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ACÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
LEGITIMIDADE
LITISCONSÓRCIO PASSIVO
Sumário
Legitimidade passiva da empregadora em acção emergente de acidente de trabalho – Solidariedade entre devedoras – Litisconsórcio voluntário passivo entre a seguradora e a empregadora – Artigo 127.º do Código de Processo do Trabalho, artigo 87.º da Lei n.º 98/2009, artigo 25.º da Portaria n.º 256/2011, artigos 30.º, 32.º n.º 2 e 317.º do Código de Processo Civil e artigos 512.º, 513.º e 517.º do Código Civil
Texto Integral
Decisão sumária da relatora
1. O recurso é o próprio, subiu pelo modo e com o efeito adequados.
2. A título liminar o Tribunal recorda que os preceitos do Código de Processo Civil (CPC) a seguir mencionados, são aplicáveis no presente caso por força do disposto no artigo 1.º n.º 2 – a) do Código de Processo do Trabalho (CPT) e, em particular, no que respeita ao julgamento do recurso, por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT.
3. Afigura-se ser de proferir decisão sumária nos termos do artigo 656.º do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho (CPT), pelos seguintes fundamentos: a questão suscitada na motivação do recurso é uma única, de direito e reveste-se de manifesta simplicidade; a opção pela decisão sumária não representa uma compressão injustificada dos direitos das partes, atenta a faculdade, conferida pelo artigo 652.º n.º 1-c) e n.º 3 do CPC à parte que se considere prejudicada, de requerer que sobre a presente decisão recaia um acórdão. Despacho recorrido
4. Por despacho de 28.10.2024 (cf.referência citius 153762480 nos autos principais, aos quais o Tribunal tem acesso via citius), cujo teor se dá por integralmente reproduzido, o 2.º Juízo do Trabalho de Cascais do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, (doravante também Tribunal de primeira instância, Tribunal recorrido ou Tribunal a quo), indeferiu liminarmente a petição inicial relativamente à 2.ª ré/empregadora, nos seguintes termos: “Do indeferimento liminar da petição inicial quanto à Ré Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus: AA intentou a acção especial de acidente de trabalho contra Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. e Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, estas na qualidade de Entidade Empregadora. Do auto de tentativa de conciliação consta o seguinte: “(…) pela Exmª. Magistrada foi dito: Apura-se dos autos que a sinistrada no dia 27-07-2022, às 07:30 horas, em Cascais foi vítima de um acidente de trabalho. Tal acidente verificou-se quando a sinistrada prestava a sua atividade de Auxiliar de enfermagem, sob as ordens, supervisão e fiscalização da entidade Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus com sede sita Rua Machado dos Santos Nº 2, 2775-236 PAREDE, em execução do contrato de trabalho com esta celebrado. O acidente consistiu no local do lar, sofreu estiramento na região muscular interna proximal da coxa direita (acidente descrito pela examinada). Em consequência do acidente resultaram para a sinistrada, direta e necessariamente as lesões descritas no auto de perícia médica que antecede. À data do acidente, o(a) sinistrado(a) auferia a retribuição mensal de 713€ x 14m (sal. base) + 111,02€x 11m (sub. de alimentação) + 157,54€ x 12m (outras retribuições), perfazendo o montante da remuneração anual bruta de 13.093,70€. A entidade empregadora supra referida tinha a responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para a seguradora aqui representada pela totalidade da retribuição acima indicada. (…) Dada a palavra à sinistrada por ela foi dito que os factos correspondem à verdade, no entanto não concorda com o resultado do exame médico, porquanto entende que esteve incapacitada para o trabalho por um período não inferior a 30 dias e considera que fica afetada de IPP, cuja percentagem não sabe quantificar, pelo que pretende ser sujeita a Junta Médica. Como tal, NÃO ACEITA a conciliação nos termos propostos pela Magistrada do MºPº. Pela representante da seguradora, foi dito que não reconhece o acidente dos autos como de trabalho, nem o nexo causal entre o mesmo e as lesões sofridas pelo sinistrado conforme consideradas pelo perito médico do Tribunal na sua perícia. Mais não concorda com o exame médico porquanto o evento não foi participado à Seguradora razão pela qual se desconhecem as circunstâncias em que o mesmo terá ocorrido pelo que não poderá assumir a responsabilidade pelo mesmo. Apenas aceita a existência da apólice à data do evento bem como a sua responsabilidade pela retribuição acima referida e transferida para a seguradora. Pelo exposto, NÃO ACEITA a conciliação nos termos propostos pelo Magistrado do MºPº.” Daqui resulta que a Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. aceitou estar para si transferida, à data do evento, a responsabilidade por acidentes de trabalho de que pusesse ser vítima a Autora, com base na retribuição anual de 13.093,70, que a Autora ali reconheceu ser a auferida e que coincide com a indicada na petição inicial. Nestas circunstâncias e visto o disposto no artigo 79º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, é de concluir que estando totalmente transferida para esta Ré a responsabilidade sinistral da Entidade Empregadora e não estando em causa qualquer facto que se enquadre no disposto no artigo 18º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, a Ré Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus são parte ilegítima na presente acção. Atento a posição assumida na tentativa de conciliação e, bem assim, o alegado na petição inicial, só a Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. tem legitimidade para figurar na acção como Ré pois só esta tem interesse em contradizer a acção. As Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus não possuem legitimidade passiva para figurar na acção pois não têm qualquer interesse em contradizer visto que nenhum prejuízo pode para si advir da procedência da acção, uma vez que existia um seguro obrigatório que abrangia a totalidade da retribuição da Autora, de onde decorre que, em caso de procedência desta acção, só a Seguradora pode vir a ser condenada a reparar as consequências do acidente. A verificar-se a ocorrência do evento e a sua qualificação como acidente de trabalho, a, eventual, não participação do acidente pelas Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus à Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., não desobriga a Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. da obrigação de reparar o acidente em questão, a coberto do contrato de seguro de acidentes de trabalho em vigor à data do evento (sem prejuízo da responsabilidade, por perdas e danos, que possa vir a ser assacada às Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus pela Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., por inobservância do dever de participação do acidente, nos termos do artigo 87º, n.º 1 da L.A.T.). Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 590º, n.º 1, conjugado com os artigos 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 1º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho, indefere-se liminarmente a petição inicial quanto às Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, prosseguindo os autos apenas contra a Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.. Notifique.” Alegações da recorrente
5. Inconformada com o despacho mencionado no parágrafo anterior, a recorrente dele veio interpor o presente recurso, mediante alegações juntas à certidão com a referência citius 156523464 de 18.3.2025, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, formulando o seguinte pedido: “Assim, ao decidir como decidiu violou a Meritíssima Juiz a quo o disposto no artº 87º, nº 1 da LAT pelo que deve a decisão de indeferimento liminar da petição inicial quanto à Ré Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus ser revogada e no seu lugar ser tomada outra que determine que a presente acção corra também contra as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus por ser esta parte legitima na acção.”
6. Nas suas alegações, vertidas nas conclusões, a autora/recorrente alega, em síntese, que: demandou a seguradora e a empregadora, tendo alegado na petição inicial que a empregadora não cumpriu o dever de participar o acidente de trabalho à seguradora e os prejuízos que daí lhe advieram; perante essa configuração da relação material controvertida, o dever de indemnizar impende sobre a 2.ª ré, como prevê o artigo 87.º n.º 1 da Lei 98/2009. Contra-alegações
7. A 1.ª ré, recorrida (seguradora) informou que prescide de contra-alegar (cf. requerimento junto à certidão que instruiu o presente recurso, com a referência citius 156523464 de 18.3.2025, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
8. A 2.ª ré, recorrida (empregadora), citada para os termos do recurso e da causa, conforme ordenado no despacho que admitiu o recurso, não contra-alegou (cf. despacho com a referência citius 155093509 de 10.1.2025, junto aos autos principais, aos quais o Tribunal tem acesso, e aviso de recepção junto à certidão que instruiu o presente recurso, com a referência citius 156523464 de 18.3.2025, cujo teor se dá por reproduzido). Parecer do Ministério Público
9. O digno magistrado do Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer cujo teor se dá por integralmente reproduzido (cf. referência citius 229286558 de 2.4.2025), ao abrigo do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT, pugnando por que seja negado provimento ao recurso, em síntese, porque: apenas se justificaria a intervenção da empregadora nas situações previstas no artigo 79.º n.ºs 4 e 5 da Lei 98/2009, se o valor da retribuição anual da autora/trabalhadora não estivesse totalmente transferido para a seguradora; não sendo esse o caso, uma vez que a retribuição anual bruta da recorrente, no montante de 13 093,70 euros, se encontra totalmente transferida para a seguradora, a empregadora não tem de intervir nos presentes autos; a responsabilidade da empregadora por não ter feito a participação do acidente de trabalho apenas releva nas relações entre esta e a seguradora.
10. As partes não responderam ao parecer mencionado no parágrafo anterior. Contornos do litígio
11. Na fase conciliatória do processo não foi possível a conciliação entre a autora e a 1.ª ré pelos motivos constantes do auto de 26.9.2024, com a referência 12947452, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (cf. auto junto à certidão que instruiu o presente recurso com a referência citius 156523464 de 18.3.2025).
12. A 1.ª ré (seguradora) contestou a acção mediante articulado com a referência citius 26811191 de 25.11.2024, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, junto aos autos principais aos quais o Tribunal tem acesso via citius.
13. O Tribunal a quo proferiu despacho saneador, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, no qual identificou o objecto do litígio e seleccionou temas de prova (cf. referência citius 157594026 de 19.5.2025, junta aos autos principais aos quais o Tribunal tem acesso via citius). Delimitação do âmbito do recurso
14. Tem relevância para a decisão do recurso a seguinte questão, vertida nas conclusões:
A. Legitimidade passiva da empregadora Factos processuais que o Tribunal leva em conta
15. O Tribunal leva em conta na presente decisão os factos processuais acima descritos nos parágrafos 4 a 13, constantes dos autos e termos com as referências citius aí mencionadas. Quadro legal relevante
16. Para a apreciação do recurso tem relevo, essencialmente, o quadro legal seguinte:
Código de Processo do Trabalho ou CPT
Artigo 127.º
Pluralidade de entidades responsáveis
1 - Quando estiver em discussão a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência, mandar intervir na ação qualquer entidade que julgue ser eventual responsável, para o que é citada, sendo-lhe entregue cópia dos articulados já oferecidos.
2 - Os atos processuais praticados por uma das entidades rés aproveitam às outras; na medida em que derem origem a quaisquer obrigações ou as reconhecerem, tais atos são, no entanto, próprios da parte que os praticou.
3 - São lícitos os acordos pelos quais a entidade empregadora e a entidade seguradora atribuam a uma delas a intervenção no processo a partir da citação da última, sem prejuízo da questão da transferência da responsabilidade; o acordo é eficaz tanto no que beneficie como no que prejudique as partes.
4 - As sentenças e despachos proferidos constituem caso julgado contra todos os réus, independentemente da falta de intervenção de algum deles.
Código de Processo Civil ou CPC
Artigo 30.º
Conceito de legitimidade
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Artigo 32.º
Litisconsórcio voluntário
1 - Se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas, a ação respetiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados; mas, se a lei ou o negócio for omisso, a ação pode também ser proposta por um só ou contra um só dos interessados, devendo o tribunal, nesse caso, conhecer apenas da respetiva quota-parte do interesse ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade.
2 - Se a lei ou o negócio permitir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos interessados, basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade.
Artigo 317.º
Efetivação do direito de regresso
1 - Sendo a prestação exigida a algum dos condevedores solidários, o chamamento pode ter por fim o reconhecimento e a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir, se tiver de realizar a totalidade da prestação.
2 - No caso previsto no número anterior, se apenas for impugnada a solidariedade da dívida e a pretensão do autor puder de imediato ser julgada procedente, é o primitivo réu logo condenado no pedido no despacho saneador, prosseguindo a causa entre o autor do chamamento e o chamado, circunscrita à questão do direito de regresso.
Código Civil ou CC
Artigo 512.º
(Noção)
1. A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles.
2. A obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles; igual diversidade se pode verificar quanto à obrigação do devedor relativamente a cada um dos credores solidários.
Artigo 513.º
(Fontes da solidariedade)
A solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.
Artigo 517.º
(Litisconsórcio)
1. A solidariedade não impede que os devedores solidários demandem conjuntamente o credor ou sejam por ele conjuntamente demandados.
2. De igual direito gozam os credores solidários relativamente ao devedor e este em relação àqueles.
Artigo 522.º
(Caso julgado)
O caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores, mas pode ser oposto por estes, desde que não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor.
Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro ou apenas Lei 98/2009
Artigo 87.º
Empregador com responsabilidade transferida
1 - O empregador que tenha transferido a responsabilidade deve, sob pena de responder por perdas e danos, participar à seguradora a ocorrência do acidente, no prazo de vinte e quatro horas, a partir da data do conhecimento.
2 - A participação deve ser remetida à seguradora por meio informático, nomeadamente em suporte digital ou correio electrónico, salvo o disposto no número seguinte.
3 - No caso de microempresa, o empregador pode remeter a participação em suporte de papel.
Portaria n.º 256/2011, de 5 de Julho ou apenas Portaria 256/2011
ANEXO
Cláusula 25.ª
Obrigações do tomador do seguro em caso de ocorrência de acidente de trabalho
1 - Em caso de ocorrência de um acidente de trabalho, o tomador do seguro obriga-se:
a) A preencher a participação de acidente de trabalho prevista legalmente e a enviá-la ao segurador no prazo de 24 horas, a partir do respectivo conhecimento;
b) A participar imediatamente ao segurador os acidentes mortais, sem prejuízo do posterior envio da participação, nos termos da alínea anterior;
c) A fazer apresentar sem demora o sinistrado ao médico do segurador, salvo se tal não for possível e a necessidade urgente de socorros impuser o recurso a outro médico.
2 - As comunicações previstas nas alíneas a) e b) do número anterior são efectuadas por meio informático, nomeadamente em suporte digital ou correio electrónico, excepto no caso do tomador do seguro microempresa, que pode sempre optar pelo suporte de papel.
3 - O incumprimento do previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1 determina a responsabilidade do tomador do seguro pelas perdas e danos do segurador.
4 - O incumprimento do previsto na alínea c) do no n.º 1 determina:
a) A redução da prestação do segurador atendendo ao dano que o incumprimento lhe cause;
b) A perda da cobertura se for doloso e tiver determinado dano significativo para o segurador.
5 - O previsto nos n.os 3 e 4 não é oponível aos sinistrados e demais beneficiários legais das prestações de acidentes de trabalho, ficando o segurador com o direito de regresso previsto na cláusula 28.ª. Doutrina que o Tribunal leva em conta
17. O Tribunal leva em conta os seguintes elementos doutrinais:
• José Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, Almedina
• Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, Coimbra Editora Limitada
• Salvador da Costa, As Custas Processuais, 9.ª Edição, Almedina Apreciação do recurso
A. Legitimidade passiva da empregadora
18. O despacho recorrido indeferiu liminarmente a petição inicial com base na ilegitimidade da segunda ré/empregadora e apenas na parte que lhe diz respeito. Para esse efeito, o raciocínio do Tribunal a quo foi o seguinte: como não foi alegada nenhuma das situações previstas no artigo 18.º da Lei 98/2009 e a alegada inobservância do dever de participação à seguradora do acidente de trabalho, por parte da empregadora, não afasta o dever de a seguradora reparar os danos resultantes desse acidente, a empregadora é parte ilegítima, sem prejuízo de a sua responsabilidade por perdas e danos estar prevista no artigo 87.º n.º 1 da lei 98/2009. O Tribunal a quo fundamenta ainda a sua decisão nos artigos 576.º n.ºs 1 e 2, 577.º - e) e 590.º n.º 1 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1.º n.º 2 – a) do CPT.
19. A recorrente insurge-se contra o despacho impugnado, alegando que o mesmo não leva em conta que a recorrente, na petição inicial, alegou que a empregadora não participou o acidente de trabalho à seguradora e que, para aferir a legitimidade das partes, há que levar em conta o modo como a autora configurou a acção.
20. Para resolver essa discordância, o Tribunal começa por levar em conta o modo como a autora configurou a relação material controvertida na petição inicial e os pedidos que formulou – cf. artigo 30.º n.º 3 do CPC.
21. Assim, a autora/recorrente, nos artigos 3.º, 8.º a 11.º e 14.º a 16.º da petição inicial alegou o seguinte: “3º. Pese embora a Companhia de Seguros tenha declarado em sede de tentativa de conciliação que a empregadora não teria comunicado tal acidente de trabalho aos seus serviços, afastando assim qualquer responsabilidade pelo mesmo, o que não se aceita (...) 8º. De imediato foi a Sinistrada ao encontro da enfermeira responsável do serviço a enfermeira BB informando-a que se havia magoado. 9º. Mas, esta desvalorizou o sucedido e ordenou-lhe que continuasse a trabalhar. 10º. A Sinistrada esteve a trabalhar até cerca das 11 horas, mas como as dores estavam a aumentar pediu para falar com a Enfermeira Pandora. 11º. Foi-lhe autorizada a saída e então a Sinistrada dirigiu-se ao seu médico de família, que lhe atribui uma incapacidade para o trabalho que se prolongou até ao dia 02/09/2022. – Documentonº5a 7, que se junta e dá por reproduzido para todos os efeitos de direito. (...) 14º. Quando foi entregar o documento comprovativo da situação e incapacidade, falou com a Srª Enfermeira Pandora no sentido de ser accionado o seguro de acidentes de trabalho, mas esta recusou-se a fazê-lo, alegando que a situação era temporária e que não havia necessidade. 15º. Dos períodos que esteve incapacitava a Sinistrada nada recebeu por parte da segurança social, com fundamento de que a causa da incapacidade era um acidente de trabalho – documento nº 9, que se junta e dá por reproduzido para todos os efeitos de direito. 16º. Nem a Ré empregadora, nem a Ré seguradora lhe pagaram qualquer valor.”
22. Adicionalmente, a autora/recorrente, fez pedidos contra a seguradora e contra a empregadora, usando a formulação que o Tribunal a seguir transcreve: “Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis deve a presente acção ser julgada procedente por provada e consequentemente: a) ser reconhecido o evento descrito nos autos e ocorrido em 27/07/2022 como acidente de trabalho. a) ser avaliado o grau de incapacidade da Sinistrada decorrente do acidente verificado em 23/09/2020. b) Ser a Ré Seguradora condenada a assumir a responsabilidade e reparação do acidente sofrido pela Sinistrada, e consequentemente, ser reconhecido à Sinistrada o direito à reparação por incapacidade temporária absoluta no valor de 967,47 € (novecentos e sessenta e sete euros e quarenta e sete euros). c) ser a Ré Seguradora condenada a pagar à Sinistrada as quantias que se vierem a apurar a título de deslocações ao tribunal, incluindo as da fase conciliatória. d) ser paga à Sinistrada pela Ré Seguradora a importância a título de pensão anual e vitalícia, decorrente da incapacidade parcial permanente (IPP) que lhe vier a ser atribuída em Junta Médica, assente em exame médico realizado no âmbito dos presentes autos. Ou caso assim não se entenda, por ficar provado que a Ré Empregadora não comunicou à Ré Seguradora o evento de 27/07/2022: a) ser reconhecido o evento descrito nos autos e ocorrido em 27/07/2022 como acidente de trabalho. b) ser avaliado o grau de incapacidade da Sinistrada decorrente do acidente verificado em 23/09/2020. c) Ser a Ré Empregadora condenada a assumir a responsabilidade e reparação do acidente sofrido pela Sinistrada, e consequentemente, ser reconhecido à Sinistrada o direito à reparação por incapacidade temporária absoluta no valor de 967,47 € (novecentos e sessenta e sete euros e quarenta e sete euros). d) ser a Ré Empregadora condenada a pagar à Sinistrada as quantias que se vierem a apurar a título de deslocações ao tribunal, incluindo as da fase conciliatória. e) ser paga à Sinistrada pela Ré Empregadora a importância a título de pensão anual e vitalícia, decorrente da incapacidade parcial permanente (IPP) que lhe vier a ser atribuída em Junta Médica, assente em exame médico realizado no âmbito dos presentes autos.”
23. Convém também sublinhar que não é objecto dos presentes autos porque não foi alegada, nem está em litígio, nenhuma das situações previstas no artigo 18.º n.º 2 da Lei 98/2009 (culpa da empregadora na produção do acidente) ou 79.º n.º 4 da Lei 98/2009 (valor da retribuição declarada para efeito do prémio de seguro inferior à real).
24. Feito este enquadramento, a situação em análise convoca a aplicação do disposto no artigo 87.º da Lei 98.º/2009 e no artigo 25.º do Anexo à Portaria 256/2011 (que aprova a parte uniforme da apólice de seguro obrigatório de acidentes de trabalho dos trabalhadores por conta de outrem), para a qual remete o artigo 81.º da Lei 98/2009.
25. Com efeito, resulta da matéria alegada na petição inicial acima transcrita que a empregadora não cumpriu o dever de participar o acidente de trabalho à seguradora e, nesse contexto, também não cumpriu o dever de apresentar, sem demora, a sinistrada ao médico da seguradora, tendo a trabalhadora ficado sem receber qualquer contrapartida enquanto esteve incapacitada. Tais deveres estão expressamente previstos nos artigos 87.º n.º 1 da Lei 98/2009 e 25.º n.º 1 – a) e c) do anexo à Portaria 256/2011, para a qual remete o artigo 81.º da Lei 98/2009. O incumprimento de qualquer desses deveres faz incorrer a empregadora (2.ª ré) em responsabilidade por perdas e danos sofridos pela sinistrada e/ou pela seguradora, consoante os casos – cf. artigo 87.º n.º 1 e artigo 25.º n.ºs 3, 4 e 5 do anexo à Portaria 256/2011. Embora isso não seja oponível pela seguradora à trabalhadora/sinistrada, o certo é que a seguradora pode, em qualquer desses casos, exercer o seu direito de regresso contra empregadora – artigo 25.º n.º 5 do anexo à Portaria 256/2011.
26. Do acima exposto resulta que os factos alegados pela autora/recorrente, na petição inicial, se enquadram no regime da responsabilidade solidária da seguradora e da empregadora, enquanto devedoras, regime esse que tem por fonte a lei – cf. artigos 497.º, 512.º e 513.º do Código Civil (CC), conjugados com o regime legal acima enunciado no parágrafo 25.
27. Importa também levar em conta que a situação aqui descrita não se enquadra num acidente simultaneamente de trabalho e de viação, pelo que, não se aplica o regime previsto no DL 291/2007, por remissão do artigo 26.º desse diploma legal. Assim sendo, no que respeita à legitimidade passiva para a presente acção especial emergente de acidente de trabalho, cujo pedido não excede os limites da cobertura prevista no contrato de seguro, o artigo 127.º do CPT não impõe a obrigatoriedade de a acção ser intentada apenas contra a seguradora, diversamente do que sucede, em caso de acidente de viação, com a norma especial sobre a legitimidade consagrada no artigo 64.º n.º 1 – a) e n.º 2 do DL 291/2007, segundo a qual o autor/lesado, só pode demandar a seguradora.
28. Uma vez que, nem o artigo 127.º do CPT, nem os artigos 79.º e 87.º da Lei 98/2009, impõem que a presente acção seja intentada apenas contra a seguradora, é à luz dos critérios gerais previstos nos artigos 30.º, 32.º e 317.º do CPC, conjugados com os artigos 517.º e 522.º do CC, que importa então verificar se a empregadora é ou não parte legitima.
29. Para solucionar esse problema o Tribunal começa por recordar que o que distingue o litisconsórcio da coligação é a unidade ou pluralidade de pedidos/relações materiais controvertidas. No caso em análise, a relação material controvertida é a mesma, os pedidos formulados contra cada uma das rés são os mesmos (cf. parágrafo 21 supra) e existe solidariedade entre devedores uma vez que a lei permite que a obrigação seja exigida de um só deles, como já foi explicado. Pelo que, existe litisconsórcio voluntário passivo – artigo 32.º n.º 2 do CPC.
30. Sendo assim, há que levar em conta que a solidariedade constitui uma faculdade, um benefício concedido ao credor, que lhe permite demandar um só dos devedores solidários. Mas essa faculdade, que é concedida à recorrente, não a impede de renunciar à solidariedade e demandar conjuntamente as devedoras solidárias (a seguradora e a empregadora) – cf. artigo 517.º n.º 1 do CC.
31. Acresce que, no caso em análise, ao proferir o despacho liminar aqui em crise, o Tribunal a quo devia ter presente que, ainda que a recorrente tivesse demandado apenas a seguradora, a seguradora poderia vir a chamar à demanda a empregadora, mediante intervenção provocada, para exercer o seu direito de regresso, nos termos do artigo 317.º do CPC. Como em regra o caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores (cf. artigo 522.º do CC), no caso de se provar o incumprimento, pela empregadora/tomadora do seguro, de um dos deveres acima mencionados no parágrafo 25, o artigo 317.º do CPC permite à seguradora munir-se de uma condenação para exercer o direito de regresso.
32. No sentido acima mencionado nos parágrafos 30 e 31, a seguinte doutrina que o Tribunal aqui acompanha (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, Coimbra Editora Limitada, página 533): “1.A solidariedade é uma faculdade concedida aos credores ou aos devedores, ela não impede, por conseguinte, que uns ou outros, renunciando ao benefício, accionem conjuntamente a outra parte. (...) 2. (...) permite-se que o devedor solidário demandado faça intervir os outros, chamando-os à demanda, para se defenderem ou serem conjuntamente condenados. O chamamento não altera a posição do demandado, como devedor solidário em relação ao credor (cfr. art.518.º).”
33. Em consequência, resulta do modo como a autora/recorrente configurou a acção (cf. artigo 30.º n.º 3 do CPC) que existe solidariedade entre as rés, devedoras, e que uma dessas devedoras pode vir a exercer o direito de regresso contra a outra, situação que, no plano processual, se enquadra no litisconsórcio voluntário passivo de ambas as rés. Pelo que, a segunda ré/empregadora é parte legitima.
34. Por fim, o Tribunal sublinha que não obstante formulação pela qual optou a autora ao enunciar os pedidos contra as rés [“Ou caso assim não se entenda (...)”], ser mais adequada a fazer pedidos subsidiários, o certo é que a situação descrita na petição inicial não se enquadra numa situação em que exista dúvida sobre a titularidade da relação material controvertida ou sobre a interpretação da norma aplicável para solucionar essa dúvida. Se fosse esse o caso, a autora poderia formular pedidos subsidiários, nos termos previstos no artigo 39.º do CPC.
35. Porém, a situação descrita na petição inicial é de contitularidade da relação material controvertida, tal como já foi acima explicado e a esse propósito o Tribunal não está sujeito às alegações das partes sobre a indagação e aplicação das regras de direito (cf. artigo 5.º n.º 3 do CPC).
36. Assim sendo, a situação alegada pela autora não se enquadra no litisconsórcio subsidiário previsto no artigo 39.º do CPC, já que o litisconsórcio subsidiário, por sua natureza, ocorre para além das situações de contitularidade da mera relação jurídica material tal como foi alegada na petição inicial (cf. José Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, Almedina, página 111).
37. Motivos pelos quais procede o recurso, é revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julga a 2.ª ré parte legitima e ordena o prosseguimento dos autos também contra ela. Custas
38. De acordo com o disposto no artigo 527.º n.º 2 do CPC, as custas do recurso são da responsabilidade da parte que nele ficou vencida, a saber, as rés.
39. Entre as rés existe litisconsórcio e nenhuma delas contestou, pelo que ficaram vencidas em igual proporção – cf. artigo 528.º n.º 3 do CPC.
40. Em consequência, as rés respondem pelas custas do recurso em partes iguais – cf. artigo 528.º n.º 1 do CPC.
41. A 2.ª ré é uma Instituição particular de Solidariedade Social criada sob a forma de fundação de solidariedade social – cf. artigo 2.º dos Estatutos do Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, com registo publicado pela última vez, mediante declaração, no Diário da República n.º 177/2006, Parte Especial, Série II de 13.9.2006, página 18808 (doravante apenas Estatutos). A 2.ª ré tem a natureza de pessoa colectiva de utilidade pública por força do artigo 8.º do DL 172-A/2014, que aprova o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social.
42. Os fins da 2.ª ré estão previstos no artigo 3.º dos respectivos Estatutos como se segue:
“O instituto tens fins de saúde, dedicando-se sem fins lucrativos á prevenção, promoção e protecção da saúde através da prestação de cuidados de medicina preventiva e curativa na área da psiquiatria e saúde mental e ainda na área da reabilitação física e dos cuidados paliativos, podendo também dedicar-se à formação conexa com aquelas actividades ou das mesmas decorrente, dirigindo-se preferencialmente a sua acção às camadas da população mais desfavorecidas.”
43. Entre os fins da 2.ª ré não se inclui a celebração de contratos de trabalho instrumentais às actividades estatutárias que realiza ou aos fins principais que lhe são designados por lei.
44. Pelo que, não se aplica à 2.ª ré a isenção prevista no artigo 4.º n.º 1 – f) do Regulamento das Custas Processuais, uma vez que essa isenção é objectivamente restrita, ou seja, só funciona quando as pessoas colectivas de utilidade pública actuem em juízo exclusivamente nos âmbito das suas especiais atribuições ou na defesa dos interesses que lhes estão especialmente conferidos pelos respectivos estatutos ou pela lei (cf. Salvador da Costa, As Custas Processuais, 9.ª Edição, Almedina, páginas 80 e 81); o que não é o caso, nem à luz do disposto no artigo 3.º dos Estatutos da 2.ª ré, nem à luz do disposto no artigo 1.º - A do DL 172-A/2014, que prevê os fins principais das instituições particulares de solidariedade social.
45. Acresce que a isenção de custas processuais das pessoas colectivas de utilidade pública especialmente prevista no artigo 11.º - b), iv, do anexo à Lei 36/2021 (Lei-quadro do Estatuto de utilidade pública) é restrita aos processos tributários (cf. doutrina citada no parágrafo anterior).
46. Motivos pelos quais o Tribunal condena as rés litisconsortes nas custas do recurso, em partes iguais.
Decisão
I. Julgo procedente o recurso e, em conformidade revogo a decisão recorrida e substituo-a por outra que julga parte legitima a 2.ª ré, Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, e ordena o prosseguimento dos autos também contra a 2.ª ré.
II. As custas do recurso ficam a cargo de cada uma das rés litisconsortes, em partes iguais.