ACIDENTE DE TRABALHO
INCIDENTE DE REVISÃO
PRESTAÇÕES EM ESPÉCIE
Sumário

I - O incidente de revisão da prestação é também o mecanismo processual adequado ao pedido de qualquer prestação, ainda que em espécie, desde que relacionado com o acidente de trabalho.
II - As prestações em espécie que o direito reconhece comportam quaisquer prestações adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida ativa.

Texto Integral

Decisão:

I - Relatório
AA, sinistrada, deduziu o presente incidente de revisão da incapacidade contra Lusitânia Companhia de Seguros, S.A, alegando para o efeito o agravamento da sua situação clínica, que descreve.
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Em 18-07-2024, a sinistrada requereu “que a junta médica agendada se pronuncie acerca da necessidade adaptação de domicílio, e da substituição do seu veículo por outro com mudanças automáticas, conforme melhor descriminado nos documentos que se juntam.”
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A Seguradora não contestou.
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Foram realizados exame médico e junta médica.
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Foi proferida sentença que decidiu: “1. Declara-se a sinistrada afetada com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual com incapacidade permanente parcial para o exercício de outra profissão compatível (ipp residual) de 30% desde 10.04.2024 (data do pedido de revisão);
2. Fixa-se a pensão anual e vitalícia devida à Requerente em € 1558,20 (mil quinhentos e cinquenta e oito euros e vinte cêntimos), (P=70% de R X IPP, =ou»30%), acrescida de juros desde a data de vencimento de cada prestação à taxa à legal supletiva que em cada momento se encontre em vigor e que atualmente é de 4% ao ano. 1
À pensão fixada importa deduzir a(s) parte(s) anteriormente remida(s) da pensão, pelo que, deve a requerente, em 15 dias, informar qual a pensão (e atualizações) que, à data do pedido de revisão, estava a pagar à Requerente.
Custas do incidente a cargo da entidade seguradora.”
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Foi proferido despacho em 26-11-2024, nos termos do qual “na parte decisória, nomeadamente no ponto 2., o valor da pensão referido 1.558,20€, não se mostra corretamente calculado, face à incapacidade permanente fixada e mencionada no ponto 1, pelo que, cabe também retificar o patente erro de calculo, cabendo liquidar com base na incapacidade permanente, anteriormente fixada (IPATH de 20%), a pensão anual atualizada no valor de 3.731,61€, correspondendo 3.071,88€ a pensão base, acrescida de atualização no valor de 659,73€ atualização, devida desde 01.01.2024.”
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Inconformada, a sinistrada interpôs recurso, concluindo nas suas alegações que
1. A Requerente submeteu a 10/04/2024 pedido de revisão de incapacidade nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 145.º e ss. do CPT.
2. Foi realizado exame singular pelo INML que concluiu pelo agravamento das suas lesões e manutenção de IPATH já atribuída.
3. Face ao resultado do exame singular referido, a Requerida requereu a submissão da sinistrada a exame por Junta Médica, que foi realizado no dia 10/09/2024, pelas 10h30.
4. Em data prévia (concretamente, 18/07/2024), porém, a Requerente deu entrada de Requerimento em que solicitava que a Junta Médica já agendada se pronunciasse sobre a necessidade de adaptação do domicílio e, mais concretamente, do «WC» da sinistrada e ora requerente e, também, sobre a necessidade de ser substituído o seu veículo por outro com mudanças automáticas, tendo juntado ainda, nessa sequência, orçamentos para o efeito.
5. Foi realizada Junta Médica na data já referida que se pronunciou sobre esta questão em específico nos seguintes termos: “Relativamente à questão do veículo automático, considera-se que sim, que a sinistrada deve beneficiar do seu uso, pelo facto de ter sequelas incapacitantes no membro inferior esquerdo que fica, assim, poupado. Pela questão das melhorias no WC, também se concorda, para melhoria da segurança da sinistrada, pelo facto das sequelas dos membros inferiores levar à possibilidade de queda. Deve, assim, beneficiar de barras de segurança no duche, na sanita, e banco de duche. Os restantes elementos elencados fls. 25 não se admitem necessários”.
6. Do resultado do exame por Junta Médica foram notificadas as partes.
7. Por «decisão final» proferida a 15/10/2024 foi julgado procedente o incidente mas não foi decidida a questão relativa às ajudas técnicas referidas. Nada foi, aliás, escrito na decisão sobre essa matéria.
8. Salvo, implicitamente, o que se possa eventualmente retirar do trecho que ora se cita:
“A única questão a decidir cinge-se neste incidente em determinar se, após, a sinistrada com a última observação clínica no âmbito destes autos, se a sua situação clínica, decorrente das lesões e sequelas sofridas em consequência do acidente de trabalho se agravaram” (sic).
9. Não concorda a Requerente com o entendimento que transparece do trecho que se acaba de citar.
10. Considera, na verdade, que o trecho em causa concretiza a omissão de pronúncia que vem invocar.
11. A Requerente concorda com o conteúdo da reclamação apresentada pela Entidade Responsável relativamente a erros materiais e de cálculo da sentença.
12. Além disso, a única questão que se pretende ver reapreciada através do presente recurso é a que diz respeito à omissão de pronúncia já referida.
13. Está em causa a «vontade real do juiz» como decorre daquele mesmo trecho citado.
14. O douto Tribunal a quo tinha o dever de tomar posição sobre a questão das ajudas técnicas.
15. Compulsada a jurisprudência dos tribunais superiores portugueses, verifica-se que o entendimento da decisão a quo não corresponde à correta interpretação e aplicação das disposições legais aplicáveis.
16. Desde logo, estão em causa direitos indisponíveis (art. 78.º da LAT).
17. E a Requerente tem direito àquelas prestações, nos termos conjugados dos artigos 23.º, al. a), 25.º, n.º 1, al. g) e 70.º da LAT.
18. Vários arestos do Tribunal da Relação de Coimbra, e bem assim do de Guimarães, apoiam este entendimento da Requerente, e ainda que esta nada tivesse pedido quanto às referidas ajudas técnicas.
19. Neste caso, porém, e ainda que por requerimento superveniente, a sinistrada efetivamente pediu que fosse a Entidade Responsável condenada nas prestações em espécie que se consubstanciam nas ajudas técnicas já referidas.
20. E também a Junta Médica apreciou esta questão tendo-se pronunciado
favoravelmente a esse pedido da sinistrada.
21. O artigo 126.º, n.º 1 do CPT manda que se decidam, no âmbito do processo «principal», todas as questões.
22. Teve a entidade responsável a possibilidade de exercer o contraditório sobre o requerido pela sinistrada e, bem assim, sobre o resultado da Junta Médica, ainda que tenha optado por não o fazer.
23. Foi produzida prova (auto de exame por Junta Médica) quanto às ajudas técnicas requeridas pela sinistrada.
24. Pelo que se requer a modificação da decisão de facto nos seguintes termos:
25. Alteração da decisão de facto para que passe a constar o seguinte:“Os factos apurados resultam: … - Da avaliação, por unanimidade, dos Srs. Peritos Médicos em exame por junta médica, relativamente ao facto de dever a sinistrada beneficiar de ajudas técnicas, quer relativamente ao veículo automático, de molde a ser poupado o seu membro inferior esquerdo que padece de sequelas incapacitantes, quer no que diz respeito às «melhorias no WC», e concretamente instalação de barras de segurança no duche, na sanita e banco de duche, de molde a melhorar a segurança da sinistrada pelo facto de as sequelas dos membros inferiores levar à possibilidade de queda”.
26. Sucede que a alteração da matéria de facto que se acaba de requerer repercute-se, necessariamente, nas prestações devidas à sinistrada e ora recorrente.
27. Assim, deverá a decisão proferida pelo Tribunal a quo ser declarada nula, nos termos e para os efeitos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aplicável ex vi do art. 1.º, n.º 2, al. a) do CPT e, em consequência, ser esta revogada e substituída por outra que, aditando aquele concreto ponto à decisão de facto, conclua – sem prejuízo do restante conteúdo da decisão recorrida, que se considera justa – pelo aditamento à decisão de direito de um ponto no sentido de ser condenada a entidade responsável na instalação das referidas «melhorias no WC» e na atribuição, à sinistrada, requerida e ora recorrente, de um veículo automático.
Nestes termos e nos mais de direito, deverá o presente recurso ser julgado integralmente procedente e, em consequência:
a) Ser a decisão declarada nula;
b) A decisão de facto modificada nos termos expostos nas conclusões;
c) E a decisão nula substituída por outra que condene a entidade responsável em todas as prestações devidas à sinistrada em virtude do agravamento das suas sequelas, e designadamente, à prestação das ajudas técnicas que constam do auto de exame por Junta Médica.
Assim se fazendo a acostumada Justiça!”
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A Responsável não contra-alegou.
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Cumpre apreciar e decidir
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II – Objecto
Considerando as conclusões de recurso apresentadas, que delimitam o seu objecto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, cumpre apreciar e decidir:
- se a sentença é nula por omissão de pronúncia;
- da impugnação da matéria de facto;
- se a sinistrada tem direito a haver da Seguradora um veículo com mudanças automáticas, e a alteração do seu WC, nos termos pretendidos.
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III – Fundamentação de Facto
A primeira instância considerou provados os seguintes factos (cfr. sentença e despachos proferidos em 26-11-2024 e 12-02-2025):
1. A Requerente à data do acidente tinha 29 anos, tendo atualmente 47 anos de idade.
2. A 01.04.2006 sofreu acidente que as partes aceitam ser de trabalho.
3. À data do acidente auferia uma retribuição anual de € 7420,00 (€ 530,00X14).
4. Teve alta em 05-02-2007.2
5. Toda a responsabilidade da entidade empregadora foi transferida para a Lusitânia Seguros.
6. Por decisão, no último incidente de revisão, proferida a 27.06.2018 foi a Requerida condenada a pagar à Requerente uma pensão decorrente de uma «IPP de 20% e ainda incapacidade permanente absoluta para a atividade profissional habitual», a partir de 23-02-2016.3
7. A requerente sofreu agravamento da incapacidade resultante das sequelas, pela qual lhe foi atribuída a pensão anual e vitalícia de € 934,92.
8. Por sentença, na sequência de um pedido de revisão da incapacidade, foi fixada uma IPP de 18%, sendo-lhe atribuído o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 934,92, desde a data do pedido de revisão, 13.12.2010.
9. 23.02.2016 foi a data a partir da qual a Sinistrada foi considerada afetada de uma IPATH de 20%.
10. Em consequência das lesões sofridas e decorrentes do acidente a que se referem os autos, a sinistrada marcha com o auxílio de canadiana, e sofre de hiporreflexia simétrica e bilateral nos membros inferiores, bem como de dorsiflexão, inversão e eversão do pé, diminuídos à esquerda e grau 4 à direita. Aditado, conforme decisão infra.
11. Face às sequelas decorrentes do acidente a que se referem os autos, a sinistrada necessita de um veículo com caixa de velocidades automática. – Aditado conforme decisão infra.
12. Face às sequelas decorrentes do acidente a que se referem os autos, a sinistrada necessita de adaptação do WC com substituição da banheira por base de duche, banco de duche e colocação de barras de apoio no duche e na sanita. Aditado conforme decisão infra.
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IV – Apreciação do Recurso
1.Da Nulidade da Sentença
A Apelante defende que a sentença é nula por omissão de pronúncia, porquanto não conheceu do pedido formulado em 18-07-2024, no sentido de beneficiar de ajudas técnicas, a saber, adaptação do WC e veículo com mudanças automáticas.
As causas de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciadas no art. 615º nº 1 do CPC, onde se estabelece que é nula a sentença, para o que ao presente caso interessa, “ d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
A Mma Juíza a quo refere que “[A] única questão a decidir cinge-se neste incidente em determinar se, após, a sinistrada com a última observação clínica no âmbito destes autos, se a sua situação clínica, decorrente das lesões e sequelas sofridas em consequência do acidente de trabalho se agravaram.
Assim não é.
Tem aplicação ao caso a Lei 100/97 de 13 de Setembro4, doravante LAT, face ao disposto no artigo 187º nº1 da Lei 8/2009, de 04 de Setembro5, nos termos do qual “O disposto no capítulo ii aplica-se a acidentes de trabalho ocorridos após a entrada em vigor da presente lei.”, sendo capítulo ii atinente aos acidentes de trabalho.
Dispõe o artigo 25º da LAT, sob a epígrafe “revisão das prestações”, no seu nº 1 que “Quando se verifique modificação da capacidade de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou de intervenção clínica ou aplicação de prótese ou ortótese, ou ainda de formação ou reconversão profissional, as prestações poderão ser revistas e aumentadas, reduzidas ou extintas, de harmonia com a alteração verificada.”. Ou seja, o incidente de revisão da prestação está previsto para a alteração da prestação indemnizatória pecuniária, tenha ela a forma de pensão ou outra, em consequência do agravamento da situação clínica do sinistrado.
Como se refere no acórdão da Relação de Guimarães de 23-01-202466, que decidiu no âmbito da actual LAT, mas cuja fundamentação tem inteira aplicação ao presente caso, face à similitude das disposições legais 7, “Note-se que a LAT usa o termo “prestação”, o qual não se limita, na economia de tal diploma legal, a pensão, ou sequer a pensão (por incapacidade permanente) e indemnização (por incapacidade temporária) – cf. designadamente art.s 23.º e 25.º da LAT.
O elemento literal da lei não vai, pois, no sentido de que no âmbito do incidente de revisão de incapacidade está o conhecimento do Tribunal limitado à questão da eventual alteração do valor da pensão e/ou, até, da indemnização.
Em consonância, e havendo que assegurar um iter processual para que o direito assim previsto possa ser judicialmente reconhecido (cf. art. 2.º/2 do CPC), o artigo 145.º do CPT prescreve:
“Revisão da incapacidade em juízo
1 - Quando for requerida a revisão da incapacidade, o juiz manda submeter o sinistrado a perícia médica.
2 - O pedido de revisão é deduzido em simples requerimento e deve ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos.
3 - O local de realização da perícia médica é definido nos termos da lei que estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses.
4 - Finda a perícia, o seu resultado é notificado ao sinistrado e à entidade responsável pela reparação dos danos resultantes do acidente.
5 - Se alguma das partes não se conformar com o resultado da perícia, pode requerer, no prazo de 10 dias, perícia por junta médica nos termos previstos no n.º 2; se nenhuma das partes o requerer, pode a perícia ser ordenada pelo juiz, se a considerar indispensável para a boa decisão do incidente.
6 - Se não for realizada perícia por junta médica, ou feita esta, e efectuadas quaisquer diligências que se mostrem necessárias, o juiz decide por despacho, mantendo, aumentando ou reduzindo a pensão ou declarando extinta a obrigação de a pagar.
(…)”.
É certo que neste número 6 do artigo acabado de citar apenas se refere a prestação “pensão”, mas, desde logo, a lei adjectiva não deve, não pode, postergar o exercício de direitos reconhecidos pela lei substantiva.
E nenhuma razão ponderosa se alcança para que no âmbito de um incidente da natureza do presente se não conheça das questões mencionadas supra, e cuja omissão de conhecimento no despacho recorrido o sinistrado/recorrente pretende integrar a arguida nulidade.
Assim também Cecília Meireles escreve: “O incidente na vertente de revisão da incapacidade corresponde à adjectivação do que a lei geral trata sob a epígrafe revisão das prestações.
Este conceito é muito mais lato do que o de revisão de pensões a que se refere a epígrafe – mas não o texto, que se manteve quase inalterado – da norma que, no anterior regime legal, se ocupava do assunto, querendo significar que todas as prestações decorrentes da incapacidade resultante da alteração clínica podem ser revistas, sejam elas prestações por incapacidade temporária que sobrevier, sejam as decorrentes de incapacidade permanente.”[3]8
Também no Ac. da RC de 15-09-2016, também trazido à colação pelo recorrente[4]9 e cujo entendimento – conquanto explanado à luz da Lei 100/97 - mantém pertinência, se discorre:
“Contudo, esse artigo [art. 145.º do CPT] não proíbe, nem faria qualquer sentido que o fizesse, que nos autos se discuta outro tipo de questões, como sejam o direito à prestação em espécie a que se refere o artº 10º, al. a), da Lei 100/97, de 13/9, (que é a LAT aqui aplicável). O processo de acidente de trabalho, que se destina a fazer valer em juízo a reparação infortunística, com a atribuição, se for caso disso, do direito do sinistrado às prestações previstas na lei, está estruturado por forma, e salvo as excepções no mesmo previstas quanto ao momento e à forma como as mesmas prestações devem ser analisadas, a que em qualquer altura dos autos se aprecie e discuta, com a necessária observação do princípio do contraditório, qualquer pretensão da vítima de acidente de trabalho a que lhe seja facultada qualquer dessas prestações, designadamente em espécie. Sem preocupação de exposição exaustiva, vejam-se o artº 125º, nº 1, em que o juiz pode determinar, em qualquer altura do processo, que a entidade apontada como responsável continue a suportar os encargos com o tratamento do sinistrado e o artº126º, onde se estabelece que “no processo principal se decidem todas as questões, salvo a fixação de incapacidade, quando esta deve correr por apenso” (sendo ambas as disposições do CPT).
As lesões consequentes a um acidente de trabalho poderão incapacitar o trabalhador para o trabalho, conferindo o citado artº 10º da Lei 100/97 o direito à reparação em espécie (compreendendo as prestações referidas na al. a)) e em dinheiro (compreendendo, conforme previsto na al. b), o direito a indemnização, pensão ou capital de remição e demais subsídios aí mencionados)
Seria sempre um excesso de formalismo a imposição ao sinistrado, para fazer valer o seu direito a uma prestação em espécie - vg cadeira de rodas, próteses- obrigá-lo a elaborar e a apresentar uma petição inicial, só por esse fundamento, com o formalismo e demora daí decorrentes, quando o processo de trabalho lhe permite, por não o proibir, solicitar tal pretensão em qualquer fase dos autos, reconhecido que esteja o seu direito à reparação infortunística, e observados que sejam o princípio do contraditório e a produção da correspondente prova, por natureza de ordem pericial.”
No mesmo sentido se afigura o Ac. da RP de 17.5.2021[5]10 quando aí se sintetiza “II - Decorre do artigo 145º, nº8 do CPT que sendo esse o circunstancialismo, é possível a pensão por IPP, ser fixada sem que antes o tenha sido, não se tratando nesse caso, na reapreciação da sua situação clínica, de manter aumentar ou reduzir a pensão, mas é ainda possível, no âmbito do mesmo incidente, não só fixar a pensão como atribuir outras prestações, como indemnização por ITA ou despesas médicas ocorridas, se as situações que o justifiquem surjam após a alta da seguradora.” (sendo que, não obstante o reporte ao n.º 8 do art. 145.º do CPT, tal não acarreta, a nosso ver, qualquer particularidade para o âmbito do incidente de revisão da incapacidade).
Este é, com efeito, o entendimento que melhor se adequa quer à letra quer, sobretudo, ao espírito da lei - “Realça-se que nas ações emergentes de acidente de trabalho” – como se escreve em Ac. da RE de 14.6.2018, Moisés Silva[6]11 -, “estão em causa direitos absolutamente indisponíveis e, por isso, os poderes deveres do julgador são mais amplos, como resulta, nomeadamente, dos art.ºs 74.º e 139.º n.º 7 do CPT e do art.º 12.º da LAT.” e, bem assim, é o entendimento que melhor acolhe o princípio da economia processual (cf. art. 130.º do CPC).
Ou seja, o incidente de revisão da prestação é também o mecanismo processual adequado ao pedido de qualquer prestação, ainda que em espécie, desde que com relação com o acidente. E assim sendo, deveria a 1ª instância ter-se pronunciado sobre a adaptação do WC e sobre o veículo com mudanças automáticas, o que não fez, pelo que nada mais resta do que declarar a nulidade da sentença.
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2. Da Impugnação da Matéria de Facto
Insurge-se a Apelante contra o que considera ser uma lacuna da matéria de facto, pedindo que se considere provado que deve “a sinistrada beneficiar de ajudas técnicas, quer relativamente ao veículo automático, de molde a ser poupado o seu membro inferior esquerdo que padece de sequelas incapacitantes, quer no que diz respeito às «melhorias no WC», e concretamente instalação de barras de segurança no duche, na sanita e banco de duche, de molde a melhorar a segurança da sinistrada pelo facto de as sequelas dos membros inferiores levar à possibilidade de queda”.
Fundamenta esta pretensão no relatório da junta médica levada a efeito.
A Ré não impugnou o alegado e peticionado pela sinistrada no seu requerimento de 81-07-2024, de que não consegue conduzir o seu veículo, de caixa de velocidades manual, e o que resulta da prova produzida, a saber da prova pericial produzida – junta médica – é que em consequência das lesões sofridas e decorrentes do acidente a que se refere o autos, a sinistrada marcha com o apoio de canadiana e sofre de hiporreflexia simétrica e bilateral nos membros inferiores, bem como de dorsiflexão, inversão e eversão do pé, diminuídos à esquerda e grau 4 à direita. Resulta ainda dessa prova que a sinistrada necessita de um veículo de mudanças automáticas, bem como da adaptação do seu WC com adaptação do duche, com substituição da banheira por base de duche, banco de duche e colocação de barras de apoio no duche e na sanita. Estes factos importam à decisão da questão objecto do recurso, pelo que passarão a constar dos factos provados.
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3. Do Direito da Sinistrada a Veículo com Mudanças Automáticas e a Adaptação do WC
Dispõe o artigo 10º a) da Lei 100/97 de 13/09 que “o direito à reparação compreende, nos termos que vierem a ser regulamentados, as seguintes prestações: em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa.12. E o artigo 23º nº 1 h) do Decreto-Lei 143/99 de 30/04 que “as prestações em espécie previstas na alínea a) do artigo 10º da lei têm por modalidades: reabilitação funcional”.
Como refere Carlos Alegre13, a propósito do direito às prestações em espécie, “[c]om o que deixamos dito, pretendemos enfatizar a natureza excepcional do conteúdo, da forma e dos destinatários do direito à reparação, nos acidentes de trabalho, sendo três, como referimos os seus objectivos: restabelecimento do estado de saúde da vítima, reposição da sua capacidade de trabalho ou de ganho e a sua recuperação para a vida activa geral. Há quem pense que estes três objectivos se podem resumir a um único: a reconstituição da integridade produtiva, conceito que Vítor Ribeiro defendeu no seu trabalho “Acidentes de Trabalho - Reflexões e Notas Práticas”. (…) Quando chamámos a atenção para os três objectivos da reparação de acidentes de trabalho - e fizemo-lo repetidamente - quisemos dizer que o legislador se preocupa, realmente, com a integridade produtiva do trabalhador-sinistrado, quando pretende que se restabeleça a capacidade de trabalho ou de ganho, mas que não descurou outros aspectos do trabalhador-ser humano, preocupando-se com o restabelecimento do estado de saúde e com a sua recuperação para a vida activa (que não é somente o trabalho).”
As prestações em espécie que o direito reconhece comportam quaisquer prestações adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida ativa.
No presente caso do que se trata é de prover à melhor recuperação possível da sinistrada para a vida activa.
A sinistrada, desde logo, pretende a substituição do seu veículo, de caixa de mudanças manual, por um veículo de caixa de mudanças automáticas, o que não foi contestado pela requerida.
Como se refere no acórdão da Relação de Guimarães de 15 Dezembro de 201614, “3- A recuperação do sinistrado para a vida ativa a que se reporta essa primeira norma “não se restringe à sua vida ativa laboral, abrangendo também os aspetos ligados à sua condição e dignidade humanas, o que inclui todos os aspetos da vida pessoal e social que, aferida por padrões de normalidade, as pessoas levam a cabo na sua vivência, ainda que com caráter lúdico, também estes necessários a uma sã existência, física e psíquica.
4- Assim, “ao sinistrado de acidente de trabalho portador de incapacidade permanente assiste-lhe também o direito de receber da entidade responsável qualquer prestação em espécie, desde que a mesma se revele necessária e adequada ao restabelecimento da sua capacidade para o trabalho ou de ganho e à sua recuperação para a vida activa, permitindo dessa forma recuperar, de algum modo, quer a sua anterior capacidade de trabalho e de ganho, como a vida activa”, no caso, à readaptação de veículo automóvel.” E no acórdão da Relação do Porto de 11-10.201115: «Quanto à condenação a pagar o subsídio de readaptação automóvel é certo que tal prestação não está assim prevista na LAT. (…)
O recorrido não tem direito a que a recorrente lhe pague a despesa que realizar com a readaptação do seu automóvel, se possível, ou com o custo de aquisição dum veículo já adaptado?
(…)
a seguradora, chamada a responder por força do contrato, responde pelas prestações que derivam da lei. E tais direitos reparatórios visam, na herança civilística, a maior aproximação possível à reparação natural. O que se pretende na reparação dos danos derivados dum acidente de trabalho é, não apenas compensar a perda da capacidade de ganho, mas tanto quanto possível recuperar o sinistrado para a vida activa – esta é a razão pela qual, não se contesta, este sinistrado tem direito às próteses e à sua renovação. O conceito de vida activa não é colado ao conceito de vida activa laboral, mas tem esse alcance mais geral, mais próximo da reparação natural, que é a vida que o sinistrado tinha – ou podia ter – antes de ter sofrido as lesões que lhe resultaram do acidente. Se é claro que um automóvel não é uma prótese, no caso do sinistrado ter um automóvel antes do acidente e poder guiá-lo, se as lesões que sofreu com o acidente já não lhe permitem fazê-lo, está o mesmo privado da sua vida activa – não se trata do seu conforto, trata-se da sua capacidade de agir como qualquer outro cidadão que tem e pode guiar o seu automóvel. Está privado de levar o filho ao hospital, ou de ir passear, ou de iniciar uma vida laboral nova como taxista (por improvável que seja) está privado quer antes utilizasse muito ou pouco o carro, porque estaria na sua liberdade natural utilizá-lo no futuro, muito ou pouco. Não assim pertinência perguntar se a necessidade do veículo é pontual, para os casos em que a mulher do sinistrado não possa conduzir, porque o sinistrado não era e não tem passar a ser dependente da mulher, neste particular, e porque esta não tinha nem tem de ter carta.
Queremos dizer que, embora o artº 10º da LAT remeta os termos das prestações em espécie que elenca na sua al. a) para a futura regulamentação, e esta se encontre no artº 23º do DL 143/99, este elenco tem de ser interpretado à luz do objectivo que aquele artº 10º dispõe, ou seja, “quaisquer outras (prestações), seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas à recuperação do sinistrado para a vida activa”.16
Posto isto:
- a sinistrada necessita de um veículo com mudanças automáticas, face às sequelas incapacitantes de que padece, pelo que a Seguradora deve assegurar a atribuição à sinistrada de um veículo com essas características;
- a sinistrada necessita de ver adaptado o seu wc, com a substituição da banheira por base de duche, banco de duche, e colocação de barras de apoio no duche e na sanita, pelo que deverá a Seguradora assegurar os meios para levar a efeito tal modificação.
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V – Decisão
Em face do exposto, decide-se julgar procedente o recurso e, em consequência
1.Declara-se nula a sentença, por omissão de pronúncia.
2.Condena-se a requerida, Lusitânia Companhia de Seguros, S.A, a atribuir à requerente, AA, um veículo com mudanças automáticas, e a disponibilizar-lhe os meios para adaptação do seu wc, nos termos supra referidos.
Custas a cargo da Apelada.
Notifique.
Registe.

Lisboa, 22-07-2025,
Paula Santos
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1. Já com a rectificação ordenada pelo despacho de 12-02-2025.
2. De acordo com a rectificação operada pelo despacho de 26-11-2024.
3. De acordo com a rectificação operada pelo despacho de 26-11-2024.
4. Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais.
5. Regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais.
6. Processo 102/11.8TTGMR.1.G1.
7. De acordo com o artigo 70º nº1 da Lei 8/2009, de 04 de Setembro, sob a epígrafe “Revisão” – “Quando se verifique uma modificação na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou de intervenção clínica ou aplicação de ajudas técnicas e outros dispositivos técnicos de compensação das limitações funcionais ou ainda de reabilitação e reintegração profissional e readaptação ao trabalho, a prestação pode ser alterada ou extinta, de harmonia com a modificação verificada.
8. Processo de Acidentes de Trabalho – Os Incidentes – Ideias para Debate, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 69, CEJ/Coimbra Editora, pág. 93 (este entendimento foi expresso com referência à Lei 100/97, então em vigor, mas afigura-se que mantém inteira pertinência face à similitude, no ponto, da Lei 98/2009, actual). – Nota de rodapé do acórdão citado.
9. Proc. 254/10.4TTFIG.1.C1, Ramalho Pinto, in www.dgsi.pt – Nota de rodapé do acórdão citado.
10. Proc. Proc. N.º 4830/20.9T8VNG-A.P1, Teresa Sá Lopes, www.dgsi.pt – Nota de rodapé do acórdão citado.
11. Moisés Silva, Proc. 1982/15, JusNet – Nota de rodapé do acórdão citado.
12. Sublinhado nosso.
13. In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, páginas 74 e 75.
14. Processo 1095/09.7TTBRG.G1 – Sumário.
15. Processo 559/07.1TTPRT.P1.
16. No mesmo sentido, vide acórdão da Relação de Guimarães de 18-01-2018 – Processo 6473/14.7T8VNF.G1 – e acórdão da mesma Relação de 15 de Dezembro de 2016 – Processo 1095/09.7TTBRG.G.