matéria de facto dada como provada.

3ª - Da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso e, independentemente disso, se ocorreu erro de julgamento do Tribunal a quo, fundamentando os factos provados e o direito decisão de procedência da ação

*


II – FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto

É o seguinte o teor da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida:
Factos provados
Por confissão mostram-se provados os seguintes factos:
1) Os Autores são donos e legítimos proprietários e possuidores do prédio urbano, terreno destinado a construção (antes prédio rústico denominado “Pequena ...”), situado na freguesia ..., na Rua ... que se encontra registado e inscrito a favor dos Autores, estando inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...96... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº ...9/20101230, da freguesia ..., por compra a JJ e KK.
2) Os Réus são donos e legítimos proprietários e possuidores do prédio rústico denominado “...”, situado no Lugar ..., freguesia ..., encontra-se registado a favor de GG, casado com LL, inscrito na anterior matriz rústica sob o artigo ...17 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº ...14/20110527, da freguesia ..., que confronta a norte com MM, sul com NN, nascente com OO e poente com PP.
3) Os Réus são os únicos e universais herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de GG e LL, seus pais, os quais faleceram, respetivamente, em ../../1972 e ../../2012, tendo GG falecido na Venezuela e LL falecido em ..., Penafiel.
4) Em 13 de Setembro de 1960, mediante escritura pública de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de Paredes, GG declarou comprar a MM o prédio “...” e este declarou vendê-lo àquele.
5) Os Réus, por si e seus antecessores, há mais de cinco, dez, vinte, trinta, quarenta e cinquenta anos colhem e fruem todas as utilidades daquele prédio, à vista e com o conhecimento de todas as pessoas, sem a oposição ou embaraço de quem quer que seja, ininterruptamente, convictos de estarem a exercer um direito próprio, sem prejudicar ou lesar direitos alheios, em tudo se comportando como comproprietários.
6) O terreno dos Réus “...” não tem ligação com a via pública, confinando por todos os lados em todo o seu perímetro com 5 prédios, sendo:
- A norte, com prédio de terceiro, concretamente de “A..., S.A.”;
- A poente, com prédio dos Autores destinado a construção sito na Rua ...;
- A sul e nascente, com dois prédios das acima chamadas, II e HH;
- A norte/nascente, com o prédio da Autora mulher, denominado “Campo ...” (artigo matricial ...14).
7) No âmbito do processo com o nº ... que correu termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, em que eram Autores os aqui Réus EE, GG e CC e Réus os aqui Autores, AA e BB, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, em 23-11-2017, este confirmado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já transitado, veio a considerar-se provado que existe um caminho com um comprimento de aproximadamente 164 metros e uma largura em toda a extensão que vai de 2,10 metros a 2,60 metros, sendo certo que sobre o terreno de terceiros, as chamadas HH e II, o alegado caminho tem cerca de 100 metros (e não 65,35 m, como por lapso consta) e sobre o terreno dos Autores é que terá 65,35 m, com início da Rua ..., freguesia ..., que se desenvolve durante 65,35m pelo prédio de terceiros (as aqui chamadas II e HH), após o que entra pelo prédio dos agora Autores até atingir o prédio dos agora Réus.
8) O caminho de servidão, reconhecido a favor do prédio dos Réus pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em 23.11.2017, confirmado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado, no âmbito do processo identificado em 8)[1]., tem o seu início na Rua ..., freguesia ..., desenvolvendo-se pelo terreno de terceiros, designadamente pelo terreno de HH e II, cuja intervenção principal se requer, após o que entra pelo terreno dos Autores até atingir o terreno dos Réus EE, GG e CC, tendo um comprimento de aproximadamente 164 metros e uma largura em toda a extensão que vai de 2,10 metros a 2,60 metros e onera, simultaneamente, dois prédios: o prédio dos Autores e o prédio das intervenientes HH e II.
9) Os Autores intentaram, em 24.09.2018, ação declarativa contra os aqui Réus, que correu termos no Juízo Local Cível de Paredes, Juiz-2, sob o n.º ... onde foi peticionado: “a) reconhecer que os AA. são os donos e legítimos possuidores do prédio sito na Rua ..., descrito nos artsº 1º a 3º; b) que se declara extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem legal, constituída por usucapião sobre o prédio dos AA. referido em a) e, consequentemente, que a condenação referida em a) refira expressamente que os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio aí referido, que integra também a faixa de terreno por onde existiu extinto caminho de servidão declarado judicialmente nos autos que com o nº ... correram termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, pelo que a totalidade do prédio referido em a) está livre de quaisquer ónus ou encargos; c) ou, caso assim se não entenda e não se declare extinta a servidão de passagem sobre o prédio identificado em a) o que não se concede, requerem os AA. que se declare e ordene que essa servidão de passagem legal constituída por usucapião seja mudada para o caminho de servidão já existente e a que se alude nos artsº 25º a 35ª, nos termos peticionados nos artsº 66º a 70º. d) ou, caso assim se não entenda e não se declare extinta a servidão de passagem sobre o prédio identificado em a) e nem mudada nos termos requeridos em c) o que não se concede, requerem os AA. que se declare que essa servidão de passagem legal constituída por usucapião seja mudada para os prédios da A., denominados “ Campo ...” e “Campo ...”, supra descritos nos artsº 11º a 16º com as características de medidas, modo, tempo, uso e lugar de exercício supra referidos nos artsº 71º a 78º, o que a A. mulher consente; caso em que, pela mudança da servidão de passagem para os prédios propriedade da A. mulher, devem os RR. ser condenados, solidariamente, a pagarem à A. mulher, valor de indemnização pelo encargo que consiste em colocar servidão de passagem sobre os prédios identificados nos artsº 11º a 16º, que ascende a quantia não inferior a 23.745,56€, montante que melhor se apurará em execução de sentença, tudo conforme peticionado nos artsº 98º a 107º, acrescido de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento; e) ou, caso assim não se entenda, o que se não conceda, e no pressuposto de ser mantido o direito de servidão de passagem sobre o prédio dos AA. sito na Rua ..., com as características de medidas, modo, tempo, uso e lugar de exercício declarados e referidos em, 21º a 24º desta peça, sem que seja procedente qualquer dos pedidos formulados em b) c) ou d), sejam os RR. condenados solidariamente a pagar aos AA. valor não inferior a 348.552,90€, montante que melhor será apurado em liquidação de sentença, valor de indemnização pelo encargo que consiste em manter servidão de passagem sobre o prédio dos AA. tudo conforme peticionado nos artsº 79º a 97º acrescido de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento; f) Que se condenem os RR. a absterem-se de todos e quaisquer atos lesivos dos direitos dos AA. suprarreferidos; g) Que se condenem os RR. no pagamento de custas e demais encargos legais.” que, no entretanto, veio a ser objeto de decisão na primeira instância, em 2020.07.31 que julgou procedente, por provada, a exceção do caso julgado, apenas, quanto ao peticionado na alínea a) e, por consequência absolveu, apenas quanto a esta alínea, da instância os réus CC, EE e GG, mais tendo sido julgados improcedentes, por não provados, os pedidos deduzidos nas alíneas b)., c)., d)., e)., f)., e g). da ação principal e, em consequência, decidindo-se absolver os réus dos mesmos. Tendo sido igualmente julgada improcedente, por não provada, a reconvenção deduzida, tendo os autores sido absolvidos da mesma, confirmada pelas instâncias superiores e devidamente transitada.
10) O caminho de passagem sobre o prédio dos Autores pela Rua ... apresenta um desnível relativamente à Rua ... de cerca de 7 metros pelo que terão ainda os Autores de suprimir, com aterro, o desnível de terreno que existe entre o terreno das chamadas e o prédio dos Autores.
11) A Autora mulher é dona e legítima proprietária e possuidora dos prédios rústicos denominados “Campo ...” e “Campo ...”, prédios contíguos entre si (ainda que entre ambos exista um muro propriedade da Autora mulher) situados no Lugar ..., fazendo-se a entrada para o “Campo ...” pela Rua ..., após a abertura em 1990 (anteriormente pela Rua ...) e a entrada para o “Campo ...” pela passagem descrita em 10)., confinando aquele “Campo ...”, do lado direito (quem entra no terreno vindo da dita Rua ...) com a casa em que residem os Autores, sita na Rua ..., ..., ....
12) Estes prédios encontram-se registados e inscritos a favor da Autora, estando inscritos respetivamente nas competentes matrizes sob os artigos ...05 e ...14 e descritos na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob os nsº ...9/19860218 e ...0/19860218, da freguesia ..., por sucessão hereditária e partilha de QQ.
13) O prédio “Campo ...” identificado em 13)[2]., confronta de norte com RR, de sul com caminho público, de nascente com caminho de consortes e de poente com SS e o prédio “Campo ...”, também identificado nos mesmos artigos e documento, confronta do norte com PP, do sul com OO e GG, de nascente com herdeiros de TT e UU e de poente com GG.
14) A Autora, por si e seus antecessores, há mais de cinco, dez, vinte, trinta, quarenta e cinquenta anos colhem e fruem todas as utilidades do prédio identificado em 13)., à vista e com o conhecimento de todas as pessoas, designadamente dos Réus, sem a oposição ou embaraço de quem quer que seja, ininterruptamente, convictos de estarem a exercer um direito próprio, sem prejudicar ou lesar direitos alheios, em tudo se comportando como proprietários.
15) A margem esquerda (quem entra nos terrenos vindo da Rua ...) desses terrenos margina o terreno de terceiros, após o que atinge (aos 120 metros) e margina o terreno dos Réus em toda a sua face virada a norte/nascente, até atingir o terreno de terceiros, concretamente, “A..., S.A.”.
16) A Rua ... foi construída e aberta em 1990.
17) Na Rua ..., ..., ..., os Autores têm a sua casa ou residência e ainda a oficina de fabrico e comércio de mobiliário e decorações, objeto social da sociedade “B..., Ldª.” de que os Autores (e seu filho VV) são sócios, possuindo quota de 1.700€ cada um.
18) A Rua ..., na entrada do caminho de servidão que se faz na esquina entre a Rua ... e a Rua ... possuiu nesse troço e nesse sentido reduzida visibilidade.
Com relevo dos documentos e da produção de discussão da causa resultaram os seguintes factos provados:
(da petição inicial):
19) As intervenientes chamadas HH e II são, respetivamente, usufrutuária e proprietária, do prédio denominado “...”, inscrito na matriz predial n.º ...08, da freguesia ..., concelho de Paredes e do prédio inscrito na matriz predial n.º ...04, da freguesia ..., concelho de Paredes.
20) O prédio “...”, pertencente aos Réus, é um terreno a mato e madeira, apenas com utilidade florestal, ou seja, destinado a produzir mato e, nos dias de hoje, fundamentalmente, a produzir madeira que os seus proprietários mandam cortar de anos a anos, sensivelmente de 10/10 anos.
21) Os Autores, em 20.10.2021, por escritura pública de compra adquiriram às Chamadas uma faixa de terreno onde se localiza um acesso, em terra batida com traçado definido e visível pela passagem de pessoas, veículos de bois, tratores e camiões demarcado e delimitado que se inicia na Rua ... junto à casa dos autores (sita Rua ..., ...) e que, pelo lado de cima e oposto à servidão de passagem reconhecida por Acórdão de 23.11.2017 permite também o acesso ao prédio dos réus e de outros proprietários nomeadamente o dos autores às chamadas, HH e II, tendo um comprimento de 112 metros e uma largura em toda a sua extensão de 2,80 metros a 3 metros.
22) O acesso pela faixa de terreno adquirida pelos autores e descrita em 21). tem um traçado bem definido, com sinais visíveis e permanentes, em terra batida compactada de pronunciados trilhos provocados pela passagem de pessoas e bem assim de veículos, possibilitando o acesso ao terreno dos Réus, na sua estrema Norte.
23) O acesso que integrava e integra a faixa de terreno adquirida pelos autores, com entrada pela Rua ..., foi usado pelo madeireiro contratado e a mando dos Réus, em abril de 2018, para retirar a madeira extraída do seu terreno e vendida, tendo sido utilizado nesse transporte da madeira camiões específicos de comprimento não inferior a 10 metros (do tipo dos que constam que medem, de largura, incluindo retrovisores, não menos do que 2,70m/2,80m.
24) O acesso pela Rua ... apresenta uma inclinação reduzida e suave em todo o seu percurso, com uma entrada e saída dos terrenos fácil para a via pública, sendo uma estrada menos movimentada do que a da Rua ....
25) Os Autores lograram obter, e obtiveram, o consentimento expresso das atuais proprietária e usufrutuária de tal terreno (intervenientes), identificado e que foi vertido expressamente na “Declaração de consentimento de constituição de servidão de passagem”, outorgado em 06-10-2021, pelas já identificadas HH e II que outorgaram que as beneficia, foi levada ao conhecimento dos Réus, através de notificações judiciais avulsas, devidamente, concretizadas em 15.10.2021.
26) Com a aquisição da faixa de terreno descrita em 21). pelos Autores surgiu ainda a possibilidade de se fazer um outro acesso, paralelo ao existente nessa entrada, mas melhorado nalgumas das suas condições.
27) Neste momento, é impossível os Réus transitarem pelo seu caminho de servidão reconhecido por sentença proferida no Processo Comum nº. ....
Resposta
28) Na data de instauração da presente ação, em 08-01-2022 ainda estava pendente a ação n.º ..., tendo igualmente naquele as chamadas HH e II sido admitidas como Intervenientes.
29) No âmbito da ação comum (Processo n.º ...), por requerimento de 07-10-2021, os Autores deram conhecimento ao Supremo Tribunal de Justiça (à data, os autos encontravam-se naquele douto Tribunal) da declaração - de consentimento expresso - referida em 25). e da escritura de compra e venda da parcela de terreno às chamadas.
30) Procederam ainda à notificação judicial avulsa das chamadas para que abrissem o caminho de servidão dos Réus para, após, prosseguirem com a sua construção até ao terreno dos Autores.
31) Os Autores durante os processos, ... e ... prosseguiram com as obras de construção da sua casa.
32) Por parecer emitido pela Câmara Municipal de Paredes, que integra o processo que corre termos na Divisão de Gestão Urbanística sob o n.º ..., em nome do Autor AA, de novembro de 2021, no qual se escreve o seguinte: “…o titular do processo e os respetivos técnicos prestaram falsas declarações no âmbito do presente processo de licenciamento pois omitiram a existência de um caminho de servidão. Na verdade, consultadas as peças desenhadas e a memória descritiva do projeto do presente licenciamento não existe qualquer indicação de caminho de servidão (…).
33) O entendimento da divisão dos assuntos jurídicos é que “Tal realidade motiva a revogação do licenciamento concedido”.
Mais resultou provado que:
34) Ainda se mostra pendente no Juízo de Execução de Lousada, a execução da decisão, no caso concreto, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no âmbito no processo 3438/13.0 T8PRD.
*


Factos não provados:

Nenhuma outra factualidade com interesse para a presente causa, por estar em manifesta contradição com os factos provados acima elencados, constituírem expressões de teor conclusivo.
Petição Inicial: 11; 12; 15; 16; 17; 18; 19; 23; 43; 44; 45; 48; 51; 52; 53; 54, 55, 56; 57; 58; 59; 60; 61; 62; 63; 64; 65; 66, 67, 68; 69; 70; 71, 74; 75; 76; 77; 78; 79; 80; 81; 82; 83; 84; 85; 86; 87; 88; 89; 90; 91; 92; 93; 94, 99, 100, 101, 102; 103; 104; 105; 106, 107; 108; 109; 111; 112.
Resposta: 1; 2; 4; 5; 6; 7; 8; 10; 11; 12; 13; 14; 15, 16; 17; 18; 19; 20; 21; 22; 23; 24; 26; 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36; 37, 38; 39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 50; 51; 52; 57; 58; 59; 65 conclusivo; 67; 71; 73; 74; 75, 76; 77; 78; 79; 80; 81; 82; 83; 84; 85; 86.
Contestação: 34; 38; 39; 53; 54; 60; 61; 63; 64; 67; 68; 83.

*

Fundamentação de direito

1ª Se a sentença recorrida padece das nulidades previstas nas alíneas b) e d), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil

As nulidades da sentença tipificadas no artigo 615º, do Código de Processo Civil, são vícios formais, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites da decisão.
Não podem ser confundidas com erros de julgamento de facto nem com erros de aplicação das normas jurídicas aos factos.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas e/ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, antes ao mérito da relação material controvertida, nela apreciada, não a inquinam de invalidade.
Diferentemente, as nulidades previstas no artigo 615º, do Código de Processo Civil são aquelas que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer por essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”[3] ou condenar ultra petitum, tendo o julgador de limitar a condenação ao que, concretamente, vem peticionado, em obediência ao princípio do dispositivo.
Os referidos vícios respeitam, por conseguinte, à “estrutura ou aos limites da sentença.
Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação) e c) (oposição entre os fundamentos e a decisão).
Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)”[4].
No caso concreto, os Recorrentes invocam as nulidades da sentença previstas nas alíneas b) e d) do nº1 do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
Nos termos da alínea b), do nº1, desse artigo 615º, do citado diploma fundamental, a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”, previsão que deve ser articulada com o disposto no artigo 154º, do Código de Processo Civil, nos termos do qual "as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, e que assenta no princípio constitucional da obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente (artigo 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.).
É unanimemente entendido, na doutrina e na jurisprudência, que só a ausência absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação escassa, deficiente, ou mesmo medíocre, pode ser geradora da nulidade das decisões judiciais.
O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação, a ausência total de fundamentos de facto e de direito; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade[5].
Nesta linha de entendimento, relativamente à fundamentação de facto, só a falta de concretização dos factos provados que servem de base à decisão conduz à sua nulidade.
Quanto à falta de fundamentação de direito, ela ocorre sempre que, não obstante a indicação do universo factual, não se procede a qualquer enquadramento jurídico, ainda que implícito, que torne inteligível os fundamentos da decisão, ou seja, quando não se indicam as razões jurídicas que servem de apoio à solução adotada pelo julgador, sendo de salientar que “o julgador não tem de analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes: a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adotada pelo julgador”[6].
Alegam os Recorrentes que a sentença em análise padece de vício de falta de fundamentação porque não se pronunciou sobre os factos alegados nos artigos 5º a 8º, 95º a 99º e 121º da petição inicial, julgando-os provados ou não provados. Sem razão, adiantámos desde já, porquanto, tendo presente as considerações acima tecidas, das quais decorre que só a falta absoluta de fundamentação consubstancia a nulidade da falta de fundamentação prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, uma simples leitura da decisão recorrida impõe a conclusão de que a mesma não padece do invocado vício.
Com efeito, o Tribunal a quo nela procedeu à fixação dos factos provados e não provados e fundamentou juridicamente a sua decisão, pelo que improcede nesta parte a apelação. Aliás, o vício invocado pelos Recorrentes, no nosso ponto de vista, reconduz-se não a uma nulidade da sentença por omissão de pronúncia, mas sim, eventualmente, a um erro, por omissão, no julgamento da matéria de facto, patologia que está contemplada na alínea c), do nº 2, do artigo 662º, do Código de Processo Civil, que é de conhecimento oficioso e que, ainda que o não fosse, face à impugnação da decisão da matéria de facto aduzida pelos Recorrentes, sempre obrigará a aferir da suficiência da fundamentação de facto da sentença recorrida, o que se fará mais adiante.
Mas os Recorrentes sustentam também que a sentença em análise se mostra ferida da nulidade prevista na alínea d), do artigo 615º, do Código de Processo Civil.

Segundo o preceito em causa, “a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

O disposto nesta norma está diretamente relacionado com o preceituado no artigo 608°, n° 2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

A dificuldade está em saber o que deve entender-se por questões jurídicas neste contexto. E quanto a esta matéria, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que essas questões que o Tribunal pode conhecer, para além daquelas cujo conhecimento oficioso a lei permite ou impõe, identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir e com as exceções invocadas. Não serão todos os argumentos, todos os factos, todas as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções[7].

Importa ainda ter presente que na primeira parte da alínea d) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil mostra-se contemplada a nulidade da decisão por omissão de pronúncia, enquanto na segunda parte se prevê a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

No caso em análise, os Recorrentes sustentam que a sentença é nula por omissão de pronúncia, porquanto ali se entendeu que o pedido formulado pelos Autores sob a alínea c) se esvaziou em função do circunstancialismo apurado.

Vejamos:

Sob a alínea c) do petitório os Autores peticionaram a declaração da mudança da servidão, constituída sobre o prédio dos Autores referido em a) e que foi reconhecida judicialmente nos autos que com o nº ... correram termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, para o caminho de servidão já existente e a que se alude nos arts. 46.º a 56.º e 68.º a 70.º da petição inicial, já reconhecido nas alíneas “S”, “T”, “U”, “V” e “W”, dos factos provados por acordo, na sentença proferida no âmbito daquele processo ..., confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em 23-11-2017, já transitado, em face do consentimento expresso dos terceiros – HH e II e consentimento expresso dos Autores.

No entanto, lida a decisão recorrida, verifica-se que a mesma não padece do vício invocado.

Na sentença o Tribunal a quo, após tecer alguns considerandos quanto ao prescrito na lei, em particular quanto ao prescrito no artigo 1568º, do Código Civil, no que respeita em concreto ao pedido formulado pelos Autores sob a alínea c), referente à mudança do caminho de servidão, consignou, entre o mais, o seguinte:

“Vistos os factos provados temos que foram os autores, na qualidade de titulares de um dos prédios servientes, tendo em conta que outros prédios há que igualmente são afectados com a constituição da servidão de passagem adquirida por usucapião e reconhecida e declarada pelo Acórdão do TRP de 23.11.2017 que, após, terem adquirido uma faixa de terreno, em 2021, às intervenientes junto do acesso existente na Rua ... e suportando os encargos com a preparação da mesma vieram a juízo requerer a mudança de local da servidão existente.

E, de forma imediata e aparente seria de pressupor que quer os requisitos legais acima elencados quer o novo local de acesso ao prédio encravado dos réus estariam verificados. No entanto, ocorrem circunstâncias particulares e específicas que impedem que, novamente, este Tribunal possa fazer a devida e necessária apreciação e ponderação das vantagens dos benefícios dessa mudança de servidão que são:

1). a circunstância de na data da propositura presente acção ainda estar pendente o processo que correu termos como processo ...;

2). o facto do pedido formulado na alínea c) na presente acção ser, no essencial, igual quanto à sua finalidade ao pedido formulado também na alínea c) da petição inicial do Processo nº. ...;

3). e, por último, mas não menos relevante a circunstância de estar pendente a execução da decisão proferida no supracitado processo nº. ... porque os autores ainda não procederam à demolição do muro ou muros como determinado.

Principiando pela 2) circunstância acima enunciada decorre da inspecção judicial realizada no âmbito da presente acção que o alegado “caminho da faixa de terreno adquirida” para o qual se pretende mudar a servidão de passagem não corresponde exactamente àquele que vem referido nas alíneas S); T)., U); V) e W) da decisão proferida no âmbito do processo nº. .... Aliás, são dois traçados diversos e absolutamente diferenciados nas suas características como sejam: na largura, na zona do terreno afectado e percorrido pelo traçado do caminho de acesso, na sua localização, delimitação e definição. Percepção também decorre da simples análise comparativa do vertido na acta (referência 93008104), com os elementos trazidos aos autos pela certidão de 22.11.2023 de fls. 380 e seguintes, nomeadamente, 382 a 384 e de fls.390 verso – acta referência 79676191 (proc. ...), em particular as fotos 2 a 13 e, por isso, não podemos aceitar a versão factual dos autores.

Para além disso, a factualidade alegadamente reconhecida e dada como provada nas alíneas S); T)., U); V) e W) do processo que correu termos como Proc. ... não corresponde exactamente à totalidade da zona abrangida pela faixa de terreno que foi adquirida pelos autores que repete-se, na aparência, os Autores quiseram e querem fazer crer ser a mesma.

Logo, este novo acesso não pode ser reputado de ancestral como alegado pelos autores que tão pouco o caracterizaram.

Esta falta de conformidade da prova produzida – entre a faixa adquirida e o caminho provado e reconhecido naquela outra acção judicial – resulta essencialmente das diligências de inspecção judicial realizadas e presididas pela Magistrada Judicial signatária quer nos presentes autos, quer no processo ... – que observou que a zona de acesso aos prédios pelo lado da Rua ... entre as datas de 6 de Maio de 2019 e 21 de Setembro de 2023 sofreu uma modificação substancial que não resultou apenas da colocação de uma rede de vedação – rede ovelheira – em toda a extensão da faixa de terreno e de circulação, mas da própria deslocação no terreno da área por onde se desenvolve esse acesso que deixou de ser efectuado pelo lado esquerdo, tendo passado para o lado direito, circunstancialismo que esvazia do ponto de vista factual a formulação deste pedido e, por conseguinte, os demais pedidos formulados nas alíneas d) e e) que necessariamente também terão que improceder.

Aliás, esta conclusão é tão ou mais verdadeira quanto a constatação que se extrai do requerimento formulado pelos próprios autores, em acta de audiência final de 12.10.2023 (ref. citius 93217735), onde foi pedida a ampliação deste pedido nos termos e para os efeitos previstos no artigo 265º., nº. 2 e artigo 3º., nº. 3 do CPC – onde referiam e passo a citar que a requerida ampliação estava virtualmente contida no pedido inicial.

O que necessariamente determinou que o Tribunal tivesse ordenado a junção da certidão com os elementos que melhor constam da mesma, sendo todos eles provenientes do processo ... e, nessa sequência, foi proferido despacho judicial a indeferir o pedido de ampliação formulado, conforme consta de acta de 7 de Dezembro de 2023 (referência Citius nº. 93806889).

Donde, com segurança e certeza podemos concluir que há uma contradição lógica na génese da formulação do pedido da alínea c) e da causa de pedir que lhe está subjacente apenas verificável da própria produção de prova e desenvolvimento da acção, inexistindo qualquer sobreposição do caminho alegadamente existente com qualquer outro caminho ancestral ou até mesmo com o caminho que era percorrido pelo madeireiro, justificando assim que em sede de prolação do despacho saneador este Tribunal tivesse relegado para final, nesta parte, a apreciação da invocada ineptidão da petição.

Por outro lado, é também facto que quando os presentes autos foram instaurados em juízo 08.01.2022, quando ainda corriam termos os autos de processo nº. ... como decorre do conhecimento funcional da presente Magistrada Judicial signatária.

E, finalmente, a circunstância de ainda estar pendente a execução da decisão proferida no processo judicial ... cuja exequibilidade está dependente das demolições determinadas na alínea e) do acórdão, designadamente, do muro ou muros melhor identificados nas fotografias nº.s 9 e 10 e descritos na petição inicial, que impedem que os autores utilizem o caminho, de forma a que fique livre e desembaraçado de qualquer obstáculo, no percurso que é realizado sob o terreno dos réus.

Isto posto, não estando livre e desembaraçado de qualquer obstáculo o percurso da servidão constituída, por usucapião necessariamente impunha-se que os autores, por serem a parte à qual competia produzir a suficiente prova demonstrativa de terem ocorrido circunstâncias supervenientes que impusessem uma alteração do título executivo que serve de base à execução o que salvo devido respeito não ocorreu.

Aliás, importa relembrar que o artigo 1568º. do CCivil reconhece o direito do prédio serviente a mudar a servidão de passagem, mas contempla no seu texto, em simultâneo, a proibição do proprietário do prédio serviente impedir ou dificultar o uso da servidão, o que não decorre dos termos do decidido pelo Acórdão.

Desta forma, os aqui Réus, enquanto titulares do prédio dominante, estão impedidos por via da construção executada pelos autores de utilizar a referida servidão de passagem e, precisamente, nesta parte importa relembrar o artigo 334.º do Cód. Civil que estipula: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

Daqui podemos concluir que há abuso de direito sempre que ocorra o exercício de um direito de forma ilegítima – exercício anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a poder comprometer o gozo de direitos de terceiros e a criar uma desproporção entre a utilidade do exercício do direito e as consequências decorrentes desse exercício -, por se exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O legislador consagrou a concepção objectiva, ou seja, sempre que o titular do direito o exerce em manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.

Basta a prova que objectivamente se excederam tais limites da boa-fé ou dos bons costumes, traduzido num comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica – por não contrariar a estrutura formal – definidora – legal ou conceitualmente – de um direito.

Ora, em face do exposto, uma vez que os autores sabem que o traçado da servidão de passagem não está transitável, estanho assim os réus impedidos de fruírem desse direito como lhes foi reconhecido e, não obstante, os autores terem a faculdade de pedir a mudança de servidão, mas sabendo que a mesma está obstruída mostra-se verificada uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.”

Ou seja, diferentemente do sustentado pelos Apelantes, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre o pedido formulado pelos Autores sob a alínea c), não padecendo a sentença recorrida da nulidade por omissão de pronúncia, nem aliás, é esse, em rigor, o vício imputado pelos Apelantes nesta parte das suas alegações, porquanto verdadeiramente o que fazem é discordar da fundamentação da sentença relativamente ao pedido daquela alínea c), considerando-a deficiente e incorreta, o que coloca a questão já ao nível do erro de julgamento.
De resto, a propósito da invocação de nulidades em sede de recurso refere, com inteira propriedade, António Santos Abrantes Geraldes[8], o seguinte: “É frequente a enunciação das alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou (e que a racionalidade não consegue explicar), desviando-se o verdadeiro objeto do recurso que deve ser centrado nos aspetos de ordem substancial. Com não menos frequência, a arguição de nulidades da sentença ou do acórdão da Relação acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades, previstas no artigo 615º, nº1”.
É justamente o que sucede no caso concreto com a alegação dos Recorrentes, que confundem a invocação de nulidades com a arguição da existência de erro de julgamento. Se a fundamentação que a sentença recorrida deu a certos factos foi ou não a mais correta, se determinada factualidade deve ser aditada ou se a fundamentação quanto a determinado pedido é ou não a correta são questões relacionadas com o mérito da decisão e com um eventual erro de julgamento, mas que nada têm a ver com as nulidades previstas nas alíneas b) e d) do nº1 do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
O que os Recorrentes vêm manifestar, em concreto, é a sua discordância quanto ao decidido na sentença apelada, mas esse inconformismo não conduz à sua nulidade.

A arguição das nulidades previstas nas citadas alíneas b) e d) do artigo 615º, do Código de Processo Civil revela-se, assim, absolutamente infundada.

Por conseguinte, e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que a decisão recorrida não padece das causas de nulidade invocadas e, por via disso, improcede quanto a esta questão a pretensão recursória.


*


2ª Da impugnação dos pontos 31 e 32 dos factos provados e da ampliação da decisão da matéria de facto

Nas suas alegações de recurso vieram os Autores/apelantes requerer a reapreciação da decisão de facto, pugnando, por um lado, pela ampliação da matéria de facto, sustentando que devem ser aditados à factualidade provada os factos vertidos nos artigos 5º a 8º, 44º, 95º a 103º, 106º e 121º da petição inicial, e, por outro lado, impugnando os pontos 32) e 33) dos factos provados, defendendo que devem ser considerados como não provados.

Quer isto dizer que os Recorrentes pugnam não apenas pela impugnação da decisão da matéria de facto, sujeita à observância dos diversos ónus previstos no artigo 640º, do Código de Processo Civil,, cujo incumprimento implica a rejeição imediata do recurso, mas também pela ampliação da decisão da matéria de facto a qual, estando de igual modo sujeita aos ónus previstos para a impugnação da decisão da matéria de facto, implica, ainda, em conformidade com a previsão da parte final da alínea c) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil, que se considere indispensável essa ampliação da matéria de facto.

Aqueles ónus impostos pelo artigos 640º, nº1, do Código de Processo Civil, impõem aos Recorrentes que especifiquem obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os pontos de facto que consideram incorretamente julgados, os concretos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.

Pretendendo a ampliação da decisão da matéria de facto, decorre do disposto no artigo 662º, nº2, alínea c), do Código de Processo Civil, que essa pretensão só poderá proceder se, para além da verificação daqueles ónus, o Tribunal ad quem concluir que aquela ampliação é indispensável para a resolução do litigio, por se confrontar com uma omissão objetiva de factos relevantes alegados pelas partes, na medida em que asseguram “um enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo”[9].
Como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de março de 2025, proferido no âmbito do processo nº 4280/21.0T8PRT.P1 (Relator Des. Carlos Gil), disponível em www.dgsi.pt, “o tribunal ad quem apenas deve proceder à ampliação da matéria de facto sempre que conclua que, à luz das diversas soluções plausíveis das questões decidendas, existe matéria de facto alegada que não foi conhecida pelo tribunal recorrido, emitindo um juízo de provado ou não provado e isso desde que se trate de matéria indispensável à dilucidação das aludidas soluções plausíveis.
Pode ainda a ampliação da decisão da matéria de facto decorrer de factualidade complementar ou concretizadora da que as partes tenham alegado e que se tenha vindo a revelar no decurso da instrução da causa, tal como previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 5º do Código de Processo Civil e que tenha a qualidade de indispensabilidade com referência às diversas soluções plausíveis das questões decidendas.
A ampliação da decisão da matéria de facto, quando necessária, processar-se-á no Tribunal ad quem, desde que para tanto constem do processo todos os elementos que permitam essa ampliação, pressupondo que sobre a matéria em causa foi produzida prova, com a devida observância do contraditório.
A ampliação da decisão da matéria de facto não constitui um expediente processual para incluir factualidade instrumental na factualidade provada, pois não se pode considerar matéria indispensável para a dilucidação das questões que importa resolver à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito, já que tem apenas relevo probatório dos factos essenciais.
Na realidade, a factualidade instrumental tem uma função probatória de factualidade essencial e por isso não deve constar nos fundamentos de facto, antes deve operar em sede de motivação da decisão da matéria de facto para justificar a prova ou a não prova de algum facto essencial que haja sido alegado por qualquer das partes.
Ora, para que a matéria instrumental possa adquirir relevo probatório é necessário impugnar a factualidade essencial passível de ser posta em crise ou provada por tal materialidade instrumental.”
Acresce que o mecanismo previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil não pode servir para subverter as regras processuais ditadas pelos princípios do dispositivo, da preclusão, da auto-responsabilidade das partes e da imparcialidade.

Expostas estas notas genéricas sobre a ampliação e a impugnação da decisão da matéria de facto, e revertendo ao caso concreto, começaremos pelo conhecimento da pretendida ampliação da matéria de facto.

* Referindo-se aos factos alegados nos artigos 5º a 8º e 44º da petição inicial, dizem os Recorrentes que devem ser aditados aos factos provados os seguintes:

1. No ano de 2013, no âmbito do processo n.º 3438/13.0T8PRD, que correu termos no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, em que eram Autores os aqui Réus/Apelados EE, GG e CC e eram Réus os aqui Autores/Apelados AA e BB, foi peticionado que:

i) Os Réus (aqui Apelantes) reconhecessem que sobre o seu prédio “Pequena ...” incide o direito de servidão de passagem, por usucapião, sobre o prédio de que são proprietários e denominado “...”;

ii) Que os Réus fossem condenados a demolir de imediato o muro ou muros que impedem a que os AA. utilizem o referido caminho, de forma a que este fique livre e desembaraçado de qualquer obstáculo;

iiii) Que os Réus (aqui Apelantes) fossem condenados a retirar terras, materiais e outro objetos ou obras depositadas no caminho, removendo in totum todos e quaisquer obstáculos que se oponham ao exercício do direito de passagem dos AA (aqui Apelados) pelo prédio dos RR (aqui Apelantes)

2. No referido processo n.º 3438/13.0T8PRD, a decisão de 1.ª instância foi no sentido do não reconhecimento da existência do caminho de servidão.

3. No dia 20 de Junho de 2016, no âmbito do processo n.º ..., foi concedido alvará aos Apelantes para construção de uma morada familiar no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº ...69, melhor identificado no facto provado 1 (cfr. Prédio identificado na imagem acima como AA1)

4. No dia 23-11-2017, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo n.º ..., que viria a ser confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça a 24.04.2018, nos termos do qual os aí Réus/aqui Apelantes foram condenados a:

i) Reconhecerem que sobre o seu prédio dos Autores denominado “...” incide um direito de servidão de passagem, cujo caminho, com 164 metros e uma largura em toda a extensão que vai de 2,10 metros a 2,60 metros, tendo início na Rua ..., freguesia ..., desenvolvendo-se pelo terreno pertencente a HH e II, entrando, após, pelo terreno dos Réus (aqui Apelantes) melhor identificado no facto provado 1.

ii) Retirar terras, materiais e outros objetos ou obras depositadas no caminho, removendo in totum todos e quaisquer obstáculos que se oponham ao exercício do direito de passagem dos AA (aqui Apelados) pelo prédio dos RR (aqui Apelantes).

Para fundamentar esta sua pretensão, alegam que tais factos não foram impugnados pelos Apelados na sua contestação e, como tal, atento o disposto no artigo 574º, nº2, do Código de Processo Civil, devem ser considerados provados, para além de resultarem da matéria dada como provada no processo nº ..., o que se comprova pelas decisões das várias instâncias que foram juntas com a petição inicial como documentos 3, 4 e 16, que também não foram objeto de impugnação. Acresce, no que se refere ao facto 3, o que resulta do documento 30 junto com a petição inicial e o documento junto ao processo pelos Apelantes por requerimento datado de 17 de Janeiro de 2024, cuja autenticidade e genuinidade não foram colocadas em crise, constituindo documentos oficiais da Câmara Municipal de Paredes.

Analisada a decisão recorrida, verifica-se que mostra-se já dado como provado, sob os pontos 1), 2), 7), 8) e 19), que:
1) Os Autores são donos e legítimos proprietários e possuidores do prédio urbano, terreno destinado a construção (antes prédio rústico denominado “Pequena ...”), situado na freguesia ..., na Rua ... que se encontra registado e inscrito a favor dos Autores, estando inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...96... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº ...9/20101230, da freguesia ..., por compra a JJ e KK.
2) Os Réus são donos e legítimos proprietários e possuidores do prédio rústico denominado “...”, situado no Lugar ..., freguesia ..., encontra-se registada a favor de GG, casado com LL, inscrito na anterior matriz rústica sob o artigo ...17 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº ...14/20110527, da freguesia ..., que confronta a norte com MM, sul, com NN, nascente com OO e poente com PP.
7) No âmbito do processo com o nº ... que correu termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, em que eram Autores, os aqui Réus EE, GG e CC e Réus, os aqui Autores, AA e BB, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, em 23-11-2017, este confirmado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já transitado, veio a considerar-se provado que existe um caminho com um comprimento de aproximadamente 164 metros e uma largura em toda a extensão que vai de 2,10 metros a 2,60 metros, sendo certo que sobre o terreno de terceiros, as chamadas HH e II, o alegado caminho tem cerca de 100 metros (e não 65,35 m, como por lapso consta) e sobre o terreno dos Autores é que terá 65,35 m, com início da Rua ..., freguesia ..., que se desenvolve durante 65,35m pelo prédio de terceiros (as aqui chamadas II e HH), após o que entra pelo prédio dos agora Autores até atingir o prédio dos agora Réus.
8). O caminho de servidão, reconhecido a favor do prédio dos Réus pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em 23.11.2017, confirmado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado no âmbito do processo identificado em 8)[10]., tem o seu início da Rua ..., freguesia ..., desenvolvendo-se pelo terreno de terceiros, designadamente pelo terreno de HH e II, cuja intervenção principal se requer, após o que entra pelo terreno dos Autores até atingir o terreno dos Réus EE, GG e CC, tendo um comprimento de aproximadamente 164 metros e uma largura em toda a extensão que vai de 2,10 metros a 2,60 metros e onera, simultaneamente, dois prédios: o prédio dos Autores e o prédio das intervenientes HH e II.
19) As intervenientes chamadas HH e II são, respetivamente, usufrutuária e proprietária, do prédio denominado “...”, inscrito na matriz predial n.º ...08, da freguesia ..., concelho de Paredes e do prédio inscrito na matriz predial n.º ...04, da freguesia ..., concelho de Paredes.
Face ao que consta destes factos provados 1), 2), 7), 8) e 19), entendemos que o aditamento pretendido pelos Recorrentes quanto aos factos 1., 2. e 4. se afigura desnecessário, porquanto, ainda que se considerassem estes factos provados, pouco acrescentam aos factos provados 1), 2), 7), 8) e 19), dos quais já resulta que por decisão transitada em julgado, proferida no âmbito do processo nº ..., que correu termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes foi reconhecida a favor do prédio dos aqui Réus (Autores naquele processo), descrito em 2) dos factos provados, a existência de um caminho de servidão que tem o seu início na Rua ..., freguesia ..., desenvolvendo-se pelo terreno de terceiros, designadamente pelo terreno de HH e II, aqui Intervenientes, após o que entra pelo terreno dos Autores, melhor identificado em 1) dos factos provados, até atingir o terreno dos Réus EE, GG e CC (descrito em 2) dos factos provados), tendo um comprimento de aproximadamente 164 metros e uma largura em toda a extensão que vai de 2,10 metros a 2,60 metros e onera, simultaneamente, dois prédios: o prédio dos Autores (descrito em 1) dos factos provados) e o prédio das Intervenientes HH e II (descrito em 19 dos factos provados).
Quanto a tais pontos, entendemos que se mostra inútil o pretendido aditamento, não se descortinando qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente desta ampliação que os Recorrentes pretendem operar no elenco dos factos provados.
O mesmo vale, aliás, também para o facto 3. que os Recorrentes pretendem ver aditado. Isto porque resulta já do ponto 1. dos factos que o Tribunal a quo julgou provados que o terreno dos Autores ali descrito se destina a construção, tendo ainda dado como provado sob o ponto 31) que os Autores, durante os processos ... e ... prosseguiram com as obras de construção da sua casa.
No mais, para a aferição dos requisitos da mudança de servidão pretendida pelos Autores/Recorrentes em nada releva o eventual licenciamento da obra que possa colidir com o direito de servidão, pois, como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de junho de 2019, proferido no âmbito do processo nº 5715/11.5TCLRS.L1-6, disponível in www.dgsi.pt, “no licenciamento das operações urbanísticas há uma relação jurídica entre a Administração e os interessados, visando-se o cumprimento das regras urbanísticas, e o controlo da administração não abrange a totalidade do ordenamento jurídico. Por isso, “a licença de construção não é um instrumento adequado para verificar o respeito por situações jurídico-privadas, cuja definição não cabe à Administração Pública, mas sim aos tribunais” (Alves Correia, in “ As grandes linhas da recente Reforma”, pág. 126).
(…)
Conclui-se assim, que nem a administração pública atende a eventuais direitos de terceiros no licenciamento de obras, nem o licenciamento de uma obra significa que não possam vir a ser declarados direitos de terceiros contrários à forma como a mesma se encontra licenciada.”.
Ora, a reapreciação da prova não visa uma determinação da realidade dos factos, independentemente do relevo que possam ter na decisão a proferir, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, sob pena de se incorrer na prática de um ato inútil, que o legislador proíbe no artigo 130º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, não sendo possível extrair qualquer consequência jurídica do aditamento dos factos 1., 2., 3. e 4. indicados pelos Recorrentes, indefere-se nesta parte a pretensão destes.
* Invocando os factos alegados nos artigos 95º a 103º da petição inicial, os Apelantes pugnam pelo aditamento dos seguintes factos:

5. Foi proferida Sentença que decidiu julgar improcedentes, por não provados, os pedidos deduzidos nas alíneas b), c), d), e) f) e g) e, em consequência, decidiu absolver os réus CC, EE e GG, dos mesmos.

6. Na atualidade, pelo menos desde 07.09.2018, conforme relatório de avaliação junto como Documento 33 com a Petição Inicial, o terreno dos Autores comporta a construção para habitação bifamiliar, com 2 pisos acima da cota da soleira, 761m2 de construção, com 370,15m2 de área de implantação e volumetria do edifício de 2.868,15m3, com as devidas licenças camarárias, incluindo para garagem e arrumos e que os supracitados pretendem ainda destinar a exposição dos móveis e mobiliário que confecionam (Show-Room) da empresa dos autores.

7. Os autores tiveram os seguintes custos com a construção da casa referida no ponto 35 dos factos provados: os custos com projectos de arquitetura e especialidades/acompanhamento técnico (€ 35.000), custos com terraplanagens e modelação de Terreno (€ 30.000), custos com execução de muros de suporte e vedação de terreno (€ 20.000), custos com execução de redes prediais enterradas (€ 17.000), custos com pavimentação a cubos de granito (€ 3.000), custos com execução de estrutura em betão armado (€ 170.000), custos de execução de alvenarias exteriores e interiores (€ 25.000), custos de execução de redes interiores de abastecimento e drenagem de água e esgotos (€ 5.000) e outros custos/ diversos (€ 5.000), resultando o valor global para o prédio urbano, tendo em conta a sua viabilidade construtiva e as construções existentes, nunca inferior a € 350.000.

8. Os autores têm que repor o aterro, suprimindo o enorme desnível que existe entre o terreno dos terceiros e o prédio dos Autores para que aos Réus seja possível transitar pelo caminho de servidão adquirida por usucapião.

9. Desta decisão foi interposto recurso para o venerando Tribunal da Relação do Porto, onde foi analisada, entre outras, a peticionada mudança de servidão em causa nos autos para o caminho de passagem, descrito nos factos provados 26 a 28 daquele aresto.

10. No douto Acórdão foi referido que “no caso em apreço, constata-se que a alteração do percurso da servidão legal de passagem, passará a onerar não o prédio dos Autores, mas sim de terceiros, sendo certo que os autores não lograram obter o consentimento destes terceiros para o efeito”.

11. Aquele Venerando Tribunal considerou como pressuposto essencial para a mudança de servidão: “consentimento expresso para a constituição de tal ónus sobre o respetivo direito de propriedade” de terceiros entendendo que o mesmo deve ser expresso para ser juridicamente eficaz.

12. Aliás, já a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, afastou a possibilidade de mudança de servidão com o argumento que “tão pouco demonstraram ter obtido a necessária autorização dos proprietários que irão ser afetados com esta modificação”.

13. Como claramente se extrai dos factos provados é considerado no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 24-02-2021 que se encontram reunidos e verificados todos os pressupostos para a alteração da servidão de passagem, com exceção do consentimento expresso que se exige.

Fundamentam este sua pretensão na circunstância de não terem sido impugnados pelos Apelados na sua contestação e, como tal, atento o disposto no artigo 574º, nº2, do Código de Processo Civil, devem considerar-se provados, para além de resultarem da matéria dada como provada no processo nº ..., o que se comprova pelas decisões das várias instâncias que foram juntas com a petição inicial como documentos 3, 4 e 16, que também não foram objeto de impugnação. Acresce que a matéria em causa resulta ainda do teor dos documentos 24-A, 24-B, 30, 33, 34 e 38 juntos com a Petição Inicial, bem como do documento junto pelos Apelantes por requerimento datado de 17 de Janeiro de 2024, cuja autenticidade e genuinidade não foram colocadas em crise, constituindo decisões judiciais e certidões emitidas pela Câmara Municipal de Paredes.
Com interesse para o conhecimento desta questão, importa atentar que o Tribunal a quo, sob o ponto 9) dos factos provados, deu como provado que: “Os Autores intentaram, em 24.09.2018, ação declarativa contra os aqui Réus, que correu termos no Juízo Local Cível de Paredes, Juiz-2, sob o n.º ... onde foi peticionado: “a) reconhecer que os AA. são os donos e legítimos possuidores do prédio sito na Rua ..., descrito nos artsº 1º a 3º; b) que se declara extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem legal, constituída por usucapião sobre o prédio dos AA. referido em a) e, consequentemente, que a condenação referida em a) refira expressamente que os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio aí referido, que integra também a faixa de terreno por onde existiu extinto caminho de servidão declarado judicialmente nos autos que com o nº ... correram termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, pelo que a totalidade do prédio referido em a) está livre de quaisquer ónus ou encargos; c) ou, caso assim se não entenda e não se declare extinta a servidão de passagem sobre o prédio identificado em a) o que não se concede, requerem os AA. que se declare e ordene que essa servidão de passagem legal constituída por usucapião seja mudada para o caminho de servidão já existente e a que se alude nos artsº 25º a 35ª, nos termos peticionados nos artsº 66º a 70º. d) ou, caso assim se não entenda e não se declare extinta a servidão de passagem sobre o prédio identificado em a) e nem mudada nos termos requeridos em c) o que não se concede, requerem os AA. que se declare que essa servidão de passagem legal constituída por usucapião seja mudada para os prédios da A., denominados “ Campo ...” e “Campo ...”, supra descritos nos artsº 11º a 16º com as características de medidas, modo, tempo, uso e lugar de exercício supra referidos nos artsº 71º a 78º, o que a A. mulher consente; caso em que, pela mudança da servidão de passagem para os prédios propriedade da A. mulher, devem os RR. ser condenados, solidariamente, a pagarem à A. mulher, valor de indemnização pelo encargo que consiste em colocar servidão de passagem sobre os prédios identificados nos artsº 11º a 16º, que ascende a quantia não inferior a 23.745,56€, montante que melhor se apurará em execução de sentença, tudo conforme peticionado nos artsº 98º a 107º, acrescido de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento; e) ou, caso assim não se entenda, o que se não conceda, e no pressuposto de ser mantido o direito de servidão de passagem sobre o prédio dos AA. sito na Rua ..., com as características de medidas, modo, tempo, uso e lugar de exercício declarados e referidos em, 21º a 24º desta peça, sem que seja procedente qualquer dos pedidos formulados em b) c) ou d), sejam os RR. condenados solidariamente a pagar aos AA. valor não inferior a 348.552,90€, montante que melhor será apurado em liquidação de sentença, valor de indemnização pelo encargo que consiste em manter servidão de passagem sobre o prédio dos AA. tudo conforme peticionado nos artsº 79º a 97º acrescido de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento; f) Que se condenem os RR. a absterem-se de todos e quaisquer atos lesivos dos direitos dos AA. suprarreferidos; g) Que se condenem os RR. no pagamento de custas e demais encargos legais.” que, no entretanto, veio a ser objeto de decisão na primeira instância, em 2020.07.31 que julgou procedente, por provada, a exceção do caso julgado, apenas quanto ao peticionado na alínea a) e, por consequência absolveu, apenas quanto a esta alínea, da instância os réus CC, EE e GG, mais tendo sido julgados improcedentes, por não provados, os pedidos deduzidos nas alíneas b)., c)., d)., e)., f)., e g). da ação principal e, em consequência, decidindo-se absolver os Réus dos mesmos. Tendo sido igualmente julgada improcedente, por não provada, a reconvenção deduzida, tendo os autores sido absolvidos da mesma, confirmada pelas instâncias superiores e devidamente transitada.”

Assim sendo, entendemos que o aditamento da matéria alegada pelos Recorrentes sob os pontos 5., 9, 10., 11., 12. e 13., se mostra inútil, pois para além de alguns deles conterem alegações de direito e conclusivas, acresce a circunstância de não se descortinar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente do aditamento que os Recorrentes pretendem operar no elenco dos factos provados, pelo que, por inútil, se indefere o aditamento daqueles pontos – artigo 130º, do Código de Processo Civil.

No que respeita aos pontos 6., 7. e 8. convém salientar que os Autores /Apelantes, na petição inicial, sob o artigo 97, o que na realidade alegaram foi que na sentença proferida no âmbito da ação que correu termos no ... do Juízo Local Cível de Paredes sob o nº ...,determinados factos foram dados como provados, entre os quais os que agora pretendem ver aditados sob os pontos 6., 7., e 8. Daqui resulta que quando agora os Recorrentes vêm pugnar pelo aditamento desses factos à factualidade provada o que, na realidade, estão a fazer é a invocar a autoridade do caso julgado quanto a esses factos. Sucede que como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de janeiro de 2021, proferido no âmbito do processo nº3935/18.0T8LRA.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt, «(...) o princípio da eficácia extraprocessual das provas, consagrado no art. 421.º, nº 1, do Código de Processo Civil, permite que a prova produzida num processo possa ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, mas não permite importar factos provados numa acção para a outra porque a matéria de facto provada numa acção não tem valor de caso julgado.»

Orientação com evidencia em sucessivos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de que é exemplo o Acórdão de 4 de julho de 2023, onde se escreveu um “facto provado, ou qualquer outro, não tem aptidão para se impor como caso julgado nos presentes autos, uma vez que os factos provados e não provados não são suscetíveis de constituir caso julgado, a fim de serem importados para outros processos.

É, efetivamente, este o entendimento dominante neste STJ, que sobre os factos provados e não provados num dado processo não se forma caso julgado, pois não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos. Tratam-se apenas de juízos positivos ou negativos que integram a decisão de facto, mas não suscetíveis de integrar a decisão definidora de efeitos jurídicos, a qual só se alcança através da emissão de um juízo que defina o direito a dirimir entre as partes.”.

Ou seja, os Recorrentes, em sede de petição inicial, importaram factos dados como provados na ação nº ... para a presente ação, entre os quais os que agora pretendem ver aditados à factualidade provada sob os pontos 6., 7. e 8., pretensão que não pode ser atendida porque essa matéria de facto provada naquela ação não tem valor de caso julgado no presente processo.

É certo que alegam ainda que aqueles pontos de facto não foram impugnados e que resultam do teor dos documentos 24-A, 24-B, 30, 33, 34 e 38 juntos com a Petição Inicial, bem como do documento junto pelos Apelantes por requerimento datado de 17 de Janeiro de 2024, cuja autenticidade e genuinidade não foram colocadas em crise, constituindo decisões judiciais e certidões emitidas pela Câmara Municipal de Paredes. No entanto, destes argumentos também não pode resultar a procedência da sua pretensão quanto ao aditamento daqueles factos 5., 6. e 7., porquanto os Autores na petição inicial não alegaram estes factos diretamente, apenas se limitaram a invocar que os mesmos foram dados como provados na ação nº ... e foi esta a alegação que não foi impugnada pelos Réus, pelo que daqui não se pode extrair que os Réus não impugnaram os factos em si mesmos, pois pura e simplesmente esses factos não se mostram alegados pelos Autores e, nessa medida, também não podem ser provados pelos documentos aludidos por aqueles.

Acresce que ainda que assim não se entendesse, sempre o aditamento dos factos descritos em 6., 7. e 8. se mostra inútil porquanto não se descortina qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente do aditamentos desses factos no elenco dos factos provados.

* Referindo-se ao facto alegado no artigo 106º da petição inicial, dizem os Recorrentes que devem ser aditados aos factos provados os seguintes:

14. Nos termos do referido consentimento, “Considerando que no prédio descrito em A, existe um caminho em terra batida que se inicia na Rua ..., e termina no prédio dominante designado por “...” cujo piso se encontra perfeitamente demarcado e delimitado, com sinais visíveis e permanentes, com trilhos provocados, pela passagem de pessoas e veículos tais como carros de bois, tratores e camiões, sendo visível os socalcos e desgaste causados nas pedras de minério rijo provocado pela passagem actual contínua de viaturas com uma extensão de cerca de 112 metros de comprimento e de 2,60 metros de largura média, possui uma configuração retilínea, sem subidas ou descidas acentuadas, que permite mais fácil acesso ao prédio dominante, sendo menos inclinado do que a atual servidão de passagem, sem causar qualquer prejuízo aos seus proprietários, conforme alíneas S), T), U), V), X) e W) dos factos provados por acordo na sentença proferida no 3.º Juízo Cível de ... no âmbito do processo n.º 3438/13.0TPRD, e confirmado pelo mesmo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.11.2017.

Declaram as declarantes conceder servidão de passagem sobre o seu prédio rústico sito no Lugar ..., da freguesia ..., inscrito na matriz predial rústica como artigo ...04, descrito na CRP de Paredes da freguesia ... sob a descrição .../ 19850410, a favor do prédio dominante “...”, situado no Lugar ..., freguesia ..., registado a favor de GG, casado com LL, e inscrito na anterior matriz rústica sob o artigo ...17 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº ...14/20110527, da freguesia ..., numa extensão de 112 metros de comprimento e ..., ...0 metros de largura, tudo conforme levantamento topográfico que se junta à presente declaração. “

15. Mais declaram com o reconhecimento desta servidão de passagem, a servidão de passagem existente no seu prédio rústico sito no Lugar ..., da freguesia ..., inscrito na matriz predial rústica como artigo ...08, descrito na CRP de Paredes da freguesia ... sob a descrição .../ 19850410, torna-se supervenientemente desnecessária;

16. Os titulares do prédio dominante poderão começar desde já a utilizar a referida servidão de passagem sendo essa utilização de forma perpétua enquanto durar o encrave do prédio, não podendo as declarantes impedir a sua normal utilização pelos titulares do prédio dominante ou quem lhes suceda na titularidade do prédio, bem como às pessoas que aqueles entendam necessárias para aproveitamento do prédio dominante.”

Argumentam, para tanto, que tais factos resultam dos alegados no artigo 106º da petição inicial, que não foi objeto de impugnação pelos Apelados na sua contestação nem objeto de impugnação por outra via, devendo considerar-se provados atento o disposto no artigo 574º, nº2, do Código de Processo Civil, para além daquela factualidade resultar provada através do documento junto com a petição inicial como documento 39, que também não foi objeto de impugnação.

Sucede que o Tribunal a quo deu como provado que:

21) Os Autores, em 20.10.2021, por escritura pública de compra adquiriram às Chamadas uma faixa de terreno onde se localiza um acesso, em terra batida com traçado definido e visível pela passagem de pessoas, veículos de bois, tratores e camiões demarcado e delimitado que se inicia na Rua ... junto à casa dos autores (sita Rua ..., ...) e que, pelo lado de cima e oposto à servidão de passagem reconhecida por Acórdão de 23.11.2017 permite também o acesso ao prédio dos réus e de outros proprietários nomeadamente o dos autores às chamadas, HH e II, tendo um comprimento de 112 metros e uma largura em toda a sua extensão de 2,80 metros a 3 metros.

22) O acesso pela faixa de terreno adquirida pelos autores e descrita em 21). tem um traçado bem definido, com sinais visíveis e permanentes, em terra batida compactada de pronunciados trilhos provocados pela passagem de pessoas e bem assim de veículos, possibilitando o acesso ao terreno dos Réus, na sua estrema Norte.

23) O acesso que integrava e integra a faixa de terreno adquirida pelos autores, com entrada pela Rua ..., foi usado pelo madeireiro contratado e a mando dos Réus, em abril de 2018, para retirar a madeira extraída do seu terreno e vendida, tendo sido utilizado nesse transporte da madeira camiões específicos de comprimento não inferior a 10 metros (do tipo dos que constam que medem, de largura, incluindo retrovisores, não menos do que 2,70m/2,80m.

24) O acesso pela Rua ... apresenta uma inclinação reduzida e suave em todo o seu percurso, com uma entrada e saída dos terrenos fácil para a via pública, sendo uma estrada menos movimentada do que a da Rua ....

25) Os Autores lograram obter, e obtiveram, o consentimento expresso das atuais proprietária e usufrutuária de tal terreno (intervenientes), identificado e que foi vertido expressamente na “Declaração de consentimento de constituição de servidão de passagem”, outorgado em 06-10-2021, pelas já identificadas HH e II que outorgaram que as beneficia, foi levada ao conhecimento dos Réus, através de notificações judiciais avulsas, devidamente, concretizadas em 15.10.2021.
Perante estes factos provados em 21), 22), 23), 24) e 25), entendemos que o aditamento pretendido pelos Recorrentes quanto aos factos 14), 15) e 16) se afigura inútil (artigo 130º, do Código de Processo Civil), porquanto ainda que se considerassem provados pouco acrescentam àqueles factos que o Tribunal a quo julgou provados sob os pontos 21) a 24), não se descortinando qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente desta ampliação que os Recorrentes pretendem operar no elenco dos factos provados.

*Invocando o alegado no artigo 121º da petição inicial, pretendem os Recorrentes que seja aditado ao elenco dos factos provados o seguinte.

17: Os Autores/Apelantes consentiram na utilização do seu prédio para permitir a passagem para o prédio encravado.

Argumentam que esse facto não foi objeto de impugnação pelos Apelados na sua contestação, nem tão pouco objeto de impugnação por outra via, devendo, cumprindo-se o disposto o artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, ser o mesmo considerado provado por confissão

No entanto, entendemos que o aditamento desta facto não apresenta qualquer utilidade para a decisão da presente ação, pois que, por um lado, tal consentimento já resulta da propositura da presente ação, e por outro se o que os Autores pretendem com o aditamento daquele facto é referirem-se à mudança de servidão para o caminho que descrevem nos artigos 116º a 120º, então tal pretensão também não deve proceder, por inútil, pois que por despacho proferido na sessão de julgamento de 7 de dezembro de 2023, já transitado em julgado, o Tribunal a quo não admitiu a ampliação do pedido formulado sob a alínea c), que os Autores haviam requerido no decurso da sessão da audiência de discussão e julgamento de 12 de outubro de 2023, através da qual pretendiam que aquele pedido da alínea c) passasse a ter a seguinte redação:

“c)Declarar a mudança da servidão, constituída sobre o prédio dos AA. referido em a) e que foi reconhecida judicialmente nos autos que com o nº ... correram termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, para o caminho de servidão já existente e a que se alude nos arts. 46.º a 56.º e 68º a 70º, já reconhecido nas alíneas S, T, U, V e W, dos factos provados por acordo, na sentença proferida no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, no âmbito do processo ..., confirmados pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em 23-11-2017, já transitado, em face do consentimento expresso dos terceiros – HH e II, a que acrescem os melhoramentos melhor descritos nos arts. 116º a 120º, introduzidos pelos AA, atuais proprietários da faixa de terreno onde tal caminho se situa, dando estes o seu expresso consentimento para que, sobre o mesmo, se constitua a competente servidão a favor dos RR.”.

* Passando agora ao conhecimento dos pontos de facto impugnados, os Recorrentes pretendem que que se considerem como não provados os factos vertidos nos pontos 32) e 33) dos factos provados, argumentando, para tanto, existir contradição com os factos que pretendem ver provados e com a documentação junta aos autos e não impugnada pelos Apelados, concretamente os documento 24-A, 24-B, 30, 33, 34 e 38 e o documento junto pelos Apelantes em requerimento de 17 de Janeiro de 2024.

Recorde-se que nesses pontos 32) e 33) o Tribunal a quo deu como provado o seguinte:
32) Por parecer emitido pela Câmara Municipal de Paredes, que integra o processo que corre termos na Divisão de Gestão Urbanística sob o n.º ..., em nome do Autor AA, de novembro de 2021, no qual se escreve o seguinte: “…o titular do processo e os respetivos técnicos prestaram falsas declarações no âmbito do presente processo de licenciamento pois omitiram a existência de um caminho de servidão. Na verdade, consultadas as peças desenhadas e a memória descritiva do projeto do presente licenciamento não existe qualquer indicação de caminho de servidão (…).
33) O entendimento da divisão dos assuntos jurídicos é que “Tal realidade motiva a revogação do licenciamento concedido”.
No entanto, como já acima tivemos oportunidade de evidenciar, a existência ou inexistência de licenciamento de obras “não é um instrumento adequado para verificar o respeito por situações jurídico-privadas, cuja definição não cabe à Administração Pública, mas sim aos tribunais” (Alves Correia, in “ As grandes linhas da recente Reforma”, pág. 126).

Como já acima de afirmou, não visando a reapreciação da prova uma determinação da realidade dos factos, independentemente do relevo que possam ter na decisão a proferir, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, sob pena de se incorrer na prática de um ato inútil, que o legislador proíbe no artigo 130º do Código de Processo Civil e não sendo possível extrair qualquer consequência jurídica da reapreciação dos factos impugnados constantes dos pontos 32) e 33), dos factos provados, mostra-se inútil a sua reapreciação.
Por isso, este Tribunal de recurso abstém-se de apreciar a impugnação da matéria de facto em causa, segundo o pretendido pelos Apelantes, atenta a manifesta irrelevância e indiferença de tal matéria para a decisão da causa.
Pelo exposto, improcede o recurso no que respeita à impugnação e à ampliação da decisão da matéria de facto.

Os factos a considerar são, por conseguinte, os acima indicados, tal como foram fixados pelo Tribunal a quo, e que aqui se dão como reproduzidos.

*


3ª - Da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso e, independentemente disso, se ocorreu erro de julgamento do Tribunal a quo, fundamentando os factos provados e o direito decisão de procedência da ação

Em sede de enquadramento jurídico, confirmada a matéria de facto enunciada na sentença recorrida, afastada fica desde logo o conhecimento da questão da repercussão da alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso.

Não obstante, cumpre ainda decidir se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.

Não é controvertido entre as partes que existe uma servidão de passagem constituída por usucapião em benefício do prédio dos Réus identificado em 2) dos factos provados, a onerar o prédio dos Autores identificado em 1) dos factos provados, com a configuração e demais características aludidas em 7) e 8) dos factos provados, tendo como tal sido reconhecido judicialmente o respetivo direito, através de acórdão já transitado em julgado, proferido no âmbito do processo nº ..., que correu termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes.
Ou seja, o caminho de servidão que essa decisão judicial reconheceu existir a favor do identificado prédio dos Réus tem o seu início na Rua ..., freguesia ..., desenvolve-se pelo terreno de terceiros, designadamente pelo terreno das Intervenientes HH e II, após o que entra pelo terreno dos Autores até atingir o terreno dos Réus EE, GG e CC, tendo um comprimento de aproximadamente 164 metros e uma largura em toda a extensão que vai de 2,10 metros a 2,60 metros e onera, simultaneamente, dois prédios: o prédio dos Autores e o prédio das intervenientes HH e II.

Através do recurso vieram os Autores /Recorrentes manifestar-se contra a parte da decisão proferida pelo Tribunal a quo que julgou improcedentes os pedidos constantes nas alíneas c), d) e e) do petitório, nos quais peticionaram:

c) A declaração da mudança da servidão, constituída sobre o prédio dos Autores referido em a) e que foi reconhecida judicialmente nos autos que com o nº ... correram termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, para o caminho de servidão já existente e a que se alude nos arts. 46.º a 56.º e 68.º a 70.º da petição inicial, já reconhecido nas alíneas “S”, “T”, “U”, “V” e “W”, dos factos provados por acordo, na sentença proferida no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, no âmbito do processo ..., confirmados pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em 23-11-2017, já transitado, em face do consentimento expresso dos terceiros – HH e II e consentimento expresso dos Autores;

d) A condenação dos Réus a reconhecerem tal mudança de servidão;

e) A condenação dos Réus a absterem-se de passar pelo anterior caminho de servidão, abstendo-se de todos e quaisquer atos lesivos dos direitos dos Autores suprarreferidos.

A servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia), sendo certo que o dono do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão (art.ºs 1543º e 1568º, n.º 1), o que se traduz, por conseguinte, numa limitação ao conteúdo do direito de propriedade, tendencialmente absoluto, sobre o prédio onerado.

Na presente ação está em causa está uma pretensão de mudança de servidão, possibilidade prevista pelo legislador no artigo 1568º, do Código Civil, que tem a seguinte redação:

1. O proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, mas pode, a todo o tempo, exigir a mudança dela para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, se a mudança lhe for conveniente e não prejudicar os interesses do proprietário do prédio dominante, contanto que a faça à sua custa; com o consentimento de terceiro pode a servidão ser mudada para o prédio deste.

2. A mudança também pode dar-se a requerimento e à custa do proprietário do prédio dominante, se dela lhe advierem vantagens e com ela não for prejudicado o proprietário do prédio serviente.

3. O modo e o tempo de exercício da servidão serão igualmente alterados, a pedido de qualquer dos proprietários, desde que se verifiquem os requisitos referidos nos números anteriores.

4. As faculdades conferidas neste artigo não são renunciáveis nem podem ser limitadas por negócio jurídico.

Conforme resulta do preceito citado, a mudança de servidão para sítio diferente tanto pode ser exigida pelo proprietário do prédio serviente, como pelo proprietário do prédio dominante, sendo que no caso em apreciação nos interessa a primeira hipótese, já que são os proprietários do prédio serviente que pretendem a alteração do traçado da servidão.

Decorre também de tal preceito que a admissibilidade da mudança da servidão está sempre subordinada a dois requisitos, que, sendo o requerente o proprietário do prédio serviente, são os seguintes: a) tem que ser vantajosa, em termos objetivos, para o proprietário do prédio serviente, no sentido de consistir numa efetiva utilidade para aquele prédio e não num mero interesse pessoal daquele proprietário; b) não pode prejudicar os interesses do proprietário do prédio dominante, interesses esses que têm de se revelar sérios e dignos de ponderação e não meros caprichos.

Caberá assim ao julgador apreciar das razões invocadas e dos reflexos da mudança, numa justa ponderação dos interesses em conflito, que passa, obrigatoriamente, por um critério de proporcionalidade entre a necessidade ou conveniência da diminuição do encargo sobre o prédio serviente e o prejuízo que a mudança de servidão possa acarretar para prédio encravado, tudo em nome da função reguladora e pacificadora do direito na definição das questões de propriedade nas relações entre vizinhos.

Em termos de ónus da prova, cabe ao interessado na mudança da servidão a prova dos apontados requisitos, atento o disposto no artigo 342º, nº1, do Código Civil.

E convém ter presente, quanto a esse ónus probatório, que o mesmo abrange necessariamente o sítio do exercício da servidão, ou seja, no caso, recai sobre os Autores o ónus da prova daqueles dois requisitos bem como do lugar preciso em que pretendem que a servidão passe a poder exercer-se.

Com efeito, “o sítio do exercício da servidão – o locus servitutis dos romanos - é o lugar preciso em que a servidão pode exercitar-se, a parte do prédio em que, sem implicar a sujeição de tal exercício do prédio inteiro, a servidão praticamente se localiza.” (cfr. Lobo, Mário Tavares, Mudança e Alteração de Servidão, pág. 93, Coimbra Editora). “O lugar ou sítio da servidão constitui parte integrante da mesma; e assim se compreende que a mudança implique uma modificação no conteúdo da própria servidão”.

No entanto, no caso concreto, não lograram os Autores, como lhes incumbia, a prova dos apontados requisitos.

Note-se que resultou como não provada a factualidade alegada pelos Autores nos artigos 48, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 68, 69 e 70 da petição inicial, factualidade que era essencial para a procedência do pedido constante da alínea c), pois que ali os Autores descreviam o caminho pelo qual pretendiam que a servidão se passasse a exercitar, sendo certo que a decisão do Tribunal a quo quanto a considerar não provada tal factualidade não foi sequer impugnada pelos Recorrentes.

Por outro lado, é certo que se provou que:
21)Os Autores, em 20.10.2021, por escritura pública de compra adquiriram às Chamadas uma faixa de terreno onde se localiza um acesso, em terra batida com traçado definido e visível pela passagem de pessoas, veículos de bois, tratores e camiões demarcado e delimitado que se inicia na Rua ... junto à casa dos autores (sita Rua ..., ...) e que, pelo lado de cima e oposto à servidão de passagem reconhecida por Acórdão de 23.11.2017 permite também o acesso ao prédio dos réus e de outros proprietários nomeadamente o dos autores às chamadas, HH e II, tendo um comprimento de 112 metros e uma largura em toda a sua extensão de 2,80 metros a 3 metros.
22) O acesso pela faixa de terreno adquirida pelos autores e descrita em 21). tem um traçado bem definido, com sinais visíveis e permanentes, em terra batida compactada de pronunciados trilhos provocados pela passagem de pessoas e bem assim de veículos, possibilitando o acesso ao terreno dos Réus, na sua estrema Norte.
23) O acesso que integrava e integra a faixa de terreno adquirida pelos autores, com entrada pela Rua ..., foi usado pelo madeireiro contratado e a mando dos Réus, em abril de 2018, para retirar a madeira extraída do seu terreno e vendida, tendo sido utilizado nesse transporte da madeira camiões específicos de comprimento não inferior a 10 metros (do tipo dos que constam que medem, de largura, incluindo retrovisores, não menos do que 2,70m/2,80m.
24) O acesso pela Rua ... apresenta uma inclinação reduzida e suave em todo o seu percurso, com uma entrada e saída dos terrenos fácil para a via pública, sendo uma estrada menos movimentada do que a da Rua ....
25) Os Autores lograram obter, e obtiveram, o consentimento expresso das atuais proprietária e usufrutuária de tal terreno (intervenientes), identificado e que foi vertido expressamente na “Declaração de consentimento de constituição de servidão de passagem”, outorgado em 06-10-2021, pelas já identificadas HH e II que outorgaram que as beneficia, foi levada ao conhecimento dos Réus, através de notificações judiciais avulsas, devidamente, concretizadas em 15.10.2021.
26) Com a aquisição da faixa de terreno descrita em 21). pelos Autores surgiu ainda a possibilidade de se fazer um outro acesso, paralelo ao existente nessa entrada, mas melhorado nalgumas das suas condições.

No entanto, este acesso a que se alude nestas alíneas nada tem a ver com o caminho referido nas alíneas “S”, “T”, “U”, “V” e “W”, dos factos provados na sentença proferida no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, no âmbito do processo ..., como claramente decorre da fundamentação da sentença proferida.

Com efeito, a mesma não acolheu o pedido de mudança de servidão por considerar que não foi demonstrada a existência e conformidade do “novo caminho” proposto pelos Autores para onde estes pretendiam a transferência da servidão. Ali se escreveu que “decorre da inspecção judicial realizada no âmbito da presente acção que o alegado “caminho da faixa de terreno adquirida” para o qual se pretende mudar a servidão de passagem não corresponde exactamente àquele que vem referido nas alíneas S); T)., U); V) e W) da decisão proferida no âmbito do processo nº. .... Aliás, são dois traçados diversos e absolutamente diferenciados nas suas características como sejam: na largura, na zona do terreno afectado e percorrido pelo traçado do caminho de acesso, na sua localização, delimitação e definição. Percepção que também decorre da simples análise comparativa do vertido na acta (referência 93008104), com os elementos trazidos aos autos pela certidão de 22.11.2023 de fls. 380 e seguintes, nomeadamente, 382 a 384 e de fls.390 verso – acta referência 79676191 (proc. ...), em particular as fotos 2 a 13 e, por isso, não podemos aceitar a versão factual dos autores.

Para além disso, a factualidade alegadamente reconhecida e dada como provada nas alíneas S); T)., U); V) e W) do processo que correu termos como Proc. ... não corresponde exactamente à totalidade da zona abrangida pela faixa de terreno que foi adquirida pelos autores que repete-se, na aparência, os Autores quiseram e querem fazer crer ser a mesma.

Logo, este novo acesso não pode ser reputado de ancestral como alegado pelos autores que tão pouco o caracterizaram.

Esta falta de conformidade da prova produzida – entre a faixa adquirida e o caminho provado e reconhecido naquela outra acção judicial – resulta essencialmente das diligências de inspecção judicial realizadas e presididas pela Magistrada Judicial signatária quer nos presentes autos, quer no processo ... – que observou que a zona de acesso aos prédios pelo lado da Rua ... entre as datas de 6 de Maio de 2019 e 21 de Setembro de 2023 sofreu uma modificação substancial que não resultou apenas da colocação de uma rede de vedação – rede ovelheira – em toda a extensão da faixa de terreno e de circulação, mas da própria deslocação no terreno da área por onde se desenvolve esse acesso que deixou de ser efectuado pelo lado esquerdo, tendo passado para o lado direito, circunstancialismo que esvazia do ponto de vista factual a formulação deste pedido e, por conseguinte, os demais pedidos formulados nas alíneas d) e e) que necessariamente também terão que improceder.

Aliás, esta conclusão é tão ou mais verdadeira quanto a constatação que se extrai do requerimento formulado pelos próprios autores, em acta de audiência final de 12.10.2023 (ref. citius 93217735), onde foi pedida a ampliação deste pedido nos termos e para os efeitos previstos no artigo 265º., nº. 2 e artigo 3º., nº. 3 do CPC – onde referiam e passo a citar que a requerida ampliação estava virtualmente contida no pedido inicial. O que necessariamente determinou que o Tribunal tivesse ordenado a junção da certidão com os elementos que melhor constam da mesma, sendo todos eles provenientes do processo ... e, nessa sequência, foi proferido despacho judicial a indeferir o pedido de ampliação formulado, conforme consta de acta de 7 de Dezembro de 2023 (referência Citius nº. 93806889).

Donde, com segurança e certeza podemos concluir que há uma contradição lógica na génese da formulação do pedido da alínea c) e da causa de pedir que lhe está subjacente apenas verificável da própria produção de prova e desenvolvimento da acção, inexistindo qualquer sobreposição do caminho alegadamente existente com qualquer outro caminho ancestral ou até mesmo com o caminho que era percorrido pelo madeireiro”.

Quer isto dizer que a primeira instância, com base nas inspeções judiciais realizadas, concluiu que o caminho provado pelos Apelantes não correspondia ao traçado que havia sido reconhecido em processo anterior (...) e que, inclusive, sofreu modificações substanciais. Esta discrepância factual levou o Tribunal a concluir que o pedido sob a alínea c), no seu objeto, se encontrava "esvaziado do ponto de vista factual".

Os Apelantes, no recurso, argumentam que o Tribunal não deveria ter exigido que o caminho estivesse já aberto e delimitado fisicamente, bastando que o prédio a ser onerado tivesse condições para proporcionar a passagem. Contudo, a questão fundamental subjacente à decisão recorrida, e que decorre também da factualidade provada e não provada, não se prende com a questão de saber se o novo caminho proposto estava "aberto", mas sim que o próprio traçado e as características da alternativa proposta pelos Apelantes, tal como a definiram na petição inicial, essenciais para a procedência do pedido que formularam sob a alínea c), na realidade não foi pelos Apelantes provada, pois o terreno em causa foi entretanto alvo de várias modificações.

Sucede que a mudança de servidão, para que possa ser avaliada pelo Tribunal a verificação dos respetivos requisitos, pressupõe uma base factual sólida e coerente sobre o local proposto para a “nova” servidão. A incoerência e a alteração da configuração do "novo caminho" ao longo do tempo, conforme verificado pelo Tribunal de primeira instância, que determinou a ausência de prova quanto ao traçado e características do caminho para o qual os Apelantes pretendiam a mudança de servidão, tendo em vista o exercício da servidão de passagem pelos Réus, determina necessariamente a improcedência da ação, porquanto não logram os Autores Apelantes demonstrar a existência do caminho a que aludem as alíneas S); T)., U); V) e W) do processo que correu termos como Proc. ..., o que, necessariamente, impede a aferição objetiva dos demais requisitos legais exigidos para aquela mudança. Ou seja, a ausência de prova do objeto da pretensão torna a análise da conveniência e da ausência de prejuízo da pretendida mudança inoperantes, sendo certo que não cabe ao Tribunal definir o traçado do “novo caminho”, mas apenas aferir se o novo caminho sugerido, a existir, reveste os necessários requisitos para poder sustentar uma mudança de servidão.

O ónus de provar que estão reunidas as condições para a mudança da servidão recaía sobre os Apelantes. Não o tendo feito, tem necessariamente de improceder a ação, com a consequente absolvição dos Réus do pedido formulado na alínea c) (e não da instância, como pretendem, por último, os Autores, pois que o Tribunal entrou no conhecimento do mérito da causa).

Não assiste assim razão aos Recorrentes quando alegam que considerar o pedido de alteração de uma servidão esvaziado constitui uma clara denegação de justiça e, por isso, uma violação do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva vertida no artigo 20.º da CRP, pois que o Tribunal a quo se limitou a aplicar as regras da repartição do ónus da prova em face dos pedidos formulados pelos Autores /Apelantes, respeitando o princípio do pedido vertido no artigo 609º, do Código de Processo Civil.

Aliás, quiçá antevendo este desfecho da ação, os Autores chegaram a peticionar uma ampliação do pedido, que não veio a ser admitida por despacho transitado em julgado.

Ora, se os Autores peticionaram a alteração da servidão de passagem para um local que, na realidade, não existe, jamais poderia o Tribunal a quo julgar procedente o pedido de alteração da servidão.

Tal conclusão implica, necessariamente, a improcedência dos pedidos formulados sob as alíneas d) e e) do petitório, cuja procedência dependia da procedência do pedido formulado sob a alínea c).

Finalmente, não pode este Tribunal deixar de concordar com as considerações tecidas no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 23 de fevereiro de 2021, proferido no âmbito da ação ....P1, junto como documento 38 com a contestação, as quais, não obstante já se terem passado mais de 4 anos, mantém pertinência, quando ali se afirma que o artigo 1568º do Código Civil, no seu nº1, “que reconhece o direito do proprietário do prédio serviente a mudar a servidão de passagem, contempla no seu texto, em simultâneo, a proibição do proprietário do prédio serviente impedir ou dificultar o uso da servidão.

Ora, no caso em apreço, os Apelantes, vieram pedir a mudança do local da servidão, quando, e não obstante a condenação no âmbito do processo nº. ..., continuam a obstaculizar a passagem dos Apelados pela servidão de passagem que pretendem ver alterada.

Significa isto que, a ter-se reconhecido tal direito aos Apelantes, esta situação seria suscetível de fazer neutralizar tal direito, através do instituto do abuso de direito, nos termos prescritos no art. 334º do C.Civil, configurando uma espécie de abuso de direito “caracterizado”.”

Impõe-se, pois, negar provimento ao presente recurso, com a consequente manutenção da sentença recorrida.

*

Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527º do Código de Processo Civil, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.

Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade dos Recorrentes.

*



Síntese conclusiva (da exclusiva responsabilidade da Relatora – artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil):
…………………………………..
…………………………………..
…………………………………..



*


III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto, em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos Recorrentes.

*

















Porto, 10 de julho de 2025

Teresa Pinto da Silva

José Eusébio Almeida

Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo

_____________________________________
[1] Constata-se existir um manifesto lapso de escrita na sentença ao ali se referir “do processo identificado em 8)” quando deveria constar “do processo identificado em 7)”.
[2] Constata-se existir um manifesto lapso de escrita na sentença ao ali se referir “identificado em 13)” quando deveria constar “identificado em 12)”.
[3] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág. 735.
[5] Neste sentido, cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, reimpressão, p. 139 e 140.
[6] Neste sentido, cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1985, página 688.
[7] Neste sentido, cf. Ac. do STJ de 10-03-2022, proc. nº 1071/18.9T8TMR.E1.S1; Ac. do TRP de 23-05-2022, proc. nº 588/14.9TVPRT.P1.; Ac. do TRP de 20-05-2024, proc. nº 3489/22.3T8VFR, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, p. 214.
[9] Cfr. Neste sentido António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, 2022, pág. 357.
[10] Constata-se existir um manifesto lapso de escrita na sentença ao ali se referir ao “do processo identificado em 8” quando deveria constar “do processo identificado em 7)”.