I – A alteração da matéria de facto em sede de recurso pelo Tribunal da Relação apenas é legítima quando baseada em prova gravada e com a devida fundamentação, respeitando os princípios da imediação e da livre apreciação da prova;
II – O crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo 93.º do Código de Justiça Militar, exige a verificação de uma ofensa ao corpo ou à saúde praticada no âmbito da hierarquia militar, com nexo causal entre a conduta do superior hierárquico e a lesão do subordinado;
III – É admissível a alteração da matéria de facto em sede de recurso, quando os elementos constantes das transcrições e gravações permitem concluir que a convicção do tribunal de primeira instância violou as regras da experiência comum, devendo o tribunal de recurso motivar adequadamente essa alteração nos termos do artigo 431.º, al. b), do Código de Processo Penal;
IV – A livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP) permite ao tribunal recorrido valorar criticamente os meios de prova disponíveis, inclusive mesmo contra declarações testemunhais, desde que justifique de forma clara e lógica a sua convicção, com base em prova constante dos autos, designadamente transcrições de depoimentos e perícias;
V – A natureza e exigência do treino militar, mormente em cursos de tropas especiais como os Comandos, não excluem a responsabilidade penal por actos que ultrapassem os limites do exercício legítimo da autoridade militar, designadamente quando causam ofensas físicas graves ou resultam em morte;
VI – O consentimento presumido dos instruendos para suportar determinadas condições físicas não tem o condão de afastar o tipo de ilícito quando verificada a prática de condutas objetivamente lesivas e subjetivamente dolosas;
VII - As circunstâncias que sustentam a valoração e determinação da medida da pena, são, apenas e só, as que resultam dos factos provados, sem prejuízo de ponderação de outras que sejam factos notórios e nessa medida conhecidas de todos.
Acordam os Juízes, em audiência, na 3ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
A) Decisão na 1ª Instância
Por acórdão de 10 de Janeiro de 2022, proferido no processo nº 89/16.0NJLSB do Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz ... e no que a este recurso interessa, foi decidido, em relação aos arguidos a seguir identificados, o seguinte:
1. AA, absolvido de dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos e punidos pelo artigo 93º/1 e 2- a) e d) e 3- b) do Código de Justiça Militar (CJM);
b. Vinte e três crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, ps. e ps. pelo artigo 93º/ 1 do CJM;
c. Um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93º/ 1 e 2 d) do CJM;
2. BB, absolvido de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93º/ 1 e 2, als. a) e d) e 3- b) do CJM; e de oito crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, pp. e pp. pelo artigo 93º, nº 1, do CJM;
3. CC, condenado de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93º/1 do CJM, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período;
4. DD, condenado pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93º, nº 1 do CJM, - ofendido EE -, na pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período;
5. FF, absolvido de dez crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93º/ 1 do CJM;
6. GG, absolvido de dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, ps. e ps. pelo artigo 93º/ 1 e 2 -a) e d) e 3- b) do CJM;
b. Vinte e seis crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, ps. e ps. pelo artigo 93º/ 1 do CJM;
c. Um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo93º/ 1 e 2, - d) do CJM.
B) Recursos da decisão de 1ª instância
Foram interpostos recursos da decisão pelos assistentes HH, II, JJ, KK, pelo Ministério Público (MP) e pelos arguidosDD, LL e CC.
Os recursos interpostos pelos assistentes e Ministério Público peticionavam a condenação dos arguidos AA, MM, GG, BB, CC, NN, DD eFF, relativamente aos factos praticados nas pessoas dos ofendidos OO e PP.
C) Decisão do Tribunal da Relação de Lisboa
Por acórdão de 06 de Março de 2024 do Tribunal da Relação de Lisboa, foram os referidos recursos julgados parcialmente procedentes, com um voto de vencido e os arguidos condenados nos seguintes termos:
AA, em duas penas especialmente atenuadas de catorze meses de prisão, quanto a cada um dos dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo noventa e três, numero três, alínea a), do Código de Justiça Militar, cometidos nas pessoas de OO e PP e, em cúmulo jurídico, na pena dois anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos;
BB, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo noventa e três, número um, do Código de Justiça Militar;
CC, na pena de cinco anos e três meses de prisão, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo noventa e três, número dois, alínea d), do Código de Justiça Militar;
DD, pela prática de dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo noventa e três, número um, do Código de Justiça Militar, nas penas de dois anos e três meses de prisão, quanto ao crime cometido na pessoa de EE e de três anos de prisão no que concerne aos factos de que foi vitima PP, e na pena única de quatro anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução por cinco anos;
FF, na pena de dois anos e sete meses de prisão, suspensa na sua execução por quatro anos, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo noventa e três, número um, do Código de Justiça Militar;
GG, em duas penas de seis anos de prisão, relativas a cada um dos dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo noventa e três, número três, alínea a), do Código de Justiça Militar, cometidos nas pessoas de OO e PP e, em cúmulo jurídico, na pena sete anos e seis meses de prisão.
D) Recursos da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa
Do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, vieram interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça todos os referidos arguidos, extraindo das respectivas motivações as seguintes conclusões:
AA
I. O arguido foi absolvido em primeira instância e, agora, condenado em duas penas especialmente atenuadas de catorze meses de prisão, quanto a cada um dos dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo 93.º, n.º 3, alínea a), do Código de Justiça Militar, cometidos nas pessoas de OO e PP e, em cúmulo jurídico, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos.
II. Parte da sua condenação baseia-se num guião da ... cuja diretiva – e o próprio guião – terão sido adulterados, sendo que os autores de tais adulterações não foram aqui julgados.
III. O recorrente cumpriu, até ao limite (e com base nas informações que lhe eram transmitidas pelos instrutores e equipa sanitária, bem como pelo médico), a ordem que havia recebido sob pena de, não cumprindo a mesma, cometer um crime de insubordinação.
IV. O arguido não tem, como o acórdão admite (mas daí não retira as devidas consequências) o dom da ubiquidade, e também não tem, ao contrário do que, agora, o acórdão postula, conhecimentos técnicos suficientes para conhecer as consequências de determinados sintomas.
V. Não foi – nem poderia – determinado pelo recorrente o dia da ... (que foi antecipada por ordens superiores).
VI. O guião da ... e o esforço físico ali imposto não foram definidos – nem poderiam ser – pelo recorrente.
VII. Foi com base – e no momento – em informações sobre o estado de saúde dos instruendos que o recorrente, ineditamente nos ..., determinou a suspensão da ..., o que demonstra a diligência e cumprimento do dever de garante que, no caso concreto e com os meios disponíveis, foi escrupulosamente cumprido.
VIII. Grande parte da condenação, agora, do arguido decorre da alteração do facto provado 307 onde o Tribunal, ultrapassando a prova produzida – nomeadamente as declarações prestadas pelo arguido e o seu interlocutor –, conclui agora no sentido do arguido ter conhecimento de factos e estado de saúde de instruendos sem cuidar de indicar quem lhe deu tais informações, que informações e quando. Não consta dos factos provados a fundamentação e a base da alteração do facto provado 307.
IX. A alteração do facto provado resulta de uma violação da Lei, mais concretamente do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, pois que trata-se de um juízo puramente subjetivo sem que existam outros factos ou indícios que consubstanciem a conclusão agora retirada.
X. O nível de conhecimentos médicos e sobre sintomas que podem causar no golpe de calor não decorrem de frequência do curso de instrutor de educação física, cujo conteúdo nem sequer é descrito, para além de não ser possível concluir que o facto de ter sido antes instrutor demonstrar esse nível de conhecimentos. Tal conclusão, ao abrigo das regras da experiência comum, violam o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
XI. O Tribunal erra ao considerar que rastejar e fazer flexões são exercícios físicos não planeados no guião da prova, bem como erra ao interpretar o guião no sentido de estarem proibidos castigos (o que, no entendimento do acórdão, decorre do facto de estar escrita a autorização de técnicas de motivação essencialmente positivas).
XII. Seja como for, mesmo esses castigos que possam efetivamente ter ocorrido, as flexões, o rastejar, a ida às silvas, a água efetivamente fornecida aos instruendos (em consonância, ou não, com o guião), tudo isso não se demonstra de que forma, por quem ou quando chegaram ao conhecimento do arguido. São especulações ou sem base factual ou sem que constem dos factos provados o iter para tal conclusão.
XIII. O acórdão erra quando dá como provado que o arguido não impediu a prática de determinados exercícios ou castigos pois dá como provado um facto negativo que, não tendo o dom da ubiquidade e perante a interpretação do guião, não estava na disponibilidade do arguido que não tinha razões para prever o não cumprimento, por parte de militares, da ordem que lhes foi dada.
XIV. Trata-se de um entendimento que viola o princípio da confiança ínsito no espírito de uma estrutura militar.
XV. O Tribunal entra em contradição quando, por um lado, afirma que o arguido tinha conhecimento do estado em que os instruendos se encontravam mas a páginas 901 afirma que não se prova tal conhecimento, ainda que seja pouco verosímil que não o tivesse.
XVI. A páginas 949 e 950 o acórdão dá como provado e não provado algo contraditório pois afirma, por um lado, que o arguido sujeitou OO e PP a exercícios com intenção de ofender o corpo e saúde dos mesmos mas dá como não provado que entre as 2h00 do dia 4 de setembro até às 16h20 os tivesse obrigado à prática de tais exercícios.
XVII. Mesmo que se trate apenas de semântica, o Tribunal não tem em conta que os instruendos podiam, a qualquer altura, desistir, sendo que, aqui sim, decorre das regras da experiência comum que são os próprios seres humanos que conhecem os seus limites corporais e de saúde.
XVIII. Há igualmente, quanto a este assunto, contradição com o que se refere na página 959 pois aí atesta-se que não dá como provado que ao cumprir o plano de exercício, os arguidos tenham tido intenção de ofender os instruendos.
XIX. Há, pois, contradição no acórdão sobre a intenção de ofensa que, nuns pontos, é dada como provada e na fundamentação e facto não provado, demonstra-se o contrário.
XX. O arguido desobedeceu a uma ordem, evitando a prática de um ato ilícito, apenas quando teve conhecimento de que continuar a cumprir essa ordem estaria a, de forma injustificada e desproporcionada ofender a integridade física dos instruendos.
XXI. O Tribunal fundamenta, a páginas 1213, que o arguido decidiu como decidiu – sobre suspensão – quando as consequências para o OO e o PP já eram de difícil reversão, sem que nos factos provados conste a comprovação de tal afirmação.
XXII. Atente-se, para além disso, que o PP veio a falecer 7 dias depois, pelo que é insustentável a afirmação que consta na fundamentação (e, repete-se, não consta dos factos provados).
XXIII. É manifesta a insuficiência da prova para dar como provado conhecimento do arguido do estado em que, a qualquer altura e em qualquer grupo, os instruendos se encontravam bem como do teor da conversa telefónica com o Comandante QQ que foi agora substancialmente alterada.
XXIV. Do facto do arguido se encontrar em ..., o Tribunal retira que esteve em todas as instruções ou que lhe foi reportado, ao pormenor, tudo o que foi ministrado, o que viola, também, o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
XXV. O arguido, quando e logo que tomou conhecimento e consciência do que se passava e estado dos instruendos, suspendeu a prova e, por isso, deverá ser reconhecido que não praticou qualquer ilícito penal. Razão por que deverá ser absolvido.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e o arguido absolvido do crime por que foi, agora, condenado, após absolvição em primeira instância.
BB
I. O crime e o facto que o consubstancia não foi alvo de recurso interposto por qualquer dos recorrentes, não constituindo por isso objeto de recurso.
II. Os factos provados, agora, nos pontos 96 e 98-A e B não são penalmente relevantes. Não constituem qualquer crime tipificado na Lei.
III. O Tribunal tem dúvidas sobre se os factos em causa constituem exercícios previstos no guião (quando tudo indica que o são – nomeadamente constituindo a prova do Carrossel ou ...) ou se constituem um castigo.
IV. Na dúvida, o Tribunal conclui que se tratou de uma extravagância.
V. Existe contradição entre a fundamentação e os factos provados.
VI. O Tribunal entende que os instruendos esperavam um intervalo, de acordo com o guião, mas não está dado como provado (nem poderia estar) que os instruendos tivessem, sequer, acesso ou conhecimento do guião. Logo, não poderiam estar à espera do que não conheciam.
VII. Quanto à ingestão de água, não estava previsto no guião essa ingestão àquela hora, ao contrário do pugnado pelo Tribunal.
VIII.Desta forma, deverá o arguido ser absolvido pois não cometeu qualquer infração.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente com a consequente absolvição do arguido.
CC
I. O arguido viu a sua condenação alterada, com aumento da pena aplicada (agora em pena efetiva, de resto), com base numa alteração de um facto: onde antes se dava como provado que o arguido havia colocado terra junto à boca do instruendo OO (que o Ministério Público, de resto, considerava ser penalmente irrelevante se se mantivesse tal facto como provado) dá-se, agora, como provado que foi colocado terra dentro da boca.
II. A alteração de tal facto decorre contra prova testemunhal produzida (muita dela ignorada e invocada nas respostas aos recursos), contra a prova pericial e contra as declarações do médico perito.
III. Da leitura do acórdão resulta uma manifesta censura do Tribunal da Relação de Lisboa à ordem que constitui o guião da .... Ou seja, o Tribunal condena o Exército e a ordem de ofensa à integridade física que o guião postula.
IV. Resulta, igualmente, do acórdão uma desconsideração do que são os ..., dos teatros de guerra em que atuam (em qualquer terreno, sob qualquer temperatura) e do dever de obediência.
V. Em obediência ao guião da ..., em momento algum, o arguido – ou qualquer outro, de resto – equacionou como possível que o cumprimento do mesmo pudesse constituía a prática de um crime.
VI. O acórdão entende, sem respeito com a letra e espírito do guião, que castigos não são permitidos, errando na interpretação da expressão essencialmente técnicas de motivação positiva, transformando tal expressão numa proibição (ou, pelo menos, não admissão) de possibilidade de aplicação de técnicas de motivação negativas.
VII. O acórdão afirma, quanto a técnicas de motivação negativa, seja lá isso o que for, afirmando que não estão elencadas e não cuidando de concluir que também as técnicas de motivação positivas também não estão elencadas – mas contraditoriamente, não afirmando desconhecer o que serão estas positivas.
VIII. O arguido não escreveu o guião, não opinou sobre o mesmo, não o alterou, não decidiu o terreno, local, dia, horário, carga física ou altura do ano em que a prova se iria realizar. Cumpriu, pois, o guião.
IX. O Tribunal erra ao considerar que, não estando previstas instruções em silvas, as mesmas estariam nesses locais proibidas, sendo que, a contrario, não estando previsto o local, simplesmente não seria realizadas provas.
X. Isto sem prejuízo de, atendendo à tropa especial em causa e aos locais onde realizam missões, não existe limitação em termos de localização onde executam tais missões, para além de, se os instruendos não consentiam ou julgavam desproporcional e exagerado, simplesmente desistiriam por essa razão – o que não fizeram nem foi dado como provado.
XI. O Tribunal viola a lei ao aplicar o artigo 127.º do Código de Processo Penal e as regras de experiência comum na alteração da matéria de facto provada e não provada, não aplicando tais regras ao contexto da tropa militar especial em causa.
XII. Esse entendimento e aplicação ilegal é expresso e contamina toda a decisão, sendo emblemática a expressão constante de páginas 849 de que para estas conclusões resultantes da experiência comum são irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim, ignorando-se desta forma centenas de sessões de julgamento e várias dezenas de testemunhos e declarações.
XIII. Também a prova pericial foi ultrapassada com recurso a entendimentos comuns e não técnicos, para além de serem ignorados os relatórios periciais e exames (vários) juntos aos autos e que fundamentaram a decisão, para além das declarações do perito, violando-se assim o valor da prova pericial constante do artigo 163.º do Código de Processo Penal.
XIV. O acórdão enferma de várias contradições, seja entre factos provados e não provados, seja entre a fundamentação e esses factos (provados ou não provados), tal como consta de páginas 15 a 23 da motivação, para onde se remete.
XV. Em especial – páginas 23 e seguintes da motivação de recurso – é alterado o facto 133 dos factos provados e 66 dos não provados com omissão e desconsideração de depoimentos prestados por testemunhas identificados nas respostas aos recursos, não ponderação de prova pericial e esclarecimentos de perito médico e com base em nexos de causalidade sem apego à prova produzida.
XVI. A alteração do facto anteriormente provado (colocação de terra junto à boca – que o Ministério Público, e bem, considera que é penalmente relevante) para um novo facto provado (terra dentro da boca) não é suportada pela prova pericial, para além dos depoimentos de testemunhas que foram omitidos na fundamentação, apesar de invocados e identificados pelo arguido.
XVII. Não é admissível aplicar o artigo 127.º do Código de Processo Penal ao presente caso sem ter em conta o contexto militar especial sob pena de transformar uma tropa num grupo de escuteiros.
XVIII. Os instruendos poderiam, a qualquer momento, desistir, mais a mais se tivessem noção, consciência ou conhecimento de que estavam a ser alvo de tratamento para além do aceitável no referido contexto, o que significa indubitavelmente o consentimento dos mesmos – ainda que, sublinhe-se, a qualquer momento, fosse pela intensidade, castigo, temperatura ou local de treino, pudessem simplesmente desistir. Daqui – e da aplicação do artigo 149.º do Código Penal, o Tribunal não retira das devidas consequências legais.
XIX. O Tribunal, em concreto e em especial, quanto à temperatura que se fazia sentir, recorre a um juízo de prognose póstuma, ignorando agora (o que o Tribunal de primeira instância não fez) um comunicado amarelo (não laranja ou vermelho) do IPMA e baseando-se em notícias de duas e até um mês após a data dos factos.
XX. O acórdão deveria ter aplicado no caso concreto o regime previsto no artigo 17.º do Código Penal, o que não fez, baseando-se numa visão não militar quanto à dureza e belicosidade habituais e normais num tropa especial.
XXI. No caso concreto do arguido, o Tribunal não teve em conta que o OO havia acabado de ser visto por um enfermeiro, pelo que, sendo o instruendo devolvido à equipa de instrução, neste caso o arguido, não se pondera qualquer ato praticado imediatamente a seguir dentro desse contexto – seja para aplicação do artigo 17.º do Código Penal, seja para determinação, no limite, da medida da pena.
XXII. A medida da pena aplicada – ainda que o arguido deva ser absolvido pelo que supra foi exposto – é desproporcional e desajustada pois que não foi ponderado o cumprimento de uma ordem que previa elevado esforço físico, limitação ao nível de hidratação, elevadas temperaturas, em qualquer terreno, com agressividade inerente à postura dos instrutores.
XXIII. O arguido lamenta a morte de dois militares mas a injustiça dessa morte não se corrige com outra injustiça como seja a condenação do arguido, sendo que o mesmo deverá, a final, ser absolvido.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e o arguido absolvido do crime por que foi condenado.
DD
I. A condenação do arguido no novo crime – na pessoa do PP – resulta da alteração de factos não provados na primeira instância que, agora, passaram a constar como provados.
II. O acórdão entende que a ordem dada pelo arguido para que os instruendos – pois não foi apenas o PP – rastejassem em silvas visou unicamente humilhá-los e causar sofrimento, para além da ofensa à integridade física.
III. Todos os instruendos ouvidos afirmaram – e resulta do acórdão de primeira instância – que não se sentiram humilhados e, agora, o Tribunal conclui em sentido contrário e contra os depoimentos dessas testemunhas.
IV. O Tribunal entende, igualmente, que a ordem dada pelo arguido constitui um castigo e que os castigos não estavam previstos no guião da ....
V. Sucede que o guião não proíbe os castigos.
VI. Por outro lado, o acórdão incorre em erro ao referir que não estava previsto no guião a prática de exercícios sobre silvas. Ora, o guião a que o acórdão se refere não se aplica à prova de tiro que estava a ser ministrada e, por outro lado, não proíbe nem indica o tipo de terreno em que qualquer prova deve ser realizada.
VII. O acórdão conclui que, apesar de não conseguir especificar quais as feridas constantes do apenso 14 dizem respeito à ordem dada pelo arguido, com toda a probabilidade, algumas serão.
VIII.Ora, o acórdão ignora os factos provados que demonstram que o PP rastejou, noutras ocasiões, sobre silvas, pelo que não é aceitável concluir, ignorando esses factos provados, que feridas resultaram, em concreto, da ordem dada.
IX. Finalmente, a ordem dada – e o castigo em causa, fruto da má execução do tiro e que todos os instruendos entenderam como correção e não com a intenção de humilhar – não é penalmente relevante no contexto da referida prova, pelo que deve o arguido ser absolvido.
X. A ordem dada foi legítima, fazia parte da instrução, não constituindo – por isso – o crime pelo qual o arguido agora condenado.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e o arguido absolvido do novo crime por que foi condenado.
FF
1. O Recorrente não cometeu qualquer crime no dia 4 de Setembro de 2026, tendo sido correcta e justamente absolvido pelo Tribunal de 1ª Instância, sendo alvo de uma decisão profundamente injusta proferida pelo Tribunal recorrido;
2. A decisão sobre a matéria de facto que alegadamente preenche o tipo objectivo e o tipo subjectivo de crime imputado ao arguido FF no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.03.2024, foi proferido no Processo 89/16.0NJLSB.L.1, é ilegal.
3. A intervenção do Tribunal recorrido ignora o princípio non nova, sed nove, procedendo verdadeiramente a novo julgamento, ao arrepio da convicção do tribunal da primeira instância e com ponderação de factos gravíssimos novos «com o propósito de o humilhar e provocar danos no corpo.», dos instruendos.
4. O Tribunal recorrido não faz, como se impunha, uma nova ponderação dos factos anteriores discutidos na 1ª instância, indo muito além disso.
5. Como se lê no acórdão recorrido «O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base agravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade.», o que este mesmo tribunal não observou construindo uma tese própria e peregrina à revelia dos princípios da imediação e da oralidade que proclamou.
6. Acresce que o Tribunal recorrido afirma que os graduados só beberam 1 de 3 de três litros de água durante a prova inteira, mas desdiz isto mesmo, dando como não provado que os graduados só beberam dois litros de água (facto não provado 228).
7. Há um erro notório e desmentido pelos próprios depoimentos dos instruendos/ testemunhas, pois nenhum deles afirma em algum momento que o recorrente o haja mandado lançar-se para as silvas.
8. Este erro é ainda mais notório quando se pondera que o tribunal imputa ao recorrente uma atuação com «o propósito de o humilhar e provocar danos no corpo» dos instruendos, ausente quer na acusação, quer na pronúncia, assim como no acórdão proferido em 1ª Instância.
9. Como já referido supra, o Tribunal recorrido interpreta e aplica o artigo127.º do CPP, conjugado com os artigos 428.º e 431.º do mesmo código, nestes termos absolutos: «Para estas conclusões resultantes da experiência comum são irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim».
10. Esta interpretação dos poderes do tribunal de 2ª Instância de valoração da prova e alteração da matéria de facto é inconstitucional, por violação do princípio da imediação.
11. Com efeito, é inconstitucional a interpretação do artigo 127º do CPP, conjugado com os artigos 428º e 431º do mesmo código, que permita ao tribunal de segunda instância modificar os factos dados como provados enão provados, fazendo uso das regras da experiência para considerar « irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim», prestados na audiência de julgamento na primeira instância, por violação do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da CRP, e do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (adiante CEDH).
12. Mas de gravidade absoluta é a condenação agora do recorrente absolvido em 1ª Instância, fixando novos factos relativos ao seu dolo, à sua consciência da ilicitude e à sua motivação.
13. Ao fazê-lo, o Tribunal da Relação de Lisboa interpreta e aplica inconstitucionalmente o artigo 127º, conjugado com os artigos 423º, 428º e 431º, todos do mesmo código e com os artigos 15º e 16º do CP, eo artigo 93, n.º 1 a 3, do CJM, no sentido de que o Tribunal recorrido pôde condenar um arguido absolvido em primeira instância, fixando factos relativos ao seu dolo, consciência da ilicitude e motivação sem o ouvir em audiência em segunda instância, violando, assim o princípio das garantias de defesa e o princípio do contraditório, previstos no artigo 32º, nº 1 e 5, da CRP, e do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da CRP, e ainda do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6º, n.º 1, da CEDH.
14. O tipo de ilícito criminal, previsto e punido pelo nº 1 do artigo 93º CJM, cuja epígrafe é Abuso de autoridade por ofensa à integridade física, tem por elementos típicos objectivos:
a) a ofensa ao corpo ou à saúde ocorrer no âmbito da hierarquia militar e da relação de subordinação da vítima em relação ao agente; b) a ofensa ao corpo ou à saúde da vítima resultar da estrita natureza e objecto das funções hierárquico- militares do agente; c) o agente estar investido no dever de garante (dever objectivo de cuidado) da integridade física da vítima – na comissão do ilícito por omissão; e d) a verificação de nexo de causalidade entre a acção ou a omissão do agente e a origem da ofensa ao corpo ou à saúde da vítima.
15. Por isso, para se dar, de algum modo, por preenchido o elemento objectivo do tipo em crise, haveria que oferecer outra tese e, desse modo, determinar e concretizar qual o acto concreto de instrução que o não teria sido e que por isso consubstancia uma ofensa ao corpo ou à saúde de OO, ou de qualquer outro instruendo, o que o Tribunal recorrido não fez;
16. Se o tribunal de 1ª instância afastara a verificação destes factos, dada a produção e apreciação imediatas da prova produzida ao longo de três anos de julgamento, o Tribunal recorrido, seguindo a tese dos Assistentes dispensa esta concretização, aferindo a responsabilidade criminal do recorrente pela prática militar de rastejar nas silvas;
17. Assim, apesar de não resolver, de maneira alguma, a problemática da concretização da ofensa à integridade física consubstanciada num qualquer acto de instrução igual aos do passado e aos do presente, ainda assim deveria ter mantido a absolvição do recorrente, decidindo numa tese criativa, mas avessa ao direito, condenar o recorrente, porque determinou a sua culpa e consciência da ilicitude em razão, não da experiência comum, mas da sua “experiência comum”.
18. Pelo que se pugna que nestes termos e com estes fundamentos, deverá ser sempre revogado o acórdão recorrido por não restarem preenchidos todos os elementos típicos da norma incriminadora, e mantida a decisão exarada no acórdão da 1ª instância que absolveu justa e plenamente o recorrente.
19. Quanto à relação de subordinação hierárquica que enquadra, estrutura e revela a ofensa – elemento objectivo do tipo de crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no nº 1 do artigo 93º do CJM – para que esta se verifique, é necessário que, no âmbito da relação superior/subordinado se materialize uma relação causal e funcional entre o exercício de poder e autoridade do superior hierárquico e a produção da ofensa no subordinado.
20. Deste modo, há que verificar se a produção da lesão decorre efectivamente da relação hierárquica-militar entre um superior hierárquico e um subordinado e se foi por causa dessa específica relação que a lesão no corpo ou na saúde ocorreu; caso contrário, não estaremos perante o crime militar de abuso de autoridade por ofensa à integridade física.
21. A verificação deste elemento é fundamental e imprescindível para a configuração dos factos como um crime militar.
22. No acórdão recorrido, esta problemática não é resolvida, senão a partir de aquele argumento falso, «Para estas conclusões resultantes da experiência comum são irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim», isto é, um non sequitur.
23. Para que este elemento típico se preencha (relação hierárquica-militar entre um superior hierárquico e um subordinado), é necessário que a conduta do agente se circunscreva às fronteiras dinâmicas de tal relação hierárquica, o invés consubstancia sim um crime – o que não ocorreu - seja através da prolação de uma ordem abusiva, seja através da comissão de um crime de abuso de autoridade lesivo da integridade física do subordinado.
24. Consequentemente, deverá ser revogado o acórdão recorrido por falta de preenchimento deste elemento típico da norma incriminadora e, por isso mesmo, absolvido o recorrente, nos exactos termos em que, aliás, fora proferida a decisão absolutória do acórdão da 1ª instância.
25. Pelo que, a matéria de facto provada não permite, de maneira alguma, imputar ao recorrente qualquer facto doloso, seja a título de ofensa à integridade física prevista no artigo 93º, n.º 1, do CJM, pelo que deverá ser revogado o acórdão recorrido e absolvido o recorrente, nos exactos termos em que fora absolvido em 1ª instância.
26. O CJM, enquanto dispositivo incriminatório, prescreve e sanciona apenas actos dolosos, em razão dos bens jurídicos que visa proteger com as incriminações.
27. Para estarmos perante uma forma dolosa, impõe-se que o agente represente intelectual e mentalmente todos os elementos objectivos do tipo de ilícito em questão, ou seja, que tenha a consciência da ilicitude e da censurabilidade do facto representado, dirigindo a sua vontade no sentido da realização do facto ilícito e que tenha o domínio do facto tal como o representa e deseja.
28. Seja como for, o autor de um facto será sempre aquele que controla a produção do mesmo nos termos previamente representados, controlo esse que permite a direcção da sua vontade no sentido da realização do facto ilícito.
29. Assim, ante o vazio da factualidade provada para considerar os elementos do dolo, o Tribunal recorrido esforçou-se por seguir uma tese – dos Assistentes – efabulando sobre factos e hiperbolizando-os num exercício inadmissível de uma alquimia jurídica de subsunção de factos inexistentes, criativos e criados, a uma norma incriminadora onde não tem cabimento a realidade provada na 1ª Instância.
30. Ora, perante os factos provados e dadas as exigências conceptuais e interpretativas do Direito, importaria constar na decisão de direito do Tribunal recorrido a resposta às questões: Em que momento o recorrente representou as qualidades do acto adequado a produzir lesões físicas nos instruendos (OO) diversas daquelas que estes mesmos sofreram noutros quartéis? – Não o fez.
31. O que existe sim, é um exercício “jurídico” assente em falsas presunções, hiperbolização factual pela criação de uma ficção que criou para justificar a condenação do recorrente, pelo que uma vez mais se pugna pelo desabar do acórdão do Tribunal recorrido e revogar o seu aresto, absolvendo o recorrente nos exactos termos do acórdão de 1ª instância
32. O Tribunal da Relação de Lisboa subsume ainda erradamente os factos ao Direito, ao considerar ilícitos os exercícios de instrução (GAM) como concretizadores do elemento típico ofensa ao corpo ou saúde dos instruendos, in casu de OO.
33. É manifesta a absoluta ignorância do Tribunal recorrido sobre a realidade dos exercícios militares, assentes numa prática de esforço físico para além da normal, pois exige-se fazer flexões, rastejar no chão, dar cambalhotas, colocar-se em prancha sobre braços, mormente nas forças especiais, e fazê-lo em qualquer tipo de terreno, pois a guerra também ocorre em qualquer terreno sob qualquer condição meteorológica, pouco importando se tais exercícios estão previstos no dito Guião da ... guião, pois não há instrução militar sem actividade exigente do corpo, nomeadamente, práticas de esforço e tensão físicas intensas.
34. A “experiência comum”, evocada pelo Tribunal recorrido, é inexistente no que respeita a provas militares, senão saberia que é comum em tais provas – seja na ... de qualquer tropa especial, seja na recruta militar básica – o “rastejar em silvas” (algo que decorreu bastamente da prova produzida em audiência de julgamento e que, apesar de tudo, ainda se encontra no acórdão recorrido).
35. O Tribunal da Relação de Lisboa molda a realidade pertinente à medida da sua “experiência comum”, ainda que seja patente o seu desconhecimento das regras e realidade do treino militar nas forças armadas portuguesas, o que, neste caso, exigiu que tivesse afastado todos os depoimentos em contrário e que foram prestados pelos instruendos (página 849), ou seja, por aqueles que efectivamente passaram, primeiro, por uma recruta militar e, posteriormente, por inúmeras provas de tropas especiais, incluindo a dos ..., uma e mais vezes, em observância da imediação do tribunal e em respeito pelo exercício do contraditório da defesa.
36. Perante a manifesta licitude e normalidade dos exercícios da ..., deverão V. Exas. sanar quaisquer vestígios das presunções do Tribunal da recorrido para preencher o elemento típico do crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, isto é, ter decorrido a ofensa ao corpo ou à saúde de um subordinado «por causa do exercício das funções militares» em moldes abusivos, devendo-se sempre entender como errada a hipótese concebida pelo Tribunal recorrido acerca da irrelevância do consentimento presumido dos instruendos.
37. Se atendermos aos factos dados como provados e não provados, bem como à respectiva fundamentação, os instruendos foram voluntários para a frequência do ....º curso ..., tropa especial que desejavam integrar, com consentimento implícito em tal adesão (v. página 949, 951 e 1223 do acórdão recorrido e facto provado 422), sendo conhecedores (até pala internet) da exigência física e psíquica dos exercícios em que iam participar, para a qual estavam especialmente motivados, dado desejarem integrar tal tropa especial (v. página 994 e 959 do acórdão recorrido), tendo, a todo o tempo, a liberdade para abandonar a prova ou o curso quando quisessem (v. factos provados 269, 423, 114, 289 e página 245 do acórdão recorrido), não se dando como provado que os instruendos se submeteram ao mencionado curso por coação, ameaça ou engano (v. página 197 do acórdão recorrido, nem se deu como provado que os instruendos tivessem sido impedidos de desistir e tivessem sido obrigados a permanecer no curso (factos não provados 111, 207 e 774).
38. Resulta ainda do acórdão recorrido que os instruendos da ... do ... curso ... já tinham experimentado e conhecido, necessariamente, outras instruções militares, dado que o corpo ... é uma tropa especial que recruta entre militares que já fizeram a instrução militar básica – leia-se a fundamentação dos factos provados (página 183), onde se resume o depoimento do instruendo RR sobre a ordem de se atirar para as silvas “não o surpreendeu, porque durante o curso em ..., já tinha recebido ordem idêntica, considerando-a normal em qualquer instrução militar.”
39. Os instruendos autocolocaram-se numa situação de perigo físico e para a saúde, fizeram-no livremente, com plena consciência do que pretendiam e desejavam com o seu esforço naquela prova, assim como do esgotamento físico que iriam experimentar, e experimentaram, em virtude da limitada quantidade de água que podiam consumir por dia e das características do terreno onde as provas tinham lugar, isto é, tinham plena consciência do risco em que se colocavam.
40. Se e quando o risco livre e conscientemente assumido pela vítima com a autocolocação em perigo, vem efectivamente a concretizar-se, aquele que provoca, favorece ou motiva a dita autocolocação em perigo, não incorre em responsabilidade penal pelo resultado danoso, dado que se interrompe o nexo causal entre a conduta de quem provoca, favorece ou motiva a dita autocolocação em perigo, e o resultado danoso, impedindo a imputação a terceiro da lesão do bem jurídico.
41. E tal aplica-se sem reserva ao tipo de instrução ministrada pelo recorrente (GAM), devendo, nestes termos e nos demais de Direito, ser revogado o acórdão recorrido, entendendo-se não preenchido o tipo objectivo de ilícito criminal que é imputado ao recorrente e que sustenta a sua condenação, por interrupção do nexo causal, e por isso, deverá ser absolvido.
42. Por fim, deverá ser afastada a incriminação do recorrente pelos crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, por falta de consciência de ilicitude, nos termos do artigoº 17º do Código Penal, porquanto, no acórdão recorrido, se efabulou uma fantasia acerca da “necessária” consciência da ilicitude dos arguidos.
43. O Tribunal recorrido traz uma extravagante interpretação do artigo 17º do Código Penal, considerando que o regime do erro sobre a ilicitude “não é, obviamente, aplicável a situações” como a dos autos, dada a natureza dos “valores fundamentais da ética social e constitucional” em causa, pelo que todos os arguidos, incluindo o recorrente, tinham “necessariamente consciência do ilícito”.
44. Esta interpretação não colhe, desde logo porque todos os crimes militares estão submetidos ao regime do erro sobre a ilicitude – conforme artigo 32.º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, e o artigo 2º do Código de Justiça Militar.
45. Se na verificação dos factos que excluem ou atenuam a culpa, como o erro sobre a ilicitude, se constata a dúvida, sempre o julgador se deve decidir pela verificação positiva de tais factos, por força do princípio do in dúbio pro reo.
46. Sempre se conclui pela naturalidade da afirmação de ser impensável e impossível ter consciência da ilicitude de actos praticados quando os actos práticos são lícitos, comuns, regulares, habituais, na instrução militar de qualquer ramo das forças armadas, mormente nas forças especiais.
47. Nestes termos e nos demais de Direito, a redutora interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o artigo 17.º do Código Penal, aplicado por força do artigo 2º do Código de Justiça Militar, conjugado com a normado artigo 93.º do Código de Justiça Militar, é inconstitucional por violar o princípio da culpa, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1º da Lei Constitucional, e no princípio da legalidade criminal, inscrito no artigo 7º da CEDH, pelo que deve ser revogado o acórdão recorrido e absolvido o recorrente, por falta de consciência da ilicitude dos actos praticados.
Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser admitido e processado e ser aquele a final julgado procedente, com as legais consequências, revogando-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, desse modo, absolvendo-se o recorrente e assim se fazendo Justiça!
GG
1. O Recorrente não cometeu qualquer crime no dia 04.09.2016, tendo sido correcta e justamente absolvido pelo Tribunal de 1ª Instância;
2. O Recorrente foi alvo de uma decisão profundamente injusta por parte do Tribunal de 2ª Instância, tendo servido de bode expiatório para os factos ocorridos no dia 04.09.2016;
3. A decisão sobre a matéria de facto que alegadamente preenche o tipo objectivo e o tipo subjectivo imputados ao arguido GG no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6.3.2024, proferido no Processo 89/16.0NJLSB.L.1, é ilegal.
4. A intervenção do Tribunal da Relação de Lisboa no domínio factual não se cinge a uma prometida “intervenção cirúrgica”, com ponderação dos factos anteriormente discutidos na primeira instância e questionados pelos recorrentes. Na prática, o Tribunal da Relação de Lisboa ignora o princípio non nova, sed nove, procedendo a um novo julgamento, ao arrepio da convicção do tribunal da primeira instância e com ponderação de factos gravíssimos novos, como a “crueldade” do arguido e a “pravidade” da sua motivação, e até de factos cuja admissão tinha sido rejeitada por decisão transitada do tribunal da primeira instância. Não faz, como devia, uma nova ponderação dos factos anteriores discutidos na instância, vai muito além disso.
5. “O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade.” Doutas palavras se podem ler no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. Pena é que tenham sido palavras lançadas ao vento, construindo o Tribunal da Relação de Lisboa uma realidade alternativa à revelia dos princípios da imediação e da oralidade que proclama.
6. Assim, o Tribunal da Relação de Lisboa não estabelece de forma minimamente credível quantos cantis de água foram dados aos formandos dos diferentes grupos de graduados, praças 1, praças 2 e praças 3 e se essa utilização correspondia às regras escritas (constantes do guião do ....º curso) e às regras orais complementares (fixadas para o ....º curso na reunião da ... que se precedeu a ...), de modo a poder concluir que ela era suficiente ou não.
7. Acresce que o Tribunal da Relação de Lisboa diz que os graduados só beberam 2/3 de três litros de água durante a prova inteira, mas desdiz isto mesmo, dando como não provado que os graduados só beberam dois litros de água (facto não provado 228).Para além da referida contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, há manifesta insuficiência para a decisão sobre uma relevantíssima questão de facto, inadmissível à luz da jurisprudência prolatada pelo tribunal de Estrasburgo sobre esta específica questão.
8. Há contradição insanável entre, por um lado, o facto provado 55 e, por outro lado, os factos provados 114, 115-A, 200-B, 304-B, porquanto naquele se dá como provado que o guião previa a competência exclusiva do diretor da prova para sancionar as propostas dos instrutores ou da equipa sanitária no sentido de alterar o consumo de água (facto provado 55) e nestes se dá como provado que, para além do diretor da prova (o arguido AA), também os arguidos MM (comandante de companhia), BB (instrutor) e CC (instrutor) tinham competência para dar instruções aos formadores para aumentar o consumo de água dos formandos (factos provados 114, 115-A, 200-B, 304-B).
9. O facto provado 115, ao equiparar a competência do diretor da prova (o arguido AA) e do médico (o arguido GG) para darem instruções aos formandos para aumentarem o consumo de água dos formandos, esbarra frontalmente com a letra do facto provado 55.
10. A imputação de “socos” e “bofetadas” no novo facto provado 311-A, sem respaldo nos factos provados, que mencionam um único soco (facto provado 261) e uma única bofetada (facto provado 239), e desmentida pela própria decisão sobre os factos não provados, mostra a que ponto a matéria de facto foi distorcida pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
11. Por conseguinte, o facto provado 311-A (“socos”) é irremediavelmente contraditório com os factos provados 261 e 428 e os factos não provados 86, 172, 184, 216 e 284.
12. Também há contradição insanável entre, por um lado, o facto provado 311-A (“bofetadas”) e, por outro, os factos provados 239 e 429 e os factos não provados 46, 52, 91, 98, 107, 110, 113, 155, 160, 170, 186 e 331.
13. Os factos provados 123, 124 e 125 são contraditórios com a fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, pois dá-se como provado que o arguido GG deu uma “ordem” para rastejar na “qualidade de oficial comando”, mas da fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa resulta que o arguido “ não tinha competência para interferir na componente do conteúdo das instruções”, do seu ritmo e da sua intensidade, muito menos o podia fazer dando ordens “na qualidade de oficial comando”.
14. A qualificação das palavras do arguido como uma “ordem” é juridicamente incorreta, consubstanciando um erro de direito, que condiciona e pré-judica o apuramento da responsabilidade criminal do arguido. Dito de outro modo, quando proferiu as palavras descritas nos referidos artigos da acusação, o arguido não agiu no “exercício das suas funções e por causa delas”.
15. A existência de um alegado telefonema do arguido GG para o HFA e o seu conteúdo foram considerados pelo Tribunal da Relação de Lisboa como factos cruciais reveladores do conhecimento que o arguido tinha da gravidade do estado de saúde dos formandos pelas 14 horas, permitindo inferir o seu dolo criminoso e censurar a sua inação em face desse conhecimento. Esta consideração de factos que não constam da acusação, nem da pronúncia, constitui uma violação crassa do princípio do acusatório, colocando o tribunal de recurso no lugar de acusador, que refaz a acusação a seu bel-prazer.
16. O facto provado 302 é contraditório com o facto provado 461, que dá como provado que a observação de PP pelo arguido GG foi feita pela primeira vez na tenda.
17. Os factos provados 304, 304-Ae316 são contraditórios com os factos não provados 231 e 232, pois dá-se como provado que seria necessária a transferência urgente para um hospital, entre outras medidas, e dá-se como não provado que a temperatura corporal dos doentes exigisse medidas terapêuticas urgentes que só podiam ser efectuadas nos hospitais.
18. Os factos provados 323-B, 324 e 325-A são inconciliáveis com os factos provados 17, 18, 431-Ae 436, nos termos dos quais o médico apenas podia propor a transferência dos instruendos para os hospitais, competindo ao diretor da prova ordená-la. A contradição é patente e insanável. Por um lado, o Tribunal da Relação de Lisboa reconhece que o arguido médico só “podia propor a transferência”, mas por outro lado, censura-lhe o facto de que “não transferiu”, “não determinou” a transferência.
19. Nem da acusação, nem da pronúncia consta o facto que relevaria: em nenhum lado se menciona o facto de que o arguido médico não propôs a transferência ao diretor da prova ou ao comandante. Na acusação e na pronúncia surge um facto impertinente (o arguido médico “não transferiu”, “não determinou” a transferência), mas não surge o facto pertinente (o arguido médico não propôs a transferência a quem competia ordená-la).
20. A fixação da matéria de facto relativa ao tipo subjetivo pelo Tribunal da Relação de Lisboa padece igualmente de vícios graves.
21. Há contradição insanável entre o facto provado 115 e os factos não provados 113, 158 e 206, pois o mesmo facto é dado como provado naquele e como não provado nestes.
22. O Tribunal da Relação de Lisboa infere o conhecimento de “tudo o mais que se passou relativamente aos que foram internados na enfermaria” a partir do guião da prova. Portanto, o Tribunal da Relação de Lisboa infere um facto relativo ao dolo do agente a partir de um texto regulamentar, isto é, estabelece um facto ontológico a partir de uma regra deontológica, violando a lei de Hume e cometendo uma falácia naturalista, o que consubstancia um erro notório na apreciação de prova.
23. O facto provado 306-A contraria os factos provados 55 e 458.No novo facto provado 306-A afirma-se que o arguido GG tinha conhecimento dos sinais de alerta de desidratação aliada ao especial esforço físico exigido na prova e ao calor anormal e, não obstante isso, prosseguiu e deixou prosseguir as instruções, de elevado desgaste físico, sob um calor intenso, com temperaturas elevadas mesmo no período da manhã, sem que tenha adaptado a hidratação às condições climatéricas, o que provocou, como consequência direta e necessária, um estado de fadiga e desidratação extremas em todos os formandos internados, o que o arguido previu e aceitou. Mas resulta do facto provado 55 que o arguido não tinha qualquer competência para “prosseguir” as instruções, nem para “deixar prosseguir” as instruções, nem mesmo para “adaptar” a hidratação às condições climatéricas. Como resulta do facto provado 458 que o arguido GG não deu uma “ordem”, mas uma “indicação” para que os instruendos fossem molhados, tendo o arguido MM dado a “ordem” nesse sentido.
24. Há um erro notório na apreciação da prova quando se diz que o arguido age com a forma mais grave de dolo de causar ofensas corporais (intenção) e conhece a relação entre essas ofensas corporais e lesões neurológicas, cardíacas, renais e hepáticas e, simultaneamente, se diz que o arguido não tem conhecimento nem se conforma com a possível falência de órgãos vitais e o consequente perigo para a vida dos formandos.
25. Este erro é ainda mais notório quando se pondera que o tribunal imputa oficiosamente uma atuação com crueldade e motivada por pravidade, não descritas na acusação nem na pronúncia.
26. Na prática, o Tribunal da Relação de Lisboa interpreta e aplica o artigo 127.º do CPP, conjugado com os artigos 428.º e 431.º do mesmo código, nestes termos absolutos: “Para estas conclusões resultantes da experiência comum são irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim”. Esta interpretação dos poderes do tribunal de segunda instância de valoração da prova e alteração da matéria de facto é inconstitucional, por violação do princípio da imediação.
27. Com efeito, é inconstitucional a interpretação do artigo 127º do CPP, conjugado com os artigos 428º e 431. do mesmo código, que permita ao tribunal de segunda instância modificar os factos dados como provados e não provados, fazendo uso das regras da experiência para considerar “irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim” prestados na audiência de julgamento na primeira instância, por violação do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da CRP, e do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6.º, nº. 1, da CEDH.
28. Mais grave ainda, o Tribunal da Relação de Lisboa condena o arguido absolvido em primeira instância, fixando factos relativos ao seu dolo, à sua consciência da ilicitude e à sua motivação sem o ouvir em audiência em segunda instância. Ao fazê-lo, o Tribunal da Relação de Lisboa interpreta e aplica inconstitucionalmente o artigo 127.º do CPP, conjugado com os artigos 423.º, 428.º e 431.º do mesmo código, os artigos 15.º e 16.º do CP, e o artigo 93, n.º 1 a 3, do CJM, no sentido de que o Tribunal da Relação de Lisboa pode condenar o arguido absolvido em primeira instância, fixando factos relativos ao seu dolo, consciência da ilicitude e motivação sem o ouvir em audiência em segunda instância, por violação do principio das garantias de defesa e do princípio do contraditório, previstos no artigo 32.º, n.º 1 e 5, da CRP, e do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da CRP, e ainda do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6.º, n.º 1, da CEDH.
29. O tipo de ilícito criminal, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 93º do Código de Justiça Militar, cuja epígrafe é abuso de autoridade por ofensa à integridade física, tem por elementos típicos objectivos: a) a ofensa ao corpo ou à saúde ocorrer no âmbito da hierarquia militar e da relação de subordinação da vítima em relação ao agente; b) a ofensa ao corpo ou à saúde da vítima resultar da estrita natureza e objecto das funções hierárquico-militares do agente; c) o agente estar investido no dever de garante (dever objectivo de cuidado) da integridade física da vítima – na comissão do ilícito por omissão; e d) a verificação de nexo de causalidade entre a acção ou a omissão do agente e a origem da ofensa ao corpo ou à saúde da vítima.
30. Quanto à exigência de verificação de nexo causal entre a omissão do agente e a origem da ofensa ao corpo ou à saúde da vítima, operação jurídica não realizada no acórdão recorrido, importa recordar que, no libelo acusatório, se resolvia o problema, no plano de facto e de Direito, imputando ao ...-médico GG responsabilidades e funções de instrução na ... e, desse modo, garantindo o preenchimento do tipo de ilícito, uma vez que todas as ofensas ao corpo ou à saúde sofridas por quaisquer instruendos, nomeadamente, OO e PP, no decurso das instruções da ..., eram originariamente da responsabilidade, em virtude da co-autoria com os efectivos instrutores/arguidos, do ...-médico GG;
31.Deste modo, a partir do momento em que OO e PP passam a estar sob observação médica, na atenda de enfermaria e aos cuidados da equipa sanitária, entendia-se, no libelo acusatório, que a ofensa ao corpo ou à saúde daqueles já se consumara e que, sendo esta ofensa já imputável, em concreto, ao ...-médico GG, passava-se à imputação ao médico GG de não ter praticado, na tenda de enfermaria, actos médicos idóneos a impedir ou a obviar a verificação subsequente de perigo para a vida de OO e PP, impedindo o agudizar de uma situação danosa que criara.
32. Esta era a sucessão de factos descrita no libelo acusatório que permitia a imputação do médico GG do crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, nos termos do n.º 1 e 2 do art.º 93º do Código de Justiça Militar.
33. No entanto, como resulta tanto do acórdão de 1ª instância, como do acórdão recorrido, esta tese acusatória foi plenamente afastada, provando-se que o ...-médico GG não tinha funções de instrução na ..., restava eximido de qualquer responsabilidade, em sede de domínio do facto, sobre a verificação de quaisquer lesões ao corpo ou à saúde de qualquer instruendo, nomeadamente, OO e PP, no decurso das provas de instrução (p. 1191 do acórdão recorrido).
34. Consequentemente, era necessário demarcar, no período temporal em que OO e PP se encontraram na tenda de enfermaria, o momento originário e a natureza estrita de uma nova lesão distinta da(s) produzida(s) durante as provas de instrução, lesão de que veio a resultar a morte daqueles instruendos.
35. Por isso, para se dar, de algum modo, por preenchido o elemento objectivo do tipo em crise, haveria que oferecer outra tese e, desse modo, estabelecer, determinar e concretizar: a) qual o acto médico idóneo a impedir uma original ofensa ao corpo ou à saúde de OO e PP que foi omitido pelo recorrente desde que aqueles se encontravam na tenda de enfermaria e aos cuidados da equipa sanitária; b) em que preciso momento a omissão de tal acto se torna relevante e censurável, produzindo uma nova ofensa ao corpo e à saúde; e c) qual o nexo causal entre a omissão e a produção da nova ofensa.
36. Se o tribunal de 1ª instância afastara a verificação destes factos, dada a produção e apreciação imediatas da prova produzida ao longo de três anos de julgamento, o Tribunal da Relação de Lisboa dispensa esta concretização, aferindo a responsabilidade criminal do recorrente pela morte de OO e PP por “não os ter tratado convenientemente depois de se manifestarem as doenças com que vieram a morrer mas, e sobretudo, por não ter exercido a sua obrigação de vigilância no decurso da prova e ter deixado os instruendos chegar ao estado a que chegaram e que veio a determinar as doenças se vieram a manifestar e bem assim no caso de dois deles, a sua morte”, censurando-o por nada ter feito “para prevenir ou debelar os excessos”, nem “impedir a manutenção em prova dos indivíduos que apresentassem claros sinais de doença perigosa”.
37. Perante o afastamento de qualquer responsabilidade e poder do recorrente no âmbito dos exercícios de instrução da ..., o Tribunal da Relação de Lisboa deveria ter-se demitido de imputar as lesões no corpo ou saúde de OO e PP que estes sofreram no decurso das provas de instrução, caso contrário, estaria a censurar penalmente o recorrente por actos praticados por terceiros.
38. Por isso, o Tribunal da Relação de Lisboa considera relevantes duas omissões por parte do recorrente, a saber, não ter ordenado a transferência de imediato dos instruendos OO e PP para a ambulância com ar condicionado (facto provado 321), e não ter ordenado a transferência urgente dos formandos para o HFAR (factos provados 322-A, 324, 325-A)120.
39. No entanto, ao longo da matéria de facto provada, desconhecem-se as específicas lesões no corpo ou na saúde decorrentes de tais omissões, estritamente imputáveis ao recorrente; desconhece-se a idoneidade dos actos omitidos para se praticados, impedir ou evitar as lesões no corpo ou na saúde de OO e PP; desconhece-se, por isso, qual foi o resultado lesivo, concreto e determinado, das mencionadas omissões e se estas relevaram, de algum modo, na produção de uma nova lesão.
40. Na verdade, desconhece-se com qualquer grau de certeza o que teria ocorrido no corpo ou na saúde de OO e PP se os actos que se reputam omitidos, tivessem sido praticados no tempo referido: evitar-se-ia a ofensa ao corpo ou à saúde e, por extensão, a morte de OO e PP?
41. O mais impressionante é que, no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa conclui que: “OO foi observado pelo arguido enfermeiro, que não lhe atribuiu prioridade na entrada da ambulância, ambulância essa onde seguiram para a enfermaria dois outros instruendos que o enfermeiro considerou estarem em pior estado de saúde”(página1195) e que “na enfermaria, que era uma tenda, não havia refrigeração, o calor era maior do que ao ar livre, OO gemia, não tendo apresentado quaisquer sinais de recuperação durante o tempo que lá esteve e, a determinado momento, vomitou” (página 1196) e, sobretudo, que “a administração de soroterapia aos formandos não surtiu qualquer efeito no caso de OO e PP, uma vez que desde o momento em entraram na tenda que servia de enfermaria nunca apresentaram sinais de melhoria” (página 1202), isto é, se nunca apresentaram sinais de melhoria, é porque se conservaram no estado de saúde em que entraram na tenda de enfermaria, o que significa que, antes de entrarem na tenda de enfermaria, já OO e PP tinham sofrido a lesão no corpo ou na saúde de que resultaria a morte.
42. Assim, apesar de não resolver, de maneira alguma, a problemática da ofensa e da respectiva determinação espácio-temporal, o que deveria conduzir à conservação da absolvição do recorrente, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu condenar o médico GG, porque considera inquestionável a sua culpa em razão da “experiência comum”.
43. Nestes termos e com estes fundamentos, deverá ser sempre revogado o acórdão recorrido por não restarem preenchidos todos os elementos típicos da norma incriminadora, e mantido o acórdão da 1ª instância que absolveu justa e plenamente o recorrente GG.
44. Quanto à relação de subordinação hierárquica que enquadra, estrutura e explica a ofensa – elemento objectivo do tipo de crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no n.º 1 do art.º 93 do Código de Justiça Militar – , para que esta se verifique, é necessário que, no âmbito da hierarquia militar, se estabeleça uma relação causal e funcional entre o exercício de poder e autoridade do agente e a produção da ofensa no subordinado.
45. Deste modo, há que verificar se a produção da lesão decorre efectivamente da relação hierárquica-militar entre um superior hierárquico e um subordinado e se foi por causa dessa específica relação que a lesão no corpo ou na saúde ocorreu; caso contrário, não estaremos perante o crime militar de abuso de autoridade por ofensa à integridade física.
46. A verificação deste elemento é fundamental e imprescindível para a configuração dos factos como um crime militar.
47. Recordamos que o Tribunal da Relação de Lisboa julga resolver esta questão remetendo para o facto de ter o recorrente GG dado uma ordem a outros instruendos para rastejarem na direcção da ambulância (facto provado n.º 124 e 125) – contudo, o que importaria saber é, sim, se as lesões no corpo ou na saúde de OO e PP decorreram, imediata e efectivamente, da realidade da relação hierárquico-militar entre aqueles instruendos e o recorrente e por causa desta relação.
48. No acórdão recorrido, esta problemática não é resolvida, senão a partir de aquele argumento falso, um non sequitur.
49. De acordo com o facto provado n.º 49 do acórdão, “o arguido GG é ... do Quadro Permanente e Médico, sendo responsável pela equipa sanitária, da qual fazem parte o arguido SS, enfermeiro, ... do Quadro Permanente, dois socorristas e uma enfermeira.”, o que descreve o âmbito hierárquico-militar em que, no quadro da ... do ...º curso ..., se inseria o recorrente GG, responsável pela equipa sanitária, que era constituída pelos seus subordinados, isto é, a estrutura de subordinação que dependia do recorrente GG.
50. Consequentemente, entre o recorrente e OO e PP não se estabelecia, em concreto e no âmbito da ..., uma relação de subordinação e autoridade de que pudesse o recorrente abusar, mas apenas entre os elementos da equipa sanitária e o recorrente GG.
51. Todos os instruendos admitidos à tenda de enfermaria e/ou assistidos pelo recorrente, beneficiaram apenas da relação que se estabelece entre um médico e o seu paciente.
52. A questão central não está em saber se podia o recorrente GG dar ordens ou comandar, de algum modo, os instruendos OO e PP, mas se as lesões físicas por estes sofridas resultaram da estrita relação hierárquico.
53. Para que este elemento típico se preencha, é necessário que a conduta do agente se circunscreva às fronteiras dinâmicas de tal relação hierárquica, seja através da prolação de uma ordem abusiva, seja através da comissão de um acto com abuso de autoridade, seja através da comissão por omissão abusiva de uma ordem ou acto que se impunha.
54. Recordamos que, além da integridade física, o bem jurídico protegido por este tipo de ilícito militar é a seriedade e respeitabilidade da disciplina e da hierarquia militares, mais precisamente, na relação de um posto superior com um posto inferior.
55. Deste modo, a subsunção jurídica neste tipo de ilícito militar não resulta imediata e necessariamente da mera constatação de que, entre o agente e a vítima, se verifica um desnível formal na hierarquia militar, exigindo-se, sim, a verificação de um nexo funcional e causal entre o posicionamento de superior hierárquico-militar e a lesão no corpo ou na saúde do subordinado, numa expressão perversa da relação hierárquica de subordinação e autoridade.
56. Sem a ficção operada sobre a responsabilidade na instrução do recorrente (ficção produzida no libelo acusatório), cabia ao intérprete dos factos intelectualmente honesto descaracterizar a mera relação formal entre o recorrente e OO e PP como suficiente para preencher materialmente o ora analisado elemento objectivo do tipo e, por isso mesmo, afastar a aplicação do normativo do art.º 93º, n.º 1, do Código de Justiça Militar.
57. Consequentemente, deverá ser revogado o acórdão recorrido por falta de preenchimento deste elemento típico da norma incriminadora e, por isso mesmo, absolvido o recorrente GG, nos exactos termos em que, aliás, fora proferida a decisão absolutória do acórdão da 1ª instância.
58. Por outro lado, o Tribunal da Relação de Lisboa imputa responsabilidade criminal ao recorrente GG pela morte de OO e PP por “não os ter tratado convenientemente depois de se manifestarem as doenças com que vieram a morrer mas, e sobretudo, por não ter exercido a sua obrigação de vigilância no decurso da prova e ter deixado os instruendos chegar ao estado a que chegaram e que veio a determinar as doenças se vieram a manifestar e bem assim no caso de dois deles, a sua morte”(página 1221), censurando-o porque “nada fez para prevenir ou debelar os excessos” (página 1223), não “impedindo a manutenção em prova dos indivíduos que apresentassem claros sinais de doença perigosa” (página 1222).
59. No entanto, responsabilizar o recorrente por não ter supervisionado mais atentamente os exercícios, o treino, o desempenho e instante estado dos instruendos é um inadmissível excesso interpretativo das obrigações militares do recorrente.
60. Ademais, a conclusão do Tribunal da Relação de Lisboa de que o recorrente não os tratou “convenientemente depois de se manifestarem as doenças com que vieram a morrer” confronta-se com o problema já supra-alegado, um problema de concretização temporal de domínio do facto: quando se manifestaram aquelas doenças? Não se sabe, mas sabe-se que, depois de terem chegado à tenda de enfermaria, OO e PP, ao contrário de todos os outros instruendos ali em observação, até às 18h-18h30, não apresentaram qualquer melhoria de saúde, razão que levou o recorrente GG a propor, pelas 18h-18h30, a sua transferência para hospital.
61. Por outro lado, o Tribunal da Relação de Lisboa dá como provado que, nos termos do guião, “as situações de consumo adicional [de água] serão propostas pelos instrutores ou pela equipa sanitária e sancionadas pelo Diretor da Prova” (facto provado 55), mas, simultaneamente, considera que os instrutores não tinham a responsabilidade de vigiar o risco de desidratação dos instruendos que estavam sob a sua instrução, “com vista ao necessário aumento da hidratação e/ou acompanhamento da equipa sanitária” (facto não provado 168, e página 1120, 1190 e 1219), sendo o recorrente GG, enquanto médico, que tinha a “obrigação de vigilância no decurso da prova” e mesmo a responsabilidade de afastar da prova os instruendos desidratados, atribuindo ao recorrente o dever da ubiquidade em toda a extensão do Campo de Tiro ..., vigiando numa permanente vigília os exercícios dos 67 instruendos, a decorrer, ao mesmo tempo, em sítios diferentes.
62. Assim, de acordo com o Tribunal da Relação de Lisboa, apenas o médico GG tinha “a exclusiva função de garante da saúde e da vida” dos instruendos, pois “ele e só ele era garante do direito à saúde e à vida dos instruendos” (página 1223 do acórdão recorrido): não eram, portanto, os instrutores que tinham de interromper os exercícios do instruendo e chamar a equipa médica quando se manifestassem sinais de desidratação desse instruendo, mas o recorrente na sua permanente ubiquidade, considerando-se, inclusive, que tal dever de vigilância deveria ter prosseguido noite adentro!
63. Consequentemente, a definição de dever de garante do Tribunal da Relação de Lisboa, na vertente de dever de prevenção, é manifestamente ilegal, ilógica e desproporcional, devendo ser, por isso mesmo, rejeitada – conduzindo, necessariamente à revogação do acórdão recorrido e à absolvição do recorrente nos exactos termos do acórdão de 1ª instância.
64. Ainda para imputar responsabilidade criminal ao recorrente GG, o Tribunal da Relação de Lisboa avalia negativamente a sua prestação enquanto médico, por não ter logrado prevenir as lesões físicas sofridas pelos instruendos durante a realização dos exercícios físicos, e pela posterior prestação de uma deficiente assistência médica às lesões físicas sofridas pelos instruendos.
65. O problema é que não resulta da matéria de facto provada (nem da prova produzida) que conhecia da existência de um risco real e imediato para a vida de OO e PP;
66. Pelo contrário, decorre de tal matéria que a) o recorrente, ao avaliar o estado dos instruendos, tomou as medidas médicas que razoavelmente, de acordo com a sua experiência e conhecimento, poderiam ter evitado esse perigo – recordamos que todos os instruendos que foram assistidos na tenda de enfermaria, apresentavam sinais clínicos semelhantes e todos foram tratados com recurso a semelhante terapêutica, melhorando horas depois, com excepção de OO e PP que nunca apresentaram melhorias; b) o recorrente ordenou o transporte para a tenda médica, a hidratação e a soroterapia dos instruendos com “dificuldades em executar os exercícios” (factos provados 201, 246, 302 e 303); c) avisou o superior hierárquica que não tinha recursos suficientes na tenda para tratar mais instruendos (facto provado 310); d) sugeriu que todos os instruendos fossem molhados à hora de mais calor (facto provado 458); e) sugeriu que os exercícios fossem suspensos (facto provado 309); f) só se ausentou do Campo de Tiro ... pelas 20h15 (facto provado 325), porque tinha banco no dia seguinte pelas 8 da manhã (página 274), só saindo quando já não havia exercícios a decorrer (facto provado 459) e apenas depois de ter dado indicação para que os instruendos OO e PP serem transportados para o HFAR (facto provado 322).
67. Quanto às duas omissões imputadas ao recorrente, importa ter ainda presente que o Tribunal da Relação de Lisboa, apesar de censurar ao recorrente a não transferência de imediato para a ambulância, dá como não provado a) que a falta de refrigeração da tenda tenha provocado um aumento da temperatura corporal dos instruendos (facto não provado 231) e que, por esse motivo, o recorrente fosse obrigado a transferir para os hospitais os doentes que se encontravam na tenda, e que b) a temperatura corporal dos doentes exigisse medidas terapêuticas urgentes que só podiam ser efetuadas nos hospitais, nem tendo o INEM, condições para tratar doentes em tendas de campanha (facto não provado 232).
68. Não colhe, portanto, o fundamento de facto da imputação da omissão de tratamento.
69. Na verdade, o recorrente aguardou os resultados da soroterapia, tendo esta produzido manifestas melhorias em relação à generalidade dos instruendos assistidos na tenda de enfermaria, com exceção de OO e PP (facto provado 319), sendo que, no momento em que constatou a manutenção da situação clínica em que estes chegaram à tenda de enfermaria, deu indicação para a preparação para sua transferência para o HFAR. Tendo em conta os factos dados como provados e não provados, o arguido ordenou, nem tinha de ordenar a transferência de imediato para a ambulância, porque a tenda, embora sem refrigeração, tinha as condições para tratar a desidratação, não tendo a falta de refrigeração causado um aumento da temperatura corporal dos formandos.
70. Pela mesmíssima razão, o arguido não ordenou a transferência imediata para o HFA.
71. Recordamos ainda, quanto a este ponto e nas condições existentes, que o recorrente estava subordinado ao diretor da prova, pois como resulta do guião da ..., apenas “em situações em que a evacuação seja necessária e perante uma pontual falha de ligação com o Diretor de Prova, o Oficial Médico tem autoridade para acionar a evacuação” – muito embora este facto esteja ausente tanto do libelo acusatório, da pronúncia ou da factualidade provada do acórdão recorrido.
72. Por isso, o Tribunal da Relação de Lisboa ficciona a falha de ligação com o Diretor da Prova para lhe imputar o incumprimento do referido dever.
73. Por fim, o Tribunal da Relação de Lisboa imputa ao recorrente “a enorme gravidade da omissão decorrente de abandonar à sua sorte dois instruendos que se reconhece que careciam de apoio hospitalar, ordenando a sua preparação para a operação de transferência, mas nunca determinado essa transferência. Essa conduta acarreta uma irresponsabilidade assustadora no exercício da arte da medicina no âmbito de uma situação particularmente perigosa para a vida dos instruendos” (página 1234 do acórdão recorrido).
74. Contudo, para censurar penalmente tal facto, o Tribunal da Relação de Lisboa devia ter averiguado e considerado que a presença do recorrente era acto suficiente para impedir a concretização de qualquer dano ou ofensa – o que não decorre da matéria de facto provada, nem, de maneira alguma, é discutido juridicamente na fundamentação de Direito.
75. Além do mais, não consta da matéria de facto provada que o recorrente GG saiu sem autorização do diretor da prova – sendo, portanto, presumida pelo Tribunal da Relação de Lisboa –, facto relevante para aferir a idoneidade da omissão no quadro do abuso da hierarquia militar, elemento típico da incriminação imputada.
76. Nestes termos e nos demais de Direito, a matéria de facto provada não permite, de maneira alguma, imputar ao recorrente GG qualquer facto doloso, seja a título de ofensas corporais simples previstas pelo artigo 93.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, seja a título de ofensas corporais graves de forma a provocar perigo para a vida dos instruendos, previstas pelo artigo 93.º, n.º 2, do Código de Justiça Militar, seja, no limite, a título da agravação pelo resultado previsto no artigo 93.º, n.º 3, alínea a), do Código de Justiça Militar, pelo que deverá ser revogado o acórdão recorrido e absolvido o recorrente, nos exactos termos em que fora absolvido em 1ª instância.
77. O Código de Justiça Militar, enquanto dispositivo incriminatório, prescreve e sanciona apenas actos dolosos, em razão dos bens jurídicos que visa proteger com as incriminações.
78. Para estarmos perante uma forma dolosa, impõe-se que o agente a) represente intelectual e mentalmente todos os elementos objectivos do tipo de ilícito em questão, ou seja, o facto ilícito; b) tenha a consciência da ilicitude e da censurabilidade do facto representado; e c) dirija a sua vontade no sentido da realização do facto ilícito.
79. Além do mais, para que o dolo possa operar, é estritamente necessário que o agente tenha o domínio do facto que representou e deseja, seja pelo domínio da acção, seja pelo domínio sobre a vontade de terceiro que pratica o acto, seja pelo domínio funcional do facto.
80. Seja como for, autor de um facto será sempre aquele que controla a produção do mesmo nos termos previamente representados, sendo este controlo que determina a produção de um resultado concreto, numa relação de dependência e finalidade, controlo esse que permite a direcção da vontade no sentido da realização do facto ilícito (tanto pelo domínio positivo do facto como pelo domínio negativo do facto).
81. No entanto, se apreciarmos os factos dados como provados no acórdão da Relação de Lisboa, verificamos a total inexistência de elementos fácticos que permitam, de algum modo, circunscrever a capacidade de intervir e o poder de ordenar do recorrente, sobre a concretização das lesões no corpo ou na saúde de OO e PP durante as provas de instrução, implicando, por isso, o afastamento da autoria do crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física.
82. Aliás, de acordo com a factualidade dada como provada no acórdão da Relação de Lisboa, é notório que o recorrente não tinha o poder de praticar um acto idóneo a evitar a produção de uma lesão física em OO e PP, porque tal lesão já se produzira antes de estes se encontrarem aos seus cuidados.
83. Perante a aridez da factualidade provada para considerar os elementos do dolo, o Tribunal da Relação de Lisboa esforçou-se por relevar o irrelevante, o exíguo, o inepto, numa operação impressionante de falácias, excessos interpretativos e presunções.
84. Se a valoração dos factos provados sobre a eventual agência activa/omissiva de uma lesão física tem de ser acompanhada por um juízo de prognose póstuma que, inscrito no conhecimento produzido pelas redes partilhadas da totalidade da experiência humana, permitirá a qualificação do comportamento objectivo do agente, com os seus particulares conhecimentos sobre a realidade, na tipologia de um ilícito doloso, assim concretizando os seus elementos intelectual e volitivo, importaria considerar, então, as condições que sejam idóneas a produzir o resultado ilícito, segundo as máximas da experiência e da normalidade do acontecer regular e habitual, do geralmente previsível.
85. No acórdão de 1ª instância, compreendeu-se o problema que aqui se suscita: como se pode concretizar os elementos intelectual e volitivo do dolo na ausência de factos que os exibam e demonstrem?
86. No entanto, “a imputação das consequências destes exercícios físicos ao arguido GG só poderia ter lugar por força da suposição de um dolo subsequente, inadmissível no direito penal português”(v. página46, in fine, do Parecer do Professor Doutor Paulo Pinto de Albuquerque).
87. Ora, perante os factos provados e dadas as exigências conceptuais e interpretativas do Direito, importaria constar na decisão de direito do Tribunal da Relação de Lisboa a resposta às questões: a) Em que momento o recorrente representou as qualidades do acto adequado a impedir novas lesões físicas (distintas das já sofridas durante a instrução) em OO e PP e, portanto, o acto adequado a conservar o estado físico ou de saúde deles – que, neste caso, seria paradoxalmente conservar a lesão física já por eles sofrida? b) Qual era acto idóneo e adequado a impedir lesões físicas em OO e PP? c) Em que momento o recorrente desejou omitir o acto adequado a impedir novas lesões físicas? d)Que lesões físicas em OO e PP foram representadas mentalmente pelo recorrente como causa adequada à sua omissão?
88. No entanto, se não existe realmente uma decisão de Direito sobre o juízo de idoneidade e adequação do acto(s) omitido(s) pelo recorrente, mas através de presunções, exageros, imprecisões, falácias, o Tribunal da Relação de Lisboa cria uma ficção monstruosa que lhe serviu para justificar a condenação do recorrente, importará a V. Exas. afastar o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e revogar o seu aresto, absolvendo o recorrente nos exactos termos do acórdão de 1ª instância
89. O Tribunal da Relação de Lisboa condenou o arguido em duas penas de seis anos de prisão, relativas a cada um dos dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93.º, n.º 1 e 3, alínea a), do Código de Justiça Militar, e, em cúmulo jurídico, na pena de sete anos e seis meses de prisão.
90. Esta qualificação jurídica dos factos provados pelo Tribunal da Relação de Lisboa é nova, pois não corresponde àquela que consta da acusação, pronúncia, saneamento, defesa do arguido, julgamento, absolvição, nem das conclusões do recurso do Ministério Público, nem das conclusões do recurso dos assistentes.
91. Nos termos do art.º 424º, n.º 3, do Código de Processo Penal, prescreve-se que “sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.”
92. É inadmissível que, em recurso para a Relação, se aplique uma incriminação nova no processo sem sequer notificar o arguido, violando as garantias de defesa e do direito ao contraditório, previstos no artigo 32.º, n.º 1 e 5, da Lei Constitucional, o que impediu o recorrente de exercer a sua defesa, nomeadamente, posicionando-se jurídica e intelectualmente quanto à nova qualificação, e requerendo prova a produzir, a renovar, em sede de recurso.
93. O Tribunal da Relação considerou que as exigências da norma do artigo 424º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não seriam aplicáveis, porquanto a condenação do recorrente por tal incriminação deveria ser considerada um “menos” em relação às imputações criminais do despacho de acusação e da pronúncia, pelo que não violaria quaisquer princípios ou garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
94. Não colhe tal argumento, desde logo, porque a estrutura típica, objectiva e subjectiva, dos crimes imputados ao ora recorrente no libelo acusatório é diferente à dos crimes imputados no acórdão recorrido – recordamos que, no libelo acusatório e no despacho de pronúncia, se imputou ao recorrente GG a prática de dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física grave agravado pelo resultado, previstos pelo artigo 93º, n.º 1 e 2, alínea a) e d), e n.º 3, alínea b), do Código de Justiça Militar, vinte e seis crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos pelo artigo 93º, n.º 1 do Código de Justiça Militar, e um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física grave previstos pelo artigo 93º, n.º 1 e 2, alínea d), do Código de Justiça Militar.
95. O recorrente GG tem o direito constitucional de se defender da nova qualificação jurídica, cuja possibilidade de aplicação o tribunal de recurso antevê, devendo, para tanto, ser prevenido do mesmo e admitida a correspondente defesa, como resulta da norma dos artigos 424º, n.º 3, e 358º, ambos do Código de Processo Penal, conjugada com o art.º 32º, n.º 1 e 5, da Lei Constitucional.
96. Esta questão foi tratada pelo Tribunal Constitucional pelo acórdão n.º 394/2022: “ao subsumir o quadro factual traçado em juízo a uma norma de agravação não contemplada na decisão de primeira instância sem ter previamente advertido a defesa dessa possibilidade, o Tribunal recorrido fez uma interpretação do n.º 3 do artigo 424.º do CPP incompatível com as garantias de defesa e o princípio do contraditório assegurados, respetivamente, nos n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição. De tudo o que ficou até agora dito pode concluir-se que, apesar de assistir às Relações a faculdade de, ao conhecerem de direito, qualificarem livremente os factos demonstrados em primeira instância, designadamente através da aplicação de «norma agravante do crime não anteriormente suscitada no processo», o exercício dessa faculdade encontra-se sujeito, por força da Constituição, a um duplo limite: não pode redundar na agravação da espécie ou medida da pena concretamente aplicada ao arguido, quando único recorrente; e não pode ser exercida sem que a este tenha sido previamente assegurada a possibilidade de se pronunciar sobre essa alteração.”
97. Citando o Parecer em anexo: “nem a lei processual penal nem a Constituição da República toleram surpresas para o arguido. (…) Depois de ter estabelecido factos incriminadores novos, à revelia da acusação e da pronúncia, desta feita o Tribunal da Relação decide a questão da responsabilidade penal do arguido imputando-lhe uma incriminação nova (a do crime previsto no artigo 93.º, n.º 3, al.ª a) do CJM), sem lhe dar oportunidade para se pronunciar sobre a mesma.”
98. Nestes termos e nos demais de Direito, o Tribunal da Relação de Lisboa violou a norma do art.º 424º, n.º 3, do Código de Processo Penal, interpretando-a em sentido manifestamente inconstitucional por violação das garantias de defesa e do direito ao contraditório inscritas nos comandos normativos do art.º 32º, n.º 1 e 5, da Constituição da República.
99. O Tribunal da Relação de Lisboa subsume ainda erradamente os factos ao Direito, ao considerar ilícitos os exercícios de instrução como concretizadores do elemento típico ofensa ao corpo ou saúde dos instruendos OO e PP.
100. Consideremos os factos provados no acórdão recorrido que geram a responsabilidade dos arguidos, incluindo o recorrente pela via tortuosa já exposta: a)Os exercícios da prova militares tão descritos nos factos provados 99, 117, 119 e 130; b) o cometimento de duas agressões físicas durante os exercícios da ..., imputadas aos instrutores: um soco dado pelo arguidoDD na face do instruendo EE (facto provado 261) e uma bofetada dada pelo arguido LL na face do instruendo TT (facto provado 239); c) os exercícios não previstos no guião da prova: fazer flexões (factos provados 63-A, 75, 120, 154, 205, 250), rastejar no chão (factos provados 63-A, 75, 154, 176, 205, 250), colocar-se em prancha de punhos (facto provado 184) e rastejar, rebolar sobre silvas ou atirar-se para elas (factos provados 87, 95, 95-A, 133-A, 174, 175-B, 176, 219, 220, 221, 222, 223, 223-A, 224, 225, 228-A, 271, 274, 274-A, 274-B, 274-C, 311-A).
101. Todos estes factos provados são alheios à responsabilidade do recorrente GG.
102. É manifesta a absoluta incompreensão do Tribunal da Relação de Lisboa sobre os exercícios militares: toda a prática de esforço físico, no âmbito militar, exige fazer flexões, rastejar no chão, colocar-se em prancha – pouco importando se estão previstos no guião, pois não há instrução militar sem actividade exigente do corpo, nomeadamente, práticas de esforço e tensão físicas.
103. A “experiência comum”, evocada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, é inexistente no que respeita a provas militares, senão saberia que é comum em tais provas– seja na ... de qualquer tropa especial, seja na recruta militar básica – o “rastejar em silvas” (algo que decorreu bastamente da prova produzida em audiência de julgamento e que, apesar de tudo, ainda se encontra no acórdão recorrido).
104. O Tribunal da Relação de Lisboa molda a realidade pertinente à medida da sua “experiência comum”, ainda que seja patente o seu desconhecimento das regras e realidade do treino militar nas forças armadas portuguesas, europeias e americanas, o que, neste caso, exige que afaste todos os depoimentos em contrário e que foram prestados pelos instruendos (página 849) , ou seja, por aqueles que efectivamente passaram, primeiro, por uma recruta militar e, posteriormente, por inúmeras provas de tropas especiais, incluindo a dos ..., uma e mais vezes, em observância da imediação do tribunal e em respeito pelo exercício do contraditório da defesa.
105. Sobre a sobrevalorização da experiência presumidamente comum do Tribunal da Relação de Lisboa, importa citar o Professor Doutor Paulo Pinto de Albuquerque no Parecer em anexo: “atenta a natureza específica do direito militar e o carácter especial dos comandos portugueses, que devem estar preparados para os cenários de guerra e as ações militares nos terrenos mais inóspitos, é exigível que os tribunais, num exercício de humildade intelectual, recorram às regras de treino militar das forças armadas nossas aliadas antes de divagarem sobre o seu conhecimento da “experiência comum”, o que lhes permitirá aperceber-se de que a instrução de forças especiais inclui, por exemplo, correr, rebolar, saltar, rastejar em condições extremas de frio ou de calor, nadar em água gelada, voar com grande diminuição da pressão barométrica e rastejar sobre lama ou terreno irregular, com privação de sono, água, alimento e descanso por períodos longos” – página 43 do Parecer em anexo.
106. Perante a manifesta licitude e normalidade dos exercícios da ..., deverão V. Exas. sanar quaisquer vestígios das presunções do Tribunal da Relação de Lisboa para preencher o elemento típico do crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, isto é, ter decorrido a ofensa ao corpo ou à saúde de um subordinado «por causa do exercício das funções militares» em moldes abusivos.
107. Ademais, deve sempre entender-se errada a hipótese concebida pelo Tribunal da Relação de Lisboa acerca da irrelevância do consentimento presumido dos instruendos.
108. Se atendermos aos factos dados como provados e não provados, bem como à respectiva fundamentação, verifica-se o seguinte: a) os instruendos aderiram voluntariamente ao ....º curso dos ..., tropa especial que desejavam integrar, com consentimento implícito em tal adesão (v. página 949, 951 e 1223 do acórdão recorrido e facto provado 422); b) os instruendos conheciam a exigência física e psíquica dos exercícios em que iam participar, para a qual estava especialmente motivados, dado desejarem integrar tal tropa especial (v. página 994 e 959 do acórdão recorrido); c) os instruendos tinham liberdade para abandonar a prova ou o curso quando quisessem (v. factos provados 269, 423, 114, 289 e página 245 do acórdão recorrido); d) não se deu como provado que os instruendos se submeteram ao mencionado curso por coação, ameaça ou engano (v. página 197 do acórdão recorrido; e) não se deu como provado que os instruendos tivessem sido impedidos de desistir e tivessem sido obrigados a permanecer no curso (factos não provados 111, 207 e 774); f) não se deu como provado que só o medo dos instruendos de comportamentos violentos dos instrutores, Director da Prova, do Comandante de Companhia e até da equipa sanitária, incluindo o recorrente e os enfermeiros, justificou que os instruendos tenham permanecido durante a noite do dia ... de ... de 2016, no Campo de Tiro ... (facto não provado 777, a página 1128).
109. Resulta ainda do acórdão recorrido que os instruendos da ... do ...º curso ... já tinham experimentado e conhecido, necessariamente, outras instruções militares, dado que o corpo ... é uma tropa especial que recruta entre militares que já fizeram a instrução militar básica – leia-se a fundamentação dos factos provados (página 183), onde se resume o depoimento do instruendo RR sobre a ordem de se atirar para as silvas “não o surpreendeu, porque durante o curso em ..., já tinha recebido ordem idêntica, considerando-a normal em qualquer instrução militar.”
110. O Tribunal da Relação de Lisboa considerou não provado que o recorrente GG tivesse obrigado OO, PP e UU à prática dos exercícios físicos descritos desde as 2.00 horas do dia ........2016 às 16.20 (factos não provados 274, 275, 277 e 279).
111. Ainda quanto à prática de exercícios nas silvas, o Tribunal da Relação de Lisboa admite, sem compreender as implicações da mesma, que esta era “tão repetida que parece generalizadamente aceite” (página 1214).
112. É absurda a conclusão do Tribunal da Relação de Lisboa que “as desistências são a derradeira comprovação de que os instruendos não esperavam uma prova com estas características e nunca dariam consentimento a algo semelhante ao que lhes sucedeu naquele dia” (página 1183), dado que a possibilidade de desistir de uma actividade é precisamente a expressão de domínio decisório sobre a entrega a tal actividade, revelando poder e liberdade de os instruendos se afastarem da prova quando quisessem ou quando não conseguissem mais, física ou psiquicamente.
113. No entanto, a evidência da realidade é tão imperiosa que o Tribunal da Relação de Lisboa acaba por admitir– sem daí extrair qualquer consequência jurídica – que “manifestamente, estes indivíduos obrigaram-se a uma carga de desgaste físico para além das suas possibilidades e foi por terem ido além das suas possibilidades, nas concretas circunstâncias em que decorreu a prova e sem condições de hidratação adequadas, que morreram.” (página 1221).
114. Numa abordagem mais moral do que jurídica, o Tribunal da Relação de Lisboa afasta a questão sobre o consentimento tácito ou presumido dos instruendos, declarando que “não há fundamento algum para considerar a existência de um consentimento tácito” (página 1178 do acórdão recorrido) e que “o limite dos bons costumes está amplamente ultrapassado” (página 1179 do acórdão recorrido), ou seja, considerando que a cláusula dos bons costumes justifica suficientemente a rejeição do consentimento das condutas dos arguidos (e do recorrente, por arrastamento)(v.página1180, 1181 e 1182 do acórdão recorrido).
115. No entanto, considera o recorrente que a questão jurídica não deve ser colocada ao nível do consentimento e nem mesmo do consentimento presumido, como faz o Tribunal da Relação de Lisboa, uma vez que o que está em causa não é uma hétero-colocação em perigo consentida, mas a de uma autocolocação em perigo (v. Parecer em anexo, página 58).
116. Os instruendos autocolocaram-se numa situação de perigo físico e para a saúde, fizeram-no livremente, com plena consciência do que pretendiam e desejavam com o seu esforço naquela prova, assim como do esgotamento físico que iriam experimentar, e experimentaram, em virtude da limitada quantidade de água que podiam consumir por dia e das características do terreno onde as provas tinham lugar, isto é, tinham plena consciência do risco em que se colocavam.
117. Se e quando o risco livre e conscientemente assumido pela vítima com a autocolocação em perigo, vem efectivamente a concretizar-se, aquele que provoca, favorece ou motiva a dita autocolocação em perigo, não incorre em responsabilidade penal pelo resultado danoso, dado que se interrompe o nexo causal entre a conduta de quem provoca, favorece ou motiva a dita autocolocação em perigo, e o resultado danoso, impedindo a imputação a terceiro da lesão do bem jurídico.
118. Contudo, se não é sequer possível extrair do acórdão recorrido que o recorrente GG tenha provocado, favorecido ou motivado a autocolocação em perigo para a vida dos instruendos e, muito menos, que o tenha previsto e com ele se tenha conformado, mesmo que assim fosse, nunca o recorrente incorreria em responsabilidade penal pelo crime de abuso de autoridade por ofensa corporal agravada pelo resultado da morte dos instruendos OO e PP, em razão da interrupção do nexo de causalidade entre a conduta omissiva do recorrente e o típico resultado danoso pela autocolocação em perigo por aqueles instruendos.
119. Nestes termos e nos demais de Direito, deverá ser revogado o acórdão recorrido, entendendo-se não preenchido o tipo objectivo de ilícito criminal que é imputado ao recorrente e que sustenta a sua condenação, por interrupção do nexo causal, e por isso, deverá absolver-se o recorrente GG.
120. Por fim, deverá ser afastada a incriminação do recorrente pelos crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, por falta de consciência de ilicitude, nos termos do art.º 17º do Código Penal. porquanto, no acórdão recorrido, se engendrou uma fantasia acerca da “necessária” consciência da ilicitude dos arguidos.
121. O Tribunal da Relação de Lisboa conclui pela consciência da ilicitude do recorrente em resultado da ilicitude de certos exercícios de instrução e das suas condutas, considerando “inaceitável que um militar (…) invoque o desconhecimento de um dever de respeito pela integridade física de outro militar” (página 1160).
122. O Tribunal da Relação de Lisboa aduz uma extravagante interpretação do artigo 17.º do Código Penal, considerando que o regime do erro sobre a ilicitude “não é, obviamente, aplicável a situações” como a dos autos, dada a natureza dos “valores fundamentais da ética social e constitucional” em causa, pelo que todos os arguidos, incluindo o recorrente, tinham “necessariamente consciência do ilícito”.
123. Esta interpretação não colhe, desde logo porque todos os crimes militares estão submetidos ao regime do erro sobre a ilicitude – conforme artigo 32.º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, e o artigo 2º do Código de Justiça Militar.
124. Como resulta do Parecer do Professor Doutor Paulo Pinto de Albuquerque: “A tanto obriga o princípio da culpa, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, plasmado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, e no princípio da legalidade criminal, previsto no artigo 7.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Este princípio impõe, de igual modo, a relevância do erro sobre a possibilidade de evitar um evento danoso, na medida em que incide sobre uma “estimativa” fáctica, tornando-se, por isso, nas palavras de Figueiredo Dias, um “campo fértil de possíveis «erros na subsunção»”.
125. Se na verificação dos factos que excluem ou atenuam a culpa, como o erro sobre a ilicitude, se constata a dúvida, sempre o julgador deve decidir-se pela verificação positiva de tais factos, por força do princípio do in dubio pro reo.
126. Por outro lado, tendo presente o que se alegou sobre a licitude dos exercícios da instrução militar da ..., os factos provados e não provados e a própria fundamentação do acórdão recorrido, dir-se-á ser impossível ter consciência da ilicitude de actos praticados quando os actos práticos são lícitos, comuns, regulares, habituais, na instrução militar de qualquer ramo das forças armadas.
127. De igual modo, o recorrente agiu sempre na qualidade de médico perante os instruendos aos seus cuidados, dirigindo a sua vontade no sentido de instituir a melhor terapêutica aos seus pacientes, e quando se apercebeu do facto de não terem melhorado dois instruendos (OO e PP) após terem sido colocados a soroterapia como todos os outros pacientes, que apresentavam os mesmos sinais, mas melhoraram após algumas horas de terapêutica, decidiu pela transferência daqueles para unidade hospitalar.
128. A falta de consciência de ilicitude, por parte do recorrente, é, portanto, manifesta.
129. A interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o artigo 17.º do Código Penal, aplicável por força do artigo 2º do Código de Justiça Militar, e conjugado com a norma do artigo93.ºdo Código de Justiça Militar, violou o princípio da culpa, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Lei Constitucional, ao negar a possibilidade de erro sobre a ilicitude dos factos a situações como a dos autos, em função dos bens jurídicos protegidos, presumindo a insuprimível culpa dos arguidos, inclusive, do recorrente, fundamento da punição penal.
130. A interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o artigo 17.º do Código Penal, aplicável por força do artigo 2º do Código de Justiça Militar, e conjugado com a norma do artigo93.ºdo Código de Justiça Militar, violou ainda o princípio da legalidade criminal, inscrito no artigo 7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ao condenar o recorrente por uma omissão que, no momento em que foi cometida, não constituía infracção penal por manifesta falta de consciência da ilicitude do recorrente, dado crer este estar a actuar no âmbito do quadro médico-legal e em observância dos princípios éticos do exercício da medicina.
131. Nestes termos e nos demais de Direito, a redutora interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o artigo 17.º do Código Penal, aplicado por força do artigo 2º do Código de Justiça Militar, conjugado com a norma do artigo 93.º do Código de Justiça Militar, é inconstitucional por violar o princípio da culpa, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Lei Constitucional, e no princípio da legalidade criminal, inscrito no artigo 7.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo que deve ser revogado o acórdão recorrido e absolvido o recorrente, por falta de consciência da ilicitude dos actos praticados.
132. Mesmo supondo a legalidade da decisão sobre a matéria de facto e da decisão sobre a imputação jurídica, a decisão sobre a pena aplicada ao arguido GG no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6.3.2024, proferido no Processo 89/16.0NJLSB.L1, é ilegal.
133. O dever de garante é mais exigente para o diretor da prova que tem o poder de decisão sobre a realização e manutenção da prova, a participação dos formandos OO e PP na prova e a respetiva retirada do CTA do que para o médico que não desencadeia os meios de salvamento de uma situação de perigo a que é alheio.
134. Assim, o Tribunal da Relação de Lisboa viola o princípio da culpa, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado pelo artigo 1.° da CRP, e no princípio da legalidade criminal, previsto no artigo 7.° da CEDH, ao punir mais severamente quem não dá uma sugestão relativa aos meios de salvamento de uma situação de perigo do que aquele que tem o poder de aceitar ou rejeitar a sugestão e de decidir sobre a manutenção da situação de perigo, como sucedeu no caso em apreço.
135. O crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93.°, n.° 3, al.ª a), do CJM é inconstitucional, ao prever a moldura de 5 a 12 anos de prisão, perante o crime de ofensas à integridade física simples agravadas pelo resultado, previsto no artigo 143º, n.º 1, e 147º, n.º 1, do Código Penal, por violação do princípio da igualdade plasmado no artigo 13.°, n.° 1, da CRP, mostrando-se igualmente ferido o princípio da proporcionalidade com expressão no artigo 18.°, n.° 2, segunda parte, da CRP.
136. O Tribunal da Relação de Lisboa aplica inconstitucionalmente o artigo 428.° do CPP, conjugado com os artigos 369.°, n.° 1, e 375.°, n.° 1, do mesmo diploma, e os artigos 48.°, 50.°, n.° 1, 70.°, 71.°, n.° 1, e 72.°, n.° 1, do CP, no sentido de que o Tribunal da Relação pode aplicar pena de prisão efectiva pelo cometimento de um crime público quando o recorrente Ministério Público requer a aplicação de pena de prisão em montante inferior e suspensa na sua execução, por violação do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.°, n.° 1, da CRP, e do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6.°, n.° 1, da CEDH.
137. Na verdade, o Tribunal da Relação não pode ir além do pedido em recurso interposto pelo Ministério Público em procedimento por crime público, pois a disponibilidade do objecto do processo depende do recorrente público e, portanto, as necessidades punitivas dependentes da avaliação que o titular da acção penal faz delas, interpondo ou não o recurso e, decidindo-se pela interposição, delimitando objetiva e subjetivamente o âmbito de cognição do tribunal de recurso, não podendo o tribunal de recurso ir além do objeto do recurso tal como foi delimitado subjectiva e objetivamente pelo recorrente, como também não pode ir além da avaliação das necessidades punitivas que esse recorrente entende que o caso reclama.
138. Se as limitações do poder do tribunal de recurso se justificam quando o recurso tenha sido interposto pelo Ministério Público favor reum, elas justificam-se ainda mais quando o recurso tenha sido interposto contra reum.
139. Em síntese final, o Tribunal da Relação de Lisboa julga o arguido à moda antiga, ex informatia conscientia, condenando-o com base em factos novos atinentes ao seu dolo, consciência da ilicitude e motivação, sem o ouvir, sem o olhar olhos nos olhos, sem observar a sua linguagem corporal em audiência de julgamento na segunda instância, e ignorando jurisprudência da mais alta instância judicial europeia que vincula o Estado português. Do mesmo passo, sem ter ouvido o arguido, o Tribunal da Relação de Lisboa condena o arguido por uma incriminação nova, que nem a acusação, nem a pronúncia, nem o acórdão recorrido, nem as conclusões do recurso do Ministério Público, nem as conclusões do recurso dos assistentes lhe tinham imputado.
140. Num exercício de poder inquisitorial absoluto, o Tribunal da Relação de Lisboa vai mesmo além da espécie e do montante da pena pedidos pelo titular da ação penal contra o crime público imputado ao arguido, recusando a atenuação especial da pena e a suspensão da execução da pena de prisão.
Por fim, vem o Recorrente requerer ainda que se realize audiência, especificando, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 411º, nº 5 do CPP, pretender ver nela debatidos os pontos ii. e iii. da presente motivação.
Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser admitido e processado, ser designada a respectiva audiência e ser aquele a final julgado procedente, com as legais consequências, revogando-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, desse modo, absolvendo-se o recorrente e assim se fazendo Justiça!
E) Respostas aos recursos
Responderam aos recursos o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, assim como os assistentes JJ, KK, II e VV, os quais retiraram as seguintes conclusões:
O Ministério Público
1. Por acórdão, datado de 06/03/2024, o TRL, além do mais, deliberou, no excerto relevante que se transcreve:
(….)
1- Negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos LL, DD, CC e pela assistente HH;
2- Declarar parcialmente procedentes os recursos interpostos pelos assistentes JJ, KK E II e pelo MINISTÉRIO PÚBLICO quanto ao acórdão final;
3- Declarar improcedentes os recursos interlocutórios interpostos pelo MINISTÉRIO PÚBLICO;
4- Alterar a matéria de facto provada e não provada nos termos contidos nos pontos 3 e 4 da secção vi deste acórdão;
5- Absolver os arguidos MM e NN dos crimes que lhes foram imputados nos recursos interpostos;
6- Manter a condenação do arguido LL na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo noventa e três, número um, do Código de Justiça Militar;
7- Condenar o arguido BB na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo noventa e três, número um, do Código de Justiça Militar;
8 - Condenar o arguido FF na pena de dois anos e sete meses de prisão, suspensa na sua execução por quatro anos, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo noventa e três, número um, do Código de Justiça Militar;
9- Condenar o arguido DD pela prática de dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo noventa e três, número um, do Código de Justiça Militar, nas penas de dois anos e três meses de prisão, quanto ao crime cometido na pessoa de EE e de três anos de prisão no que concerne aos factos de que foi vítima PP, e na pena única de quatro anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução por cinco anos;
10-Condenar o arguido CC na pena de cinco anos e três meses de prisão, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo noventa e três, número dois, alínea d), do Código de Justiça Militar;
11- Condenar o arguido AA em duas penas especialmente atenuadas de catorze meses de prisão, quanto a cada um dos dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo noventa e três, numero três, alínea a), do Código de Justiça Militar, cometidos nas pessoas de OO e PP e, em cúmulo jurídico, na pena dois anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos;
12- Condenar o arguido GG em duas penas de seis anos de prisão, relativas a cada um dos dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo noventa e três, número três, alínea a), do Código de Justiça Militar, cometidos nas pessoas de OO e PP e, em cúmulo jurídico, na pena sete anos e seis meses de prisão;
13- Manter, no demais, o acórdão recorrido; (…)
2. O TRL condenou, respetivamente, os arguidos – 1) GG – na pena única 7 anos e 6 meses de prisão, – 2)FF – na pena de 2 anos e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 4 anos, – 3) BB – na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 3 anos, – 5) AA – na pena única 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 2 anos, pena esta especialmente atenuada, ao passo que a decisão de 1ª instância foi de absolvição.
3. Quanto aos arguidos – 4)DD – e – 6) CC – os mesmos viram as suas penas de prisão agravadas, sendo que os condenou, respetivamente, na pena única de 4 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 5 anos e na pena 5 anos e 3 meses de prisão, quando a decisão de 1ª instância os havia condenado, respetivamente, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período e na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, pela pratica de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo Art. 93º n.º 1 do Código de Justiça Militar.
4. Podemos entender o inconformismo dos arguidos/recorrentes, uns pela circunstância de terem sido absolvidos em 1ª instância e, por via da decisão recorrida serem confrontados com condenações e outros por verem agravadas as suas penas de prisão.
5. Porém, não se aceita semelhante inconformismo perante a evidencia da prova produzida em audiência, de discussão e julgamento e que consta dos autos e a gravidades dos factos que lhes são imputados.
6. Com efeito, após análise minuciosa e aprofundada do acórdão do tribunal de 1ª instância, perante a deteção de insuficiência de fundamentação quanto aos factos contidos no provado e no não provado – Cfr. factos identificados a fls. 840-842 do acórdão – a constatação de nulidade por omissão de pronúncia – Cfr. factos identificados a fls. 842-843 do acórdão – a deteção de vícios de contradição insanável da fundamentação e/ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova – Cfr. factos identificados e explicados a fls. 844-956 do acórdão – o TRL não podia deixar de supri-los, oficiosamente, uma vez que dos autos constam todos os elementos de prova que serviram de base à fixação da matéria de facto, por força do preceituado no Art. 431º alínea a) do C.P. Penal.
7. E fê-lo, ainda, apreciando, de forma analítica, todos os recursos, em particular, dos assistentes JJ, KK e II – Cfr. fls. 956-962 – do Ministério Público – Cfr. fls. 962-987 – do arguido CC – Cfr. fls. 992-995 – e do arguidoDD – Cfr. fls. 995-997 – no estrito cumprimento do quadro legal e não ao arrepio da lei, como procuram argumentar os recorrentes.
8. Nessa medida, sob os pontos “2- Nova redacção do provado:” a fls. 997- 1106 e “3- Nova redacção do não provado:” a fls. 1107-1133 da decisão recorrida, fixou a matéria facto perante a prova produzida em julgamento e constante dos autos, apreciada em conjunto e de acordo com as regras da experiência comum.
9. E o certo é que, analisando a fundamentação do acórdão recorrido, observa-se que este pronunciou-se exaustiva e fundamentadamente sobre todas as questões relevantes, apreciou criteriosamente toda a matéria de facto em que o tribunal da 1ª instância se fundou, após a deteção dos vícios, atrás salientados, supriu-os e ainda, tratou exaustivamente, todas as questões suscitadas pelos recorrentes sendo que, como se deixou já exarado, na avaliação de toda a prova, com recurso ao princípio da livre apreciação da prova, consagrado no Art. 127º do C. P. Penal, num exercício hermenêutico, na procura da verdade material, a mesma concluiu pela condenação dos arguidos, nos termo exarados em 1..
10. É inegável que o processo decisório de forma escrupulosa, cumpriu a lei e se mostra fundamentado, nos termos preceituados no Art. 97º n.ºs 4 e 5 do C. P. Penal para os atos decisórios.
11. Rejeita-se, assim, a argumentação de que o TRL, com a decisão recorrida, extravasou o âmbito dos recursos dos sujeitos processuais, mormente, do Ministério Público, assumindo um “…poder inquisitorial absoluto …” (SIC), na perspetiva do arguido – 1) GG – e ainda, pela posição do Ministério Público e o âmbito do recurso dos assistentes, na perspetiva do arguido 3) – BB – de que não permite a sua condenação.
12. Só o desnorte destes arguidos e dos demais, do primeiro e do segundo grupo, refugiando-se em pretensos vícios, violação de lei e até pretensas inconstitucionalidades, mormente dos Art. 428º e 431º do C. P. Penal, pode explicar semelhante argumentação.
13. Repita-se o processo decisório, de forma escrupulosa, cumpriu a lei – em particular o quadro legal que norteia a apreciação de recursos pelos tribunais superiores – TR`s – atrás descrito – e se mostra fundamentado, nos termos preceituados no Art. 97º n.ºs 4 e 5 do C. P. Penal para os atos decisórios.
14. Considerar que a decisão judicial objeto de recurso padece dos vícios, do erro e está ferida de violação de lei, nos termos enunciados em A), B), C), D), E) e F), perante a factualidade dada como provada a fls. 997-1106 e não provada a fls. 1107-1133 do acórdão recorrido, afigura-se-nos, manifestamente, infundado e inconsequente.
15. E o certo é que quem praticou crimes com a gravidade dos cometidos pelos arguidos – 2 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física14 (GG), 1 crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física15 (FF), 1 crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física16 (BB), 2 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física17(AA), 2 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física18 (DD), 1 crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física19 (CC) – merece censura severa, já que razões de prevenção geral e especial o exigem tendo em conta a necessidade de proteção dos bens jurídicos tutelados, bem como a natureza e as circunstâncias em que os arguidos praticaram os mesmos.
16. O acórdão não violou qualquer preceito legal, fez sim correta apreciação e subsunção jurídica dos factos, como justas e adequadas foram, à prossecução dos fins punitivos, as penas, penas parcelares e as penas únicas de prisão impostas, face à culpa dos arguidos/recorrentes e à gravidade dos crimes cometidos.
17. Saliente-se que ponderou, ainda, as condições pessoais dos arguidos e as personalidades evidenciadas, não obstante todos persistirem na negação dos factos, na fixação das penas de prisão, melhor elencadas em 2. e 3., tudo em obediência aos critérios estabelecidos nos Arts. 40º, 71º e 77º do C. Penal.
18. Em suma, o acórdão recorrido foi elaborado de acordo com as regras da ciência jurídica, da lógica e da experiência e não merece reparo.
19. O TRL fez correta apreciação de toda a prova dos autos, interpretação e aplicação do direito, mormente dos Arts. 127º, 163º, 410º, 423º, 428º e 431º do C. P. Penal, conjugado com os Arts. 369º n.º 1 e 375º do mesmo compêndio, dos Arts. 17º, 48º, 50º n.º 1, 70º, 71º n.º 1 e 72º n.º 2 todos do C. Penal, dos Arts. 2º e 93º n.ºs 1, 2 e 3 do CJM e ainda, dos Arts. 2º, 32º n.ºs. 1 e 5 da CRP e 6º n.º 1 da CEDH.
20.O acórdão recorrido deve ser mantido nos seus precisos termos, improcedendo os recursos.
Os assistentes JJ, KK, II e VV ao recurso do arguido AA
DAS ALEGADAS ILEGALIDADES DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO ---
--- Da alteração do facto provado 307 (conclusões VIII a X) ---
A. O facto provado 307 é do seguinte teor:
307. Após o almoço, o arguido AA falou ao telefone com o Comandante do Regimento ..., QQ, alertando-o para o calor que se fazia sentir, tendo aquele sugerido que no dia seguinte fosse alterado o horário das instruções a ministrar.
B. Porém, a redação de tal facto provado é precisamente igual à que já constava do probatório fixado em 1.ª instância (cfr. facto provado 307).
C. Assim sendo, o Arguido labora em equívoco.
--- Da contradição consubstanciada na pág. 901 do acórdão (conclusão XV) ---
D. O Recorrente invoca que o Tribunal entrou em contradição porque, por um lado, afirma que o Arguido AA teria conhecimento do estado em que os instruendos se encontravam, mas, por outro lado, na pág. 901 do acórdão, afirma que isso não se provou.
E. Não tem o Recorrente razão, porque, uma coisa é o desconhecimento do Arguido AA relativamente a uma situação concreta relativa à instrução de tiro de combate do grupo P1 (que consta da pág. 901 do acórdão recorrido); outra é o que o TRL deu como provado relativamente ao conhecimento do Arguido, em relação ao grupo P1, quanto aos factos provados 187, 200-B, 200-C e 201, o que não é contraditório com o que é mencionado no excerto convocado do acórdão recorrido.
--- Das contradições consubstanciadas nas págs. 449, 950 e 959 do acórdão
(conclusões XVI a XIX) ---
F. Neste segmento, o Recorrente invoca que, a págs. 459 e 950, o acórdão recorrido dá como provado que o Arguido AA sujeitou OO e PP a exercícios com intenção de ofender o corpo e saúde dos mesmos, mas ao mesmo tempo dá como não provado que, no período em causa, os tivesse obrigado à prática de tais exercícios.
G. Ressalvado o devido respeito, o Recorrente não leu bem o excerto que convoca, o qual é perfeitamente claro a distinguir a conduta omissiva do Arguido AA (e de outros Arguidos) – que contribuiu para que OO e PP tivessem sido sujeitos à prática dos exercícios em causa – do facto de não ter sido considerado provado que o Arguido AA os tenha obrigado, em concreto, à prática desses exercícios, o que é diferente (cfr. págs. 949 e 950 do acórdão recorrido).
H. Da mesma forma, não nos parece que seja adequada a leitura do Recorrente quanto à passagem constante de fls. 959 do acórdão, no sentido de que não se considera provado que os Arguidos (entre eles o Recorrente) tenham cumprido o plano de exercícios com intenção de ofender o corpo e a saúde dos ofendidos, o que tem um âmbito genérico, diferente da situação concreta e delimitada a que se reportam os factos provados 430 e ss. do probatório, como o acórdão expressamente ressalva: “Resta, portanto, o que consta dos pontos 430 e ss do provado, que é, exclusivamente, o que se prova quanto à intenção subjacente aos actos praticados por estes arguidos, conforme já analisado, o que se não vai repetir” – cfr. pág. 959 do acórdão recorrido.
I. Não ocorreram por isso as alegadas contradições.
--- DO ALEGADO VÍCIO DA DECISÃO DE DIREITO
(conclusões I a VII, XI a XIV e XX a XXV) ---
J. O Arguido AA, ora Recorrente, entende que os factos dados como provados não permitem dar por estabelecido o preenchimento dos tipos objetivo e subjetivo do crime por que foi condenado.
K. Diferente é a posição dos Recorridos – em linha com o acórdão recorrido – que entendem que, ocupando o Arguido AA, como Diretor da Prova, a posição de garante relativamente aos factos que podiam ter evitado o resultado relativo às ofensas à integridade física dos instruendos que vieram a falecer, os factos dados como provados permitem dar por preenchido os tipos da comissão do crime em pauta por omissão.
L. Divergem os Recorridos do acórdão recorrido – desta feita, em linha com o voto de vencido – quanto à circunstância de outros Arguidos estarem igualmente vinculados, durante a realização das provas, a um dever jurídico de garante, bem como no que se refere à norma incriminadora da conduta do Arguido AA (deveria ser o artigo 93.º, n.os 1 e 2, al. d), e 3, al. b), do CJM, e não apenas o art. 93.º, n.os 1 e 3, al. a), do CJM, como fez vencimento). De qualquer forma, esse não é tema desta resposta dos Assistentes, que se conformaram com o acórdão do TRL, que assim ora vêm sustentar.
M. O acórdão recorrido justifica adequadamente, em termos em que os Recorridos se louvam (sem prejuízo das ressalvas supra), a subsunção dos factos provados ao tipo legal do crime por que o Arguido AA foi condenado (cfr. págs. 1219 e 1220 e 1248 e 1249 do acórdão recorrido).
N. As conclusões estabelecidas no acórdão recorrido encontram-se estribadas nos factos provados, que a seguir, no que é mais relevante, se recordam.
O. Quanto ao quadro geral de falta de hidratação, que desaconselhava a continuação da prova nos moldes em que estava a ser feita, devem ter-se particularmente em conta os seguintes: i) quanto aos Graduados, os factos provados 91, 93, 95-B, 98-A, 100, 101, 101-A, 102, 103, 104, 105, 105-A, 114, 114-A, 114-B, 115, 118, 120, 123, 126, 128, 129, 130, 132, 135 e 136; ii) quanto ao P3, os factos provados262, 263, 269, 270, 282, 283, 291, 292 a 295, 296, 297, 298, 301, 303, 304, 304-A, 304-B e 304-C; iii) quanto ao P1, os factos provados 162, 165, 168 a 180, 181-A, 185, 191, 192 a 199, 200, 200-A, 200-B, 200-C e 201; iv) quanto ao P2, os factos provados 233, 239-A, 239-B, 241 e 243 a 246.
P. Acresce que, nas instruções realizadas (particularmente no tiro de combate, quanto aos grupos P1, P2 e P3, e na ... e na GAM quanto ao grupo de graduados), se verificou a ocorrência de uma prática em que era ordenado aos instruendos que se atirassem para as silvas ou que rastejassem sobre as silvas, como castigo ou como consequência de não terem feito bem os exercícios, o que obviamente constitui uma lesão sobre a sua integridade física, agravando os riscos de lesões mais graves e mesmo para a sua vida, porque é sabido que a violência extrema do exercício físico, articulada com temperaturas excecionais e estado de desidratação, debilita a saúde, podendo desencadear, como veio a acontecer, um golpe de calor; vejam-se, quanto aos Graduados, os factos provados 86, 87, 94, 95, 95-A e 114-A; quanto ao P3, os factos provados 271 a 274, 274-A, 274-B e 274-C; quanto ao P1, os factos provados 171, 172-A, 174 e 175; e, quanto ao P2, os factos provados 219 a 228-A.
Q. Para além desse contexto geral que não podia deixar de ser do conhecimento genérico do Diretor da Prova, devem ter-se em conta os factos especificamente provados quanto ao Arguido/Recorrente AA: quanto aos Graduados, os factos 78, 80, 114-A, 115 e 115-B; quanto ao P1, os factos 187, 200-A, 200-B, 200-C e 201; quanto ao P2, os factos 239-A, 239-B, 245-A e 246; quanto ao P3, os factos 275-A, 304-A, 304-B e 304-C; em geral, os factos 306- A, 306-B, 307, 308, 414-A, 415 e 430-A.
R. Pelo exposto, sem margem para dúvida relevante, pode estabelecer-se o seguinte:
i) o Arguido AAviolou o seu dever de garante relativamente às condições de execução da Prova, que se revelaram extraordinárias, as quais podiam e deviam ter sido adequadas às características de excecionalidade verificadas;
ii) o Arguido AA devia ter agido, ainda no período da manhã, de modo a permitir a adequação do esforço e da hidratação dos instruendos a tais condições, ademais quando se tratava de uma prova de formação inicial desses instruendos;
iii)às 14h, o Recorrente já tinha conhecimento dos sinais de alerta e desidratação dos instruendos, o que, aliado ao esforço físico exigido e ao calor anormal, podia ter consequências orgânicas graves, mas, não obstante isso, deixou prosseguir as instruções sem ter procurado adaptar a hidratação e tal esforço às condições climatéricas vigentes (no limite, podendo mesmo logo suspender a instrução ou parte dela), o que veio a ter consequências fatais para OO e PP;
iv)a essa hora, o Arguido AA já sabia que havia formandos do grupo de Graduados que se encontravam no interior da tenda, apresentando lesões provocadas pela desidratação, e que vários outros instruendos tinham vomitado e perdido os sentidos, apresentando sinais alarmantes de desidratação; sabia igualmente que tais lesões poderiam evoluir até a uma falência multi-orgânica (e até à morte), mas nada fez (muito embora sem se conformar com o resultado morte);
v) o Arguido, que frequentara o Curso de Instrutor de Instrução Física Militar, tinha conhecimento que o calor, aliado ao esforço físico e à desidratação profunda, definia um quadro apto a provocar doenças e até a morte.
S. Em suma, a factualidade provada leva a que se conclua que a conduta do Arguido AA, ora Recorrente, preenche os tipos objetivo e subjetivo do tipo legal do crime por que foi condenado.
T. Duas notas finais.
Primeira. A circunstância de o Arguido ter efetivamente interrompido a prova às 16h não foi ignorada pelo Tribunal (facto provado 308); idem quanto ao facto de o Arguido AA ter telefonado ao Cmdt QQ, após o almoço, alertando-o para o calor que se fazia sentir (facto provado 307). O problema esteve em que atuou tarde de mais em face das circunstâncias do caso, que ele bem conhecia. Se o Arguido, ora Recorrente, tivesse agido atempadamente (no limite, cerca das 14h) poderia ter evitado o que ocorreu com OO na prova de tiro (facto provado 130) e o que ocorreu com PP na ... (facto provado 301), o que concorreu para o desfecho final.
Segunda. A circunstância de o Diretor da Prova se inserir numa cadeia hierárquica, tendo acima dele o Cmdt do Regimento ... [QQ], não o podia – nem devia – ter inibido de agir enquanto garante da preservação da saúde e integridade física dos instruendos, já que o que se esperava dele, enquanto primeiro responsável pelos termos de execução da Prova, era que, no contexto da situação de perigo que se vivia, adotasse os procedimentos adequados a evitar ou mitigar as condutas anti-jurídicas já verificadas e/ou em risco de ocorrer (mesmo sem esperar por qualquer orientação de quem não estava no terreno).
Termos em que o recurso não merece provimento, com as legais consequências.
Os assistentes JJ, KK ao recurso do arguido BB
--- DAS ALEGADAS ILEGALIDADES DO ACÓRDÃO DO TRL
RELATIVAS AO OBJETO DO RECURSO E À DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO ---
--- Da alegação de que o acórdão não foi proferido sobre o recurso dos Recorrentes (conclusão I) ---
A. O Recorrente sustenta que o acórdão condenatório incide sobre matéria que não fora alvo de recurso.
B. Mas não tem razão, como decorre das conclusões B, V e X do recurso interposto pelos Assistentes.
C. A presente condenação é efetuada num minus, o qual se contém dentro do âmbito do crime mais grave a que se reportava o recurso interposto.
--- Das alegadas contradições (conclusões III a VII) ---
D. Considerando que o Arguido foi condenado pela prática dos factos referidos nos n.os 96, 97, 98-A e 98-B do probatório e o teor de págs. 1193, 1243 e 1244 do acórdão, o Recorrente invoca a existência de contradições entre a fundamentação e os factos provados, o que funda no seguinte:
i) inexistência da obrigação de um intervalo entre as provas realizadas (in casu, entre a GAM e o ...), que não constaria do Guião;
ii) inexistência de fundamento para considerar que, nesse período, havia ordem para dar água aos instruendos.
E. Quanto ao desconhecimento que alega existir no que respeita à previsão, no Guião, de um intervalo entre as provas, trata-se de desatenção do Recorrente, pois esse intervalo está previsto no anexo ao Guião, que reproduz o horário previsto para a ..., onde facilmente se identifica, na primeira linha da grelha (cfr. horário de fls. 26 do apenso 1), que, entre as provas em causa no grupo dos Graduados (GAM e ... – cfr. factos provados 89e 99), existia um intervalo de 10 minutos (10:30-11:20 / 11:30-12:20). É isso que consta da fundamentação do acórdão recorrido (pág. 1193).
F. Quanto à questão de, nesse período, não ter sido dada água aos instruendos, a questão tem a ver com o estado de desidratação profunda em que OO – e muitos outros – se encontrava, o que, entre as provas em causa, devia ter sido objeto de especial atenção por parte de BB (e não foi), tendo em conta o que consta dos factos provados 56 e 57. É precisamente isso que consta do acórdão recorrido (pág. 1193).
G. Quanto ao argumento de que os instruendos não tinham relógio, nem conheciam o Guião, trata-se de tema irrelevante, porque o que está em causa é o cuidado que o Arguido BB devia ter tido na circunstância em apreço, em relação à qual o Recorrente tinha o dever de garante.
--- DO ALEGADO VÍCIO DA DECISÃO DE DIREITO ---
(conclusões II e VIII)
H. O Arguido BB, ora Recorrente, sustenta que os factos dados como provados não permitem sustentar a prática de qualquer crime.
Mas não tem razão.
I. O Arguido BB era o oficial instrutor do grupo de Graduados, de que fazia parte OO (facto provado 42).
J. Quanto ao ora Recorrente, releva o que consta dos factos provados 70 a 151 (que dizem respeito ao grupo dos Graduados), bem como dos factos provados 306-A, 306-B, 414-A e 430-A a 430-E, sobretudo os seguintes: 70 a 72, 78 a 80, 83 a 89, 91, 92, 95-B a 100, 108-A, 111, 115-A, 306-A, 306-B, 414-A e 430-A (que se transcreveram no corpo desta resposta).
K. Muito embora o Arguido não tenha sido condenado –como, salvo melhor opinião, devia ter sido – por causa da sua conduta em todos os atos acima descritos, a factualidade em causa não deixa de relevar para o crime por que foi condenado, na medida em que traduz o conhecimento do Arguido da situação de desidratação profunda em que OO e os restantes instruendos do grupo de Graduados se encontravam e o esforço físico duríssimo a que estavam sujeitos, incluindo a prática ilegal de castigar os instruendos, obrigando-os [fora do contexto de qualquer prova] a atirarem-se ou a rastejarem sobre silvas, sob um calor intensíssimo, o que aconselhava que a instrução não prosseguisse nos moldes em que o vinha sendo, sob pena de risco para a sua saúde e integridade física que daí poderia advir.
L. É nesse contexto que deve ser apreciada a concreta conduta imputada ao Arguido, que preencheu o tipo legal do crime por que foi condenado, a qual consta dos factos provados 96, 97, 98-A e 98-B, reproduzidos no corpo desta resposta.
M. Ou seja:
i) tinha terminado a GAM, devia-se seguir o intervalo de 10min, após o que decorreria a ...;
ii) durante esse intervalo, não havia qualquer razão para impor esforços físicos acrescidos a OO, numa altura em que o mesmo devia poder descansar e ser hidratado, como se exigia que o instrutor, ora Recorrente, tivesse determinado, nos termos previstos no Guião (factos provados 56 e 57), o que o mesmo não fez;
iii)pelo contrário, o Arguido não autorizou OO a beber água e mandou-o rastejar, o que agravou o desgaste físico do formando, provocando-lhe “stress emocional, fadiga e afectação da actividade da massa muscular e reduzindo a tolerância ao calor” (facto provado 98-B);
N. A conduta do ArguidoBB foi assim um ato de pura arbitrariedade, com intenção de afetar o estado de saúde de OO (cfr. ainda factos provados 306-A e 430-A, que relevam para a caracterização do dolo).
O. Tem por isso razão o acórdão recorrido, quando conclui nos seguintes termos:
Os factos delituosos cometidos por este arguido contêm-se na ordem dada a OO de que fosse buscar a mochila a rastejar e que regressasse em corrida, tendo-lhes sido dado um tempo para isso, às 11h20, quando já havia instruendos fora da instrução por exaustão e desidratação, as temperaturas já se apresentavam muito elevadas e depois da instrução de GAM, desgastante, que implicava contacto corporal com as silvas.
O exercício não constava do Guião e enquanto castigo ou advertência não aparece motivado como consequência de algo indevido, praticado ou omitido pelo ofendido ou outros formandos. Considerando o conteúdo do Guião da prova não há dúvida de que foi um acto de pura arbitrariedade com consequências na resistência física do formando, relativamente à qual tinha obrigações de garante.
O arguido agiu com dolo directo, sendo que a ilicitude e a culpa manifestadas são relativamente pouco relevantes quanto ao falecimento do ofendido se bem que tenham determinado um maior estado de cansaço e de capacidade de resistência às circunstâncias de execução da prova, causando maior desidratação.
P. Pelo exposto, os factos provados subsumem-se ao tipo legal do crime pelo qual o Arguido BB, ora Recorrente, foi condenado, pelo que o acórdão condenatório não merece a censura de que é alvo no recurso interposto.
Termos em que o recurso não merece provimento, com as legais consequências.
Os assistentes JJ, KK ao recurso do arguido CC
--- DAS ALEGADAS ILEGALIDADES DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO ---
--- Da alteração da redação do facto provado 133 (conclusões I, II, XIII e XV a XVII) ---
A. O Recorrente contesta a alteração efetuada pela Relação de Lisboa ao facto provado 133, uma vez que, onde antes se dizia que o Arguido havia colocado “terra junto à boca” de OO, passou agora a dizer que foi colocada “terra dentro da boca”, o que seria contrário à prova testemunhal e à prova pericial produzidas.
B. Mas não tem razão.
A prova pericial é irrelevante para o efeito, uma vez que da mesma não se retira qualquer conclusão sobre se a terra foi colocada junto à boca ou dentro da boca (nem, aliás, o Recorrente convoca qualquer segmento dos relatórios periciais produzidos).
Tal prova pericial, no que ora releva, tem apenas a ver com aquilo que foi encontrado nos órgãos examinados pela autópsia, onde não se discutia se a terra tinha sido colocada pelo Arguido CC, ora Recorrente, junto à boca ou dentro da boca de OO, sendo irrelevante para a conclusão a que o Tribunal chegou.
C. O Tribunal justificou a alteração ao facto provado 132 de forma lógica, consistente e verosímil, assente nos depoimentos das testemunhas que convocou e nas ilações razoáveis delas extraídas, como decorre do excerto constante de págs. 855 e 856 do acórdão recorrido, transcrito na motivação desta resposta.
--- Do recurso à experiência comum (conclusões XI e XII) ---
D. O Arguido CC reclama ainda da circunstância de o Tribunal da Relação de Lisboa ter recorrido a um critério de experiência comum quando sustentou que as ordens dadas aos instruendos para se atirarem para as silvas (como castigo) teriam necessariamente subjacente a intenção de causar lesões, provocando pressão psicológica nos formandos, como constaria de págs. 849 do acórdão recorrido.
E. Porém, o excerto em causa do acórdão recorrido é igualmente lógico, consistente e verosímil.
F. Quando o acórdão recorrido dá como assentes certos factos com base na experiência comum, fá-lo sempre de acordo com presunções judiciais, eivadas de verosimilhança e ligação ao sentido normal da vida, não havendo nenhuma situação em que tal cuidado não tenha existido. E, quando isso acontece, como é sabido, poderão ter de ser desconsiderados depoimentos que contendam ostensivamente com esse exercício.
--- Das contradições entre factos provados e não provados (conclusão XIV) ---
G. O Recorrente também invoca contradições entre factos provados e não provados, remetendo a conclusão XIV do recurso interposto pelo Recorrente para situações descritas na motivação do recurso, a que, naquilo que possa ter alguma relevância, se respondeu nos n.os 14 a 28 do corpo da presente resposta, em termos que demonstram que não ocorreram as contradições assinaladas pelo Recorrente, sem prejuízo da ressalva efetuada supra nos n.os 17 a 20.
H. De qualquer forma, deixa-se igualmente dito que a alegação do Recorrente assenta, em geral, em interpretações erróneas ou precipitadas sobre o que consta do acórdão recorrido, algumas vezes sobre matéria irrelevante (meros obter dictum), ademais quase sempre não relacionada com a factualidade pertinente para a condenação do Arguido.
--- DOS ALEGADOS VÍCIOS DA DECISÃO DE DIREITO ---
--- O preenchimento dos tipos objetivo e subjetivo do crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 93.º, n.os 1 e 2, al. d), do CJM (conclusões III a X) ---
I. O Arguido CC sustenta que não cometeu o crime por que foi condenado, o que significa que entende que não estariam preenchidos os tipos objetivo e subjetivo do crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, tendo o Recorrente agido nos termos do Guião da Prova, que não teria aplicado de forma “desproporcional e exagerada”.
J. Porém, o acórdão recorrido fundamenta adequadamente tal preenchimento por parte da conduta do ora Recorrente, como decorre do excerto a págs. 1246 e 1247 do acórdão recorrido, transcrito na motivação desta resposta.
K. Relativamente ao Arguido CC e tendo por referência as suas condutas que lesaram a saúde e integridade física de OO, devem ser analisados dois blocos de factos:
i) por um lado, a sua conduta através da qual não adequou o consumo de água do grupo dos Graduados à situação de desidratação profunda em que eles se encontravam, no contexto de esforço físico intenso e sob as terríveis condições climatéricas vigentes (cfr. factos provados 78 a 80, 84-A, 88, 91, 98-A, 98-B, 115-A, 116-A, 414-A e 430-A);
ii) por outro lado, a sua ação quando colocou terra dentro da boca de OO, quando ele já apresentava sinais de degradação neurológica (cfr. factos provados 130 a 150 e 427).
L. Pelo exposto, sem margem para dúvida relevante, pode estabelecer-se o seguinte:
i) o Arguido CC violou o Guião da Prova quando, na sua qualidade de instrutor, impôs ao grupo dos Graduados, incluindo a OO, condições de consumo de água aquém dos limites estabelecidos no Guião da Prova (tal como constam dos factos provados 56 e 57), em termos que contribuíram para o agravamento do quadro de desidratação profunda ocorrido, particularmente com OO;
ii) o Arguido CC bem sabia que a forma como geriu a hidratação dos instruendos, entre eles OO, consubstanciava uma opção arbitrária de desafio das capacidades dos seus formandos, bem sabendo das consequências que isso podia ter para a sua saúde e integridade física e conformando-se com isso (muito embora não com uma falência multiorgânica que conduzisse à morte);
iii)relativamente ao ato de colocar terra na boca de OO, quando este apresentava sinais evidentes de lesões neurológicas e desidratação, sabendo o mau estar que isso lhe causava, afetando a sua saúde e integridade física (ademais agravando o seu quadro de desidratação), o ato do Arguido está eivado de perversidade e desumanidade;
iv)a sequência dos factos provados supra transcrita quanto a este último episódio acentua a natureza do dolo intenso com que agiu, designadamente quanto à situação ocorrida na viatura onde OO foi transportado desde a carreira de tiro, que esclarece o ânimo da sua ação, a qual deve merecer um juízo de especial censurabilidade.
M. Em suma, os factos provados subsumem-se ao tipo legal do crime pelo qual o Arguido CC, ora Recorrente, foi condenado, pelo que o acórdão condenatório não merece a censura de que é alvo no recurso interposto.
--- A questão do consentimento presumido (conclusões XVIII e XIX) ---
N. O Arguido CC invoca ainda a seu favor a exclusão da ilicitude de qualquer facto que tenha praticado por ter de se presumir o consentimento dos instruendos, designadamente OO, à submissão ao quadro dos exercícios a que foram submetidos, até porque sempre poderiam ter desistido, o que seria relevante para os efeitos do art. 149.º do CP.
O. A matéria foi devidamente tratada pelo acórdão recorrido, de págs. 1175 a 1183, em que, no essencial, os Recorridos se louvam.
P. Permitimo-nos, contudo, chamar a atenção para o seguinte:
i) primeiro, presume-se o que é da experiência comum, ou seja, que os instruendos sabiam que iam sujeitar-se a uma prova exigente e dura, incluindo que haveria limitações no consumo de água;
ii) segundo, o que não se pode presumir é que os instruendos soubessem que, em caso de desidratação profunda, em situação de calor extremo, os seus superiores hierárquicos poderiam não adotar as medidas necessárias a acautelar os riscos para a saúde decorrentes desse quadro clínico, ademais nas condições especialíssimas em que esta ... teve lugar;
iii)terceiro, presume-se que os instruendos sabiam que podiam ter de rastejar em terrenos difíceis, podendo mesmo confrontar-se com silvas ou outros obstáculos de natureza idêntica;
iv)quarto, o que não se pode presumir é que os instruendos soubessem que, não logrando fazer os exercícios nos exatos termos determinados pelos instrutores, pudessem ser atirados ou obrigados a atirar-se para montes de silvas, num embate que forçosamente lhes causaria, por todo o corpo, arranhões e outro tipo de feridas;
v) quinto, e não pode obviamente presumir-se que OO tivesse dado o seu consentimento ao ato pelo qual o Arguido CC, ora Recorrente, lhe colocou terra na boca, agravando o seu estado de desidratação quando ele precisava de ser hidratado, num contexto em que eram evidentes os sinais das suas lesões neurológicas.
Q. Falece, pois, tal requisito do consentimento presumido dos instruendos, designadamente de OO, relativamente ao tratamento de que foi objeto por parte do Recorrente CC.
R. De resto, a admissão desse consentimento ofenderia os bons costumes, uma vez que seria particularmente gravoso, além de gratuito e fútil, impor aos instruendos, entre eles OO (e PP), a aceitação de sujeição a tais barbaridades, pelo que não se mostra preenchido o pressuposto previsto no art. 38.º, n.º 1, do CP. Ademais, podendo estar em causa um risco grave para a vida, estaríamos perante interesses jurídicos não livremente disponíveis.
--- O erro sobre a ilicitude (conclusões XX e XXI) ---
S. O Arguido CC – tal como outros co-Arguidos – pretende ainda beneficiar do regime previsto no art. 17.º do CP, mediante o entendimento de que agiu sem culpa, por falta de consciência da ilicitude.
T. A razão pela qual o Tribunal concluiu que não houve erro sobre a consciência da ilicitude – bem pelo contrário, “agiram os arguidos de forma deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram contrárias aos deveres militar e disciplina militar e que eram proibidas por lei” (facto provado 431) – tem a ver com o facto de, nas circunstâncias do caso, se dever concluir que o Arguido CC – tal como outros co-Arguidos – agiu com consciência da inobservância de princípios básicos de qualquer sociedade, que um cidadão comum (ademais um instrutor militar com experiência) naturalmente conhece, como decorre dos excertos constantes de págs. 1161 e 1163 e 1164 do acórdão recorrido, transcritos na motivação desta resposta.
U. Mal se compreende que o Arguido CC, ora Recorrente, entenda que a sua ação não deve ser objeto de um juízo de especial censurabilidade, tendo em conta que agiu no quadro do que entendia dever ser uma instrução militar. Isso apenas significa que o Arguido ainda não incorporou a intensidade do desvalor da sua conduta, a qual revela, além do mais, grande crueldade.
Termos em que o recurso não merece provimento, com as legais consequências.
Os assistentes II e VV ao recurso do arguido DD
--- DAS ALEGADAS ILEGALIDADES DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO ---
--- Da desconsideração dos depoimentos das testemunhas (conclusões I a III) ---
A. O Recorrente sustenta que o acórdão o condenou com desconsideração das testemunhas ouvidas, que, todavia, não enuncia quais sejam.
B. De qualquer forma, a Relação procedeu a uma reapreciação da matéria de facto ao abrigo dos poderes que lhe cabiam enquanto tribunal de recurso, com competência para se pronunciar sobre tal matéria, o que está devidamente justificado – cfr. págs. 919 e 920 do acórdão.
--- Da falta de especificação das feridas causadas (conclusões VII e VIII) ---
C. O Recorrente queixa-se de que o acórdão recorrido não especificou quais foram as feridas que a sua conduta causou a PP, uma vez que este teve de rastejar em silvas noutras ocasiões e provas, para além daquelas que foram ocasionadas pela ação do ArguidoDD.
D. Porém, a Relação teve o cuidado de não imputar ao ora Recorrente todas as feridas retratadas na reportagem do apenso 14, esclarecendo que, para as lesões causadas a PP, terão contribuído várias ações, entre elas as que foram causadas pela conduta do ArguidoDD, como decorre, aliás, de um juízo elementar de experiência comum: É evidente que não se podem imputar todas as feridas descritas no relatório da autópsia como resultado deste castigo, mas que algumas terão dele resultado não se duvida, pelo que se tem que considerar provado que essas feridas estavam retratadas, também, na reportagem fotográfica de fls. 6, 7 e 8 do Apenso 14 – cfr. pág. 920 do acórdão.
E. O Recorrente sustenta que a sua conduta – quando decidiu castigar PP, forçando-o a rastejar sobre silvas – não é penalmente relevante, fazendo legitimamente parte da instrução, pelo que o Arguido não teria cometido o crime por que foi condenado.
F. Causa espanto que o ArguidoDD, oficial do exército, entenda que castigar instruendos, numa ação de formação inicial, atirando-os ou fazendo-os atirarem-se para cima de silvas quando não atingem os objetivos da instrução fixados pelo instrutor, corresponde a uma ordem legítima (ademais no contexto em que tais atos foram praticados).
G. Vale a pena recordar, porque isso enquadra a ação do Arguido, aquilo que ficou provado quanto à sua conduta nesse âmbito, o que consta dos factos provados 174 a 175-B, 219 a 225, 271 a 274-C e 414-A, transcritos no corpo desta resposta.
H. É nesse contexto que deve ser apreciada a conduta do Arguido em relação a PP, tal como referido nos factos provados 271, 274, 274-A, 274-B e 414-A.
I. A tese do Recorrente, no sentido de que punir os instruendos, atirando-os ou fazendo-os atirarem-se para as silvas, como castigo – para os desgastar fisicamente – é um ato legítimo, é inaceitável.
J. Não só se trata de uma prática que não está prevista no Guião da Prova (o qual é bastante detalhado e completo quanto à natureza dos exercícios a efetuar – cfr., designadamente, as fichas de instrução individual que constam de fls. 28 a 70 e 101 a 107 do apenso 1, anexas ao Guião da Prova), como nunca seria admissível num quadro de um Estado de Direito, que preserva os valores da dignidade humana, como justamente o acórdão recorrido sublinha:
Manifestamente, o recorrente confunde omissão da previsão de determinadas actuações no Guião com a sua permissão, o que é inadmissível. Aquilo que o Guião refere são os objectivos da formação e a forma de os atingir, nele não se incluindo quaisquer técnicas de motivação negativa (seja lá isso o que for) e muito menos uma admissão geral e global de quaisquer técnicas que impliquem violação do direito à integridade física dos instruendos. Guião algum, regulamento algum, lei alguma podem permitir aquilo que é constitucionalmente proibido.
Aquilo a que o artigo, docemente, chama técnica de motivação negativa é, afinal, um acto proibido pela ordem constitucional e penal vigente, que não tem qualquer correspondência com o conteúdo do Guião – que, esse sim, é por princípio de cumprimento obrigatório - e menos ainda com os objectivos da formação.
Ainda que se possa admitir que a formação implique práticas de dissuasão, elas carecem de ter uma relação de funcionalidade e proporção aos fins visados, não podendo jamais violar direitos constitucional e penalmente tutelados, como o direito à integridade física, em tudo o que excede o estritamente necessário para os fins visados e o conteúdo do consentimento expresso ou implícito da vítima. – cfr. págs. 1164 e 1165 do acórdão recorrido.
(…)
Os “castigos” admissíveis numa situação de formação ..., como corpo de especiais capacidades físicas e psicológicas para enfrentar as missões bélicas mais difíceis, até pelos deveres inerentes à qualidade de militar, têm que manter a contenção que é exigida de quem dá o exemplo para quem está a aprender, ou seja, têm que poder ser claramente perspectivados como reforço da formação e não como formas de pura agressão. Estas últimas transcendem claramente os objectivos dessa formação, prestada no âmbito de uma instituição que se pretende e se entende como séria, segura e respeitadora dos critérios dos mais elevados padrões socias vigentes.
Acrescente-se que não se provou que este tipo de actuação correspondesse a qualquer tradição militar e, mesmo que tal se tivesse provado, isso não seria apto a criar no cidadão militar a noção de que é legítima uma ofensa à saúde ou integridade física de alguém, sem qualquer finalidade para além da simples ofensa, só porque é praticada no âmbito de uma acção de instrução militar. – cfr. pág.1165 do acórdão recorrido.
K. É, por isso, acertada e justa a conclusão do acórdão recorrido:
Este arguido cometeu o crime imputado mediante duas formas de acção distintas: uma pelo soco que desferiu na face de EE, que deixara cair um bloco de notas do bolso, o que lhe determinou dores, e pela sujeição do PP a ter de rastejar e a atirar-se para dentro de moitas de silvas, por duas vezes, logo na primeira instrução da manhã, sem motivo que o justificasse, tal como atrás verificado.
O arguido agiu sempre com dolo directo sendo que o grau de ilicitude e de culpa manifestados na conduta relativamente a EE foram relativamente pouco graves, mas o mesmo não se passou quanto às ordens de exercícios sobre as silvas, que necessariamente provocaram a PP feridas e inerentes dores, desde as primeiras horas do dia e agravaram o desgaste físico e psicológico próprio da prova, sem motivo que o justificasse. – cfr. págs. 1242 e 1243 do acórdão recorrido.
L. Pelo exposto, os factos provados subsumem-se ao tipo legal do crime pelo qual o ArguidoDD, ora Recorrente, foi condenado, pelo que o acórdão condenatório não merece a censura de que é alvo no recurso interposto.
Termos em que o recurso não merece provimento, com as legais consequências.
Os assistentes JJ e KK ao recurso do arguido FF
--- REMISSÃO PARA A RESPOSTA APRESENTADA EM 19/07/2024
AO RECURSO DE GG ---
A. No recurso interposto pelo Arguido FF, parte das questões suscitadas são equivalentes às que constam do recurso interposto pelo Arguido GG, pelo que, para evitar duplicações, vamos proceder à remissão para alguns segmentos da resposta apresentada a tal recurso pelos Assistentes.
B. É o que se verifica relativamente à matéria das seguintes conclusões constantes do recurso do Arguido FF:
a) quanto à violação do princípio non nova, sed nova (conclusões 2 a 5), dá-se por reproduzido o teor da conclusão A da referida resposta;
b) quanto ao tema dos cantis de água consumidos pelos instruendos (conclusão 6), dá-se por reproduzido o teor dos n.os 12 a 23 da referida resposta;
c) quanto à desconsideração dos depoimentos com base na experiência comum (conclusões 8 a 11 e 22), dá-se por reproduzido o teor do n.º 64 da referida resposta;
d) quanto à falta de audiência do Arguido em 2.ª instância (conclusões 12 e 13), dá-se por reproduzido o teor do n.os 65 a 68 da referida resposta;
e) quanto à licitude dos exercícios de instrução (conclusões 32 a 35), dá-se por reproduzido o teor das conclusões N a P da referida resposta;
f) quanto ao consentimento presumido dos instruendos ou à licitude da auto-colocação em perigo pela vítima (conclusões 36 a 40), dá-se por reproduzido o teor das conclusões Q a U da referida resposta;
g) quanto à falta de consciência da ilicitude (conclusões 26 a 30 e 42 a 47), dá-se por reproduzido o teor das conclusões V a Z da referida resposta.
--- DOS ALEGADOS VÍCIOS DA DECISÃO DE DIREITO ---
C. O Arguido FF sustenta que não cometeu o crime por que foi condenado, uma vez que não teria ocorrido o preenchimento dos tipos objetivo e subjetivo do crime previsto no art. 93.º, n.º 1, do CJM (cfr. conclusões 1, 7, 14 a 21, 23 a 25, 31 e 41).
D. Porém, o acórdão recorrido fundamenta adequadamente tal preenchimento por parte da conduta do ora Recorrente (cfr. págs. 1244 e 1245 do acórdão recorrido).
E. Aquilo que está em causa é a conduta do Arguido FF, ora Recorrente, quando agiu à margem do Guião da Prova e de qualquer princípio de proporcionalidade ou necessidade, punindo os instruendos (entre eles, OO) com a inadmissível prática de lhes ordenar que rastejassem sobre silvas, com o propósito de lhes provocar feridas (como provocou). Ademais isso ocorreu num contexto de desidratação profunda em que os instruendos se encontravam, que até desaconselhava a realização da instrução, não os tendo hidratado, nem chamado a equipa sanitária para lhes prestar assistência (sendo certo que os formandos apresentavam feridas que ele sabia que podiam infetar), como consta dos factos provados 89 a 95-B, transcritos no corpo desta resposta.
F. A tese do Recorrente, no sentido de que a sua ação [fazer os instruendos rastejar sobre silvas], no contexto em causa, seria um ato legítimo e compatível com a instrução militar, é inaceitável.
G. Não só se trata de uma prática que não está prevista no Guião da Prova (o qual é bastante detalhado e completo quanto à natureza dos exercícios a efetuar – cfr., designadamente, a ficha de instrução individual da GAM, ministrada in casu pelo Arguido/Recorrente, que consta de fls. 56 a 70, anexas ao Guião da Prova), como nunca seria admissível num quadro de um Estado de Direito, que preserva os valores da dignidade humana, como justamente o acórdão recorrido sublinha:
Os “castigos” admissíveis numa situação de formação ..., como corpo de especiais capacidades físicas e psicológicas para enfrentar as missões bélicas mais difíceis, até pelos deveres inerentes à qualidade de militar, têm que manter a contenção que é exigida de quem dá o exemplo para quem está a aprender, ou seja, têm que poder ser claramente perspectivados como reforço da formação e não como formas de pura agressão. Estas últimas transcendem claramente os objectivos dessa formação, prestada no âmbito de uma instituição que se pretende e se entende como séria, segura e respeitadora dos critérios dos mais elevados padrões socias vigentes.
Acrescente-se que não se provou que este tipo de actuação correspondesse a qualquer tradição militar e, mesmo que tal se tivesse provado, isso não seria apto a criar no cidadão militar a noção de que é legítima uma ofensa à saúde ou integridade física de alguém, sem qualquer finalidade para além da simples ofensa, só porque é praticada no âmbito de uma acção de instrução militar. – cfr. pág.1165 do acórdão recorrido.
H. A conduta do Arguido FF revestiu-se de pura arbitrariedade, com intenção de afetar o estado de saúde de OO.
I. Ao contrário do que sustenta o Recorrente, a circunstância de o Recorrente se encontrar inserido numa estrutura hierárquica é absolutamente irrelevante, uma vez que ele era o responsável pela GAM (cfr. facto provado 48), tendo agido como superior hierárquico dos instruendos por decisão própria, inobservando o Guião da Prova e as regras definidas para a Prova.
J. Pelo exposto, os factos provados subsumem-se ao tipo legal do crime pelo qual o Arguido FF, ora Recorrente, foi condenado, pelo que o acórdão condenatório não merece a censura de que é alvo no recurso interposto.
Termos em que o recurso não merece provimento, com as legais consequências.
Os assistentes JJ, KK, II e VV ao recurso do arguido GG
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-- DAS ALEGADAS ILEGALIDADES DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO (conclusões 1 a 28)---
A. O Recorrente começa por pôr em causa o acórdão recorrido por violação do princípio non nova, sed nove, já que teria procedido a um novo julgamento ao arrepio dos princípios da imediação e da oralidade.
Todavia, tal apreciação genérica não se sustenta em qualquer situação concreta, não passando de uma proclamação errónea e injusta.
Bem pelo contrário, o acórdão da Relação é rigoroso e minucioso nos concretos pontos da matéria de facto que alterou, ao abrigo dos seus poderes de tribunal de recurso, que compreendem a reapreciação da matéria de facto objeto dos recursos interpostos.
B. Nas conclusões 1 a 28, o Arguido ora Recorrente invoca contradições entre factos provados e não provados e outros vícios que acarretariam a ilegalidade da decisão sobre a matéria de facto. Tais contradições não existem, como se julga ter demonstrado, uma a uma, nos n.os 9 a 64 da motivação da presente resposta, sem prejuízo de se admitirem as retificações supra enunciadas nos n.os 31 e 41. Quanto à alegada falta de audiência do Arguido/Recorrente em segunda instância, o advogado signatário está de acordo com o princípio convocado, sem prejuízo das ressalvas que os Recorridos apontam supra no n.º 68.
--- DOS ALEGADOS VÍCIOS CONCEPTUAIS DA DECISÃO DE DIREITO ---
--- O dever de garante do Arguido e o preenchimento dos tipos objetivo e subjetivo do
crime previsto no art. 93.º, n.os 1 e 3, al. a), do CJM (conclusões 29 a 88) ---
C. O Arguido incorre no crime por que foi condenado por ter violado o seu dever de garante da saúde e da vida dos formandos, particularmente, no que ora releva, de OO e PP, quando inobservou quer o seu dever de vigilância ao longo de toda a formação, quer o seu dever de tratamento de tais instruendos, bem conhecendo o acréscimo de riscos para a sua saúde que daí advinham, o que colocou em perigo as suas vidas.
D. Como já se disse – cfr. supra n.º 4 desta resposta –, os Assistentes não acompanham o acórdão em toda a sua argumentação, particularmente quanto ao dever jurídico de garante (que, na sua ótica, também se impunha a todos os instrutores e respetivas chefias), mas isso não contende com o minus que foi a condenação de GG e de outros co-Arguidos nos termos em que o foi, em que os Assistentes se louvam e sustentam.
E. O preenchimento do tipo objetivo e subjetivo do crime previsto no art. 93.º, n.os 1 e 3, al. a), do CJM, encontra-se bem fundamentado no acórdão recorrido, particularmente no excerto transcrito no n.º 71 da motivação da presente resposta.
F. As conclusões estabelecidas no acórdão recorrido encontram-se estribadas nos factos provados, que a seguir, no que é mais relevante, se enumeram:
i) relativamente quadro geral de falta de hidratação, que desaconselhava a continuação da prova nos moldes em que estava a ser feita: a) quanto aos Graduados, os factos provados 91, 93, 95-B, 98-A, 100, 101, 101-A, 102, 103, 104, 105, 105-A, 114, 114-A, 114-B, 115, 118, 120, 123, 126, 128, 129, 130, 132, 135 e 136; b) quanto ao P3, os factos provados262, 263, 269, 270, 282, 283, 291, 292 a 295, 296, 297, 298, 301, 303, 304, 304-A, 304-B e 304- C; c) quanto ao P1, os factos provados 162, 165, 168 a 180, 181-A, 185, 191, 192 a 199, 200, 200-A, 200-B, 200-C e 201; d) quanto ao P2, os factos provados 233, 239-A, 239-B, 241 e 243 a 246;
ii) ademais, nas instruções realizadas (particularmente no tiro de combate, quanto aos grupos P1, P2 e P3, e na ... e na GAM quanto ao grupo de graduados),verificou-se a ocorrência de uma prática em que era ordenado aos instruendos que se atirassem para as silvas ou que rastejassem sobre as silvas, como castigo ou como consequência de não terem feito bem os exercícios, o que obviamente constitui uma lesão sobre a sua integridade física, agravando os riscos de lesões mais graves e mesmo para a sua vida, porque é sabido que a violência extrema do exercício físico, articulada com temperaturas excecionais e estado de desidratação, debilita a saúde, podendo desencadear, como veio a acontecer, um golpe de calor; vejam-se, quanto aos Graduados, os factos provados 86, 87, 94, 95, 95-A e 114-A; quanto ao P3, os factos provados 271 a 274, 274-A, 274-B e 274-C; quanto ao P1, os factos provados 171, 172-A, 174 e 175; e, quanto ao P2, os factos provados 219 a 228-A;
iii) para além desse contexto geral que não podia ser desconhecido da equipa sanitária que acompanhava a prova (particularmente a prova de tiro, como designadamente consta do facto provado 123), devem ter-se em conta os factos especificamente provados quanto ao Arguido/Recorrente GG (quanto aos Graduados, factos provados 114-B, 115, 123 e 124, quanto ao P1, facto provado 200-C, quanto ao P2, factos provados 239-A e 239-B, e quanto ao P3, factos provados 304-B, 304-C, 306- A, 430-G e 430-L);
iv) acrescem os factos donde se extrai que o Arguido GG bem sabia das consequências para os instruendos, particularmente para OO e PP, da continuação da prova nos termos em que se estava a desenrolar e da falta de tratamento adequado e atempado, a saber: factos provados 312, 313, 417, 418 e 419);
v) finalmente, é mandatário considerar a terrível sequência factual provada relativamente ao que aconteceu na tenda de enfermaria: factos provados 314 a 325-A.
G. Pelo exposto, sem margem para dúvida relevante, pode estabelecer-se o seguinte:
i) o Arguido GG inobservou o seu dever de vigilância relativamente aos termos em que decorreu a Prova, faltando como garante da saúde dos instruendos, particularmente quando não instruiu, não recomendou, nem tomou qualquer iniciativa verdadeiramente adequada a acautelar o estado de desidratação profunda em que os instruendos foram sendo colocados, tendo ainda em conta o seu estado de exaustão física e as condições atmosféricas especialmente adversas (cfr., designadamente, quanto a OO e PP, factos provados 114-B, 115, 304-C, 306-A e 430-G);
ii) o Arguido GG inobservou o seu dever de tratamento devido a OO e PP, designadamente quando não os transferiu imediatamente para a ambulância com ar condicionado que se encontrava no CTA (facto provado 321) e quando não os transferiu para o HFAR ou qualquer outro hospital, ausentando-se do CTA para local desconhecido, sem que existisse outro médico no local (facto provados 322, 323-B, 324, 325 e 326);
iii) na situação referida relativamente à inobservância de tratamento, deve ainda ter-se em conta que o Arguido GG: a) sabia que a tenda onde eles se encontravam não tinha condições de refrigeração, sendo no seu interior a temperatura mais elevada do que no seu exterior (facto provado 316);
b) verificou que a soroterapia não surtiu efeito e, apesar disso, não adotou outros procedimentos, designadamente medidas de arrefecimento corporal e transferência urgente para hospital (factos provados 316-A e 319), isto enquanto OO gemia e PP vomitava e tinha espasmos (factos provados 317, 318 e 320);
iv) perante o quadro clínico em causa era fundamental acautelar a desidratação (factos provados 312, 313 e 419) e assegurar a transferência dos doentes para locais onde a emergência médica pudesse ser acudida, garantindo um rápido arrefecimento corporal dos doentes (facto provado 419), o que o Arguido/Recorrente GG, como médico experiente, conhecia (factos provados 417 e 418);
v) O Arguido GG sabia que os formandos estavam sujeitos à prática dos exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, acima descritos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, com racionamento do consumo de água necessário para enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, mediante a intenção de causar ofensa no corpo e na saúde dos formandos e previu que dessas ofensas podiam resultar graves lesões neurológicas, cardíacas, renais e hepáticas, mas, todavia, não previu que poderiam evoluir até a uma falência de órgãos vitais da qual resultasse perigo para a vida dos formandos, dentre eles OO e PP, resultado com o qual não se conformou. – facto provado 430-G.
H. Em suma, a factualidade provada leva a que se conclua que a conduta do Arguido GG preenche os tipos objetivo e subjetivo do crime por que foi condenado.
I. Duas notas finais.
Primeira. O Arguido/Recorrente põe em causa o nexo causal entre as omissões verificadas e as concretas lesões provocadas a OO e PP, o que não se teria provado. Mas sem razão, porque não é necessário demonstrar um concreto efeito específico que essas omissões tenham tido (o que, de resto, se trataria de uma prova impossível). Aquilo que se tem de provar – e se logrou – foi que as omissões em causa contribuíram diretamente para uma ofensa à integridade física de OO e PP, o que teve como consequência previsível um acréscimo dos riscos para a sua saúde, inclusive colocando em perigo as suas vidas, tendo tais riscos acrescidos vindo efetivamente a ocorrer, concretizando-se nas suas mortes.
Segunda. O Arguido/Recorrente discute se as lesões sofridas têm a ver com a relação hierárquica do Arguido em relação aos instruendos OO e PP, mas igualmente sem razão. O Arguido GG era o responsável da Equipa Sanitária (facto provado 49), que estava inserido numa estrutura hierárquica do pessoal envolvido na ..., como decorre dos factos provados 38 a 49 e do ponto 3 [PESSOAL ENVOLVIDO] do Guião5.
--- A alteração da qualificação jurídica e a falta de audição do Arguido (conclusões 89 a 98) ---
J. O Arguido foi condenado pela prática de dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no art. 93.º, n.os 1 e 3, al. a), do CJM, quando, na acusação/pronúncia, vinha acusado/pronunciado pela prática de crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física previstos no art. 93.º, n.os 1 e 2, als. a) e d), e 3, al. b), todos do CJM.
Em face dessa alteração da qualificação jurídica operada pelo acórdão recorrido, o Arguido vem sustentar que foi violado o art. 424.º, n.º 3, do CPP, porque não lhe foi dada oportunidade de se pronunciar sobre essa nova qualificação jurídica.
K. O Tribunal da Relação entendeu que, in casu, tal exigência não seria aplicável, porquanto a condenação do Recorrente por tal incriminação deveria ser considerada um minus em relação às imputações anteriores, pelo que não se mostrariam violados quaisquer princípios ou garantias de defesa constitucionalmente consagrados.
L. Não temos nada a opor a que tal notificação tivesse ou venha a ter lugar.
Contudo, em bom rigor, não nos parece que a mesma se justifique pelas razões já adiantadas pela Relação de Lisboa, que se renovam.
Estamos perante o mesmo crime, mas com uma incriminação diferente, em função de não se terem julgado verificadas determinadas circunstâncias agravantes, a que corresponde, mesmo em abstrato, uma pena inferior.
M. De resto, em face do recurso do Arguido/Recorrente, nem se vislumbra em que é que, em concreto, tal omissão o teria prejudicado no exercício da sua defesa.
--- A licitude dos exercícios de instrução (conclusões 99 a 106) ---
N. O Recorrente sustenta ainda que a licitude e normalidade dos exercícios a que os instruendos foram sujeitos implicaria sempre que faltasse o elemento típico de abuso de autoridade em causa, porque não teria ocorrido ofensa ao corpo ou à saúde de quem quer que fosse.
O. Segundo o Recorrente, bastaria consultar a bibliografia sobre o treino militar noutros países para se compreender a normalidade do esforço físico exigido aos instruendos que frequentaram a ... do Curso ...º.
P. É pena que o Arguido GG, ora Recorrente, não tenha trazido para o recurso os concretos excertos em que funda tal juízo, que, ressalvado o devido respeito, é manifestamente erróneo, como ele, de resto, bem deve saber.
Em nenhumas forças armadas civilizadas se pode admitir o seguinte:
i) numa prova de formação de instruendos de um corpo especial, perante um quadro de desidratação profunda, num contexto de esforço físico violento, com temperaturas excecionalmente elevadas, com formandos a desmaiar, cambalear, vomitar, cair e alucinar, não agir para acautelar e prevenir esse quadro de desidratação extremo, adotando as medidas necessárias para o corrigir e não pôr escusadamente em risco a saúde e a vida de tais instruendos;
ii) no contexto descrito na alínea precedente, fazer os instruendos saltar ou atirar-se para cima de silvas, com o propósito de lhes provocar arranhões e outro tipo de lesões (ademais, quando esse tipo de exercícios não estava previsto no Guião), como castigo por não terem sido capazes de atingir objetivos fixados pelos instrutores ou por qualquer outra arbitrária ou fútil razão (o que, deixa-se sublinhado, nada tem a ver com aquelas situações em que, no quadro de um exercício de instrução, se tem de rastejar num terreno em que há silvas ou outros obstáculos).
--- O consentimento presumido dos instruendos ou a licitude da autocolocação em perigo pela vítima (conclusões 107 a 119) ---
Q. Noutra linha de defesa, o Arguido, ora Recorrente, vem invocar que, tendo os formandos participado de livre vontade na ..., a qual saberiam à partida ser uma prova exigente e dura, estaríamos perante uma circunstância que excluiria a ilicitude do facto, nos termos dos arts. 38.º e 39.º do CP, devendo considerar-se que ocorreria um quadro de consentimento (pelo menos, de consentimento presumido).
Dito ainda de outro modo, haveria uma situação de autocolocação em perigo pelos instruendos, o que interromperia o nexo causal entre a eventual conduta do Arguido e o resultado danoso.
R. A matéria já foi devidamente tratada pelo acórdão recorrido, de págs.1175 a 1183, em que, no essencial, os Recorridos se louvam.
Permitimo-nos, contudo, chamar a atenção para o seguinte:
i) primeiro, presume-se o que é da experiência comum, ou seja, que os instruendos sabiam que iam sujeitar-se a uma prova exigente e dura, incluindo que haveria limitações no consumo de água;
ii) segundo, o que não se pode presumir é que os instruendos soubessem que, em caso de desidratação profunda, em situação de calor extremo, os seus superiores hierárquicos poderiam não adotar as medidas necessárias a acautelar os riscos para a saúde decorrentes desse quadro clínico, ademais nas condições especialíssimas em que esta ... teve lugar; e ainda que não seriam imediatamente transferidos para o hospital ou para outro lugar em que pudessem receber a assistência médica justificada pela falência de órgãos vitais;
iii)terceiro, presume-se que os instruendos sabiam que podiam ter de rastejar em terrenos difíceis, podendo mesmo confrontar-se com silvas ou outros obstáculos de natureza idêntica;
iv)quarto, o que não se pode presumir é que os instruendos soubessem que, não logrando fazer os exercícios nos exatos termos determinados pelos instrutores, pudessem ser atirados ou obrigados a atirar-se para montes de silvas, num embate que forçosamente lhes causaria, por todo o corpo, arranhões e outro tipo de feridas.
S. Falece, pois, tal requisito do consentimento presumido dos instruendos relativamente ao quadro de “sevícias” a que foram sujeitos.
T. De resto, a admissão desse consentimento ofenderia os bons costumes, uma vez que seria particularmente gravoso, além de gratuito e fútil, impor aos instruendos, entre eles OO e PP, a aceitação de sujeição a tais barbaridades, pelo que não se mostra preenchido o pressuposto previsto no art. 38.º, n.º 1, do CP. Ademais, podendo estar em causa um risco grave para a vida, estaríamos perante interesses jurídicos não livremente disponíveis.
U. Por seu turno, é inaplicável à situação dos autos a tese da impunidade do agente porque OO e PP se teriam autocolocado em perigo – assim interrompendo o nexo causal entre quem motiva a conduta e o seu resultado danoso –, pela elementar razão de que seria preciso que essa autocolocação em perigo tivesse sido responsavelmente querida, esclarecida quanto à dimensão dos perigos e conscientemente assumida, o que não se provou (nem aconteceu).
--- A falta de consciência da ilicitude do Arguido (conclusões 120 a 131) ---
V. Finalmente, o Arguido invoca a sua falta de consciência da ilicitude, porque teria agido no quadro daquilo que, como médico, entendeu que devia ser a sua conduta.
Em face disso, sustenta que o acórdão recorrido teria engendrado uma sua necessária consciência da ilicitude, o que seria fantasioso e violador do princípio da culpa, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana.
W. Os Recorridos estão de acordo que, por força desse princípio da culpa, a questão do erro sobre a ilicitude se pode aplicar a todo o tipo de crimes.
X. Todavia, o Recorrente interpreta mal o acórdão da Relação, que claramente assume que “se não há culpa, ainda que a conduta seja objetivamente contrária à lei penal, não há crime” – cfr. pág. 1157 do acórdão.
Y. A razão pela qual o Tribunal concluiu que não houve erro sobre a consciência da ilicitude – bem pelo contrário, “agiram os arguidos de forma deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram contrárias aos deveres militar e disciplina militar e que eram proibidas por lei” (facto provado 431) – tem a ver com o facto de, nas circunstâncias do caso, se dever presumir que o Arguido GG agiu com consciência da inobservância de princípios básicos de qualquer sociedade, que um cidadão comum (ademais um médico militar com experiência) naturalmente conhece, como decorre do seguinte excerto:
O dever de respeito pela integridade psicossomática do concidadão, seja ele militar ou não, é indissociável dos normais parâmetro normativos e sociais vigentes, estabelecidos desde há seculos na sociedade ocidental e particularmente na sociedade Portuguesa.
A sua violação acarreta, inevitavelmente, uma censurabilidade profundamente sedimentada na consciência ético-social, o que afasta definitivamente a aplicabilidade do regime pretendido.
É o desconhecimento destes princípios mais básicos de qualquer sociedade que os arguidos pretendem que este Tribunal aceite que desconheciam. A punibilidade deste tipo de acções é do conhecimento de qualquer ser humano, desde a mais tenra idade, pelo que a argumentação se mostra completamente desadequada, desastrada e inverosímil. – cfr. pág. 1161 do acórdão.
Z. Mal se compreende que o Arguido venha pôr em causa a evidência daquilo que devia ter sido um comportamento adequado nas circunstâncias do caso.
É pena que o Arguido, médico militar, ainda não tenha incorporado a censura que a sua conduta merece, a qual chegou ao extremo de ter abandonado à sua sorte, sem assistência médica, OO e PP, ausentando-se do CTA para lugar incerto.
Termos em que o recurso não merece provimento, sem prejuízo das ressalvas efetuadas.
F) Parecer do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça e respostas
Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ministério Público emitiu o seu parecer em relação aos recursos dos arguidos, AA, BB, CC, DD e FF, não apresentando conclusões, mas pugnando pela improcedência dos mesmos, excepto em relação ao arguido, CC em relação ao qual devem ser corrigidos os lapsos, que identifica, e a pena ser reduzida para 4 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos.
Atenta a audiência requerida pelo arguido GG limitou-se em relação a este arguido a apor o respectivo visto (artigo 416º, nº 2 do Código de Processo Penal).
Proferido despacho liminar e notificados os restantes sujeitos processuais, vieram responder ao parecer do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça:
Os arguidos AA, BB, CC, DD e os assistentes JJ, KK, II e VV responderam ao parecer, reiterando a argumentação aduzida nos recursos ou respostas respectivas.
Realizada a audiência, cumpre agora decidir.
II Fundamentação
G) Questões a decidir
É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3
Da leitura dessas conclusões, os recorrentes colocam a este Supremo Tribunal as seguintes questões:
AA
Violação do artigo 127.º do Código de Processo Penal na alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação de Lisboa;
Verificação do vício da alínea b), do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
BB
O facto que o consubstancia o crime imputado ao arguido não foi alvo de recurso interposto por qualquer dos recorrentes, não constituindo por isso objeto de recurso;
Os factos dos pontos 96 e 98-A e B não são penalmente relevantes;
Verificação do vício da alínea b), do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
CC
Violação do artigo 127º do Código de Processo Penal e as regras de experiência comum na alteração da matéria de facto provada e não provada;
Violação do artigo 163º do Código de Processo Penal sobre o valor da prova pericial;
Verificação do vício da alínea b), do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal;
Consentimento do artigo 149.º do Código Penal e autocolocação em perigo;
Falta de consciência da ilicitude do artigo 17.º do Código Penal;
Medida da pena.
DD
Violação do artigo 127.º do Código de Processo Penal;
Verificação do vício da alínea b), do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
FF
Verificação dos vícios das alíneas b) e c), do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal;
Violação dos artigos 127º, 428º e 431º pelo Tribunal recorrido, quando interpreta os mesmos nestes termos absolutos: «Para estas conclusões resultantes da experiência comum são irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim», o que é inconstitucional, por violação do princípio da imediação;
É inconstitucional a interpretação do artigo 127º do CPP, conjugado com os artigos 428º e 431º do mesmo código, que permita ao tribunal de segunda instância modificar os factos dados como provados e não provados, fazendo uso das regras da experiência para considerar « irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim», prestados na audiência de julgamento na primeira instância, por violação do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da CRP, e do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (adiante CEDH);
O Tribunal da Relação de Lisboa interpreta e aplica inconstitucionalmente o artigo 127º, conjugado com os artigos 423º, 428º e 431º, todos do mesmo código e com os artigos 15º e 16º do CP, e o artigo 93, n.º 1 a 3, do CJM, no sentido de que o Tribunal recorrido pôde condenar um arguido absolvido em primeira instância, fixando factos relativos ao seu dolo, consciência da ilicitude e motivação sem o ouvir em audiência em segunda instância, violando, assim o princípio das garantias de defesa e o princípio do contraditório, previstos no artigo 32º, nº 1 e 5, da CRP, e do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da CRP, e ainda do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
Não estão preenchidos todos os elementos típicos do nº1 do artigo 93º do Código de Justiça Militar (CJM);
Consentimento do artigo 149.º do Código Penal e autocolocação em perigo;
Falta de consciência da ilicitude do artigo 17.º do Código Penal;
A interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o artigo 17.º do Código Penal, 93º do Código de Justiça Militar, é inconstitucional por violar o princípio da culpa, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1º da Lei Constitucional, e no princípio da legalidade criminal, inscrito no artigo 7º da CEDH, pelo que deve ser revogado o acórdão recorrido e absolvido o recorrente, por falta de consciência da ilicitude dos actos praticados.
GG
O Tribunal da Relação de Lisboa ignora o princípio non nova, sed nove, procedendo a um novo julgamento, ao arrepio da convicção do tribunal da primeira instância e com ponderação de factos gravíssimos novos;
Verificação dos vícios do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal;
Violação dos artigos 127º, 428º e 431º pelo Tribunal recorrido, quando interpreta os mesmos nestes termos absolutos: «Para estas conclusões resultantes da experiência comum são irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim», o que é inconstitucional, por violação do princípio da imediação;
É inconstitucional a interpretação do artigo 127º do CPP, conjugado com os artigos 428º e 431. do mesmo código, que permita ao tribunal de segunda instância modificar os factos dados como provados e não provados, fazendo uso das regras da experiência para “irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim” prestados na audiência de julgamento na primeira instância, por violação do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da CRP, e do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6.º, nº. 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
Ao fixar os factos relativos ao dolo, à sua consciência da ilicitude e à sua motivação sem o ouvir em audiência em segunda instância, o Tribunal da Relação de Lisboa interpreta e aplica inconstitucionalmente o artigo 127.º do CPP, conjugado com os artigos 423.º, 428.º e 431.º do mesmo código, os artigos 15.º e 16.º do CP, e o artigo 93, n.º 1 a 3, do CJM, no sentido de que o Tribunal da Relação de Lisboa pode condenar o arguido absolvido em primeira instância, fixando factos relativos ao seu dolo, consciência da ilicitude e motivação sem o ouvir em audiência em segunda instância, por violação do principio das garantias de defesa e do princípio do contraditório, previstos no artigo 32.º, n.º 1 e 5, da CRP, e do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da CRP, e ainda do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
Não estão preenchidos todos os elementos típicos do crime pelo qual o arguido foi condenado;
A definição de dever de garante do Tribunal da Relação de Lisboa, na vertente de dever de prevenção, é manifestamente ilegal, ilógica e desproporcional, devendo ser, por isso mesmo, rejeitada;
A matéria de facto provada não permite, de maneira alguma, imputar ao recorrente GG qualquer facto doloso, seja a título de ofensas corporais simples previstas pelo artigo 93.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, seja a título de ofensas corporais graves de forma a provocar perigo para a vida dos instruendos, previstas pelo artigo 93.º, n.º 2, do Código de Justiça Militar, seja, no limite, a título da agravação pelo resultado previsto no artigo 93.º, n.º 3, alínea a), do Código de Justiça Militar;
O Tribunal da Relação ao imputar ao arguido uma incriminação nova (a do crime previsto no artigo 93.º, n.º 3, al.ª a) do CJM), sem lhe dar oportunidade para se pronunciar sobre a mesma, violou a norma do art.º 424º, n.º 3, do Código de Processo Penal, interpretando-a em sentido manifestamente inconstitucional por violação das garantias de defesa e do direito ao contraditório inscritas nos comandos normativos do art.º 32º, n.º 1 e 5, da Constituição da República;
Consentimento do artigo 149.º do Código Penal e autocolocação em perigo;
Falta de consciência da ilicitude do artigo 17.º do Código Penal;
A interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o artigo 17.º do Código Penal, aplicado por força do artigo 2º do Código de Justiça Militar, conjugado com a norma do artigo 93.º do Código de Justiça Militar, é inconstitucional por violar o princípio da culpa, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Lei Constitucional, e no princípio da legalidade criminal, inscrito no artigo 7.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo que deve ser revogado o acórdão recorrido e absolvido o recorrente, por falta de consciência da ilicitude dos actos praticados;
O crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93.°, n.° 3, al.ª a), do CJM é inconstitucional, ao prever a moldura de 5 a 12 anos de prisão, perante o crime de ofensas à integridade física simples agravadas pelo resultado, previsto no artigo 143º, n.º 1, e 147º, n.º 1, do Código Penal, por violação do princípio da igualdade plasmado no artigo 13.°, n.° 1, da CRP, mostrando-se igualmente ferido o princípio da proporcionalidade com expressão no artigo 18.°, n.° 2, segunda parte, da Constituição da República Portuguesa;
O Tribunal da Relação de Lisboa interpreta e aplica inconstitucionalmente o artigo 428.° do CPP, conjugado com os artigos 369.°, n.° 1, e 375.°, n.° 1, do mesmo diploma, e os artigos 48.°, 50.°, n.° 1, 70.°, 71.°, n.° 1, e 72.°, n.° 1, do CP, no sentido de que o Tribunal da Relação pode aplicar pena de prisão efectiva pelo cometimento de um crime público quando o recorrente Ministério Público requer a aplicação de pena de prisão em montante inferior e suspensa na sua execução, por violação do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.°, n.° 1, da CRP, e do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6.°, n.° 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
Medida da pena e sua suspensão na execução.
Como resulta das questões a decidir, vários recorrentes invocam vícios da decisão o que impõe, para uma correcta e compreensiva análise dos mesmos, dar por estabilizados os factos provados e não provados, tal como decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, bem como a fundamentação efectuada.
H) Factos provados
No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes os factos (salientando a negrito os alterados pelo Tribunal da Relação de Lisboa)
1. O Regimento ... realiza duas vezes por ano o Curso ....
2. Desde que o Regimento ... foi reactivado em 2002, a secção de Formação do Regimento elaborou, para alguns cursos, um Guião da ..., que depois é apresentado à consideração do Comandante e por este apreciado e aprovado.
Curso 123
3. Em Abril de 2014 iniciou-se o ... Curso ..., constando o Guião da ... no Apenso 19.
4. Desse Guião consta que "o consumo de água é racionado e restringido a 3 cantis por dia (salvo situações excepcionais a serem analisadas pelo Diretor da Prova).
5. Consta ainda do referido Guião que "o reabastecimento de água e hidratação são alvo de especial atenção por parte dos instrutores (acompanhamento presencial), no sentido de que os formandos se alimentem às horas das refeições e se hidratem (essencialmente) ao longo dos períodos de instrução)".
6. Refere-se ainda no Guião que "os instruendos bebem à ordem, cada um do seu cantil e recebem indicações para racionarem o consumo de acordo com o tempo que deve durar a água e o biorritmo adquirido pela prova (devem hidratar-se utilizando uma tampa do cantil, tendo em atenção que cada cantil permite encher 32 tampas)".
7. Na sequência da ... do ... Curso ..., deram entrada no Hospital das Forças Armadas (HFAR) 10 formandos cujas informações clínicas constam do Apenso 34, de fls. 9 a 18.
8. Dessas informações resulta que os formandos apresentavam feridas, lacerações, escoriações dispersas por todo o corpo e um deles apresentava fractura dos ossos do nariz e perfuração timpânica.
9. Foi aberta uma averiguação, realizada por um Oficial do Regimento ..., nomeado pelo seu Comandante - Coronel QQ.
10. No processo de averiguações nº ..., consta, relativamente às declarações prestadas pelo Soldado WW, ao averiguante - Tenente dos ... - o seguinte: "...na instrução de Tiro de Combate mais propriamente no aquecimento ficou para trás. Nesta altura foi agredido com pontapés e murros e foi-lhe dito para chegar à frente. A agressão a pontapé foi realizada pelo segundo Sargento CC."
11. Resulta do processo de averiguações nº ... que o Soldado WW deu entrada no HFAR com fractura dos ossos do nariz e perfuração do tímpano e concluída a averiguação o instrutor responsável pela averiguação refere que o mesmo foi empurrado com os pés pelo Sargento CC, ora arguido.
12. O responsável pela equipa sanitária do ... Curso ... era o médico GG, ora arguido, o qual não elaborou qualquer relatório médico de exame directo ao Soldado WW, porquanto não o observou, tendo o mesmo sido observado pela Enfermeira XX, cuja declaração data de ... de ... de 2014.
13. A final, o Tenente, instrutor do Processo de Averiguações considerou que as feridas inciso-contusas, lacerações, escoriações, lesões nos cotovelos, joelhos e tornozelos se devem à especificidade do Curso ... e propõe que seja elaborado um estudo sobre o aparecimento da síndrome de rabdomiólise.
14. O Processo de Averiguações foi analisado e apreciado pelo Coronel QQ -Comandante do Regimento ... - o qual concordou com o relatório e conclusões do Oficial averiguante, determinando o arquivamento do processo por fraca componente probatória.
Curso 125
15. A "..." do ... Curso ..., iniciou-se em setembro de ..., constando o Guião da ... no Apenso 19.
16. Desse Guião consta, que "o consumo de água previsto é de 3 cantis de água por dia “(as situações de consumo adicional serão propostas pelos instrutores ou pela Equipa Sanitária e sancionadas pelo Diretor da Prova)",
17. Consta desse Guião que "O controlo do acesso à água constitui essencialmente um elemento de acção psicológica..." e que "O Oficial médico transmitirá ao Director da Prova a situação de cada instruendo avaliado e dará as recomendações e cuidados a ter com os casos que entenda necessário."
18. No ponto 2, c. (2) (I), (7), do Guião, afirma-se que "em casos urgentes ou críticos e naqueles em que seja necessária uma evacuação para fora da área da Prova, mesmo que a mesma não seja de carácter urgente ou crítico, o Oficial Médico, directamente ou através do Director da Prova, informa o Exm° Comdt logo que possível."
19. Consta ainda do referido Guião que "o reabastecimento de água e hidratação são alvo de especial atenção por parte dos instrutores (acompanhamento presencial), no sentido de que os formandos se alimentem às horas das refeições e se hidratem (essencialmente) ao longo dos períodos de instrução”.
20. Refere-se ainda no Guião que "os formandos bebem à ordem e recebem instruções para racionarem o seu consumo de acordo com o tempo que deve durar a água e o biorritmo adquirido pela prova (devem hidratar-se utilizando uma tampa do cantil, tendo em atenção que cada cantil permite encher 32 tampas)."
21. O Comandante do Regimento ... determinou que se procedesse a averiguações - relativamente aos factos que poderão ter dado origem à situação clínica dos 8 militares, em particular, do Soldado YY, com um quadro clínico de desidratação, de rabdomiólise grave e insuficiência renal grave.
22. Tal averiguação, foi de novo realizada por um Oficial do Regimento ..., nomeado pelo Comandante QQ.
23. O averiguante diz nas suas conclusões que os formandos foram internados por motivos diversos, não existindo uma causa específica, mas sim um conjunto de factores que levaram ao internamento dos formandos e que o internamento se deve à especificidade e exigência dos exercícios em questão.
24. Relativamente ao Soldado YY, consta do Processo de Averiguações ao ... Curso que constitui o apenso 11, o seguinte: "admite-se que o ... MM, durante a MARCOR do exercício, viu-se obrigado a dar-lhe umas palmadas na face para o reanimar, quando este se encontrava no chão, sem sentidos” e que foi sujeito a hemodiálise até ao dia ... de ... de 2015, por desidratação.
25. O responsável pela equipa sanitária do ... Curso ... era o médico GG.
26. Da equipa sanitária fazia ainda parte o ora arguido, Sargento, Enfermeiro SS.
27. O Processo de Averiguações foi arquivado pelo Coronel QQ.
Curso...
28. De acordo com o Plano de Formação Anual do Exército, o ....º Curso ... estava planeado para o período de .../.../2016a .../.../2016.
29. Em 01/03/2016, o Comandante do Regimento ... - Coronel QQ - solicitou à ... (DF) autorização para antecipar o ....º Curso ..., para o período de .../.../2016 a .../.../2016, apresentando para tal argumentos relacionados com a reposição dos feriados no calendário e de forma a cumprir o Referencial de Curso.
30. Não existia Referencial de Curso aprovado pela Direcção de Formação, de acordo com a nova metodologia.
31. Em .../.../2016, o Diretor da Direcção de Formação do Exército Português, autorizou a antecipação do referido Curso ..., iniciando-se o mesmo em .../.../2016.
32. Face à autorização superior, o Regimento ... programou o início do....º Curso ... para o dia .../.../2016.
33. Foram nomeados para Diretor de Prova, Comandante de ..., instrutores, encarregados de instrução e equipa sanitária, os arguidos acima identificados.
Temperaturas
34. O IPMA emitiu um aviso de alerta meteorológico no dia .../.../2016, válido para o período entre ... de ... de 2016, na zona ....
35. Da informação do IPMA consta que "...perante a situação de calor, com previsão de valores de temperatura máxima ao nível dos limiares do critério de aviso de temperatura máxima estabelecidos pelo IPMA, o Centro de Previsão emitiu, para o período de ... de ... de 2016, os avisos para o distrito de Setúbal, constantes na tabela abaixo."(...) "O nível de aviso emitido para o distrito de Setúbal no período de ... de ... de 2016 foi sempre o de "Amarelo", portanto para valores previstos de temperatura máxima entre 35º a 39ºC."
36. Acrescenta-se na referida informação que podem "ser alcançados valores mais ou menos elevados em outros locais do distrito."
37. De acordo com o Instituto Português do Mar e da Atmosfera as estações meteorológicas de ... e ... são as que têm mais representatividade da temperatura do ar para ..., sendo a diferença média em relação a estas estações de cerca de -1ºC em ....
Assim, às 07:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 17.6º C, 17.8º C e 17.5º C e na estação meteorológica de ..., de 15.2º C, 16.2º C e 14.7º C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 18.33º C.
Às 08:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 20.1º C, 24.0º C e 17.8 C e na estação meteorológica de ..., de 18.6º C, 20.9º C e 16.1º C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 20.56ºC.
Às 09:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 26.4º C, 28.1° C e 24.0° C e na estação meteorológica de ..., de 21.9° C, 25.0 ° C e 20.1° C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 28.00° C.
Às 10:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 30.3°C, 32.4° C e 28° C e na estação meteorológica de ..., de 26.9° C, 28.7° C e 25.0° C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 35.11° C.
Às 11:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 33.8° C, 35.3° C e 32.4° C e na estação meteorológica de ..., de 29.7° C, 30.8° C e 28.6° C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 40.61° C.
Às 12:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 36.1° C, 37.6° C e 34.7° C e na estação meteorológica de ..., de 32.2° C, 34.7° C e 30.3° C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 44.68º C.
Às 13:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 37.9° C, 38.7° C e 36.8° C e na estação meteorológica de ..., de 35.8° C, 36.9° C e 34.3° C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 45.64° C.
Às 14:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 39.2° C, 40.2 °C e 38.4° C e na estação meteorológica de ..., de 37.3° C, 38.3° C e 36.2° C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 44.68° C.
Às 15:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ..., respectivamente de 40.2° C, 40.9° C e 39.1º C e na estação meteorológica de ... de 38.3° C, 39.6° C e 37.5º C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 44.70° C.
Às 16:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 39.9° C, 40.5º C e 39.4º C e na estação meteorológica de ..., de 38.9º C, 39.8º C e 38.3º C.
A mesma hora, a temperatura registada do solo era de 41.98º C.
As 17:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ..., foram, respectivamente, de 39.5º C, 39.9º C e 39.1º C e na estação meteorológica de ..., de 37.7º C, 39.8º C e 35.6º C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 37.55º C.
Às 18:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 37.7º C, 39.2º C e 36,4º C e na estação meteorológica de ... de 34.7º C, 36.1º C e 33.3º C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 32.11º C.
Às 19:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ... foram, respectivamente, de 34.2º C, 36.4º C e 32.2º C e na estação meteorológica de ... de 32.3º C, 33.5 º C e 30.6 º C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 28.76º C.
As 20:00 horas do dia ..., as temperaturas média, máxima e mínima registadas na estação meteorológica de ..., foram, respectivamente de 30.7º C, 32.2º C e 29.4º C e na Estação meteorológica de ... de 29.4º C, 31.0º C e 27.6º C.
À mesma hora, a temperatura registada do solo era de 25.35º C.
Hierarquia dos arguidos
38. O Comandante do Regimento ... iniciou o ...º Curso ... no dia .../.../2016.
39. Os arguidos AA, MM, GG, BB, NN, ZZ, AAA,DD são oficiais do Exército. Os arguidos CC, BBB, LL, CCC,FF, DDD, EEE, SS são Sargentos do Exército. Os arguidos FFF, GGG e HHH, são Praças do Exército Português. À data dos factos todos os arguidos exerciam funções no Regimento ....
40. O arguido AA é ... do Quadro Permanente e Diretor da ... do ...º Curso ....
41. O arguido MM é Capitão do Quadro Permanente e Comandante da ... do ....º Curso ....
42. O arguido BB é Tenente e o arguido CC é primeiro Sargento e foram instrutores do Grupo de Graduados.
43. O arguido ZZ é Alferes e o arguido CCC é segundo Sargento e foram instrutores do primeiro Grupo (P1), ambos do Quadro Permanente.
44. O arguido AAA é Alferes e o arguido LL é primeiro Sargento e foram instrutores do 2.º Grupo (P2), ambos do Quadro Permanente.
45. O arguido NN é Tenente e o arguido BBB é segundo Furriel e foram instrutores do 3, Grupo (P3), ambos do Quadro Permanente.
46. O arguidoDD é Tenente e foi o instrutor responsável pela instrução de Tiro de Combate e os arguidos DDD e EEE são primeiros Sargentos e foram encarregados de instrução de Tiro de Combate, todos do Quadro Permanente.
47. Os arguidos FFF, GGG e HHH à data dos factos eram primeiros Cabos e auxiliares da instrução de Tiro de Combate.
48. O arguidoFF é primeiro Sargento do Quadro Permanente e foi responsável pela instrução complementar de ... da ... - Ginástica de Aplicação Militar (GAM) e Ginástica Educativa (GE).
49. O arguido GG é Capitão do Quadro Permanente e Médico, sendo responsável pela equipa sanitária, da qual fazem parte o arguido SS, enfermeiro, primeiro Sargento do Quadro Permanente, dois socorristas e uma enfermeira.
Prova 0
50. O Regimento ..., planeia, organiza e coordena a denominada "...", que se traduz na primeira prova do Curso ....
51. No....º Curso ..., a referida prova foi planeada, organizada e executada de acordo com um guião, na sequência da directiva nº .../...16, datada de .../.../2016, cujo teor consta de fls. 91 do Apenso 21 e cujo Guião consta a fls. 109 a 129, do Apenso 1.
52. Na sequência da Inspecção Técnica Extraordinária ao Curso ..., concluiu-se que no que concerne à "..." e no que respeita ao âmbito do planeamento da mesma “foram detectadas algumas imprecisões, nomeadamente as relativas às datas de emissão dos documentos e das actividades a desenvolver".
53. Consta do relatório do instrutor do processo disciplinar movido ao arguido AA, na parte de "diligências supervenientes", ponto 4f., o seguinte: "O Guião da ... do ....º Curso ..., foi assinado após a realização da respectiva Prova", e no ponto 4 h, que "Existe um Guião referente ao ...º CCmds, impropriamente difundido na reunião de coordenação da ... do ....º, e um Guião referente ao ....º CCmds, tendo este sido levado a despacho após o início da Prova ".
54. No dia ... de ... de 2016, no Regimento ..., foi distribuído aos instrutores do ....º Curso ..., o Guião da Prova do ....º Curso ... e não o Guião posteriormente enviado ao inquérito e junto ao Apenso 1, fls. 3 a 16.
55. Consta do Guião do ....º Curso ... distribuído efectivamente aos instrutores, que: " o controlo do acesso à água constitui essencialmente um elemento de acção psicológica..." e que o "consumo de água previsto é de 3 cantis de água por dia (as situações de consumo adicional serão propostas pelos instrutores ou pela equipa sanitária e sancionadas pelo Diretor da Prova). “
56. Consta ainda do referido Guião o seguinte: "o reabastecimento de água e hidratação são alvo de especial atenção por parte dos instrutores (acompanhamento presencial), no sentido de garantirem que os instruendos se alimentem às horas das refeições e se hidratam (essencialmente ao longo dos períodos de instrução)".
57. O Guião refere o seguinte "os instruendos bebem à ordem e recebem indicações para racionar consumo de acordo com o tempo que deve durar a água e o biorritmo adquirido pela prova (devem hidratar-se utilizando uma tampa do cantil, tendo em atenção que cada cantil permite encher 32 tampas)”.
58. A .../.../2016 e após as mortes de OO e PP no primeiro dia da "...", foi enviado à Polícia Judiciária Militar (PJM), para junção aos autos, um Guião da "..." do ....º Curso ..., com alterações no que respeita ao consumo de água, sendo o mínimo diário obrigatório de 5 cantis.
59. Nesse Guião entretanto entregue à PJM e junto aos autos para conhecimento da autoridade judiciária diz-se que "o diretor de Prova, mediante a sua interpretação das condições de humidade e temperatura, níveis de esforço desenvolvidos, parecer do médico ou das equipas de instrução poderá decidir aumentar a dotação diária, bem como implementar outras medidas adicionais de hidratação."
60. Pretendeu-se com as alterações acima descritas fazer crer às autoridades judiciárias que efectivamente o consumo mínimo diário de água estabelecido na "..." do .... ° Curso ... era de 5 cantis (cerca de 5 litros de água).
61. O que não corresponde à verdade porquanto, como em todos os cursos anteriores, estava previsto um consumo mínimo diário de água de 3 cantis (3 litros de água) e era essa quantidade de água que constava efectivamente do Guião entregue aos Oficiais instrutores.
62. Todos os arguidos sabiam que a "..." se realizaria nos dias programados (3, 4, 5 e ... de ... de 2016), com racionamento de água aos formandos e com exercícios de elevado desgaste físico e psíquico, dadas as características específicas das instruções ministradas na formação de uma Tropa Especial.
62-A. Todos os arguidos sabiam que a prova se realizaria com elevadas temperaturas e que o racionamento da água correspondia a 3 litros.
63. De acordo com as regras impostas pelo Guião, todos os arguidos aceitaram realizar a "..." e com racionamento de água.
63-A. As flexões e o rastejar eram exercícios físicos não planeados no Guião da Prova.
63-B. Os arguidos AA, MM e BB tinham por função supervisionar a hidratação e a alimentação.
Início da prova
64. No dia ... de ... de 2016, cerca das 21h30, deu-se início à "..." do .... ° Curso ..., tendo os formandos sido acordados por alguns dos instrutores, com granadas de instrução, munições de salva ao mesmo tempo que os oficiais gritavam: "toca a acordar, tá de pé, vamos lá embora, o curso ... já começou!".
65. Os formandos levantaram-se, vestiram-se, foram buscar a ração de combate, bem como fruta e pão e dirigiram-se para a parada.
66. Na parada foram obrigados a despir-se após o que foram revistados pelos oficiais para que não levassem quaisquer objectos, tabaco ou alimentos não permitidos.
67. Foram informados pelos instrutores e Comandante da Companhia - arguido MM - que o consumo de água e alimentação era à ordem.
68. No dia ... de ... de 2016, cerca das 00h00, alguns dos arguidos e todos os formandos deslocaram-se para o Campo Tiro ... (...).
68-A. Os instruendos e instrutores chegaram ao Campo de Tiro ... provindos da ..., cerca das 02h00.
69. Quando chegaram ao Campo de Tiro ..., os oficiais Instrutores, Comandante de Companhia e os quatro grupos de formandos, realizaram uma marcha durante uma hora.
Graduados
70. Do Grupo de Graduados faziam parte os seguintes formandos: III, RR, JJJ, KKK, LLL, MMM, NNN, OOO, PPP e OO.
71. O Grupo de Graduados foi acompanhado pelo arguido BB.
72. Depois da marcha, os formandos acima identificados, beberam entre 3 a 4 tampas de cantil (3x32 ml ou 4x32 ml), à excepção do III e do KKK que não tinham água no cantil por terem sido castigados pelo arguido MM ainda no Regimento ....
73. Por se ter apercebido de que os formandos III e KKK não tinham água, o RR perguntou ao arguido CC, se lhes podia dar água do seu cantil, ao que o arguido CC respondeu negativamente.
74. O arguido CC ordenou ao RR que executasse flexões como castigo.
75. Após as 03h00 e até por volta das 05h00 desse dia 4, os formandos montaram por diversas vezes o bivaque porquanto o arguido CC alegando que as tendas não se encontravam alinhadas, ordenou-lhes para que o fizessem correctamente e, entre a desmontagem e a nova montagem, obrigou-os a rastejar no solo e a efectuar flexões.
76. Alguns formandos não dormiram porquanto o arguido CC lhes deu ordem para que limpassem o armamento.
77. A privação do sono, conjugado com a marcha durante a noite e o rastejar e flexões provocou em todos os formandos cansaço físico.
77-A. Por força do descrito em 75, 76 e 77 os instruendos suportaram um aumento da carga física que, conjugada com a privação de sono, implicou um decréscimo da performance física e o aumento do risco de fadiga.
78. Os arguidos AA, MM, BB e CC, bem sabiam, que a privação do sono e o aumento da carga física pode implicar um decréscimo da performance física e o aumento do risco de fadiga nos formandos.
79. O arguido CC privou os formandos de beberem água durante o pequeno almoço, apesar de saber que lhes deviam ser garantidas alimentação e água.
79-A. A privação de consumo de água ao pequeno-almoço reduziu ainda mais a tolerância ao calor e provocou nos mesmos maior fadiga face ao desgaste físico próprio da instrução.
80. Os arguidos AA, MM, BB e CC sabiam que a hidratação ao pequeno-almoço dos formandos era essencial e fazia parte do plano de hidratação do Guião entregue.
81. Após o pequeno-almoço, foi dada ordem a todos os formandos para que atestassem os cantis.
82. Das 07h30 às 08h20 os formandos realizaram a instrução de Ginástica Educativa (GE), ministrada pelo arguido FF e que se destina a melhorar a mobilidade articular e adaptar as funções orgânicas aos exercícios de esforço, coordenação e desenvolvimento muscular e educação do sistema nervoso, consistindo em saltos, elevações, flexões do tronco, rotações do tronco, extensão dorso-lombar da coluna, extensão de braços, equilíbrio, corrida, lombares, abdominais.
83. Após a GE, os formandos não tiveram intervalo e o arguido BB, não lhes deu ordem para beberem água, apesar do calor que já se fazia sentir, sendo que o arguido CC sabia que os formandos não tinham bebido água ao pequeno-almoço.
84. Das 08h30 às 10h20, os formandos realizaram a instrução de Técnica de Combate 1 (...), ministrada pelos arguidos BB e CC e que no essencial, consiste em progredir com a arma em anca, rastejar colado ao solo, não colado ao solo, de costas, de gatas e reptar.
84-A. Os arguidos BB e CC, ambos ... sabiam que face à elevada carga física da instrução da ..., que durou quase duas horas, à elevada temperatura que se fazia sentir a céu aberto (entre 24 e 32, 4.º C) e ao manter os formandos privados de água, tal instrução provocaria nos formandos ansiedade, náuseas, vómitos, cansaço físico extremo, desidratação e eventuais estados confusionais, o que provocou.
85. Durante a ..., o instruendo RR perguntou ao arguido BB se os formandos podiam beber água, ao que o instrutor respondeu que não autorizava.
86. Por castigo o arguido BB, ordenou ao instruendo RR que se atirasse para as silvas, e depois ordenou também a LLL que se atirasse para as silvas, o que aqueles fizeram, em consequência do que sofreram alguns arranhões, sendo que BB agiu com o propósito de lhes provocar tais lesões.
87. Os arguidos BB e CC sabiam que não consta do Guião da Prova obrigar os formandos a saltarem para cima de silvas.
88. Após a instrução de ..., os formandos descansaram e foi-lhes dada ordem pelos arguidos BB e CC para que aqueles bebessem cerca de 4 a 5 tampas de água, ou seja, cerca de 128 a 160 ml, menos que meia garrafa de água de 33 cl.
89. Das 10h30 às 11h20, desse dia, os arguidos realizaram a instrução de Ginástica de Aplicação Militar (GAM), instrução de grande desgaste físico - que consistiu em rastejar, fazer transporte de feridos, jogos de equipas, dar cambalhotas, entre outros exercícios - com temperaturas acima descritas.
90. A instrução foi ministrada pelo arguido FF, auxiliado pelo 1.º Cabo QQQ.
91. BB, CC e FF sabiam que a exposição ao sol a temperaturas elevadas, e sem que os formandos se encontrassem hidratados, desaconselhava a realização da instrução.
92. Consta das normas Gerais de Segurança na parte respeitante à GAM, a fls. 58, do apenso 1, o seguinte: "ter permanentemente em atenção o grau de fadiga dos instruendos através da detecção dos sintomas corporais".
93. Nessa instrução da GAM, MMM e PPP desmaiaram, e JJJ sentiu sede, tonturas e falta de ar.
93-A. Na instrução da GAM, PPP e MMM desmaiaram em consequência da perda de líquidos e outros nutrientes.
94. Face à situação dos instruendos PPP e MMM, prostrados no solo, o arguido FF, ordenou, a alguns formandos, que pegassem pelos pés do PPP e do MMM e os arrastassem, tendo sido arrastados também pelas silvas, o que provocou naqueles arranhões nos braços, mãos e dorso.
95. Os restantes formandos - III, RR, JJJ, KKK, LLL, NNN, OOO e OO - tiveram que rastejar por cima das silvas, sob ordem do arguido FF, o que fez com o propósito de lhes provocar feridas, como provocou, designadamente arranhões e escoriações nos braços, mãos e pernas e de os humilhar.
95-A. Quando JJJ manifestou sede, tonturas e faltas de ar e lhe foi ordenado que rastejasse por cima das silvas, isso provocou-lhe danos físicos ao nível das mãos, braços e pernas, stress emocional, fadiga e dores em resultado das feridas sendo que a ordem foi dada com o propósito de o humilhar e provocar danos no corpo.
95-B. Durante a instrução de GAM, os arguidos FF e BB não hidrataram os formandos nem chamaram a equipa sanitária para lhes prestar assistência, sendo que os instruendos apresentavam feridas que eles sabiam que podiam infectar.
95-C. Os arguidos AA e MM, não providenciaram pela hidratação dos formandos na GAM, sabiam que eles apresentavam feridas expostas, bem sabendo que poderiam infectar e não impediram a prática de castigos e actos violentos contra eles.
96. Após a instrução de GAM, os arguidos BB e CC ordenaram a III, RR, JJJ, KKK, LLL, NNN, OOO e OO, que fossem buscar as mochilas a rastejar e que regressassem em corrida, tendo-lhes sido dado um tempo para isso.
97. Alguns formandos não conseguiram cumprir o tempo estabelecido.
98. O formando RR, por se encontrar exausto e com sede, bebeu água às escondidas.
98-A. Entre a GAM e a ... os arguidos BB e CC não deram intervalo e nem autorizaram que os formandos bebessem água, apesar da sede, do cansaço e das dores que sentiam em consequência das feridas provocadas pelas silvas.
98-B. O atrás referido, bem como o constante dos pontos 96 e 97 do provado, ocorrido durante a GAM, agravou o desgaste físico dos formandos, provocando-lhes stress emocional, fadiga e afectação da actividade da massa muscular e reduzindo a tolerância ao calor.
99. Entre as 11h30 e as 12h20, os 10 formandos do Grupo de Graduados, acima identificados, executaram a instrução de Técnicas de Combate 2 (...), conhecida pela instrução do "Carrossel" - instrução de enorme desgaste físico - ministrada pelos arguidos BB e CC, que engloba os seguintes exercícios: de mochila às costas e armas na mão, os militares são posicionados no terreno de forma a desenhar um círculo largo, separados entre si vários metros. Depois, pousam as mochilas no chão e os formandos deitam-se no chão, escondidos atrás da máscara (mochila), como se estivessem protegidos atrás de um arbusto. Depois e à ordem do instrutor Oficial, os formandos devem correr o mais rápido possível até à posição seguinte, como se estivessem em combate e tivessem que evitar o fogo inimigo.
100. Nesta instrução, face à elevada temperatura que se fazia sentir acima descrita e à insuficiente ingestão de água e ao esforço físico exigido - corrida em círculo e queda na máscara (mochila) - todos os formandos denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação, situação que se agravou dado que não foram autorizados a beber água pelo arguido BB.
101. O formando LLL sentiu-se muito cansado, com tonturas, com falta de ar, ao ponto de ter perdido os sentidos e os instruendos MMM e NNN desmaiaram, em consequência do estado de exaustão em que se encontravam.
101-A. Tendo desmaiado, NNN ficou prostrado no solo.
102. Na mesma instrução também os instruendos RR, JJJ e PPP denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação, sendo que RR sentia o corpo muito quente, suava muito, tinha a roupa colada ao corpo, tinha sede e mal conseguia andar, motivo por que não conseguia executar os exercícios.
103. Foi então que o arguido CC, na presença do Oficial, arguido BB, disse ao instruendo RR, para se colocar à sombra de uma árvore e passado pouco tempo, surgiram os socorristas, os quais lhe disseram que não era aconselhável beber água naquela situação, limitando-se a molharem-no com água.
104. O formando JJJ só executou 3 a 4 quedas na máscara (cair na mochila), porquanto se sentia tonto, sem forças, com muitas dificuldades em respirar e com muita sede, acabando por desmaiar.
105. O instruendo PPP apenas iniciou a instrução de ... ("Carrossel"), porquanto não conseguiu manter-se de pé, tendo por isso caído e ficado prostrado no solo.
105-A. PPP tinha muita sede, sentia a boca seca, os batimentos cardíacos muito fortes e acelerados e tonturas.
106. Os formandos RR, JJJ, PPP e MMM foram retirados da instrução e colocados numa zona com um toldo e os socorristas deram-lhes a beber 2 a 3 garrafas de água de 1,5 litros (entre todos).
107. Os instruendos LLL e NNN, face ao estado de exaustão pelo calor e desidratação, foram transportados para a tenda que servia de enfermaria - que mais não é do que uma tenda de campanha idêntica à fotografada a fls. 21, do Apenso 10 - onde ficaram deitados, fardados e a soro.
108. LLL e NNN não voltaram à instrução.
108-A. O facto de não terem sido autorizados a beber água durante a instrução da ... pelo arguido BB, contribuiu para a sintomatologia apresentada por LLL.
109. Terminadas as instruções da manhã os formandos III, KKK, OOO e OO deslocaram-se para o bivaque para almoçarem.
110. Ao almoço, III, KKK, OOO e OO comeram uma lata de ração e beberam a água que restava do cantil e encheram o cantil de novo com mais um litro de água.
111. Durante o almoço os formandos JJJ, RR, MMM ficaram na zona do toldo e os arguidos BB e CC não lhes deram ordem para comerem a ração de combate.
112. Por esse motivo, os formandos JJJ, RR, MMM e PPP não almoçaram.
113. Os formandos acima identificados embarcaram na viatura para a instrução do período da tarde e, nessa altura informaram o arguido CC de que não tinham almoçado, o qual ignorou a informação, obrigando-os a prosseguiram as instruções do período da tarde sem terem almoçado.
114. Durante a formatura da tarde - cerca das 14H00 -, os formandos JJJ, RR, MMM, PPP, LLL e NNN não compareceram, sendo que os formandos LLL e NNN já se encontravam na enfermaria, face à exaustão e desidratação e o arguido MM, na qualidade de Comandante de Companhia não deu instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos, ponderarem sobre uma menor intensidade da carga física e aumentarem os períodos de repouso durante as instruções do período da tarde.
114-A. À hora da formatura da tarde o Diretor da Prova, o arguido AA, que tinha conhecimentos específicos na área da motricidade humana, sabia que os formandos apresentavam estados de desidratação, que alguns tinham vomitado, outros perdidos os sentidos no período da manhã e foram sujeitos a rastejar nas silvas apresentando feridas.
114-B. O médico GG, que tinha conhecimentos específicos na área da motricidade humana, sabia que os formandos apresentavam estados de desidratação, que alguns deles tinham vomitado e que apresentavam feridas.
115. O Diretor da Prova, arguido AA, e o médico GG, este com conhecimentos específicos na área de medicina, não deram instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos, ponderarem sobre uma menor carga física e aumentarem os períodos de repouso, e sabiam que as condições atmosféricas se tinham agravado, aumentando as temperaturas do ar e do solo, tendo o arguido GG sabido que alguns dos formandos já tinham perdido os sentidos no período da manhã .
115-A. Os arguidos MM e BB e CC, tinham conhecimento dos sinais de risco de desidratação e consequentes consequências orgânicas, que podem evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, ignoraram tais sinais, e não deram instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos, nem ponderaram sobre uma menor intensidade da carga física e o aumento dos períodos de repouso durante as instruções do período da tarde.
115-B. AA e MM sabiam que havia formandos do grupo de graduados que se encontravam no interior da tenda apresentando lesões físicas e neurológicas, provocadas pela desidratação e consequente consequências orgânicas, que poderiam evoluir até uma falência multiorgânica e à morte e nada deliberaram.
116. Às 14h10, os formandos iniciaram a instrução de Tiro de Combate - instrução ministrada pelos arguidosDD - Oficial de Tiro, responsável pela instrução e DDD, EEE, FFF, GGG e HHH - auxiliares de instrução.
116-A. Durante a instrução de tiro os formandos não beberam água, por decisão do arguidoDD com a conivência do arguido CC que assistiu à instrução.
117. A instrução consistia numa série de exercícios de aquecimento, designadamente, efectuar cambalhotas, rastejar no solo, rebolar, corrida rápida, marcha híper flectida, subir um monte em passo de corrida e descer a rastejar ou a rebolar alternadamente, após o que se seguia o tiro de combate.
118. Os arguidos, entre os quais,DD, começaram a gritar com os formandos, ordenando que executassem os exercícios acima descritos, o que com a elevada temperatura do ar que se fazia sentir e com a temperatura do solo e que constam referidas no facto 43, provocou nos oito formandos do Grupo de Graduados um agravamento do seu estado de saúde, designadamente desidratação e fadiga.
119. As temperaturas do solo e do ar desaconselhavam a realização de tais exercícios físicos.
120. Os formandos JJJ e PPP, durante a explicação teórica sobre o tiro, não conseguiram efectuar os exercícios, e caíram.
121. Ambos foram levantados e JJJ foi obrigado a prosseguir a instrução.
121-A. JJJ prosseguiu a instrução de tiro de combate contra a sua vontade, não tendo sido hidratado.
122. O instruendo JJJ quando estava em frente ao alvo para efectuar o tiro, continuava a sentir-se muito confuso, debilitado e muito enfraquecido, motivo por que colocou o joelho em terra para chamar à atenção dos instrutores.
123. Face ao estado de fadiga e desidratação dos instruendos JJJ, RR, PPP, o arguidoDD aos gritos, deu-lhes ordem para saírem da instrução de tiro e encaminhou-os na direcção do arguido GG, que assistiu a tudo.
124. O arguido GG, médico, ordenou a RR, JJJ e PPP que rastejassem alguns metros em direcção à ambulância, perguntando-lhes ainda se sabiam o que é que eram os ..., apercebendo-se do estado de exaustão e desidratação.
125. O arguido GG ao ordenar aos instruendos RR, JJJ e PPP que rastejassem, fê-lo, na qualidade de Oficial ....
125-A. Quando JJJ manifestou sede, tonturas e faltas de ar e lhe foi ordenado que rastejasse por cima das silvas, isso provocou-lhe danos físicos ao nível das mãos, braços e pernas, stress emocional, fadiga e dores em resultado das feridas sendo que a ordem foi dada com o propósito de o humilhar e provocar danos no corpo.
126. No decurso da instrução de tiro, os formandos III e OOO desmaiaram, ficando prostrados no solo.
127. OOO chegou à Carreira de tiro mas não conseguiu integrar a linha de tiro, nem fazer os exercícios do condicionamento, desmaiou e foi transferido para a tenda que servia de enfermaria.
128. O instruendo III apresentava um estado confusional, não conseguindo articular um discurso coerente, provocado pela elevada temperatura corporal e desidratação, motivo por que foi transportado na ambulância para a tenda que servia de enfermaria e colocado a soro.
129. Os instruendos III e OOO foram transportados na ambulância, por indicação do arguido SS, Enfermeiro, para a tenda que servia de enfermaria, e foram colocados a soro por apresentarem sintomas de desidratação e cansaço, ao ponto de OOO não conseguir falar.
130. O instruendo OO, após executar os exercícios de condicionamento - rastejar, rebolar, executar marcha híper flectida e cambalhotas - com a temperatura do solo e a do ar acima referidas, chegou à linha de tiro e não conseguiu efectuar o tiro, por apresentar algum estado confusional para além de apresentar dificuldades em manter-se de pé.
130-A. A temperatura do ar rondava os 39º/40ºC e o estado confusional de OO devia-se à exaustão pelo calor e desidratação.
131. OO foi observado pelo arguido SS, enfermeiro, o qual, tem algumas habilitações técnicas para se aperceber dos sinais de degradação neurológica e desidratação considerou que aquele estava orientado no tempo e no espaço e não lhe atribuiu prioridade na entrada da ambulância, optando por colocar na viatura os formandos III e OOO.
132. O instruendo OO apenas cuspia e se babava e, num estado confusional, dizia que estava ali para curar as feridas, apresentando sinais evidentes de lesões neurológicas e desidratação.
132- A. As condutas supra descritas provocaram sofrimento físico e psicológico nos formandos, o que era do conhecimento do arguidoDD.
133. O arguido CC, aproximou-se do instruendo OO e colocou na boca do mesmo, um punhado de terra, que apanhou do chão, ao mesmo tempo que dizia "cospe lá agora, burro, pacação”.
133- A. O arguido BB ao ordenar que LLL e RR, rastejassem nas silvas agiu com o propósito de lhes provocar lesões no corpo.
133-B. O OO já apresentava lesões neurológicas quanto o arguido CC lhe colocou terra na boca, tendo-lhe provocado maior desidratação, o que agravou o seu estado de saúde.
133-C. O arguido CC ao colocar terra na boca do OO fê-lo sabendo que, como consequência directa e necessária da sua conduta, agravava o estado de desidratação e mal estar do instruendo.
134. Após isso, o arguido CC deu ordem aos seis formandos do Grupo de Graduados, entre os quais, o OO, para que entrassem na viatura "MAN".
135. Hugo Abreu apresentava sinais evidentes de lesões neurológicas e desidratação, cambaleava, tendo sido ajudado a subir para o veículo por outros formandos, que o deitaram no chão na posição lateral de segurança.
136. O OO desfaleceu antes de entrar para a viatura.
137. Foi colocado por alguns dos seus camaradas no chão da viatura.
138. No percurso, os instruendos PPP e MMM apercebendo-se de que o OO enrolava a língua e revirava os olhos, um deles colocou uma tampa de cantil na boca para impedir que sufocasse.
139. A dado momento do percurso o arguido CC foi para a caixa, onde seguiam os instruendos.
140. O instruendo PPP chamou a atenção ao arguido CC de que o OO estava mal, dizendo que também tinha visto assim o seu pai quando este sofreu um AVC, tendo a tal observação o arguido CC respondido com a pergunta «tu agora és enfermeiro?»
141. O OO não falava.
142. Quando o veículo parou, o OO foi retirado da MAN por alguns camaradas por ordem do arguido CC.
143. E colocado no chão em posição lateral de segurança.
144. O OO não reagia.
145. RRR, acompanhado de um condutor, foi buscar o OO e transportou-o numa viatura para a enfermaria de campanha.
146. No percurso para a zona das tendas, PPP e apercebendo-se de que OO enrolava a língua e revirava os olhos, colocou-lhe uma tampa de cantil na boca para impedir que sufocasse.
147. À observação de PPP, CC respondeu em tom agressivo e aparentando indiferença.
148. Durante o percurso, o instruendo MMM desmaiou no interior da viatura pelo estado de desidratação em que se encontrava.
149. Chegados à zona do bivaque e face ao estado de saúde de vários formandos, que apresentavam sinais de desidratação e cansaço, foram transportados para a tenda que servia de enfermaria: MMM, e OO, para onde já tinham sido transportados após o término da instrução de ..., os instruendos LLL e NNN e, após o término da instrução de tiro, os formandos III e OOO.
149-A. LLL e NNN foram para enfermaria desde minutos depois das 12h20, os ofendidos III e OOO desde poucos minutos depois das 16h00 e PPP após as 20h».
150. Em momento não determinado, a situação de saúde de OO foi-se agravando, tendo culminado com a paragem cardio-respiratória que lhe sobreveio.
151. OO e III foram colocados numa tenda que não tinha refrigeração.
P1
152. Do 1.º Grupo (P1) faziam parte os seguintes formandos: SSS, TTT, UUU, QQ, VVV, WWW, XXX, YYY, ZZZ, AAAA, BBBB, CCCC, DDDD, EEEE, FFFF, GGGG, HHHH, IIII, JJJJ, UU, KKKK, LLLL, MMMM, NNNN, OOOO, PPPP e QQQQ (27 formandos).
153. O 1.º Grupo (P1) foi acompanhado pelo arguido ZZ.
154. A partir das 03h00 e até cerca das 05h00, do dia ... de ... de 2016, os formandos montaram e desmontaram por diversas vezes as tendas, por ordem do arguido CCC, já que o mesmo pretendia que as tendas estivessem todas alinhadas, a pretexto de que os formandos não alinhavam correctamente o bivaque, obrigou-os a rastejar no solo e a efectuar flexões.
155. Após a montagem do bivaque os formandos dormiram por um período de tempo indeterminado.
156. No dia ... de ... de 2016, ao pequeno-almoço, por ordem do arguido CCC, os formandos do 1.º Grupo (P1), consumiram algumas embalagens de bolacha, embalagens de doce, e beberam cerca de 2 a 3 tampas de água do cantil, bebendo antes da instrução de Ginástica Educativa (GE) a água que restava no cantil (não mais de 1 litro).
157. Após o pequeno-almoço foi dada ordem a todos os formandos para que atestassem os cantis, sendo que o reabastecimento foi de 1 litro de água.
158. ZZ tinha por função supervisionar a hidratação e alimentação dos formandos.
159. Das 07h30 às 08h20, os formandos realizaram a instrução de Ginástica Educativa (GE), ministrada pelo arguido FF e cujos exercícios já se encontram descritos.
160. Após a GE os formandos não tiveram intervalo e o arguido ZZ não lhes deu ordem para beberem água, apesar do calor que já se fazia sentir.
161. Por seu turno, das 08h30 às 09h20, os 27 formandos do 1.º Grupo (P1) realizaram a instrução de Técnica de Combate 1 (...), ministrada pelos arguidos ZZ e CCC, cujos exercícios se encontram acima descritos.
162. Os arguidos ZZ e CCC, ambos ..., sabiam que face à natureza dos exercícios, durante quase uma hora, à elevada temperatura que se fazia sentir a céu aberto e que constam descritas, a instrução provocaria, como provocou, elevado desgaste físico aos formandos.
163. Após a instrução de ..., foi-lhes dada ordem pelos arguidos ZZ e CCC para que aqueles bebessem cerca de 4 tampas de água (cerca de 128 ml, menos que meia garrafa de água de 33 cl).
164. Das 09h30 às 10h20, os formandos tiveram instrução de Ginástica de Aplicação Militar (GAM), ministrada pelo arguido FF e pelo Cabo QQQ, cujos exercícios já se encontram acima descritos.
165. O arguido FF, ..., sabia que face à natureza dos exercícios, durante uma hora, à elevada temperatura que se fazia sentir a céu aberto e acima descrita, a instrução provocaria, como provocou, cansaço físico e maior desidratação nos formandos.
166. Após a GAM, os formandos foram autorizados pelos arguidos ZZ e CCC a beber algumas tampas de água de cantil.
167. Às 10h30, do mesmo dia, formandos do Grupo 1 de Praças, deslocaram-se para a carreira de tiro para realização de Tiro de Combate, que teve a duração de aproximadamente 2 horas, ministrada pelos mesmos arguidos:DD, Oficial de Tiro, responsável pela instrução, e pelos auxiliares de instrução, DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, cujos exercícios já se encontram descritos.
168. OOOO ao desembarcar da viatura, já apresentava um elevado estado de cansaço, e o instruendo JJJJ vomitou durante o transporte para a carreira de tiro.
169. Os instruendos que não chegaram primeiro ao símbolo dos ..., continuaram a efectuar exercícios de aquecimento, enquanto os primeiros iniciaram o tiro de combate.
170. O instruendo OOOO não conseguiu efectuar tiro, por não se encontrar em condições físicas.
170- A. A causa do estado de exaustão de OOOO devia-se ao calor, exercício físico e à falta de água.
171. O arguido DDD obrigou os restantes formandos a rastejar sobre as silvas, o que provocou em todos, arranhões semelhantes às fotografadas nas fotografias 1 de fls. 3, 2 de fls. 6 e 2 de fls. 7, do Apenso 14.
172. O arguido MM acompanhou a instrução de Tiro de Combate do 1.º Grupo (P1).
172-A. O arguido MM durante a instrução de Tiro de Combate do 1.º Grupo (P1), viu que todos os ofendidos apresentavam sinais evidentes de exaustão pelo calor e feridas provocadas pelas silvas, nomeadamente os ofendidos OOOO, UUU, DDDD, QQ, JJJJ, TTT, HHHH e IIII.
173. O arguido MM - Comandante da Companhia e responsável por garantir a segurança de todos os formandos - abeirou-se do instruendo OOOO, deu-lhe umas palmadas na face e abriu-lhe os olhos, dizendo que se encontrava bem.
174. No final do Tiro de Combate, todos os instruendos do P1, por ordem do arguidoDD foram obrigados a atirar-se para um monte de silvas, tendo o arguido FFF empurrado para cima das silvas os formandos que estavam reticentes em fazê-lo.
175. SSS, TTT, UUU, QQ, VVV, WWW, XXX, YYY, ZZZ, AAAA, BBBB, CCCC, DDDD, EEEE, FFFF, GGGG, HHHH, IIII, JJJJ, UU, KKKK, LLLL, MMMM, NNNN, OOOO, PPPP e QQQQ sofreram arranhões nas mãos, braços e pernas, semelhantes às da primeira fotografia de fls. 3, segunda fotografia de fls. 6, da segunda fotografia de fls. 7, as quais não foram tratadas por terceiros.
175-A. As feridas com que ficaram SSS, TTT, UUU, QQ, VVV, WWW, XXX, YYY, ZZZ, AAAA, BBBB, CCCC, DDDD, EEEE, FFFF, GGGG, HHHH, IIII, JJJJ, UU, KKKK, LLLL, MMMM, NNNN, OOOO, PPPP e QQQQ foram também consequência de castigos infligidos no tiro de combate sendo que eles continuaram a praticar exercícios no solo com as feridas expostas e sentiram dores.
175-B. As condutas dos arguidosDD, DDD e FFF visaram provocar lesões no corpo dos formandos, designadamente feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas, bem sabendo os arguidos que as feridas poderiam provocariam infecções e que o rastejar nas silvas não faz parte de qualquer exercício físico previsto nos guiões.
176. A esta instrução assistiram os arguidos ZZ - Oficial instrutor do 1.º Grupo (P1) - e CCC, que não impediram as ordens dadas aos formandos de rastejar e de se atirarem para as silvas.
177. No final da instrução de Tiro de Combate, os formandos embarcaram numa viatura com a lona fechada até à área bivaque, o que aumentou o calor no interior da viatura.
178. OOOO, devido ao estado de fadiga e desidratação em que se encontrava, teve que ser retirado por alguns formandos da viatura "MAN" e foi apoiado por estes para a área bivaque
179. Nessa altura o instruendo OOOO já não falava, estava com a respiração ofegante e descontrolada, o instruendo OOOO se encontrasse semiconsciente, prostrado no solo, sem conseguir levantar-se.
180. O arguido CCC não prestou auxílio nem providenciou pela presença da equipa de apoio sanitário para que fosse prestada assistência médica ao OOOO.
181. Chegados à zona de bivaque os formandos encheram o cantil para beberem durante o almoço e fizeram a limpeza do armamento, não tendo OOOO recebido qualquer assistência.
181-A. Chegados à zona de bivaque, OOOO foi levado a encher o cantil, não fez a limpeza do armamento, por continuar prostrado no solo, sem receber qualquer assistência, e os arguidos ZZ e CCC aperceberam-se da sua situação clínica, sabendo que era elevado o risco de desidratação profunda e de lesões renais e hepáticas decorrentes.
182. Terminadas as instruções da manhã todos os formandos deslocaram-se para o bivaque para o almoço.
183. Ao almoço, os formandos, beberam a água que restava do cantil voltando a encher o cantil para a refeição, tendo comido uma lata de ração de combate, fruta e pão.
184. OOOO, durante o almoço, ficou prostrado no solo, não comeu e o arguido ZZ ordenou aos outros formandos do Grupo P1, como castigo, que se colocassem em prancha de punhos até o instruendo OOOO se levantar.
185. O formando OOOO não conseguiu levantar-se, continuando prostrado no solo e o arguido ZZ não lhe providenciou assistência sanitária.
186. GG tem conhecimentos específicos na área da medicina.
187. O Diretor da Prova, arguido AA e o médico, GG, sabiam que as condições atmosféricas se tinham agravado, aumentando as temperaturas do ar e do solo.
188. Às 14H00, os formandos foram para a formatura.
189. O arguido CCC ordenou aos formandos que fossem buscar as mochilas à área de bivaque e determinou que trouxessem a mochila de OOOO e que o transportassem para o local de instrução, sendo o mesmo transportado em ombros pelos outros formandos.
190. As 14h10, os formandos iniciaram a instrução de ..., conhecida pela instrução do "Carrossel" - instrução de enorme desgaste físico, ministrada pelo arguido ZZ, cujos exercícios já se encontram supra descritos.
191. Nesta instrução, face à elevada temperatura do ar e do solo, ao permanente racionamento da água e ao esforço físico exigido, todos os formandos denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação, situação que se agravou ao longo do dia.
192. OOOO ficou prostrado no chão com a respiração ofegante, sem atenção por parte dos arguidos ZZ e CCC, os quais mantiveram o ofendido numa situação de elevado desgaste físico e psíquico, bem sabendo que provocavam no mesmo sofrimento, dor e angústia e depois foi retirado da instrução.
193. TTT sentia muito calor, acabando por desmaiar e foi transferido para a tenda que servia de enfermaria, ficando a soro por se encontrar desidratado.
194. UUU estava confuso e foi transportado para a tenda que servia de enfermaria.
195. HHHH sentia-se muito cansado, estava confuso, tendo sido posteriormente transportado para a tenda que servia de enfermaria, ficando a soro por se encontrar desidratado.
196. IIII foi transportado para a tenda que servia de enfermaria, ficando a soro por se encontrar desidratado.
197. JJJJ sentia-se muito cansado, com muita sede, com dores no corpo, tonturas, visão turva, tendo caído no solo e sido posteriormente transportado para a tenda que servia de enfermaria, ficando a soro por se encontrar desidratado.
198. QQ sentiu cãibras no corpo, estava confuso e com a visão turva, tendo sido transportado para a tenda que servia de enfermaria, ficando a soro por se encontrar desidratado.
199. O instruendo UU desmaiou, tendo sido transportado para a tenda que servia de enfermaria.
200. Durante a instrução do "Carrossel", quando muitos dos formandos já se encontravam exaustos pelo calor e com muitas dificuldades em locomover-se, o arguido ZZ deu-lhes ordem para retirarem o cantil e beberem água, mas como um dos formandos bebeu água sem autorização, o arguido ZZ aos gritos, não os autorizou a beber água.
200-A. O arguido MM apercebeu -se do estado de fadiga extrema e desidratação dos formandos do 1.º Grupo (P1) e quer ele quer AA não providenciaram pela hidratação dos mesmos nem impediram a prática de castigos contra os ofendidos, sendo que MM viu as feridas expostas que os formandos apresentavam e sabia que podiam provocar infecções.
200-B. Os arguidos MM, ZZ e CCC, tinham conhecimento dos sinais de risco de desidratação e consequentes consequências orgânicas, que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, como aliás veio a acontecer e ignoraram tais sinais, o primeiro não dando instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos e todos por não terem determinado uma menor intensidade da carga física e o aumento os períodos de repouso durante as instruções do período da tarde.
200-C. O mesmo foi feito pelo Diretor da Prova, o arguido AA, e pelo médico GG, sendo que o segundo tinha conhecimentos específicos na área da medicina e ambos tinham conhecimentos específicos na área de motricidade humana e sabiam que os formandos já apresentavam estados de desidratação profunda e inúmeras feridas.
201. O arguido AA, tendo verificado a existência de um elevado número de instruendos dos Grupos P1 e P..., que se encontravam com dificuldades em executar os exercícios nas instruções de Técnicas de Combate 2 e prostrados, chamou o arguido GG, que os observou, tendo este determinado, que TTT, UUU, HHHH, IIII, JJJJ, QQ e UU, fossem transportados para a tenda que servia de enfermaria, ficando a soro, HHHH, IIII e JJJJ.
P2
202. Do 2.º Grupo (P2) faziam parte os seguintes formandos: RRRR, SSSS, TTTT, UUUU, VVVV, WWWW, XXXX, YYYY, ZZZZ, AAAAA, BBBBB, CCCCC, TT, DDDDD e EEEEE (15 formandos).
203. O 2.º Grupo (P2) foi acompanhado pelo arguido AAA.
204. Os formandos, finalizada a marcha, não foram autorizados a beber água pelo arguido AAA.
205. Após as 3h e até cerca das 5h, do dia ... de ... de 2016, os formandos montaram e desmontaram por diversas vezes as tendas, por ordem do arguido LL, já que o mesmo pretendia que as tendas estivessem todas alinhadas, a pretexto de que os formandos não alinhavam correctamente os bivaques e como castigo obrigou-os a rastejar no solo e a efectuar flexões.
206. Os formandos dormiram depois da montagem do bivaque até à alvorada.
207. Entre as 6h20 e as 7h00, do dia ... de ... de 2016, ao pequeno-almoço, por ordem do arguido LL, os formandos consumiram embalagens de bolachas, embalagens de doce, e beberam a água que restava nos cantis (não mais de 1 litro).
208. O arguido AAA tinha por função supervisionar a hidratação e a alimentação dos formandos.
209. Após o pequeno-almoço foi dada ordem a todos os formandos para que atestassem os cantis, sendo que o reabastecimento foi de 1 litro de água.
210. Das 07h30 às 08h20 os formandos realizaram a instrução de Ginástica Educativa (GE), ministrada pelo arguidoFF e que cujos exercícios já se encontram supra descritos.
211. Após a GE os formandos não tiveram intervalo
212. Nesse dia ... de ... de 2016, das 08h30 às 10h20, os 15 formandos do 2.º Grupo (P2) realizaram a instrução de Tiro de Combate, ministrada pelos arguidosDD, Oficial de Tiro e responsável pela instrução, e pelos auxiliares de instrução, DDD, EEE, FFF, GGG e HHH.
213. Nessa instrução de tiro encontrava-se presente o arguido LL.
214. Os arguidosDD e AAA sabiam que a instrução de Tiro de Combate é de uma intensidade física muito desgastante, porquanto tem um condicionamento que visa, segundo os ..., colocar os formandos, no primeiro dia de formação, numa situação idêntica à que poderão enfrentar num teatro de operações.
215. Durante a instrução, cujos exercícios já se encontram acima descritos, VVVV e AAAAA manifestaram sinais de cansaço face ao elevado desgaste físico.
216. AAAAA tinha dores, vomitou e caiu ao chão.
217. E foi assistido por um socorrista.
218. Nesta instrução AAAAA pediu para desistir da Prova.
219. Durante a instrução de tiro em seco o arguido DDD ordenou a todos os formandos do Grupo de Praças 2 que rastejassem e rebolassem em cima das silvas, as quais têm picos e provocaram arranhões.
220. Todos os instruendos do Grupo P2, acima identificados acabaram por o fazer, saltando uns por cima dos outros para o interior das silvas.
221. Durante a instrução de tiro em seco, o arguido DDD obrigou todos os formandos do Grupo ... - RRRR, SSSS, TTTT, UUUU, VVVV, WWWW, XXXX, YYYY, ZZZZ, AAAAA, BBBBB, CCCCC, TT, DDDDD e EEEEE a rastejar e a rebolar em cima de silvas, o que eles fizeram por medo, na sequência do que os instruendos ficaram com lesões na face, braços, mãos, cotovelos e pernas que provocaram dores, feridas essa idênticas às que constam nas fotografias acima referidas do Apenso 14, as quais não foram tratadas, sendo que continuaram a praticar exercícios no solo.
222. No final da instrução de Tiro de Combate, o arguidoDD a pretexto de que a os exercícios efectuados pelos instruendos não tinham sido eficazes, ordenou-lhes que rastejassem, por cima das silvas.
223. Todos os instruendos foram de novo obrigados a rastejar pelas silvas por ordem do arguidoDD que era coadjuvado pelos arguidos DDD e EEE, sendo que UUUU foi obrigado a saltar de cabeça para as silvas e foi empurrado para cima de outro instruendo que já estava com o corpo de lado a tentar proteger a cabeça e os olhos.
223- A. O arguidoDD decidiu castigar os formandos e, ao ordenar aos instruendos que rastejassem em cima das silvas, fê-lo com o propósito de os desgastar fisicamente, humilhá-los e provocar feridas no corpo, como provocou.
224. Os que hesitavam em entrar nas silvas eram empurrados para as silvas.
225. TTTT foi empurrado para as silvas.
226. TTTT pediu água e não lhe foi dada.
227. Após a instrução, dado o formando TTTT ter perdido um dos carregadores, foram-lhe desferidas "biqueiradas" com as botas nas costas, por pessoa não identificada, provocando-lhe dores.
228. A esta instrução assistiu o arguido LL.
228-A. Os arguidosDD, DDD e EEE agiram com o propósito de provocar lesões no corpo dos formandos, designadamente feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas, sendo que a instrução de tiro de combate não prevê a execução deste exercício nas silvas.
229. Após a instrução de Tiro de Combate, os formandos embarcaram na viatura pesada "MAN", sendo acompanhados pelo arguido LL, sempre com a lona fechada até à área bivaque.
230. Na viatura fazia-se sentir bastante calor.
231. Chegados à área de bivaque, o arguido LL, deu ordens aos instruendos para beberem um número indeterminado de tampas de cantil de água.
232. Entre as 10h30 e as 12h20, desse dia, ao 2.º Grupo (P2), foi ministrada a instrução de Técnicas de Combate 1 (...) pelos arguidos AAA e LL e que no essencial, cujos exercícios se encontram supra descritos.
233. Face à elevada temperatura que se fazia sentir (referidas no ponto 43) todos os instruendos denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação.
234. Os formandos durante a instrução foram autorizados a beber algumas tampas de água do cantil.
235. Terminadas as instruções da manhã todos os formandos deslocaram-se para o bivaque para o almoço.
236. Ao almoço, cada formando do 2.º Grupo (P2) encheu o cantil de água e foi autorizado a bebê-lo na totalidade (1 litro), tendo comido uma lata de ração.
237. TT vomitou a comida.
238. O arguido LL perguntou a TT se estava a gozar com ele.
239. O arguido LL desferiu uma bofetada na face de TT e obrigou-o a comer parte da ração de combate.
239-A. durante a formatura da tarde - cerca das 14H00 - alguns dos formandos não compareceram por se encontrarem exaustos pelo esforço físico, calor e desidratados, sendo o arguido MM, AAA e LL tinham conhecimento dos sinais de risco de desidratação e respectivas consequências orgânicas que podem evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, como aliás veio a acontecer, e o primeiro não deu instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos, nem todos ponderarem sobre uma menor intensidade da carga física e aumento dos períodos de repouso durante as instruções do período da tarde.
239-B. O mesmo fizeram o Diretor da Prova, o arguido AA e o médico GG sendo que o segundo tinha conhecimentos específicos na área da medicina e ambos tinham conhecimentos específicos na área de motricidade humana e sabiam que os formandos já apresentavam estados de desidratação profunda e inúmeras feridas.
240. Às 14h10, os formandos iniciaram a instrução de ..., conhecida pela instrução do "Carrossel" - instrução de enorme desgaste físico - ministrada pelos arguidos AAA e LL, cujos exercícios já se encontram descritos.
241. Nesta instrução, face à elevada temperatura do ar e do solo, ao permanente racionamento da água e ao esforço físico exigido, todos os formandos denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação, situação que se agravou ao longo do dia.
242. No decorrer da instrução de ..., que demorou cerca de duas horas, sem interrupções, os instruendos VVVV, ZZZZ, TT, TTTT, AAAAA e RRRR sentiam-se exaustos e com muita sede.
243. VVVV sentia-se muito cansado, com muita sede e com dores no corpo, sentia-se tonto, com a visão turva e com cãibras e foi transportado para a tenda que servia de enfermaria, ficando a soro por se encontrar desidratado.
243-A. No decorrer da instrução de ... AAAAA e RRRR caíram e ficaram prostrados no solo porquanto sentiam dores no corpo, tonturas, visão turva e cãibras, sintomas esses também sentidos por TTTT.
244. TTTT sentia-se muito cansado, com muita sede, dores no corpo, tonturas, tinha visão turva e cãibras, e não conseguia movimentar-se.
245. RRRR já tinha dificuldades em ver com nitidez, sentia-se confuso e sem energia para se manter de pé, acabando por desmaiar, e foi observado pela equipa sanitária.
245-A. Os arguidos AA, MM e NN tinham por função supervisionar a hidratação e a alimentação dos formandos.
245-B. O arguido NN privou os formandos de água após a marcha e após a GE o mesmo tendo feitoDD desde o início do tiro de combate até à chegada ao bivaque, sendo que não adaptaram a instrução às condições climatéricas.
246. O arguido AA, tendo verificado a existência de um elevado número de instruendos dos Grupos P1 e P..., que se encontravam com dificuldades em executar os exercícios nas instruções de Técnicas de Combate 2 e prostrados, chamou o arguido GG, que os observou, tendo este determinado que VVVV fosse transportado para a tenda de enfermaria, ficando a soro.
P3
247. Do 3.º Grupo (P3) faziam parte os seguintes formandos: FFFFF, GGGGG, HHHHH, IIIII, JJJJJ, EE, KKKKK, LLLLL, MMMMM, PP, NNNNN, OOOOO, PPPPP, QQQQQ e RRRRR (15 formandos).
248. O 3.º Grupo (P3) foi acompanhado pelo arguido NN.
249. Finalizada a marcha, os formandos do 3.º Grupo (P3), do qual fazia parte o PP, não foram autorizados a beber água pelo arguido NN.
250. Após as 03h00 e até por volta das 05h00 do dia ... de ... de 2016, os formandos, montaram e desmontaram por diversas vezes as tendas, por ordem do arguido BBB, já que o mesmo pretendia que as tendas estivessem todas alinhadas, a pretexto de que os formandos não alinhavam correctamente os bivaques e obrigou-os a rastejar no solo e a efectuar flexões.
251. Os formandos dormiram.
252. No dia ... de ... de 2016, ao pequeno-almoço, por ordem do arguido BBB, os formandos, consumiram algumas embalagens de bolachas, embalagens de doce e beberam a água que restava no cantil (não mais de 1 litro).
253. Após o pequeno-almoço foi dada ordem a todos os formandos para que atestassem os cantis, sendo que o reabastecimento foi de um litro de água.
254. Das 07h30 às 08h20 os formandos realizaram a instrução de Ginástica Educativa (GE), ministrada pelo arguidoFF, e cujos exercícios já se encontram acima descritos.
255. Após a GE os formandos não tiveram intervalo e o arguido NN não lhes deu ordem para beberem água, apesar do calor que já se fazia sentir.
256. Nesse dia ... de ... de 2016, das 08h30 às 10h20, os 15 formandos do 3.º Grupo (P3) realizaram a instrução de Tiro de Combate, ministrada pelos arguidos DD - Oficial de Tiro e responsável pela instrução e pelos auxiliares de instrução, DDD, EEE, FFF, GGG e HHH.
257. Nessa instrução de tiro encontrava-se presente o arguido BBB.
258. Os arguidos DD e NN, sabiam que a instrução de Tiro de Combate é de uma intensidade física muito desgastante, porquanto tem um condicionamento que visa, segundo os ..., colocar os formandos, no primeiro dia de formação, numa situação idêntica à que poderão enfrentar num teatro de operações e cujos exercícios já se encontram acima descritos.
259. Face às temperaturas que já se faziam sentir, ao tipo de instrução com elevado desgaste físico, importaria que a mesma fosse seguida pelo instrutor Oficial com o máximo de cuidado.
260. No início da instrução os formandos não conseguiram formar em U no tempo e nos moldes exigidos pelo arguidoDD.
261. O arguido DD viu que EE deixou cair um bloco de notas e quando este se levantou do chão, o arguido Fernandes desferiu-lhe um soco na face provocando-lhe dores.
262. Durante a instrução, GGGGG, manifestou sinais de exaustão, face à privação de água, à temperatura do ar e do solo e ao elevado desgaste físico.
263. GGGGG desmaiou por causa da perda de líquidos e outros nutrientes.
264. Tal desmaio, foi provocado pela exaustão, motivo por que GGGGG foi observado por um membro da equipa sanitária e lhe foi dada água, após o que regressou à instrução.
265. GGGGG, pediu autorização e regressou à instrução por sua vontade.
266. GGGGG ainda conseguiu chegar à linha de tiro, mas ali chegado colocou o joelho no solo e levantou o braço em sinal de socorro.
267. Foi então que o arguido HHH, se aproximou do instruendo GGGGG e perguntou-lhe o que se passava, retorquindo este que estava a sentir-se mal.
268. Perante isso e tratando-se da linha de tiro real, o arguido HHH nem se preocupou com o seu estado de cansaço e tirou-lhe o cantil de água despejando a água para o solo, privando-o do consumo de água.
269. Alguns formandos pediram para desistir da prova, face ao estado de cansaço e sede que sentiam.
270. PPPPP sentiu-se mal.
271. Ainda durante a instrução de tiro em seco, os formandos do Grupo 3 de Praças tiveram que rastejar e rebolar em cima de silvas as quais têm picos e provocaram arranhões.
272. Ficaram com arranhões nas mãos.
273. Repetido
274. Todos os instruendos foram de novo obrigados a rastejar pelas silvas por ordem do arguidoDD e coadjuvado pelos arguidos DDD e EEE.
274-A. O arguido DD castigou os formandos e ao ordenar que rastejassem nas silvas fê-lo com o propósito de os desgastar fisicamente, humilhá-los e de lhes provocar feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas, como provocou, sendo que a instrução de tiro de combate não prevê quaisquer exercícios em silvas.
274-B. O mesmo aconteceu com o PP, o qual também teve que rastejar em cima das silvas e, em consequência disso, também sofreu feridas no corpo fotografadas a fls. 6, 7 e 8 do Apenso 14.
274-C. Aos formandos que hesitassem em entrar nas silvas os arguidos FFF, GGG e HHH, à ordem do arguidoDD, empurram-nos para dentro das silvas, fazendo-os cair uns por cima dos outros, com o propósito de lhes provocar danos no corpo, designadamente feridas na face, braços, mãos e pernas, como provocaram.
275. A esta instrução assistiu o arguido BBB.
275-A. Os arguidos AA e MM, não providenciaram pela hidratação dos formandos do 3.º Grupo (P3), nem impediram a prática de castigos e actos violentos contra os aqueles, sendo que sabiam que eles apresentavam feridas expostas, que poderiam infectar.
276. Após a instrução de Tiro de Combate, os instruendos, embarcaram na viatura pesada "MAN", sendo acompanhados pelo arguido BBB, sempre com a lona fechada até à área bivaque.
277. Na viatura estava mais calor e os formandos manifestaram cansaço.
278. Chegados à área de bivaque, o arguido BBB, deu ordens aos formandos para beberem tampas de cantil de água em quantidade não apurada.
279. Entre as 10h30 e as 11h20, aos formandos do 3.º Grupo (P3), foi ministrada a instrução de Técnicas de Combate 1 (...), pelos arguidos NN e BBB, cujos exercícios se encontram supra descritos.
280. Face à elevada temperatura que se fazia sentir, aos exercícios realizados, ao ritmo da instrução e ao racionamento da água, todos os instruendos denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação.
281. Entre as 11h30 e as 12h20, os formandos realizaram a instrução de Ginástica de Aplicação Militar (GAM), instrução de elevado desgaste físico - e cujos exercícios se encontram acima descritos, ministrada pelo arguidoFF e auxiliado pelo 1. ° Cabo QQQ e à qual assistiu o arguido BBB, registando-se as temperaturas acima consignadas.
282. Os arguidos NN eFF sabiam que a exposição ao sol a temperaturas tão elevadas e sem que os formandos se encontrassem hidratados, desaconselhava a realização da instrução.
283. Nesta instrução, face ao calor, ao racionamento de água, aos exercícios realizados e ao esforço físico exigido face ao tipo de prova, todos os formandos, nomeadamente, LLLLL, GGGGG, NNNNN, MMMMM, PPPPP e JJJJJ, (este último vomitou) denotavam cansaço e desidratação, sendo que durante os exercícios, o formando PPPPP, deitou-se no chão e pediu água, que não lhe foi dada pelo arguido FF, nem pelos responsáveis pelo Grupo, os arguidos NN e BBB, apesar de se terem apercebido dos sinais de fadiga e desidratação dos formandos.
283-A. Na instrução da Ginástica de Aplicação Militar o formando JJJJJ vomitou durante os exercícios, e PPPPP, deitou-se no chão e pediu água, não lha tendo sido dada pelo arguidoFF, nem pelos responsáveis pelo Grupo, os arguidos NN e BBB, apesar de se terem apercebido dos sinais de fadiga e desidratação extrema dos formandos.
284. O formando JJJJJ vomitou e não foi assistido por ninguém.
285. Terminadas as instruções da manhã todos os formandos se deslocaram para o bivaque, para o almoço.
286. Ao almoço, cada formando comeu uma lata da ração de combate, duas maçãs e um pão e beberam a água que restava no cantil (menos de 1 litro), tendo posteriormente enchido novamente o cantil (1 litro) por ordem dos arguidos NN e BBB.
287. Alguns dos formandos tinham dificuldade em caminhar, porquanto apresentavam contracções dolorosas dos músculos, como foi o caso de NNNNN, MMMMM, GGGGG e PPPPP.
288. O instruendo PP já se sentia cansado face ao desgaste físico das instruções anteriores e à desidratação.
289. Durante a formatura da tarde - cerca das 14H00 - alguns dos formandos do Grupo de Praças 3, não compareceram por se encontrarem exaustos.
290. As 14h10, os formandos iniciaram a instrução de Técnicas de Combate 1 (...), ministrada pelos arguidos NN e BBB.
291. Os arguidos NN e BBB, ambos ..., sabiam que face à natureza dos exercícios e à elevada temperatura que se fazia sentir a céu aberto, sem consumo de água durante quase uma hora, a instrução provocaria como provocou, elevado desgaste físico e desidratação nos formandos.
292. Durante a instrução de Técnicas de Combate 1, face à elevada carga física, conjugada com o calor intenso, os formandos PPPPP, NNNNN, GGGGG e MMMMM manifestaram dificuldades em movimentar-se.
292-A. LLLLL carregou às costas PPPPP, durante as Técnicas de Combate 1, e com o peso do corpo daquele caiu no chão.
293. LLLLL sentiu-se muito cansado e acabou por cair no solo.
293-A. LLLLL só foi internado na enfermaria, a cargo do arguido GG, depois de ter caído, desmaiado.
294. LLLLL por se encontrar num elevado estado de cansaço e apresentando já um estado confusional, começou a ouvir vozes, não via, nem conseguia falar.
295. Durante a prova, NNNNN, LLLLL e MMMMM apresentavam sinais evidentes de exaustão pelo calor e pelos exercícios físicos realizados e desidratação e foram transferidos para a tenda que servia de enfermaria.
296. As 15h10 - sob um intenso calor - os formandos iniciaram a instrução de Técnicas de Combate 2 (...), mais conhecida pelo "Carrossel" - instrução de enorme desgaste físico - ministrada pelos arguidos NN e BBB, cujos exercícios já se encontram acima descritos.
297. Nesta instrução, face à elevada temperatura que se fazia sentir, aos exercícios realizados, ao ritmo da instrução e ao racionamento da água, todos os instruendos denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação, situação que se agravou ao longo do dia, pelo que muitos já não conseguiram realizar a instrução, permanecendo prostrados no solo.
298. O formando EE não conseguiu executar a queda na máscara face ao elevado estado de exaustão em que se encontrava, sentia-se fraco, sem energia, com tonturas e não conseguia ver com nitidez.
299. Deitou-se no solo e bebeu um pouco de água do cantil.
300. Para as silvas foi levado, pelo arguido BBB, o instruendo RRRRR.
301. O instruendo PP, encontrando-se num grande estado de fadiga e de desidratação, começou a cambalear, não conseguia permanecer de pé, tendo sido segurado pelo arguido BBB que o encaminhou para a sombra.
302. PP foi observado pelo arguido GG no local, após o que, amparado pelo instrutor, encaminharam-se todos para a zona onde se encontrava a equipa de apoio sanitário.
303. Face ao estado de saúde de PP, que já não falava, nem conseguia andar, o arguido GG determinou que este fosse transportado para a tenda que servia de enfermaria, onde já se encontravam muitos outros instruendos, tendo sido colocado a soro, com vista à reposição de líquidos e sem que lhe fossem prestados outros cuidados médicos.
304. PP foi mantido a soro no interior da tenda, sem que o arguido GG tivesse adoptado quaisquer outros procedimentos, designadamente medidas de arrefecimento corporal e transferência urgente para um Hospital.
304-A. A situação clínica do ofendido PP agravou-se progressivamente e os arguidos MM, AA e GG conheciam o estado clínico do PP e mantiveram-no a soro no interior da tenda, sem terem adoptado quaisquer outros procedimentos, designadamente medidas de arrefecimento corporal e transferência urgente para um Hospital.
304-B. Os arguidos MM, ZZ, CCC, NN e BBB, tinham conhecimento dos sinais de risco de desidratação e consequentes consequências orgânicas que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, como aliás veio a acontecer, sendo que o primeiro não deu instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos e nenhum determinou uma menor intensidade da carga física e o aumento os períodos de repouso durante as instruções do período da tarde.
304-C. O mesmo foi feito pelo Diretor da Prova, o arguido AA e pelo médico GG sendo que o primeiro tinha conhecimentos específicos na área da medicina e ambos tinham conhecimentos específicos na área de motricidade humana e sabiam que os formandos já apresentavam estados de desidratação e inúmeras feridas.
305. Consta do Relatório de Inspecção Extraordinária aos ... o seguinte "à semelhança da água é muito importante repor as perdas de electrólitos sob o risco de se desenvolver um desequilíbrio iónico que poderá ser potencialmente fatal. Estas perdas devem ser obrigatoriamente repostas quando se faz exercício prolongado (mais de duas horas) e/ou quando a temperatura ambiental é elevada."
P1
306. Ás 16h 10m e encontrando-se na tenda que servia de enfermaria os formandos acima referidos, alguns a soro, cerca de 19 formandos do 1.º Grupo (P1), iniciaram a instrução de ..., ministrada pelos arguidos ZZ e CCC e cujos exercícios já se encontram descritos com temperatura do ar indicadas no ponto 43.
Geral
306-A. Os arguidos AA, MM, BB, ZZ, AAA, NN e GG tinham conhecimento dos sinais de alerta de desidratação aliada ao especial esforço físico exigido na prova e ao calor anormal e, não obstante isso, prosseguiram e deixaram prosseguir as instruções, de elevado desgaste físico, sob um calor intenso, com temperaturas elevadas mesmo no período da manhã, sem que tenham adaptado a hidratação às condições climatéricas, o que provocou, como consequência directa e necessária, um estado de fadiga e desidratação extremas em todos os formandos internados, o que os arguidos previram e aceitaram.
306-B. As condutas, atrás referidas foram voluntária e conscientemente praticadas pelos arguidos AA, MM, BB, ZZ, AAA, NN, GG.
Interrupção da prova
307. Após o almoço, o arguido AA falou ao telefone com o Comandante do Regimento ..., QQ, alertando-o do calor que se fazia sentir, tendo aquele sugerido que no dia seguinte, fosse alterado o horário das instruções a ministrar.
308. O Diretor da Prova interrompeu a instruções da "..." após as 16h do dia ... de ... de 2016.
309. A decisão de interrupção da ... foi tomada pelo arguido AA após ter ouvido os arguidos GG e o MM.
309-A. A interrupção da ... foi devida à situação de doença dos formandos, em consequência da privação do consumo de água, do calor intenso que se fazia sentir e elevada carga física dos exercícios, o que era do conhecimento de todos os Oficiais instrutores, Diretor da Prova, Comandante de Companhia e Médico.
310. O arguido GG transmitiu que tinha vários instruendos na enfermaria e que não tinha recursos para acompanhar as instruções subsequentes.
311. O arguido MM pronunciou-se no sentido de não prosseguir a prova tendo em conta as exigências das instruções programadas.
311-A. Os formandos foram obrigados a lançarem-se e rastejarem nas silvas, foram empurrados para as silvas, receberam socos, bofetadas e OO a colocação de terra na boca, conforme acima descrito, sendo que todos esses actos visaram, provocar-lhes feridas, hematomas e dores.
311-B. Quando a ... foi interrompida os formandos que ainda não se encontravam internados e a soro, os demais já não tinham condições físicas e psíquicas para executarem qualquer exercício físico, em consequência da privação do consumo de água, do calor intenso que se fazia sentir e da elevada carga física dos exercícios, o que era do conhecimento de todos os Oficiais instrutores, Diretor da Prova, Comandante de Companhia e Médico.
312. Consta de fls. 103 do Apenso 12 - Inspecção Técnica e Extraordinária, que "(...)é sabido que associação do calor, do exercício e de um estado de hipohidratação aumenta exponencialmente o risco de ocorrer uma Síndrome de Agressão Térmica".
313. No mesmo documento refere-se ainda que "(...)a forma preferencial para perda de calor de um individuo quando a temperatura aumenta é através da evaporação, sob a forma de suor. Pode, em condições extremas perder até cerca de 3 litros por hora. Estas perdas hídricas têm que ser necessariamente repostas, sob o risco de se provocar um quadro de desidratação, com todas as consequências orgânicas, nomeadamente de lesão renal, que poderão mesmo a evoluir até a uma falência multi-orgânica e à morte. Há descrições de militares norte-americanos, com ingestão de 15 litros de água por dia para reporem as suas necessidades hídricas ".
314. Face às múltiplas situações de exaustão e consequente degradação do estado de saúde de vários formandos, na tenda que servia de enfermaria foram internados 22 formandos: III, LLL, MMM, NNN, OOO, PPP (à noite), OO, OOOO, TTT, UUU, QQ, HHHH, IIII, JJJJ, UU, VVVV, LLLLL, MMMMM, PP, NNNNN, OOOOO (à noite), RRRRR, tendo ficado a soro III, LLL, MMM, NNN, OOO, OO, OOOO, HHHH, IIII, JJJJ, VVVV, PP e RRRRR.
315. No interior da tenda que servia de enfermaria, houve instruendos que foram colocados no chão e outros em "burros de mato", uns totalmente fardados e outros apenas de calças e botas.
316. A tenda, no interior da qual a temperatura era mais elevada do que no exterior, não dispunha de quaisquer condições de refrigeração.
316-A. GG manteve PP a soro no interior da tenda, sem ter adoptado quaisquer outros procedimentos, designadamente medidas de arrefecimento corporal e transferência urgente para um Hospital.
317. OO gemia.
318. PP tinha espasmos, acabando por ser sedado para que os enfermeiros conseguissem colocar-lhe a agulha de soro.
319. A administração de soroterapia aos formandos não surtiu qualquer efeito no caso de OO e PP, uma vez que desde o momento em entraram na tenda que servia de enfermaria, onde estava mais calor do que no exterior, nunca apresentaram sinais de melhoria.
320. PP vomitou.
321. Os arguidos GG e SS não transferiram de imediato OO e PP para a ambulância com ar condicionado que se encontrava no Campo de Tiro ....
322. Antes do jantar, o arguido GG, médico, informou o arguido SS para prepararem o OO e o PP com vista à sua transferência para o Hospital das Forças Armadas e dando-lhes prioridade não emergente mas urgente, por considerar que o seu estado de saúde se mantinha inalterado.
322-A. O arguido GG, médico, percepcionou que III, OOO, MMM, PPP, LLL, NNN e OO que se encontravam no interior da tenda da enfermaria, apresentavam lesões físicas e neurológicas, provocadas pela desidratação profunda que poderiam evoluir para lesões renais e hepáticas e até para uma falência multiorgânica e morte.
322-B. O arguido GG não determinou, em momento algum, a transferência de doentes em estado crítico para um Hospital.
323. Em momento não concretamente apurado, OO vomitou.
324. O arguido GG não transferiu nenhum doente para o HFAR, nem se dirigiu a qualquer Hospital para preparar o internamento urgente dos formandos internados na tenda que servia de enfermaria.
325. Em vez de transferir todos os doentes para o HFAR, cerca das 20H15, o arguido GG saiu da tenda e abandonou o Campo de Tiro ... (...), dirigindo-se para local desconhecido, sem que existisse outro médico no local.
325-A. O arguido GG não determinou, em momento algum, a transferência de doentes em estado crítico para um Hospital.
325-B. O arguido MM tinha por função, supervisionar a hidratação e a alimentação dos formandos.
326. Cerca das 20H36, o OO entrou em paragem cardiorrespiratória.
327. A equipa sanitária efectuou as manobras de reanimação e o arguido SS utilizou um DAE (Desfibrilhador Automático Externo).
328. A dada altura e já na presença de vários instrutores, ora arguidos e com alguns dos formandos internados a ouvirem, o arguido SS disse: "Isto não me está a acontecer."
329. Face à situação clínica de OO, o INEM é contactado às 20h37 pelo socorrista, Soldado YYY, que informa o INEM que junto de OO estão dois enfermeiros.
330. A equipa do INEM chegou ao local pelas 21h00, constituída por um médico da Força Aérea e um enfermeiro do INEM.
331. O médico do INEM informou o CODU que OO estava muito desidratado e com vómitos, dizendo que os enfermeiros efectuaram manobras de reanimação durante quase 1 hora com um DAE e que o doente ficou em assistolia.
332. Na conversa com o CODU, o médico do INEM pede para abrirem nova ficha para o PP, dado que o mesmo estava prostrado, com hipertermia de 40° C, desidratação, hipoglicémia de 50 e hipotensão 80,50.
333. O médico do INEM pede outra ambulância porque estava lá um outro rapaz, prostrado.
334. O mesmo clínico verificou que OO não apresentava sinais de vida, tinha as pupilas midriáticas e não reactivas à luz e no ecrã do monitor do desfibrilhador da VMER deu a indicação de assistolia mantida, o coração não tinha actividade eléctrica.
335. Para além disso, OO apresentava sinais de desidratação, com olhos encovados, sem brilho, pele baça, seca e rigidez.
336. O médico e o enfermeiro da VMER tentaram reanimar o OO e aplicar um acesso intra-ósseo na zona tíbia, o que não conseguiram face à rigidez dos membros inferiores e apresentava desidratação.
337. As 21h45, o médico do INEM, certificou o óbito de OO.
338. De todo o circunstancialismo que antecedeu a morte de OO resultaram as lesões abaixo descritas constantes do relatório de autópsia de fls. 973 a 987/1012 a 1026:
"Ao nível do Hábito Externo:
Rigidez cadavérica: acentuada nos membros.
Sinais de desidratação: olhos encovados e perda de elasticidade da pele - quando tracionada, na região abdominal (pele não retorna ao normal após ser tracionada). Cabeça: normal conformação craniana evidenciando conjuntivas palpebrais muito congestionadas observando-se, no seu seio, algumas hemorragias punctiformes do tamanho de bicos e cabeças de alfinete.
Pescoço: pequena equimose de tonalidade levemente arroxeada, em área como dedada localizada à região inframentoniana direita.
Placa apergaminhada, linear, ligeiramente arciforme, de convexidade inferior, medindo 8 cm de comprimento depois de corrigida, por 5 mm de largura longitudinal, localizada à parte inferior da região antero-lateral direita do pescoço, com início imediatamente para a direita da maçã de Adão e terminando na região esternocleidomastoideia ou cervical antero-lateral do mesmo lado.
Tórax: evidencia sinais de aplicação de 2 placas de desfibrilhador na face anterior do hemitórax direito.
Ligeiro pectus escavatum.
Placa apergaminhada, de tonalidade acastanhada em área abrangendo o corpo esternal e o apêndice xifóide medindo 12x4 cm de maiores diâmetros com predominância longitudinal.
Abdómen: Duas equimoses de tonalidade arroxeada, uma superior e outra inferior, distanciadas entre si, cerca de 2 cm, ambas localizadas à parede lateral direita do abdómen, a nível do hipocôndrio, uma superior e posterior e outra na transição latero anterior da linha médio-axilar do mesmo lado.
Equimose de tonalidade arroxeada, em área como grande dedada, localizada à parede da região lombar imediatamente para trás da linha médio-axilar do mesmo lado. Membro superior direito: Múltiplas escoriações lineares, cobertas por crostas, umas paralelas entre si e outras não, com dimensões entre os 5 e os 40 mm de comprimento, localizadas à 1/2 superior da face posterior do punho e no dorso da mão direita incluindo os dedos da mesma mão.
Escoriação acastanhada, coberta por crostas, em área como grande dedada, localizada imediatamente abaixo do olecrânio no cotovelo direito.
Sinal de picada recente na prega do sangradouro direito.
Membro superior esquerdo: Múltiplas escoriações lineares, cobertas por crostas, umas paralelas entre si e outras não, com dimensões entre os 5 e os 40 mm de comprimento, localizadas à 1/2 superior da face posterior do punho e no dorso da mão esquerda incluindo os dedos da mesma mão.
Escoriação acastanhada coberta por crostas, em área como dedada na face interna do cotovelo esquerdo.
Escoriação acastanhada coberta por crostas, em área como grande dedada, localizada imediatamente abaixo do oleocrâneo no cotovelo esquerdo.
2 sinais de picadas recentes na prega do sangradouro esquerdo.
Membro inferior direito: Escoriação acastanhada coberta por crostas, em área como grande dedada, localizada à face anterior do joelho, acompanhada de outras escoriações quase punctiformes, igualmente cobertas por crostas a nível dos compartimentos internos do mesmo joelho.
Escoriação linear, transversal, coberta por crostas, medindo 4 cm de comprimento, localizada à face posterior-interna da perna direita, correspondente à massa gemelar internar correspondente.
Membro inferior esquerdo: Escoriação acastanhada, coberta por crostas, em área como grande dedada, localizada à face anterior do joelho, acompanhada de outras escoriações quase punctiformes, igualmente cobertas por crostas a nível dos compartimentos internos do mesmo joelho.
Ao nível do Hábito Interno: Cabeça
Partes moles: ligeira infiltração hemorrágica do pericrâneo da região parieto-temporal direita e do músculo temporal homolateral em área como grande dedada.
Meninges: Leptomeninges muito congestionadas.
Encéfalo: Dilatação e congestionamento exuberante da circulação venosa que cobre o encéfalo. Circunvoluções achatadas. Parênquima húmido, brilhante, muito congestionado e edemaciado, sem focos patológicos observáveis para além do forte congestionamento, excetuando a presença de várias hemorragias petequiais localizadas nas paredes do terceiro ventrículo e a nível do pavimento do quarto ventrículo.
Tórax
Coração: Ligeiramente maior que o punho do cadáver. Múltiplas hemorragias punctiformes na face anterior e posterior do epicárdio. Musculatura vermelha escura, denotando hipertrofia dos ventrículos direito e esquerdo, se bem que não se vislumbrem focos patológicos. Extensa hemorragia subendocárdica abrangendo as paredes ventriculares esquerdas e as respetivas cordas tendinosas.
Pulmão direito e pleura visceral: Pleura azulada, lisa evidenciando múltiplas hemorragias petequiais. Parênquima muito congestionado, apresentando o lobo superior com consistência de almofada de ar, crepitando ao corte. Parênquima dos lobos médios e inferiores muito congestionado sendo observável à secção a presença de conglomerados, com aspeto de grãos de arroz, de consistência friável, que submergem na água.
Pulmão esquerdo e pleura visceral: Pleura azulada, lisa evidenciando múltiplas hemorragias petequiais. Parênquima muito congestionado, apresentando o lobo superior com consistência de almofada de ar, crepitando ao corte. Parênquima do lobo inferior muito congestionado, sendo observável à secção a presença de conglomerados, com aspeto de grãos de arroz, de consistência fiável, que submergem na água.
Esófago: Mucosa muito congestionada, aparentemente íntegra, possuindo restos de alimentos em adiantado estado de digestão.
Abdómen
Paredes: Espessura da parede abdominal anterior: 25 mm. Infiltração hemorrágica no tecido celular subcutâneo da parede abdominal a nível das lesões dérmicas descritas no exame do hábito externo.
Fígado: Cápsula lisa castanha escura. Parênquima muito rico em sangue e fortemente congestionado com estrutura lobular aparentemente conservada.
Rim direito e esquerdo: Fácil de descapsular. Parênquima muito congestionado.
Superfície de corte deixa reconhecer a estrutura cortico-medular.
Coluna vertebral e medula
Meninges: Forte congestão meníngea.
339. Efetuados exames histopatológicos concluiu-se que a nível do coração verifica-se necrose hemorrágica miocitária originando desagregação das fibras musculares. Esta necrose tem localização predominantemente subendocárdica, com diagnóstico anatomo-patológico de enfarte hemorrágico do miocárdio e hemorragia do endocárdio suprajacente.
340. O extenso enfarte hemorrágico subendocárdico, que não histémico por ausência de lesões coronárias, observado macroscopicamente na autópsia e confirmado histologicamente, bem como as alterações compatíveis com uma necrose tubular aguda, a que se associa a mioglobinúria em consequência de rabdomiólise, constituem todos achados clássicos do quadro de Golpe de Calor.
341. Por outro lado, o enfarte cardíaco referido, por ação tóxica direta do calor ou por sensibilização às catecolaminas por stress físico aumentado, podem conduzir a arritmias cardíacas igualmente descritas neste contexto e que poderiam determinar a morte, mesmo na ausência dos achados macro e microscópicos acima descritos.
341-A. O enfarte cardíaco resultou do estado de desidratação, calor e exaustão física e a causa da morte de OO foi por falência multiorgânica, em consequência de exercício físico, falta de água em ambiente quente, provocando várias síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluem hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda e alteração grave do estado de consciência (obnubilação, estado confusional, convulsões até à morte».
342. Macroscopicamente foram ainda observadas hemorragias petequiais múltiplas sub-conjuntivias, sub-pleurais, sub-epicárdicas e também nas paredes do terceiro ventrículo e no pavimento do quarto ventrículo, que podem ser explicadas pelo aumento da fragilidade capilar coincidente com a anoxia e o colapso circulatório, e associadas ao quadro descrito."
343. Consta do relatório de autópsia como causa de morte de OO "golpe de calor".
344. Do relatório final do serviço de ... forense do INML, relativa a amostras de sangue colhidas do cadáver de OO, foi negativo para álcool, opiáceos, cocaína, canabinóides, anfetaminas, metanfetaminas e substâncias medicamentosas, sendo positivo para Diazepam 90, Nordiazepam e Termazepam, em concentrações consideradas terapêuticas.
345. Após as 21h45, o médico do INEM, a pedido do arguido AA observou PP, que se encontrava deitado.
346. O médico verificou que o PP se apresentava de olhos fechados, pouco reactivo e com alteração do estado de consciência.
347. O médico do INEM verificou às 21h 50m, que a frequência do pulso do PP era de 112, a pressão arterial sistólica era de 80 e a diastólica de 53, e o Sa02 era de 91, estava hipotenso (de 80,50), com hipertermia, (temperatura de 40º a 42º C), desidratação e hipoglicémia de 50.
347-A. Quando foi observado pelo médico do INEM, PP não falava.
348. PP foi transferido para a ambulância militar, dado que a temperatura no interior da tenda era muito elevada.
349. Já no interior da ambulância militar, PP teve uma convulsão, manteve a febre, apresentando-se prostrado, tendo sido transferido para o Hospital ....
350. No Hospital ..., PP foi internado nos Cuidados Intensivos, constando dos relatórios clínicos que o mesmo apresentava insuficiência hepática aguda em contexto de "Golpe de Calor" e por instabilidade hemodinâmica.
351. Nessa noite, ...-...-2016, ainda entrou na enfermaria o instruendo OOOOO, por se encontrar com febre dores de cabeça e desidratado.
352. Na tenda sentia-se confuso e cansado, acabando por adormecer.
Reinício da prova 0
353. O reinício da "..." foi autorizado pelo Comandante do Regimento ... - Coronel QQ e estava previsto após as 20H00, havendo nessa altura formandos internados na enfermaria.
354. Após o jantar, e sem a presença do médico, a "..." foi reiniciada, designadamente com a realização da instrução de ... com os formandos que restavam.
355. Os arguidos reiniciaram a Prova a qual foi de seguida suspensa.
356. Na enfermaria estavam cerca de 20 doentes, já que OOOOO e PPP só foram para a enfermaria após a interrupção da instrução nocturna.
Fim da prova
357.Durante a noite e após a morte de OO, no CTA, realizou-se uma reunião entre o Comandante ... - Tenente-general SSSSS, o Comandante do Regimento ... - Coronel QQ, o Chefe de Gabinete do Comandante ... - Coronel TTTTT, o Director da Prova - o arguido AA, o Comandante da ... - arguido MM e o médico - ... UUUUU, no âmbito da qual o Tenente-general cancelou toda a instrução prevista, resultando assim o encerramento definitivo da "....
358. Os formandos permaneceram na tenda de enfermaria, com uma única ambulância com refrigeração, sem gelo.
359. Na manhã do dia ...-...-2016, efectuaram Ginástica Educativa (GE), uma marcha ligeira até ao local de embarque nas viaturas.
360. No dia ...-...-2016, cerca das 12h00 os Oficiais, Sargentos, ... e formandos saíram do ... e dirigiram-se para o Regimento ..., na ....
361. Já no Regimento ... da ... e, por determinação do médico UUUUU, são transferidos para o Hospital das Forças Armadas, III, PPP, AAAAA, PPPPP, TT e LLLL.
Doentes
362. III, do Grupo de Graduados, pelas 20H53, de dia ...-...-2016, deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, por apresentar um quadro de hipotensão, náuseas, vómitos, diarreia e temperatura corporal 37,6.º C, desde o dia ... de ... de 2016 após golpe de calor, durante esforço físico intenso, referindo-se no resumo do episódio de urgência, com referência, no dia anterior, a amnésia para o sucedido e discurso delirante. Ao exame objectivo há referência a lesões papulares dispersas pelos membros superiores e região cervical, sugestivas de picadas de insecto. Analiticamente apresentava alterações hematológicas, com trombocitopenia, leucocitose, alterações da coagulação e da função hepática. Face a inexistência de ingestão de substâncias hepatotóxicas e do evento atrás descrito foi colocada a hipótese de diagnóstico de rabdomiólise com disfunção hepática, tendo ficado internado nos Cuidados Intermédios. Iniciou tratamento de reposição hidro-eletrolítica, com quadro clínico estável com evolução favorável das alterações de rabdomiólise (CK a baixar) mas agravamento da coagulopatia, pelo que foi contactada a Unidade de Transplante Hepático do ..., mantendo a terapêutica instituída e controle do factor V da coagulação. A partir do 4° dia de internamento verifica-se início da estabilidade analítica, sendo transferido para a enfermaria em ...-...-2016. Na enfermaria mantém evolução favorável, sem intercorrências, tendo tido alta em ...-...-2016, com indicação de reavaliação analítica na consulta em ...-...-2016 e convalescença para o domicílio durante 1 mês.
363. Essas lesões foram provocadas pelo calor, em contexto de esforço físico e as alterações sintomáticas e analíticas, que permitem o diagnóstico de rabdomiólise e que provocaram no ofendido como consequência direta e necessária 60 dias de doença, conforme consta dos elementos clínicos e perícias do Apenso 3. (relatório de fls. 140, apenso 03),
364. Do Grupo de Graduados, PPP, foi transferido do Regimento ..., no dia ... de ... de 2016, pelas 17H57, para o Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, por apresentar um quadro de prostração, tonturas e urina escura marcada desde o dia anterior, rabdomiólise ligeira, associada a exposição ao calor e exercício físico, onde se manteve internado.
364-A. A sintomatologia apresentada por PPP (prostração marcada e tonturas), à entrada no HFAR deveu-se à fadiga extrema, ao calor e à desidratação.
365. Ficou internado na urgência até ...-...-2016, tendo tido alta após novas análises revelarem valores mais baixos, com indicação de ser seguido na Consulta de Medicina Interna, donde teve alta em ...-...-2016, data em que o estado de saúde foi considerado restabelecido.
366. Relacionando a informação circunstancial, a sintomatologia e os exames clínicos e analíticos concluiu-se que: a sintomatologia referida (prostração marcada, tonturas) é inespecífica, surgindo em muitas patologias.
367. Do relatório de perícia de avaliação do dano corporal consta que as alterações analíticas traduzem sofrimento muscular ligeiro com sinais de rabdomiólise, com atingimento ligeiro e temporário (1 dia) da função hepática e da coagulação.
368. A situação clínica atrás referida resultou da acção de agente físico - calor, em contexto de esforço físico.
369. Tais lesões provocaram como consequência direta e necessária 15 dias de doença.
370. No dia ... de ... de 2016, UU, do 1.° Grupo (P1), foi transferido do Regimento ..., para o Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, dando entrada no HFAR pelas 19H33, com diagnósticos de rabdomiólise grave e desidratação, referindo dores lombares, urina escura, tonturas, temperatura corporal 37,8.°C, constando do diário clínico com a data de ...-...-2016 "que no dia ...-...-16 é submetido a violento esforço físico, em condições de calor extremo, sob restrição hídrica e sem aporte de sal, tendo ficado dorido e prostrado”.
371. Após realização de análises no Hospital das Forças Armadas foi transferido para o Hospital da Cruz Vermelha, no mesmo dia - ...-...-2016.
372. No Hospital da Cruz Vermelha ficou internado até ...-...-2016, onde iniciou hemodiafiltração veno-venosa contínua, que manteve durante 4 dias, após o que iniciou sessões de diálise convencional, até ...-...-2016, já no HFAR, tendo retirado o cateter de hemodiálise a ...-...-2016 e teve alta hospitalar a ...-...-2016, com indicação de 30 dias de convalescença em casa e consulta de nefrologia marcada para ...-...-2016.
373. Foi seguido até ... de ... de 2016, data da última consulta de Nefrologia e data da alta desta especialidade, com indicação de, ainda em recuperação da função renal, medidas gerais de protecção renal e continuação de vigilância clínica.
373-A. Uma das causas da disfunção hepática e lesão renal aguda de UU foi a desidratação.
373-B. As lesões de UU foram resultado de desidratação, calor e exaustão física.
374. Consta do relatório da perícia do dano corporal que: "UU, na sequência de exposição a calor, esforço físico, sofre uma disfunção hepática e lesão renal aguda com necessidade de técnica de substituição renal em contexto de desidratação e rabdomiólise graves, que obrigaram a um internamento hospitalar entre ...-...-2016 e ...-...92016 e posterior vigilância ambulatória, na consulta de nefrologia até ...-...-2016, altura da alta, com indicação de medidas gerais de proteção renal. Como intercorrências durante o internamento há a referir infeção urinária e aumento do padrão inflamatório com substituição dos CVP."
375. "Os exames analíticos, realizados em ...-...-2017 revelam função hepática dentro dos parâmetros normais e valores da função renal normal exceto a depuração de creatinina. Este valor analítico é, habitualmente, um dos valores que mais tardiamente normalizam."
376. "as lesões atrás referidas resultaram de acção de natureza física - calor em contexto de esforço físico intenso."
377. "Tais lesões determinaram um período de 60 dias com afetação da capacidade de trabalho geral e 120 dias de doença, com restrições no exercício físico e medidas gerais de protecção da função renal, medidas que se devem manter por prevenção."
378. "As alterações nas componentes sanguíneas, insuficiências hepáticas e renal e as intercorrências infecciosas representavam perigo para a vida caso não fossem adequadas e atempadamente corrigidas, como aconteceu".
379. No dia ... de ... de 2016, TT, do 2.º Grupo (P2), foi transferido da enfermaria do Campo de Tiro ..., para o Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, dando entrada neste pelas 14H06, por apresentar um quadro clínico de Golpe de Calor, inconsciência, desidratação, prostração e sem conseguir anamenese, tendo tido alta hospitalar no dia ... de ... de 2016.
379-A. A sintomatologia apresentada por TT (obnubilação e prostração), deveu-se ao calor e à fadiga extrema e desidratação.
380. TT foi admitido no serviço de urgência obnubilado e prostrado, constando a referência a golpe de calor nessa manhã e traumatismo da perna direita 2 dias antes deste episódio, mas sendo as lesões osteoarticulares de ambos os joelhos anteriores ao evento.
381. Apresentava ferida inciso-contusa da região pré-tibial direita (sem sinais de infecção).
382. Ficou internado na urgência durante 20 horas, tendo sido transferido para o serviço de medicina, donde teve alta 2 dias depois, em ...-...-2016, com indicação de repouso e hidratação.
383. Relacionando a informação circunstancial, a sintomatologia e os exames clínicos analíticos concluiu-se que: a sintomatologia referida (obnubilação e prostração é inespecífica, surgindo em muitas patologias; as alterações analíticas traduzem sofrimento muscular ligeiro com sinais de rabdomiólise."
384. A situação clínica de MMM resultou da acção de agente físico - calor, em contexto de esforço físico.
385. Tais lesões determinaram como consequência direta e necessária 15 dias de doença com incapacidade para o trabalho.
386. No dia ... de ... de 2016, AAAAA, do 2.º Grupo (P2), foi transferido do Regimento ..., para o Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, dando entrada neste pelas 17H58, por apresentar um quadro clínico de rabdomiólise discreta sem repercussão de órgão, tonturas, vómitos, urina escura e prostração, decorrentes de exposição ao calor e exercício físico, tendo alta no dia seguinte, ... de ... de 2016.
386-A. A sintomatologia referida (tonturas, vómitos e prostração) de AAAAA deveu-se ao calor, à fadiga extrema e desidratação, elementos determinantes da sua situação clínica.
387. Ficou internado até à manhã do dia seguinte, tendo alta hospitalar para o domicílio.
388. Relacionando a informação circunstancial, a sintomatologia e os exames clínicos e analíticos concluiu-se que: a sintomatologia referida (tonturas, vómitos e prostração) é inespecífica, surgindo em muitas patologias; as alterações analíticas traduzem sofrimento muscular com sinais de necrose muscular com resposta citolítica dos hepatócitos, o que é compatível com o diagnóstico de rabdomiólise.
389. A situação clínica atrás referida resultou da ação de agente físico - calor, em contexto de esforço físico.
390. Tais lesões determinaram como consequência direta e necessária 15 dias de doença com incapacidade para o trabalho.
391. No dia ... de ... de 2016, PPPPP, do 3.º Grupo (P3), foi transferido do Regimento ..., pelas 17H56, para o Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, por apresentar um quadro de rabdomiólise com discreta alteração da função renal e hepática, apresentando tonturas e urina escura, em contexto de esforço físico, onde se manteve internado.
391- A. A situação clínica e sintomatologia apresentada por PPPPP deveram-se à fadiga extrema e desidratação associadas ao calor e apresentou tonturas e urina escura desde o dia ... de ... de 2016, após golpe de calor, durante esforço físico intenso e desidratação.
392. Ficou internado na urgência até ...-...-2016, tendo tido alta após novas análises revelarem valores mais baixos, com indicação de ser seguido na Consulta de Medicina Interna, donde teve alta em ...-...-2016, data em que foi transferido para a consulta da Unidade de origem.
393. Relacionando a informação circunstancial, a sintomatologia e os exames clínicos e analíticos concluiu-se que: a sintomatologia referida (tonturas, vómitos e prostração) é inespecífica, surgindo em muitas patologias; as alterações analíticas traduzem sofrimento muscular com sinais de rabdomiólise e discreta alteração das funções hepática e renal.
394. A situação clínica atrás referida resultou da acção de agente físico - calor, em contexto de esforço físico.
395. Tais lesões determinaram como consequência direta e necessária 15 dias de doença com incapacidade para o trabalho.
396. No dia ... de ... de 2016, LLLL, do 1° Grupo (P1), foi transferido do Regimento ..., pelas 14H04, para o Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, por apresentar um quadro de desorientação e desidratação, apresentando-se muito prostrado, sonolento, pupilas isocóricas e Iso reactivas, após golpe de calor, durante esforço físico intenso e desidratação, onde se manteve internado.
396-A. As lesões e a sintomatologia apresentada por LLLL deveram-se à desidratação em conjugação com o calor, em contexto de fadiga extrema.
397. Ficou internado na urgência do HFAR até ...-...-2016, tendo sido transferido para internamento no serviço de medicina interna, tendo sido dada alta hospitalar a ...-...-2016, data em que o estado de saúde foi considerado restabelecido.
398. Relacionando a informação circunstancial, a sintomatologia e os exames clínicos e analíticos concluiu-se que a sintomatologia referida "(prostração marcada, tonturas) é inespecífica, surgindo em muitas patologias; alterações analíticas traduzem sofrimento muscular ligeiro com sinais de rabdomiólise”.
399. As lesões atrás referidas resultaram de evento de natureza física - calor, em contexto de esforço físico.
400. Tais lesões determinaram como consequência direta e necessária 15 dias de doença.
401. No dia ...-...-2016, na sequência da degradação do estado de saúde de PP, em que a enzimologia hepática viria a deteriorar-se com agravamento progressivo, em cada avaliação laboratorial, bem como todos os parâmetros de função hepática, PP foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos do ... - Centro Hospitalar de Lisboa Central, constando do diagnóstico principal: insuficiência hepática aguda e dos diagnósticos secundários: encefalopatia hepática, insuficiência renal aguda, choque NCOP, síndroma da resposta inflamatória sistémica devida a processo não infeccioso com disfunção de órgão, rabdomiólise e efeitos do calor - insolação e golpe de calor.
402. PP manteve-se em suporte ventilatório invasivo.
403. Iniciou técnica de substituição renal contínua por instabilidade hemodinâmica, sofrimento cerebral, febre, rabdomiólise, lesão renal aguda e hiperamoniémia.
404. PP evoluiu para falência multi-órgão: falência neurológica, respiratória, hepática e renal, continuando entubado e ventilado, com um quadro compatível com falência hepática aguda e disfunção múltipla de órgãos, designadamente, cardiovascular, renal e hematológica.
405. Com diagnóstico final ou provável: A falência hepática aguda em consequência de insolação.
406. O fígado disponível não era compatível com o grupo sanguíneo de PP e perante a falência multiorgânica associada ao choque, foi decidido que o doente não reunia condições para ser transplantado de imediato.
407. A situação clínica de PP evoluiu para disfunção multiorgânica, com agravamento progressivo irreversível.
408. Às 09H25, do dia ...-...-2016, PP faleceu no Hospital ....
409. De todo o circunstancialismo descrito resultaram para o PP, várias síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluíram, hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda, alteração do estado de consciência, obnubilação, estado confusional, convulsões e coma, designadamente uma falência multiorgânica (hepática, neurológica, respiratória e renal) constando do relatório de autópsia e respectivo aditamento o seguinte:
“Ao nível do Hábito Externo Sinais de putrefação: coloração esverdeada da pele do abdómen, face posterior do tórax, região lombar, nádegas, coxas. Presença de algumas pequenas flictenas de putrefação na face posterior e laterais do tórax, região lombar, nádegas, coxas.
Abdómen: duas escoriações sobre a crista ilíaca direita, medindo 2 cm x 1 cm e 1,5 cm x 0,9 cm.
Membro superior direito: Sinais de venopunções na região cubital anterior, cobertas por penso adesivo. Área escoriativa na face posterior do cotovelo, medindo 10 cm x 6 cm, coberta por crosta castanha-avermelhada, elevada acima da pele circundante. Múltiplas escoriações lineares na face posterior do antebraço e dorso da mão, medindo 0,5 cm a 3 cm de comprimento, cobertas por crostas castanhas-avermelhadas, elevadas acima da pele circundante.
Membro superior esquerdo: Área escoriativa na face posterior do cotovelo, medindo 10 cm x 8 cm, coberta por crosta castanha-avermelhada, elevada acima da pele circundante, coberta por penso adesivo. Múltiplas escoriações lineares na face posterior do antebraço e dorso da mão, medindo 0,5 cm a 3 cm de comprimento, cobertas por crostas castanhas-avermelhadas, elevadas acima da pele circundante.
Membro inferior direito: Área escoriativa na face anterior do joelho, medindo 6 cm x 7 cm, coberta por crosta castanha-avermelhada, elevada acima da pele circundante, coberta por penso adesivo. Sete escoriações lineares na face posterior do joelho, medindo 2 cm a 4 cm de comprimento, cobertas por crostas castanhas-avermelhadas, elevadas acima da pele circundante. Lesão escoriativa não infectada na região calcânea, medindo 2,5 cm x 1,5 cm, coberta por penso adesivo.
Membro inferior esquerdo: Área escoriativa na face anterior do joelho, medindo 5,5 cm x 3 cm, coberta por crosta castanha-avermelhada, elevada acima da pele circundante, coberta por penso adesivo. Lesão escoriativa não infectada na região calcânea, medindo 2 cm x 1 cm, coberta por penso adesivo.
Ao nível do Hábito Interno
Cabeça
Partes moles: Exuberante edema do couro cabeludo. Congestão do couro cabeludo.
Múltiplas pequenas hemorragias focais nos músculos temporais. Sem sinais de lesões traumáticas recentes.
Encéfalo: Forma mantida, com circunvoluções cerebrais alargadas e sulcos rasos, compatível com edema do encéfalo. Sem sinais de lesões traumáticas recentes.
Pescoço
Músculos: Presença de múltiplas pequenas hemorragias focais.
Laringe e traqueia: Edema e petéquias hemorrágicas traumáticas.
Faringe e esófago: Edema e petéquias hemorrágicas na mucosa.
Tórax
Parede: Exuberante edema dos tecidos moles. Presença de múltiplas pequenas hemorragias focais em todos os músculos (peitorais e intercostais, etc.).
Pericárdio e cavidade pericárdica: Presença de múltiplas petéquias hemorrágicas punctiformes.
Coração: Coração de configuração e tamanho conservado. Presença de múltiplas petéquias hemorrágicas punctiformes confluentes no epicárdio, miocárdio e endocárdio. Foco de hemorragia subendocárdico no ventrículo esquerdo. Miocárdio apresenta-se nas diferentes secções de corte de tonalidade castanho-pálida, uniforme, sem evidência de lesões de isquemia aguda ou crónica.
Pleura parietal e cavidade pleural direita: Contém 1300m1 líquido amarelo turvo com flocos de fibrina, derrame pleural sero-fibrinoso. Presença de petéquias hemorrágicas punctiformes na pleura parietal.
Pleura parietal e cavidade pleural esquerda: Contém 1400m1 líquido amarelo turvo com flocos de fibrina, derrame pleural sero-fibrinoso. Presença de petéquias hemorrágicas punctiformes na pleura parietal.
Pulmão direito e pleura visceral: Pulmão expandido. Pleura visceral lisa, brilhante, sem aderências, com múltiplas petéquias punctiformes. Consistência do parénquima fibro-elástica e hipocrepitante ao toque, com a superfície de corte brilhante, de coloração avermelhada-vinosa, com evidência de edema e congestão sanguínea. Pulmão esquerdo e pleura visceral: Pulmão expandido. Pleura visceral lisa, brilhante, sem aderências, com múltiplas petéquias punctiformes. Consistência do parénquima fibro-elástica e hipocrepitante ao toque, com a superfície de corte brilhante, de coloração avermelhada-vinosa, com evidência de edema e congestão sanguínea. Esófago: Edema e petéquias hemorrágicas na mucosa.
Diafragma: Presença de petéquias hemorrágicas punctiformes nas ambas faces e no músculo.
Abdómen
Paredes: Exuberante edema dos tecidos moles. Presença de múltiplas pequenas hemorragias focais nos todos os músculos (rectos, oblíquos, transversos, etc.) Peritoneu e cavidade peritoneal: Peritoneu com múltiplas petéquias punctiformes. Cavidade abdominal contém 3000 ml líquido amarelo turvo com flocos de fibrina. Fígado: Forma e tamanho mantidos. Superfície exterior lisa e brilhante. Tecido hepático com lobulação indistinguível, na superfície de corte parênquima de coloração castanha-esverdeada, muito "friável".
Vesícula biliar: Contém 15 ml de bílis castanha-verde, sem cálculos.
Estômago: Vazio, mucosa gástrica com edema exuberante e com presença de múltiplas petéquias.
Intestinos: Conteúdo habitual. Presença de múltiplas petéquias hemorrágicas punctiformes nas ansas intestinais. Edema exuberante da mucosa.
Pâncreas: Tamanho, forma e estrutura morfológica - lobulação, preservados. Parênquima de coloração castanha-verde.
Baço: Cápsula lisa e brilhante; polpa ligeiramente difluente.
Rim direito: Forma e tamanho mantidos. Descapsulação fácil. Múltiplas hemorragias sub-capsulares. Superfície renal lisa, sem alterações quistícas e/ou cicatriciais. Córtex com coloração cinzenta- esverdeada, de tonalidade pálida. Apagamento estruturas morfológicas - da fronteira cortico-medular e das papilas. Árvore pielo-calicial e ureteres não dilatados com mucosa lisa e sem conteúdo
Rim esquerdo: Forma e tamanho mantidos. Descapsulação fácil. Múltiplas hemorragias sub-capsulares. Superfície renal lisa, sem alterações quistícas e/ou cicatriciais. Córtex com coloração cinzenta- esverdeada, de tonalidade pálida. Apagamento estruturas morfológicas - da fronteira cortico-medular e das papilas. Arvore pielo-calicial e ureteres não dilatados com mucosa lisa e sem conteúdo.
Bexiga: Contém 20 ml de urina amarela-castanha turva. Presença de áreas hemorrágicas na mucosa.
Órgãos genitais: Múltiplas petéquias hemorrágicas difusas no todo parênquima.
410. Todo o quadro macroscópico encontrado com múltiplas hemorragias petequiais, maiores ou menores e em alguns casos confluentes, dispersos por vários órgãos e estruturas - músculos, diafragma, coração, pulmões, testículos - bem como o foco de hemorragia endocárdica, são compatíveis com uma coagulopatia de consumo, entidade que se associa comumente aos golpes de calor, traduzida também histologicamente no enfarte hemorrágico pulmonar.
411. A esse nível histológico foram ainda descritas necroses hepática e tubular agudas, encefalopatia hipóxido-isquémica e lesões isquémicas musculares compatíveis com a falência multiorgânica descrita clinicamente complicação habitual do Golpe de Calor, a que não falta o componente infecioso com colite e peritonite, esta última com derrame fibrino-purulento.
412. Os dados autópticos atrás circunstanciadamente descritos harmonizam-se assim com a hipótese diagnóstica de Golpe de Calor, complicada de falência multi-orgânica, cujos sinais clínicos, macroscópicos e histológicos a vítima apresentava.
413. Tais lesões, acima descritas, foram causa directa e necessária da morte de PP por Golpe de Calor complicado com falência multi-orgânica.
413-A. A causa da morte de PP foi devida a várias síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluem hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda e alteração grave do estado de consciência.
414. Do relatório final do serviço de toxicologia forense do INML, relativa a amostras de sangue colhidas do cadáver de PP, foi negativo para álcool, opiáceos, cocaína, canabinóides, anfetaminas, metanfetaminas e substâncias medicamentosas, sendo positivo para benzodiazepinas, em concentrações consideradas terapêuticas.
414-A. AA, MM, GG, BB, CC, NN eDD tinham conhecimento de que o calor, aliado ao esforço físico e desidratação eram aptos a provocar doenças e até a morte.
415. O arguido AA frequentou o Curso de Instrutor de Educação Física Militar no CMEFD.
416. O arguido MM frequentou o Curso de Instrutor de Musculação e Cardiofitness no CEF.
417. O arguido GG é médico, presta serviço no INEM e no HFAR e é ..., tendo acompanhado alguns cursos anteriores, como acima se referiu.
418. O arguido GG conhecia as circunstâncias em que ocorre o Golpe de Calor.
419. Consta do relatório da inspeção técnica extraordinária ao Curso ... quanto ao Golpe de Calor a seguinte descrição:
"Golpe de calor provocado pelos exercícios
(...)Os factores de risco associados a este tipo de golpe de calor incluem a fadiga generalizada, vestuário pesado e inapropriado, exposição directa ao sol, desidratação, ausência de acondicionamento cardiovascular e aclimatização ao calor, desidratação ou inacessibilidade à água e doenças crónicas."
"Diagnóstico”
Os critérios principais são a disfunção profunda do SNC (Sistema Nervoso Central) e lesão de órgão alvo acompanhados de uma temperatura central maior que 40ºC. O reconhecimento imediato do golpe de calor provocado pelo exercício é vital para a sobrevivência do doente. Os sinais e sintomas dependem do grau e duração da hipertemia. Estão incluídos a desorientação, confusão, tonturas, comportamento bizarro, alucinações, irritabilidade, cefaleias, desequilíbrio, fraqueza muscular resultando em colapso, fadiga profunda, hiperventilação, vómitos, diarreia, delírio, convulsões, síncope (com ou sem pródromo) ou coma.
Uma medição da temperatura central é de extrema importância para o diagnóstico, desta forma a temperatura rectal deve ser aferida. (...) Deve ser realizado um controlo analítico e imagiológico, desde que não afete o processo de arrefecimento."
"Tratamentos”
É considerada uma emergência médica. (...) Requer um arrefecimento corporal imediato, sendo que o objetivo primário é diminuir a temperatura central para 38,9º C nos primeiros 30 minutos após o colapso(...). O arrefecimento rápido para valores inferiores a 38, 9.º C está associado a uma redução significativa da mortalidade".
Geral
420. Os ... são uma Tropa Especial que se caracteriza por ser uma força de combate ligeira, não blindada, vocacionada para operações convencionais de natureza eminentemente ofensiva. Os ... têm capacidade de projecção imediata, elevada capacidade técnica e táctica, grande flexibilidade de emprego e elevado estado de prontidão, capitalizando a surpresa, velocidade, violência e precisão do ataque, como factores decisivos.
421. Face às características desta tropa especial, a Escola Preparatória de Quadro (EPQ) visa nivelar os conhecimentos dos formadores mediante os objectivos da formação. No caso do ....º Curso ..., esta formação teve a duração de 3 dias.
422. Todos os formandos candidataram-se voluntariamente ao ....º Curso ... com o propósito de integrarem uma Tropa Especial com as características acima descritas.
423. Depois da morte de OO houve formandos que pretenderam desistir do Curso.
424. Os pais de UUUU transportaram-no até ao Quartel da ..., depois deste ter fugido, tendo ficado em regime de prisão.
425. O arguido AAA não determinou que quaisquer dos formandos do 2. ° Grupo (P2) fossem para as silvas.
426. Na instrução de tiro de combate exigia-se que os instrutores respeitassem as normas e técnicas de formação com vista a preparar os formandos para o tiro em situações extremamente adversas, designadamente em teatro de operações.
427. O arguido CC ao colocar terra na boca de OO, quando o mesmo já apresentava desidratação, bem sabia que ofendia o corpo deste e lhe causava mal-estar, o que quis e fê-lo admitindo como possível que o instruendo, como consequência directa e necessária da sua conduta, pudesse sufocar e morrer, com o que se não conformou.
428. O arguidoDD ao desferir um soco na face de EE, bem sabia que ofendia o corpo deste, o que quis.
429. O arguido LL ao desferir uma bofetada na face de TT, bem sabia que ofendia o corpo deste instruendo, o que quis.
430-A. Os arguidos AA, MM, BB e CC, por um lado, e os arguidos AA, MM e NN, por outro, sujeitaram OO e PP, respectivamente, à prática dos exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, acima descritos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, actuaram com intenção de ofender o corpo e a saúde dos ofendidos e previram que dessas ofensas podiam resultar graves lesões orgânicas conformando-se com esses resultados, mas, todavia, não previram que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica e confiaram que não ocorreria a morte dos ofendidos OO ou PP.
430-B. Os arguidos AA, MM e ZZ sujeitaram UU à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo e ao racionarem sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, actuaram com intenção de ofender o corpo ou a saúde de UU e tivessem previsto que dessas ofensas podiam resultar graves lesões orgânicas, conformando-se com esses resultados, mas, todavia, não previram que poderiam evoluir até a uma falência de órgãos vitais da qual resultasse perigo para a vida do ofendido, resultado com o qual não se conformaram.
430-C. Os arguidos AA, MM e BB, sujeitaram, desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, III, LLL, MMM, NNN, OOO e PPP, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, sabiam que estes podiam sofrer graves lesões orgânicas e desidratação extrema tendo-se conformado com esses resultados.
430-D. Os arguidos AA, MM e BB, sujeitaram, desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, TTT, UUU, QQ, HHHH, IIII, JJJJ, LLLL e OOOO, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, sabiam que estes podiam sofrer graves lesões orgânicas e desidratação extrema, tendo-se conformado com esses resultados.
430-E. Os arguidos AA, MM e BB, sujeitaram, desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, VVVV, AAAAA, TT e TTTT, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, sabiam que estes podiam sofrer graves lesões orgânicas e desidratação extrema tendo-se conformado com esses resultados.
430-F. Os arguidos AA, MM e NN, sujeitaram, desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, LLLLL, MMMMM, NNNNN, OOOOO, PPPPP e RRRRR, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, sabiam que os ofendidos podiam sofrer graves lesões orgânicas e desidratação extrema, tendo-se conformado com esses resultados.
430-G. O arguido GG sabia que os formandos estavam sujeitos à prática dos exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, acima descritos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, com racionamento do consumo de água necessário para enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, mediante a intenção de causar ofensa no corpo e na saúde dos formandos e previu que dessas ofensas podiam resultar graves lesões neurológicas, cardíacas, renais e hepáticas, mas, todavia, não previu que poderiam evoluir até a uma falência de órgãos vitais da qual resultasse perigo para a vida dos formandos, dentre eles OO e PP, resultado com o qual não se conformou.
430-H. Os arguidos DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, provocaram e agiram com o propósito de provocar danos no corpo dos instruendos dos Grupos P1, P2 e P3, o que se verificou.
430-I. O arguidoDD agiu com o propósito de provocar danos no corpo de TTT e EE, como provocou, bem como no corpo dos instruendos dos Grupos P1, P2 e P3».
430-J. O arguido LL agiu com o propósito de provocar danos no corpo em TT, o que provocou.
430-K. O arguido BBB provocou e agiu com o propósito de provocar danos no corpo em RRRRR, como provocou.
430-L. Quando o arguido GG ordenou a RR, JJJ e PPP que rastejassem, actuou com o propósito de agravar as lesões físicas e neurológicas dos ofendidos, bem sabendo que dessa forma potenciava os sinais de risco elevado de desidratação profunda e consequentes consequências orgânicas, nomeadamente, lesões renais e neurológicas, com desprezo, ausência de responsabilização e revelando desrespeito pela situação de falência orgânica em que se aqueles se encontravam.
431. Agiram os arguidos de forma deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram contrárias aos deveres militar e disciplina militar e que eram proibidas por lei.
431-A. Consta do guião que "apenas os instruendos que realmente necessitem de um maior apoio ou estabilização serão levados para a ambulância, Posto de Socorros do ... ou mesmo evacuados, sendo a avaliação destes casos da responsabilidade do Oficial Médico presente que os propõe ao Diretor da Prova".
Contestações
432. Os arguidos não elaboraram ou tiveram intervenção na preparação do Guião da ....
433. Os arguidos AA, MM, BB, CC, ZZ, CCC, AAA, LL, NN, BBB,DD, DDD, EEE, FFF, GGG, HHH, FF não têm formação médica, nem formação sobre "golpe de calor”.
434. O arguido AA ministrou o Curso de acordo com o guião da ... usado no curso ...º.
435. Foi a pedido do arguido AA que o Médico do INEM observou PP.
436. Apenas o médico podia propor a transferência dos instruendos para os hospitais.
437. No dia ... de ... de 2016, após a formatura da manhã, os instruendos apenas executaram exercícios ligeiros, enquanto outros instruendos eram assistidos na enfermaria da Força Aérea Portuguesa, no Campo de tiro ....
438. Aos instruendos do Curso ...º foi distribuído um guião dos instruendos do Curso ..., guião geral e um panfleto " a instrução que vais receber ".
439. Enquanto Comandante da ..., o arguido MM respondia diretamente ao Diretor da Prova, o arguido AA.
440. Os Comandantes e Sargentos de Grupo respondiam diretamente ao arguido MM.
441. O oficial responsável pela Instrução de Tiro,DD, o Sargento responsável pelo Treino Físico, FF e o Capitão responsável pela equipa sanitária, GG, respondiam diretamente ao arguido AA.
442. No dia ... de ... de 2016, às 21h30 o arguido MM esteve presente no momento da alvorada.
443. Apresentou ainda a Companhia ao Comandante do Regimento ... e fez a revista aos instruendos.
444. Eliminado.
445. "A ... tem por finalidade preparar a disponibilidade psicológica dos instruendos para melhor receber e incorporar as competências que lhe irão ser transmitidas no decorrer do Curso ...".
446.DD não esteve na enfermaria.
447. Os arguidos ZZ e AAA exerceram pela primeira vez as funções e instrutores no ...º Curso ....
448. O Curso ... é precedido de uma fase denominada estágio de preparação de cerca de um mês.
449. Os interessados em frequentar o Curso ... frequentaram a Instrução Básica, juraram bandeira e frequentaram a instrução complementar.
450. Ao pretender frequentar o Curso ... são sujeitos a Provas de Classificação e Selecção.
451. A ... é a primeira prova do Curso ....
452. Os Comandos integraram várias missões e ... nos últimos anos em países como Timor-Leste, ..., Iraque e república ....
453. No primeiro dia estava previsto: GE - Ginástica Educativa; GAM - Ginástica de Aplicação Militar; ... - Técnicas de Combate 1; ... - Técnicas de Combate 2; Tiro de Combate; MARCOR e Ordem Unida.
454. O oficial que comanda um grupo de instruendos e respectivo Sargento, não intervêm na instrução dos restantes grupos, assim como nas instruções específicas de Tiro, Ginástica Educativa e Ginástica de Aplicação Militar.
455. A elaboração dos guiões não é feita pelos instrutores, nem a fixação dos termos iniciais e finais do ...º Curso ....
456. O conteúdo das sessões de instrução a ministrar constam do Manual de técnica Individual de Combate, do Manual de Técnica de Combate do Regimento ..., do Manual de Tiro de Combate, do Regulamento de Educação Física do Exército e do Manual de Técnicas de ... e das fichas de instrução, aprovadas pelo Comandante do Regimento ....
457. Os soldados CCCC e YYY do Grupo de Praças 1 encontravam-se equipados com dispositivos para recolha de temperatura corporal, frequência cardíaca e respiratória.
458. Os arguidos ZZ e AAA receberam ordem do arguido MM que recebera indicação do arguido GG, para que os instruendos fossem molhados, tendo ordenado aos instruendos que o fizessem
459. Quando GG se ausentou da ... os instruendos não estavam a realizar quaisquer exercícios.
460. Até próximo das 16h o instruendo OO não tinha mostrado exaustão ou lipotimia e durante as instruções anteriores não tinha sido assistido pelo arguido GG ou por qualquer membro da equipa sanitária.
461. O instruendo PP foi pela primeira vez observado pelo arguido GG no toldo de triagem próximo das 16h, no final da sessão de treino de técnicas de combate.
462. Foi dada prioridade amarela ao soldado JJJJ, AlferesIII, Soldado HHHH, Furriel OOO e Sargento MMM, tendo sido dado prioridade verde a todos os restantes instruendos.
463. O DAE detecta automaticamente a necessidade de aplicar o choque e emite um comando de voz. Selecciona a carga automaticamente e carrega a energia automaticamente.
464. A intervenção do seu operador resume-se à necessidade de premir o botão para aplicar o choque.
465. O arguido SS não desempenhou funções na ... como instrutor, nem ministrou qualquer instrução.
466. (…) 470.
Condições pessoais, profissionais e sociais dos arguidos
AA
471. O arguido AA nasceu em ..., onde os pais eram operários, tendo ficado entregue aos cuidados da avó materna e bisavós, radicados no concelho de ...), aos cinco anos de idade, conjuntamente com a irmã, nascida em Portugal.
472. Após o retorno dos pais, aos nove anos de idade e após o falecimento do pai por doença, (sentido como uma perda significativa pelo arguido), passou a viver com a mãe e a irmã em ....
473. A sua infância e adolescência decorreram em contextos familiares conservadores e normativos.
474. Por gosto pessoal por uma carreira militar, iniciou e concluiu a licenciatura em Ciências Militares - especialidade de ... na ... em Lisboa - e o tirocínio em ..., aos 25 anos de idade.
475. Após o termo da formação militar, autonomizou-se familiarmente na sequência de casamento aos 25 anos, tendo dessa relação nascido três filhas. O agregado familiar do arguido é constituído pelo cônjuge, com 52 anos de idade, funcionária administrativa numa empresa imobiliária, e três filhas com 19, 14 e 10 anos de idade, estudantes.
476. O seu percurso profissional tem-se desenvolvido no exército português onde exerceu funções como alferes no Regimento de ... n° ....
477. Enquanto militar desempenhou ainda funções como Adjunto Financeiro entre ...-...-1996 a ...-...-1996; Comandante do 1° Pelotão da Companhia entre ...-...-1997 a ...-...-1997; Comandante do 1° Pelotão da Companhia de Atiradores de ...-...-1997 a ...-...-1998 e depois como Comandante Interino da Companhia de Atiradores entre ...-...-1997; Comandante da 1ª Companhia de ... de ...-...-1998 a ...-...-1998; Instrutor de Informação e contra-informação de ...-...-1998 a ...-...-1998; Instrutor do Curso de Combate em ... entre ...-...-1998 a ...-...-1998; Diretor do Curso de ... de ...-...-1998 a 10¬...-...98; Chefe da subsecção de Educação Física secção de Instrução entre ...-...-1998 a ...-...-1999 e entre ...-...-1999 a ...-...-2000; Instrutor de ... e Topografia entre ...-...-1998 a ...-...-1999; Instrutor do 2° Curso Avançado de Combate a ... entre ...-...-1998 a ...-...-1998; Instrutor do Curso de Métodos de Instrução de ...-...-1998 a ...-...-1998; Instrutor do Curso de Instrutor, Operações e Informações entre ...-...-1999 a ...-...-1999; Comandante da 1ª Companhia /Batalhão de Instrução entre ...-...-2000 a ...-...-2000; Oficial do Núcleo de ... em ...-...-2000; Adjunto de Operações entre ...-...-2003 a ...-...-2003; Comandante da ... entre ...-...-2004 a ...-...-2004; Comandante da Companhia de Instrução ... entre ...-...-2005 a ...-...-2005; Oficial de Logística entre ...-2005 a ...-...-2005; Diretor dos Cursos de Atirador de ... Ligeira em ...-...-2005 e em ...-...-2005; Chefe da SOIS entre ...-...-2005 a ...-...-2005; Chefe da Secção do Pessoal entre ...-...-2006 a ...-...-2006; ...° Comandante do Batalhão ... entre ...-...-2006 a ...-...-2006; Chefe da Secção de Logística entre os períodos de ...-...-2006 a ...-...-2007, de ...-...-2009 a ...-...-2020, de ...-...-2011 a ...-...-2011, de ...-...-2012 a ...-...-2014; Comandante do Destacamento de Apoio Avançado da .../International Security Assistance entre ...-...-2007 a ...-...-2009; Chefe do Núcleo de ... entre ...-...-2009 a ...-...-2020 e entre ...-...-2012 a ...-...-2014 e ainda entre ...-...-2015 a ...-...-2015; Assessor na Cooperação Técnica Militar/República de ... entre ...-...-2010 a ...-...-2011; ...º Comandante do Batalhão ...;...º Comandante Interino do ... entre ...-...-2013 a ...-...-2013; Oficial de Operações ... entre ...-...-2014 a ...-...-2014; Chefe da Secção de Logística do ... ... de ...-...-2015 a ...-...-2015; Chefe da Secção de Formação do ...do Regimento ... em ...-...-2015; Diretor do Estágio do Curso ...º Curso ... em ...-...-2016 a ...-...-2016; ...º Comandante do Regimento ... em regime de suplência, de ...-...-2016 a ...-...-2016; Diretor do ...º Curso ... entre ...-...-2016 a ...-...-2016.
478. Frequentou e conclui os cursos profissionais militares de ..., de Acompanhantes Locais/UNAVE, de Combate em ..., de Instrutor de ..., de Métodos Instrução, de Promoção a ..., Curso ..., de Promoção a Oficial Superior, Curso CIMIC-Oficiais, Curso de ... da ... e um curso de ....
479. Em ..., ingressou no curso ... e após conclusão do referido curso ficou afecto ao antigo ..., na ....
480. Voluntariou-se para diversas missões militares, em ... (entre ...-...; de ... a ...) e no ... (em ... e ...), ao mesmo tempo que foi progredindo na hierarquia militar até à actual patente de .... A aceitação de missões no estrangeiro decorreu essencialmente da motivação económica, dada a preocupação com o bem-estar material da família.
481. À data do presente processo, AA estava afecto ao Regimento ..., onde era oficial superior e Chefe da Secção de Formação, competindo-lhe a direcção da ... do ...º curso ..., função esta já anteriormente exercida no âmbito do ...º curso.
482. Em ..., voluntariou-se para uma nova missão militar, em ..., onde exerceu funções como assessor no âmbito de Cooperação Técnico-Militar com esse país.
483. Em ..., após o termo desta missão, foi afecto à ..., em ..., onde exerce funções de chefia da Secção de Logística.
484. Foi condecorado em ...-...-2005 com a Medalha de ...; em 23¬...-...05 com Medalha Comemorativa das Comissões de Serviços Especiais das ...; em ...-...-2006 com a Medalha ...; em ...-...-2009 com a ...; em ...-...-2009 com a Medalha de Serviços Distintos; em ...-...-2010 com a Medalha da .../...; em ...-...-2011 ..., em ...-...-2014 ... e em ...-...-2015 coma Medalha de Mérito Militar.
485. Recebeu ainda Louvores, pela forma eficiente e dedicada e pelas qualidades evidenciadas em ...-...-1998, na Escola Prática de ...; em ...-...-2002 como Ajudante de Campo...; em ...-...-2004 pelas funções de Assessor do ... da Cooperação Técnico-militar ...; em ...-...-2005 pela elevada competência e extraordinário desempenho e relevantes qualidades como Comandante da Companhia de Instrução ..., Comandante da Companhia ... e Serviços, Adjunto na Secção de Operações Informações e Segurança no Regimento de ... N... e Assessor no ... - Brigada e Centro de Instrução e ... em ...; em ...-...-2009 pela forma empenhada e competente com que desempenhou as suas funções como Comandante do Destacamento de Apoio Serviços da .../Força Nacional Destacada/... ..., no ...; em ...-2020 pela forma eficiente, dedicada e extraordinariamente competente como desempenhou as funções de Chefe da Secção de Logística da Unidade; em ...-...-2012 pelo desempenho no ... e como Assessor no ... e em ...-...-2013 enquanto militar integrado no Estado-Maior da Força de Reacção Imediata e em ...-...-2014 pela forma extremamente dedicada e profissional como desempenhou funções no .... É ainda mencionado que o Estado Maior das ... ... atribui, em ... de ... de 2018, ao arguido AA, um Louvor pelo espírito de missão, organização e disciplina demonstrado no cumprimento das suas funções de Diretor Técnico da Assessoria Militar ..., no período de ... de ... de 2017 a ... de ... de 2018. Foi ainda agraciado com a Medalha de Mérito Militar do Exército ...- a ... de ... de 2015 e com a Medalha de ..., por Despacho de ... de ... de 2021.
486. Frequentou os seguintes cursos profissionais militares: Curso de ..., Curso de Combate em ..., Curso de Instrutor de ..., Curso de Instrutor de ..., Curso de ..., Curso de Métodos de Instrução, Curso de Promoção a ..., Curso CIMIC-Oficiais, Curso de ....
487. O arguido AA, juntamente com o agregado familiar residem em ..., num apartamento próprio.
488. A situação económica do agregado configura-se equilibrada, sustentada pelos rendimentos da actividade militar do próprio o qual aufere cerca de €2050 líquidos e do trabalho assalariado do cônjuge
489. Para além das despesas mensais relativas ao sustento do agregado familiar e com os consumos de água, energia e telecomunicações que computa em cerca de €280, tem encargos resultantes da amortização do empréstimo para aquisição de habitação, no valor de €350 euros, com o condomínio no valor de € 54,85 (e encargos anuais com duas viaturas automóveis de que é proprietário, IUC e seguros, no valor aproximado de €650 para além das despesas escolares com as filhas, como sejam propinas, livros e material escolar, no valor estimado, pelo próprio, em €3.600 por ano.
490. As suas rotinas de ocupação do tempo livre, para além do convívio familiar, abrangem actividades informais de manutenção física e de natureza cultural individual, ligadas à fotografia e ao coleccionismo.
491. No meio sócio-residencial urbano de ..., o arguido é percepcionado como uma pessoa discreta e socialmente integrada.
492. Os militares que o conhecem da ... e passagem pela Escola Prática de ... em ..., descrevem-no como uma pessoa com valores éticos socialmente aceites, responsável e rigorosa, apologista de valores como a lealdade
493. Os seus relacionamentos extrafamiliares são referenciados a elementos do contexto militar, mais frequentes com colegas residentes na zona de ....
494. O arguido AA não tem antecedentes criminais.
495. A situação jurídico-processual do arguido, segundo o cônjuge, não afectou a relação conjugal nem a relação com as filhas, mantendo-se o espírito de coesão e afecto que sempre caracterizou o funcionamento do agregado familiar nem teve repercussões a nível social.
496. No plano militar, na sequência das fatalidades ocorridas com os formandos do ...º curso .../... em ..., foi aberto um processo interno de averiguações, tendo o arguido AA sido sancionado com a proibição de saída da unidade por 15 dias, por não verificação, antes da realização da ..., da presença do médico destacado para o efeito. O arguido refere não aceitar esta sanção disciplinar e ter apresentado recurso da mesma para instância judicial.
497.(…) 513.
BB
514. BB é o filho mais novo de uma fratria de dois.
515. Efectuou um percurso escolar regular, tendo realizado o curso de armas na ..., seguido de Mestrado em Ciências Militares, o qual concluiu aos 27 anos. O ingresso do seu irmão mais velho na força aérea terá constituído um factor decisivo na opção por uma carreira militar.
516. Após conclusão da referida formação, o arguido foi colocado em ... na antiga Escola Prática de ..., onde foi enquadrado na Unidade de Formação, para desempenhar funções de instrutor nas áreas de técnicas de combate - módulos de apoio e armas.
517. Em ..., o arguido por sua vontade, integrou o ... curso ... como instruendo. Após ... de ... de 2015, atendendo à necessidade de regressar à guarnição de Lisboa, findo o período previsto de deslocação à guarnição de ..., e por sua opção, o arguido passou a integrar o Regimento ... da ..., tendo passado a desempenhar funções de instrutor em cursos ....
518. À data dos factos, o arguido exercia funções de instrutor no Regimento ... e no âmbito do curso ... estava responsável pelo grupo de graduados.
519. Actualmente, encontra-se a exercer funções de Comandante de Companhia, com maior cariz administrativo e de gestão, tendo saído da função de instrutor por orientação superior.
520. Em ... conclui o curso de promoção à patente de ..., não tendo, porém, sido promovido em virtude da pendência do presente processo.
521. O arguido mantém uma relação afectiva estável, com coabitação, desde há cinco anos.
522. Aufere um salário de €1200 e a sua companheira recebe €1350. Em termos de despesas, BB tem o pagamento de uma prestação relativa à habitação de €350, uma prestação de €300 respeitante a créditos automóveis e ainda uma prestação para pagamento de crédito para obras de melhoramento de casa no valor de €190 e um crédito pessoal relativo a despesas com o curso da companheira no valor de 275,00 €. As despesas com alimentação e outras despesas fixas rondam os €500.
523. Pelo seu superior hierárquico ... VVVVV é referido que, desde a frequência da ..., tem mantido um comportamento exemplar, de elevada correcção no tracto, com uma atitude de disponibilidade e empenhamento no seu trabalho, postura que mantém no presente, tendo-lhe sido atribuído dois louvores.
524. É o primeiro contacto com a justiça, não tendo antecedentes criminais.
CC
525. CC é o primogénito de uma fratria de dois irmãos. O seu processo de desenvolvimento decorreu num agregado familiar de estrato socioeconómico humilde, sendo a dinâmica relacional afectada pelos hábitos alcoólicos do progenitor.
526. Manteve uma forte relação afectiva com a mãe, principalmente após a separação dos pais, a qual ocorreu quando tinha cerca de 11/12 anos de idade, sendo o sustento do agregado familiar suportado essencialmente pela mãe.
527. No contexto social originário, foi descrito como uma pessoa educada, calma, não geradora de situações problemáticas, que sempre se fez acompanhar com pares com condutas normativas e integradas.
528. O seu percurso académico pautou-se pela normalidade ao nível comportamental, destacando-se duas reprovações, atribuindo esses insucessos à fraca motivação pelos estudos, no entanto, frequentou e concluiu um curso profissional na área de informática, obtendo a equivalência ao 12º ano de escolaridade.
529. Durante a sua infância e adolescência integrou a modalidade de futebol como federado, tendo no início da fase adulta começado a praticar a modalidade de ..., também como federado.
530. Evidenciando motivação pela actividade desportiva e pela carreira militar, por influência de amigos ex-militares e pela ambição em integrar o Exército, decidiu voluntariar-se para as ..., nomeadamente para as ... - ..., em ..., no ano ....
531. Iniciou a sua experiência profissional, como praça do Exército, passou, desde essa altura, à situação de regime de contrato, permanecendo em vários quartéis, frequentando também o Curso de ... Militar (Força Especial).
532. No sentido de progredir na carreira militar, de ... a ..., integrou o Curso de Formação de Sargentos, na ..., nas ..., passando a pertencer aos quadros permanentes do Exército, sendo colocado, por sua escolha, no Regimento ..., em ....
533. A nível militar frequentou os Cursos de Formação de Sargentos, Curso Chefe ..., Curso de Tiro e Curso ..., Curso de Sobrevivência, Evasão, Resistência e Extracção em .... No âmbito das missões de paz internacionais, incorporou o ... para a ..., no ..., entre .../.../2015 e .../.../2015 e o Curso de Sobrevivência, Evasão, Resistência e Extracção, nível C, entre 11 a ... de ... de 2019.
534. Enquanto militar exerceu funções de Sargento Auxiliar Especialista em... entre ...-...-2010 a ...-...-2010; Sargento do 1º Pelotão 2º .../12 entre ...-...-2012 a ...-...-2012; Comandante de Secção de Guarnição e Segurança entre ...-...-2012 a ...-...-2013; Comandante da 2º Secção, do 1º Pelotão, da 2º Companhia ..., do 2º Batalhão de ... Mecanizado entre ...-...-2013 a ...-...-2013 Comandante de Secção, do 1º ..., entre ...-...-2013 a ...-...-2013; Comandante de Secção do ... de Atiradores do 2º Batalhão de ... ... entre ...-...-2013 a ...-...-2014; Encarregado de Formação do Pelotão de Formação da ... entre ...-...-2014 a ...-...-2014; Instrutor no estágio do ... Curso dos ... entre ...-...-2014 a ...-...-2014; Instrutor do ... Curso dos ... entre ...-...-2014 a ...-...-2014; Comandante de Equipa de Combate entre ...-...-2014 a ...-...-2015; "Trainer" de Equipa de Formação da Companhia de Serviços entre ...-...-2015 a ...-...-2015; Encarregado de Formação do Pelotão de Formação da ... da regimento ... em ...-...-2016; Encarregado de Instrução do 1º Grupo do Estágio do ...º Curso ... entre ...-...-2016 a ...-...-2016; Encarregado de Instrução do 3º Grupo do Estágio do ...º Curso ... entre ...-...-2016 a ...-...-2016; Encarregado de Instrução do 1º Grupo do Estágio do ...º Curso ... entre ...-...-2016 a ...-...-2016; Encarregado de Instrução do 1º Grupo do ...º Curso ... entre ...-...-2016 a ...-...-2016.
535. À data dos factos, CC estava colocado no Regimento ..., em ..., tendo o posto de 1º Sargento, sendo encarregado de instrução do 1º Grupo no ...º Curso ..., exercendo esta função até ao final do mesmo.
536. Desde essa altura, por imposição institucional, deixou de ser instrutor do Curso ..., passando a desenvolver funções de comandante de equipa de combate, Sargento Adjunto de Companhia ... e Adjunto do Comando de Companhia ..., e esteve afecto à carreira de tiro, exercendo também funções como Instrutor de Combate Corpo a Corpo no...º Curso, até .../.../2018 e Instrutor de Tiro de Combate no ...º Curso.
537. Ao nível afectivo, encetou, em ..., um relacionamento com a sua actual companheira, WWWWW, também militar de carreira, residindo numa habitação arrendada, de tipologia 2, no Bairro Militar da ....
538. No domínio económico, o arguido pese embora viva em união de facto subsiste apenas do seu rendimento de trabalho de cerca de €1070 por mês, o que lhe tem permitido fazer face às suas despesas mensais no valor de cerca de 884€.
539. De acordo com a sua companheira, com quem coabita há quatro anos, CC é descrito como um bom amigo, prestável, sensível, empenhado, ponderado e sociável.
540. Enquanto militar, além do referido anteriormente, é referido como bom camarada, disciplinado, exigente para com os demais e para consigo, disciplinador, com boas relações interpessoais e com características de liderança, empenhado e bom profissional, sendo visto como referência.
541. Ao nível do mérito, de acordo com a sua folha de matrícula militar foi condecorado com a medalha de comportamento exemplar, medalha comemorativa das comissões de serviços especiais das ... pela missão no ..., com a medalha ... e ainda louvado, em ..., pelo seu desempenho na referida missão.
542. Relativamente aos factos em causa considera como factores do sucedido a falta de rigor/exigência na selecção dos instruendos pela instituição militar e as débeis condições fisiológicas dos alegados ofendidos associados à falta de recursos humanos e logísticos da instituição militar, nomeadamente no âmbito da saúde.
543. A existência do presente processo teve como consequências a proibição de integrar missões no estrangeiro, com o consequente decréscimo em termos financeiros.
544. Foi alvo de um processo disciplinar interno - nº 03 .../... do Comandante ... - (...), levado a cabo pela Repartição de Justiça e Disciplina do Exército, tendo sido punido com a proibição de saída do Regimento ..., pelo período de 10 dias, com fundamento no facto da sua conduta ter violado o dever de autoridade, de lealdade, de camaradagem e correcção, previsto no Regulamento Disciplinar Militar (RDM).
545. O arguido CC não tem antecedentes criminais.
546. (…) 636.
DD
637.DD é natural de uma pequena freguesia do concelho da ..., tendo ambos os progenitores, ora reformados, sido trabalhadores assalariados. O arguido tem ainda quatro irmãos de relacionamentos anteriores estabelecidos por ambos os ascendentes.
638. Concluiu o ensino secundário na ..., na ..., tendo ingressado em ..., com 18 anos de idade na ..., em Lisboa/Amadora, onde concluiu em ... o curso de "Ciências Militares", que durou cinco anos, tendo o interesse pela carreira militar sido determinado sobretudo por influência de familiares directos, já que o pai foi ... durante 16 anos, bem como o avô paterno, os quais terão também permanecido inseridos na vida militar, na Marinha de Guerra ....
639. Frequentou o Curso de ... e no 4º ano escolheu a Arma de ..., tendo concluído o Tirocínio de Oficial de ....
640. Obteve o mestrado em ciências militares da área da ..., tendo ingressado em ...-...-2013 no Regimento ..., instituição onde concluiu o ... curso geral de formação em ... de ... de 2013, para o qual entrou em .... Em ... frequentou o 4º Curso de Instrutores de Tiro de Combate.
641. Exerceu funções de Comandante de Pelotão, 2º Comandante de Companhia, Adjunto do tiro da Secção de Operações, Informações e Segurança, Instrutor de Tiro, Comandante de Combate, Comandante de Grupo de Combate. Em ... assumiu as funções de Instrutor e Oficial de Tiro do CTC, tendo ministrado cursos a Cabos e recrutas. Foi nomeado instrutor do estágio do ... Curso ... e da ... deste Curso e do ...º Curso e do ...º Curso ....
642. Participou na 1ª missão das ...
643. O arguidoDD foi praticante de karaté durante vários anos, tendo ainda desenvolvido vários outros desportos.
644. Embora sendo seleccionado como oficial NBQ da 2ª Força Nacional Destacada/Missão Multidimensional ... (...) na ..., não veio a participar nesta missão devido à instauração deste processo judicial.
645. Averba um "louvor do Comando do Regimento ...", bem como uma "Medalha de ...".
646. Ao nível afectivo,DD mantém desde 2010 uma ligação tendo passado a viver em união de facto em 2014, residindo num apartamento T3, localizado em ....
647. O arguido aufere uma média de €1200 mensais e a companheira, enfermeira num hospital localizado em Lisboa, recebe uma quantia idêntica. Como despesa mais significativa sobressai a amortização do empréstimo contraído para aquisição de habitação própria de € 650 mensais, sendo as restantes despesas (electricidade, água e telefone) quantificadas em €150 mês.
648. ActualmenteDD é o responsável pelo "...", na ..., sendo o responsável pela equipa de instrutores ali colocados.
649. A pendência do presente processo tem impossibilitado de poder participar em missões militares no exterior, tendo igualmente ficado impedido de participar num curso de formação que decorreu numa força militar da ....
650.DD não tem antecedentes criminais.
651. (…) 716.
FF
717.FF é o mais novo de cinco irmãos, oriundo de uma família residente em ..., dedicando-se o agregado familiar à agricultura de subsistência.
718. O arguido iniciou o percurso escolar na idade regular tendo completando o 12º ano de escolaridade com 20 anos de idade na sua zona de residência.
719. Paralelamente a toda a frequência escolar e antes de ingressar na carreira militar, o arguido praticou sempre desporto, nomeadamente ciclismo e também futebol, enquanto desportista federado na modalidade no ..., até aos 21 anos de idade.
720.FF iniciou o percurso profissional aos 20 anos de idade, como ...numa empresa local do concelho de residência.
721. Aos 21 anos ingressou na carreira militar, pela qual optou de forma não premeditada, respondendo espontaneamente a um anúncio do Exército tendo sido incorporado em .../.../2006, no ..., onde permaneceu cerca de três anos, com alojamento no quartel.
722. Aos 24 anos, frequentou o curso de sargentos na Escola ..., onde também permanecia alojado. Frequentou posteriormente, em ..., uma formação na área da ... para ingresso no Regimento ..., onde entrou em .../.../2011 e ainda permanece.
723. Durante a sua carreira militar,FF adquiriu novas competências, tendo realizado formações militares complementares, nomeadamente na área do ... e da educação física. Assim, frequentou o Curso de ... Militar de ...-...-2009 a ...-...-2009; o Curso de Formação de Sargentos entre ...-...-2009 a ...-...-2011 ; o Curso ... de ...-...-2011 a ...-...-2011; o Curso de Instrutor de ... entre ...-...-2014 a ...-...-2014; o Curso de ... Militar de ...-...-2009 a ...-...-2009; o Curso de Formação de Sargentos entre ...-...-2009 a ...-...-2011; o Curso Primeiros Socorros Para Profissões de Alto Risco entre ...-...-2017 a ...-...-2017; Curso de Suporte Básico de Vida com Desfibrilhação Automática Externa em ...-...-2017; Curso de Higiene e Segurança Alimentar Qualificação entre ...-...-2019 a ...-...-2019.
724. No referido Regimento ..., e após ter participado numa missão de sete meses, em ..., no ..., como comandante de equipa na Companhia de Proteção da Unidade de Apoio do ...º Contingente Nacional/...", em ... passou a exercer funções especificamente ligadas à preparação e treino físico, quer como Encarregado de Formação do Pelotão de Formação e Encarregado de Instrução de Grupo, quer como Instrutor de Treino Físico e Militar, quer ainda como Sargento para a ... da Secção de Apoio à Formação da ... do Regimento ....
725. Mais recentemente, em 2016, e a suas expensas, o arguido realizou um curso de mergulho recreativo, actividade que desenvolve de forma particular e apenas nos seus tempos livres.
726. A data dos factos subjacentes ao presente processo, FF estava afecto ao Regimento ..., onde era instrutor de Treino ... do ...º curso .... Exerceu funções de encarregado de turma 5 para o 3º .../11, de ...-...-2011; funções de Comandante de Equipa de Combate, entre ...-...-2012 a ...-...-2012; de Comandante de Equipa de Combate, entre ...-...-2012 a ...-...-2012; Em O1JAN12 passou a desempenhar as funções de Comandante de Equipa ...; entre ...-...-2012 a ...-...-2013, exerceu funções de Comandante de Equipa da Companhia de Proteção da Unidade de Apoio do ...Contingente Nacional (CN) da Força Internacional de Segurança e Assistência no ...; de ... a ...-...-2013, passou a desempenhar as funções de Comandante de Equipa da Companhia de Proteção da Unidade de Apoio do ...º Contingente Nacional das Forças Nacionais Destacadas, da Força Internacional de Segurança e Assistência no ... no Teatro de Operações do ...; Em ... de ... de 2013, passou a desempenhar as funções de Comandante de Equipa Combate; de ... de ... de 2013 a ... de ... de 2014, passou a desempenhar as funções de Encarregado de Formação do Pelotão de Formação; Entre ...-...-2013 a ...-...-2013 foi nomeado Encarregado de Instrução de Grupo do ...; entre ...-...-2014 a ...-...-2016foi Encarregado de Formação do Pelotão de Formação da ... do ...; Em 20 de Junho de 2016, passou a desempenhar as funções de Sargento para ... da Secção de Apoio à Formação da ... do Regimento ...; de Delegado de Segurança e Saúde no Trabalho da CF; de ...-...-2014 a ...-...-2017 desempenhou funções de Delegado de Segurança e Saúde no Trabalho da CF; em ... passou a desempenhar as funções de Comandante de Equipa de Combate; Foi nomeado como Encarregado de Instrução do 39 Grupo, no estágio do ...º Curso ..., entre ...-...-2015 a ...-...-2015; Encarregado de Instrução do 3º Grupo do ...º Curso ..., entre ...-...-2015 a ...-...-2015; como Instrutor de Treino ... do 1º ..., entre ...-...-2015 a ...-...-2015; como Instrutor de Treino ... no Estágio de preparação do ... Curso ..., no período de ...-...-2015 a ...-...-2015; como Instrutor de Treino ... do ... Curso ..., entre ...-...-2015 a ...-...-2015; Instrutor de Treino ... do 32... entre ...-...-2015 a ...-...-2015; como Instrutor de Treino ... do 22... entre ...-...-2015 a ...-...-2016; como Instrutor de Treino ... no Estágio de preparação do ...º- Curso ..., entre ...-...-2016 a ...-...-2016; Instrutor de Treino ... do ...º Curso ... entre ...-...-2016 a ...-...-2016 Instrutor de Treino ... do ...2016, entre ...-...-2016 a ...-...-2016 Instrutor de Treino ... - instrução Complementar -..., de ...-...-2016 a ...-...-2016; Sargento para EFM da Secção de Apoio à Formação da ... do RCmds, entre ...-...-2016 a ...-...-2017; em ..., passou a desempenhar as funções de Comandante de Equipa de Combate, ...º Curso ...; foi nomeado para ministrar o ...º Curso ..., de 03SET16 a 25N0V16, como Instrutor de Treino ...; como Instrutor de Navegação Terrestre - .../..., entre ...-...-2016 a ...-...-2016 Instrutor de Treino ... do .../2016 entre ...-...-2016 a ...-...-2016; Comandante de Equipa do Grupo de Combate da Companhia ... do BCmds entre ...-...-2017 a ...-...-2017; Comandante de Equipa de Combate da ... Força Nacional destacada/..., entre ...-...-2017 a ...-...-2017; passou a desempenhar funções de Sargento Adjunto da Secção Pessoal do Estado - Maior do Regimento ... em ...-...-2017 a ...-...-2017; a partir desta data (...), passou a desempenhar as funções de Comandante de Equipa de Combate da 2a Companhia ... e até ...-...-2018; Em ..., passou a desempenhar as funções de Comandante de Equipa de Combate da ... Companhia ...; desempenhou funções de Sargento de alimentação de Equipa de alimentação da ... entre ...-...-2018 a ...-...-2019; de ...-...-2019 exerceu funções de Comandante da ... Equipa de Combate, do ... Grupo de Combate, da ... Companhia ..., do Batalhão de Regimento ... e passou a desempenhar as funções de apoio à Secção de Alimentação, do Pelotão de Reabastecimento e Serviços, da Companhia de Comando e Serviços, do Regimento de ...; em ..., passou a desempenhar o cargo de Comandante da ....º Equipa do ....º Grupo de Combate/ ....
727. Foi condecorado com Medalha Comemorativa das ...em ...-...-13, pela sua intervenção no ...; com a Medalha de ... em ...-...-2013 e com a Medalha .../ ..., em ...-...-2015;
728. Em ...-...-2009, recebeu um louvor do Coronel Comandante do Centro de..., pelas excepcionais qualidades humanas e virtudes militares demonstradas no desempenho das suas funções no ...; em ...-...-2013, recebeu um louvor do Coronel ... ..., Comandante do ... Contingente Nacional das Forças Nacionais Destacadas do ..., pela forma excepcionalmente competente e empenhada como exerceu as suas funções de Comandante de Equipa do...º Grupo de Combate da Companhia de Proteção da Unidade de Apoio do ...º Contingente Nacional, quando esta Força integrou a ... da ..., no Teatro de Operações do ..., entre ... e ...; em ...-...-2016 recebeu um louvor do Coronel ... ... pelas elas excepcionais qualidades e virtudes militares evidenciadas no período compreendido entre ... e ..., no enquanto Encarregado de Formação da ..., dos ...º e ...º Cursos ... e de Cursos de Promoção a Cabos ... e na função de Instrutor de ... dos ...° e ...º Cursos ..., tendo ministrado Ginástica Educativa, Trabalho em Alturas, Ginástica de Aplicação Militar e Educação Física Militar;
729. Recebeu ainda cinco referências elogiosas, uma em ...-...-2010, do Comandante da Escola de Sargentos do Exército, duas do Coronel Comandante do Corpo de Alunos da Academia Militar, respectivamente em ...-...-2015 e em ...-...-2015, e outras duas do Comandante de Subunidade escalão Batalhão, respectivamente, em ...-...-2018 e em ...-...-2020.
730. Durante o seu percurso profissional, desenvolvido no Exército Português, conheceu a sua actual esposa, quando ambos frequentavam o curso de sargentos na .... O casal começou a viver em união de facto em ... e em ... nasceu a filha que têm em comum tendo contraído matrimónio em .... Residiam desde ... em ..., tendo passado a residir há cerca de um ano no centro urbano da ..., num apartamento adquirido com recurso a crédito bancário.
731. Os rendimentos são provenientes dos respectivos salários no valor individual de €1107 líquidos, enquanto militares.
732. As despesas mensais do agregado para além das inerentes à manutenção do mesmo, incluem a amortização do empréstimo para aquisição de habitação no valor de € 417, os encargos com o condomínio no montante de cerca €115 e ainda as despesas com consumos de água, telecomunicações e energia no montante de cerca de €150, e com a escola da filha no valor de €200.
733. É descrito como uma pessoa "muito humana e solidária", com princípios éticos, com capacidades de responsabilização e de empenho e detentor de valores dos quais destacam a lealdade, a amizade e a família. E em termos militares como uma pessoa com um assumido espírito de missão e de disciplina.
734. Na sequência da instauração do presente processo, o arguido foi afastado das funções que vinha a desempenhar na sua área de especialização - Treino Físico Militar -, tendo passado a desempenhar tarefas de outra natureza no Regimento .... Em meados de 2017, o arguido efectuou a preparação para integrar uma segunda missão internacional Integrada das Nações Unidas (... ... como comandante da Equipa de Combate da ...ª Força Nacional Destacada/ Missão Multidimensional. No entanto a sua participação nesta missão não se concretizou devido à sua situação de arguido neste processo.
735. O arguidoFF não tem antecedentes criminais.
GG
736. Natural de Lisboa, GG cresceu no agregado dos progenitores com dois irmãos mais novos, inicialmente em ... e posteriormente no ..., quando o arguido contava 14 anos de idade, sendo o progenitor, ... e professor de ... e a progenitora, ... numa empresa.
737. Dando continuidade a uma tradição familiar, GG cedo se iniciou na prática desportiva de competição, iniciando-se na modalidade da natação entre os dez e os catorze anos de idade, passando posteriormente para o ..., que praticou até entrar na ..., aos vinte anos de idade, tendo chegado a integrar a selecção nacional, retomando os treinos a título amador aos vinte e oito anos de idade. Paralelamente a estes desportos, o arguido praticou ultramaratonas e modalidades aquáticas (surf, bodyboard) para além de ter frequentado e concluído um curso de ....
738. Em termos laborais, GG regista o desempenho de actividades temporárias e pontuais durante a adolescência e com objectivos específicos (e.g. adquirir motorizada) na área da distribuição de pizzas, em bares, eventos de moda e desportivos.
739. Entrou no Curso ..., onde privou com colegas que o informaram da existência de um contingente especial de vagas para entrar na ..., pela via militar. Desta forma, o arguido, após frequência de um ano do Curso de ..., integrou em ... a ..., o que lhe permitiu o ingresso na Faculdade de....
740. No ano de ..., GG iniciou o internato geral e paralelamente, por opção própria, realizou o Curso ... no ano de ..., GG iniciou a Especialidade em ..., tendo-se dedicado à área de emergência e trauma. Em ... interrompeu a Especialidade durante um ano para servir o Exército.
741. A nível militar tirou os cursos profissionais de ... na ..., uma Pós-Graduação Módulo de Saúde, integrou e terminou o ...º Curso ..., o Curso de Promoção a ..., o Curso de Validação clínica em ... de Drogas e Abuso.
742. A nível externo frequentou o Curso de ... ocupacional Medical Review.
743. Desempenhou funções de Comandante da Secção Sanitária da ... entre ...-...-2011 a ...-...-2015; foi nomeado a partir de ...-...-2015 Médico da Secção Pessoal -51 do Estado Maior do Batalhão ...; Instrutor de Socorrismo do ...° ... entre ...-...-2015 a ...-...-2015; foi nomeado também como Instrutor de Socorrismo quer no Estágio, quer nos Cursos ...°, ...°, ... Cursos ..., respectivamente entre ...-...-2015 a ...-...-2015 e ...-...-2015 a ...-...-2015, ...-...-2016 a ...-...-2016 e ...-...-20 a ...-...-2016, ...-...-2016 a ...-...-2016 e ...-...-2016 a ...-...-2016.
744. Em ... recebeu um louvor pela sua postura e pela permanente e incondicional obediência e excepcional prestação enquanto oficial e enquanto médico.
745. Em termos profissionais, à data, para além do apoio aos cursos ..., conciliava o trabalho como médico militar, com a realização de urgências em hospital civil e prestação de serviços no INEM até ao ano de 2018, momento em que cessou esta última.
746. Na esfera emocional e familiar, contraiu matrimónio em 2014 com o actual cônjuge, residindo no centro de Lisboa, na freguesia de ..., em habitação arrendada pelo valor de 1.600€/mês.
747. Em Outubro de 2017 GG realizou o exame de conclusão da especialidade de ..., findo o qual se deverá manter a exercer medicina no Exército pelo período de dez anos até que seja possível desvincular-se. Todavia, a instauração do presente processo-crime originou a sua suspensão enquanto médico militar, tendo sido colocado em setembro de 2018 como Comandante da Unidade de Saúde ..., acumulando também funções de classificação e selecção de futuros soldados e de oficiais para determinadas carreiras no Exército.
748. Em ... iniciou o Curso de ..., embora não venha a ser promovido atenta a pendência do presente processo.
749. Na actualidade aufere 1.370€ líquidos, que acumula com valores entre os 700 e os 1.200€ mensais, decorrentes dos bancos de urgências que realiza no SNS, em virtude de não se ter conseguido vincular aos hospitais civis após a conclusão da especialidade.
750. Como encargos contraiu um empréstimo de 10.000€, para fazer face às despesas inerentes ao processo, tendo beneficiado numa fase inicial de suporte financeiro por parte da família de origem e do agregado.
751. O cônjuge desempenha funções como directora de marketing digital numa “start-up” no domínio da prestação de serviços de beleza ao domicílio, auferindo 1.000€/mês.
752. Em termos das suas características pessoais, GG manifesta capacidade de persuasão e de adaptação a situações várias, bem como capacidade de interacção e facilidade comunicacional e, ainda que com um progressivo desgaste e diminuição da tolerância à frustração ao longo do tempo, evidenciando uma postura ambiciosa, determinada e frontal, sendo descrito pelo cônjuge como excessivamente altruísta, com capacidade de sacrifício/abnegação, humilde, ingénuo, muito organizado, com o lado emocional bem desenvolvido, pouco permeável a conflitos e resiliente.
753. O superior hierárquico do arguido há um ano e que o conhece desde 2001, descreve-o do ponto de vista pessoal e profissional de modo muito positivo, salientando o seu carácter empreendedor, esforçado, competente, dedicado e humilde.
754. Na sequência da instauração do processo em causa, GG foi alvo de um processo disciplinar interno, que resultou numa sanção disciplinar, datada de ... de ... de 2017, de trinta dias de suspensão de serviço, decisão com a qual não concordou, tendo recorrido da mesma para o Tribunal Administrativo de Lisboa, desconhecendo-se ainda a decisão.
755. A pendência do presente processo impossibilitou de integrar, em ..., uma Missão Multidimensional ... (...) / ..., nem poder beneficiar de uma promoção a ... e do consequente aumento salarial.
756. O arguido GG não tem antecedentes criminais.
I) Factos não provados
Em função da alteração efectuada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo considerou não provados os seguintes factos:
1. Que desde que o Curso ... foi reactivado em ..., fosse elaborado um Guião da ... para cada curso.
2. Que constasse do próprio Guião dos cursos anteriores que o racionamento de água visasse testar a capacidade e resistência física e psíquica dos formandos em ambiente de isolamento e de elevada ansiedade.
3. Que as feridas e escoriações que os instruendos do ... Curso ... apresentavam, tivessem sido provocadas por os formandos, durante os vários Cursos, terem sido obrigados a rastejar nas silvas.
4. Que a ... do ... Curso ..., tivesse início em .../.../2015 a .../.../2015.
5. Que do Guião do ... Curso ... constasse a referência a cerca de 3 litros de água e que as situações excepcionais fossem analisadas pelos instrutores ou pela equipa sanitária e não propostas.
6. Que a partir de .../.../2015, oito formandos do curso ... tivessem dado entrada no Hospital das Forças Armadas.
7. Que das informações clínicas daqueles resultasse claramente que os formandos do curso ... apresentavam quadros clínicos de desidratação, rabdomiólise grave, disfunção renal aguda grave, disfunção hepática, escoriações nos membros e artrite séptica.
8. Que o averiguante não tivesse solicitado qualquer documentação clínica dos formandos ao HFAR.
9. Que o médico GG, ora arguido, não tivesse elaborado qualquer relatório médico sobre o estado clínico dos formandos do curso ..., por ter considerado que não havia motivo de ordem clínica que justificasse a transferência dos formandos para o HFAR.
10. Que as lesões acima descritas nunca tivessem sido comunicadas à PJM nem ao Ministério Público.
11. Eliminado.
12. Que os formandos tivessem sido acordados também ao som de sirene de ambulância.
13. Eliminado
14. Que a montagem e desmontagem do bivaque tivesse decorrido entre as 3h e as 4h.
15. Eliminado
16. Que os formandos foram sujeitos a flexões e a rastejar (durante a montagem do bivaque), pelos arguidos AA, MM e BB, os quais, em vez de preservarem, na véspera do primeiro dia de formação, a capacidade física dos formandos, desgastaram-nos física e psiquicamente, provocando-lhes níveis de ansiedade e cansaço, bem como dificuldades respiratórias devido ao pó que os formandos foram obrigados a inalar enquanto rastejavam.
17. Que entre as 06h20 e as 07h00, dia ... de ... de 2016, ao pequeno-almoço, por ordem do arguido CC, não tivesse sido fornecida toda a ração de combate prevista aos formandos, e que estes apenas consumiram 1 embalagem de bolachas (5 bolachas) e um doce, em vez das 3 embalagens de bolachas e 2 embalagens de doce.
18. Que os arguidos AA, MM e BB tivessem aceite que os formandos fossem privados de água e de parte da ração de combate prevista para o pequeno-almoço.
19. Eliminado.
20. Que o arguido BB soubesse que os formandos tinham sido privados do consumo de água ao pequeno-almoço.
21. Eliminado.
22. Que durante a ..., tivesse sido o arguido CC que não tivesse autorizado o RR a beber e como castigo lhe tivesse ordenado, e ao LLL, para que se atirarem para as silvas, o que estes fizeram por medo.
23. Que os arguidos BB e CC soubessem que tais condutas tinham sido expressamente proibidas pelo médico, porquanto as feridas infectam e podem provocar lesões graves ou que o médico tivesse feito essa proibição.
24. Eliminado.
25. Que à instrução da Ginástica de Aplicação Militar tivessem assistido os arguidos BB e CC.
26. Eliminado.
27. Que o arguido FF, ao agir como descrito em 94 do provado tivesse revelado elevado desprezo pela situação clínica dos formandos PPP e MMM ou que tenha ordenado que os arrastassem para as silvas pretextando que eles estavam a fingir, com o propósito de lhes provocar danos no corpo.
28. Eliminado.
29. Que tais factos tivessem sido presenciados pelos arguidos BB e CC, os quais nada fizeram para impedir que os formandos que tinham que por obrigação proteger e formar, fossem sujeitos a maus-tratos físicos.
30. Que os arguidos BB e CC, tivessem agido durante a GAM ministrada ao grupo de graduados com o propósito de humilhar e provocar feridas no corpo dos ofendidos, como provocaram, idênticas às fotografadas no Apenso 14, com grave violação dos procedimentos a adoptar durante o Curso, bem sabendo os arguidos que as suas condutas eram contrárias aos deveres do militar e disciplina militar, revelando sentimentos incompatíveis como respeito pela dignidade dos ofendidos.
31. Eliminado.
32. Que o tempo dado pelos arguidos BB e CC, a III, RR, JJJ, KKK, LLL, NNN, OOO e OO, para irem buscar as mochilas e regressarem, tivesse sido de 7 minutos.
33. Que as mochilas se encontrassem a cerca de 200 metros do local da instrução da GAM.
34. Eliminado.
35. Que CC se tivesse apercebido que RR tivesse bebido água às escondidas e por isso lhe tivesse ordenado que rastejasse por cima das silvas, o que lhe provocou feridas idênticas às das fotografadas no Apenso 14.
36. Eliminado.
37. Que após a GAM os arguidos AA e MM se tivessem apercebido do estado de fadiga extrema e desidratação dos ofendidos do Grupo de Graduados, ou que tivessem autorizado que actos violentos fossem praticados em todas as instruções.
38. Que LLL tivesse sentido o ritmo cardíaco muito acelerado durante a instrução da ....
39. Eliminado.
40. Que depois de o ofendido NNN ter desmaiado o arguido CC o tivesse mandado levantar e aos gritos e lhe tivesse dito: "que estava a atrapalhar os camaradas».
41. Que os socorristas não tivessem hidratado o RR.
42. Eliminado.
43. Que entre as 21h30 do dia ... de ... de 2016 e as 12h20 do dia ... de ... de 2016, os formandos tivessem bebido no máximo cerca de 10 tampas de água (320 ml - o equivalente a uma garrafa de água de 33 cl.
44. Que ao almoço, o que restava de água nos cantis dos quatro formandos, III, KKK, OOO e OO, correspondesse a 680 ml- um pouco mais de uma garrafa de meio litro..
45. Eliminado.
46. Que à hora da formatura da tarde o Diretor da Prova, o arguido AA, e o arguido GG soubessem que os formandos tinham sido sujeitos a bofetadas e pontapés
47. Eliminado.
48. Que durante a instrução de tiro os formandos tivessem sido privados de água mediante a conivência do arguido BB.
49. Que JJJ e PPP tivessem perdido os sentidos na instrução de tiro..
50. Que ambos tivessem sido levantados pelos arguidos FFF, GGG e HHH e obrigados a permanecerem de pé:
51. Que PPP tivesse prosseguido a instrução de tiro de combate contra a sua vontade.
52. Que o arguidoDD tivesse dito a JJJ que não tinha pena dele e lhe tivesse desferido um número indeterminado de bofetadas na cabeça e pescoço.
53. Eliminado.
54. Que RR, JJJ e PPP se encontrassem a cambalear e confusos no momento em que o arguido GG os avistou.
55. Eliminado.
56. Que III não conseguisse ver com nitidez as pessoas
57. Que III e OOO não se conseguissem movimentar e III não falasse.
58. Que o arguido CC, se tivesse aproximado de MMM e KKK e tivesse autorizado este último a beber água, enquanto dava ordem a MMM para que despisse o dólmen e a t-shirt e se atirasse para as silvas, o que este o fez por medo, tendo sofrido feridas idênticas às fotografadas no Apenso 14.
59. Que o arguido CC tivesse dado ordem para que o MMM se vestisse e fosse a rastejar até à ambulância e após isso o tivesse obrigado a correr.
60. Que face às dificuldades de locomoção de MMM, o arguido CC lhe tivesse desferido número indeterminado de pontapés nas costas, com a sola da bota, provocando-lhe lesões/hematomas e dores.
61. Que quando MMM chegou à ambulância e um socorrista lhe tentou dar água, o arguido CC, aos gritos, numa atitude cruel, tivesse dito: "esta cabra manca não merece água", privando-o de água.
62. Que OO não tivesse conseguido processar as ordens que lhe eram transmitidas.
62-A. Que até próximo das 16h o instruendo OO não tinha mostrado lipotimia.
63. Que a seguir a ter saído da instrução, o OO tivesse sido assistido pelo arguido SS, em campo aberto, sob um sol intenso e o arguido SS não lhe prestou assistência necessária.
64. Que a seguir a ter saído da instrução, OO não reagisse.
65. Que no momento que o arguido CC colocou terra na boca do OO, estivesse presente o arguido BB.
66. Que arguido CC ao colocar terra na boca do OO fê-lo, bem sabendo que podia sufocar o ofendido e matá-lo.
67. Eliminado.
68. Que MMM também tivesse colocado uma tampa de cantil na boca do OO para impedir que este sufocasse.
69. Que PPP tivesse aconselhado o arguido CC, a transferir de imediato o OO para um hospital.
70. Eliminado.
71. Que os instruendos tivessem chegado à zona do bivaque, cerca das 15H45.
72. Que os formandos MMM, PPP, OO, LLL e NNN tivessem bebido 2 litros de água.
73. Que AA e MM soubessem que III, OOO, MMM, PPP, LLL, NNN e OO se encontravam no interior da tenda apresentando graves lesões físicas e neurológicas, provocadas pela desidratação profunda e consequente consequências orgânicas, nomeadamente lesões neurológicas e lesões renais e hepáticas, que poderão evoluir até uma falência multiorgânica e à morte e nada deliberaram.
74. Eliminado.
75. Eliminado.
76. Que o 1.º Grupo (P1) tivesse sido autorizado a beber cerca de 2 a 3 tampas de água do cantil (cerca de 64 ml a 96 ml) durante ou após a marcha.
77. Que a montagem e desmontagem das tendas pelos instruendos do Grupo 1 tivesse decorrido das 03h00 às 04h00.
78. Que entre as 6h 20m e as 7h 00m, ao pequeno almoço, os formandos do 1º Grupo consumiram duas embalagens de bolacha (10 bolachas) e duas embalagens de doce, em vez de três embalagens de bolachas.
79. Os arguidos MM e ZZ, tivessem aceite que os formandos fossem privados de parte da ração de combate prevista para o pequeno-almoço.
80. Eliminado.
81. Que os arguidos ZZ e CCC tivessem assistido à instrução de Ginástica de Aplicação Militar.
82. Que a quantidade de água bebida pelos formandos foi de 6 a 7 tampas de cantil.
83. Que o instruendo OOOO ao desembarcar da viatura, cambaleasse e desfalecesse constantemente, sendo o estado clínico dos ofendidos observado pelos arguidos ZZ e CCC, os quais sabiam que a temperatura elevada que já se fazia sentir (entre os 32,4 e os 37,6.º C), conjugada com o elevadíssimo desgaste físico da instrução de tiro, provocaria em todos os ofendidos graves lesões físicas e neurológicas, provocadas pela desidratação profunda, bem sabendo que a situação clínica de OOOO, JJJJ e BBBB se agravara, sendo absolutamente indispensável chamar a equipa sanitária para avaliação e hidratação urgente.
84. Que os arguidos ZZ e CCC não o tivessem feito e tivessem privado os formandos de água e de assistência médica.
85. Que tivessem agido com o propósito de agravar a sua condição clínica, potenciando uma situação de falência orgânica.
86. Que MMMM tivesse sido agredido pelo arguido DDD com um número indeterminado de bofetadas e socos, provocando-lhe dores e hematomas.
87. Que OOOO não tivesse conseguido efectuar tiro por não se encontrar em condições psíquicas, e que tivesse sido constantemente pressionado com empurrões e pontapés pelo arguido FFF para que continuasse, porque o arguido dizia que OOOO estava a "fazer ronha “.
88. Que OOOO, por se encontrar prostrado no solo, num estado de cansaço extremo e desidratação, tivesse sido obrigado pelo arguido FFF a subir um monte repleto de silvas e a rebolar pelas mesmas, o que lhe provocou feridas na face, cotovelos, braços, mãos e pernas, idênticas às fotografadas no Apenso 14.
89. Que face às feridas provocadas, o ofendido OOOO tivesse deixado de se movimentar, tendo sido arrastado no solo, com as feridas expostas, por outros ofendidos durante a instrução do tiro.
90. Eliminado.
91. Que o arguido MM tivesse violado gravemente os deveres inerentes à disciplina militares e numa atitude cruel, com manifesto desprezo pela condição física e psíquica de OOOO, lhe tivesse desferido várias bofetadas na face e colocado os dedos nos olhos.
92. Que tivesse provocado, e agido com o propósito de provocar danos no corpo a OOOO, sujeitando-o a um tratamento desumano e humilhante.
93. Que tenha sido a pretexto de terem trocado de armas durante a instrução de tiro que os instruendos do P1 foram obrigados a atirar-se para um monte de silvas.
94. Que o arguidoDD tivesse desferido várias bofetadas na face de TTT, em virtude deste não estar na posição correcta de tiro, provocando-lhe dores. 95. Que os arguidos DDD, EEE, GGG e HHH tivessem empurrado para cima das silvas os formandos que estavam reticentes em fazê-lo.
96. Eliminado.
97. Que as feridas não tivessem sido tratadas.
98. Que as condutas acima descritas, empurrões, bofetadas, socos na cabeça e pontapés no corpo dos ofendidos, constituíssem prática habitual por parte de todos os instrutores e auxiliares da instrução de Tiro de Combate.
99. Que ZZ e CCC tivessem aceite a prática de actos violentos contra os formandos na instrução de tiro.
100. Que o arguido AA se tivesse apercebido do estado de fadiga extrema e desidratação dos formandos do 1.º Grupo (P1).
101. Que o arguido CCC tivesse dito que não tinha autorização para lhes dar água.
102. Que tivesse sido por ordem do arguido CCC que o instruendo OOOO tivesse sido retirado da viatura e que tivesse sido carregado para a área do bivaque.
103. Que o instruendo OOOO se encontrasse semiconsciente, prostrado no solo, sem conseguir levantar-se.
104. Eliminado.
105. Que entre as 21h30 do dia ... de ... de 2016 e as 12h20 do dia ... de ... de 2016, os formandos do 1.º Grupo (P1) tivessem bebido no máximo 0,5 litros de água.
106. Que ao almoço, OOOO não tivesse bebido e os demais formandos tivessem bebido 0,5 litros, e após encher o cantil ingeriram um 1 litro.
107. Que o formando OOOO não tivesse bebido, e, apesar disso, o arguido ZZ tenha pressionado OOOO a levantar-se, desferindo-lhe número indeterminado de bofetadas na face.
108. Que OOOO não reagisse.
109. Que o arguido ZZ tivesse deixado os formandos sozinhos na área de bivaque e estes tivessem tentado dar água com sal ao ofendido OOOO, mas este não reagia e não conseguia beber.
110. Que o instruendo OOOO, já se encontrasse muito debilitado, e estando amparado por outros formandos, tivesse sido abordado pelo arguido MM, que lhe desferiu número indeterminado de bofetadas na face, dizendo-lhe: "tu estás bem!", bem sabendo que a sua atitude violenta agravava o estado de saúde do ofendido e que lhe competia como Comandante de Companhia encaminhar o ofendido para a tenda que servia de enfermaria, o que não fez.
111. Que o arguido MM, revelando ausência de responsabilização e incapacidade de comando e elevada desumanidade, tivesse ordenado ao OOOO que prosseguisse a instrução durante o período da tarde - ... ("Carrossel"), impedindo-o de desistir e coagindo-o à prática de actos que sabia não poderem ser executados por formandos que já se encontravam muito debilitados fisicamente, bem sabendo que a sua conduta violava gravemente os deveres do militar e disciplina militar.
112. Que durante a formatura da tarde - cerca das 14H00 - alguns dos formandos do ... não tivessem comparecido por se encontrarem exaustos pelo calor e desidratados.
113. Que o arguido AA e o médico GG soubessem que alguns dos formandos do grupo P1 tinham vomitado, outros perdido os sentidos no período da manhã e tivessem sido sujeitos a maus-tratos físicos (bofetadas, pontapés, rastejar nas silvas).
114. Que o instruendo OOOO não tivesse formado porque não se tivesse conseguido levantar face ao estado de exaustão pelo calor e desidratação em que se encontrava e às lesões provocadas pelas agressões do MM e ZZ.
115. Que no decorrer da instrução de ... o instruendo OOOO se tenha sentido humilhado perante os outros formandos.
116. Que TTT não conseguisse ver bem.
117. Que UUU tivesse desmaiado, tendo ficado a soro na enfermaria por se encontrar profundamente desidratado.
118. Que HHHH já não conseguisse ver bem e tivesse acabado por cair no solo.
119. Que o instruendo IIII tivesse desmaiado.
120. Que JJJJ tivesse caído no solo.
121. Que o instruendo QQ tivesse começado a hiperventilar, ficado bastante tenso e tivesse continuado a hiperventilar.
122. Que ZZ tivesse agido por crueldade, agravando as necessidades de hidratação dos formandos e o estado clínico dos mesmos.
123. Que o tempo que os formandos do ... dormiram tivesse sido de duas horas.
124. Que ao pequeno-almoço, os formandos tivessem consumido apenas 2 embalagens de bolachas (10 bolachas), 2 embalagens de doce, em vez das 3 embalagens de bolachas e 2 embalagens de doce.
125. Que MM e AAA tivessem aceitado que os formandos fossem privados de parte da ração de combate prevista para o pequeno almoço.
126. Que o arguido AAA não lhes tivesse dado ordem para beberem água, apesar do calor que já se fazia sentir que era cerca de 24.º C.
127. Que na instrução de tiro se encontrasse presente o arguido AAA.
128. Eliminado.
129. Os arguidos AAA eDD tivessem privado os formandos de água, não tendo adaptado a instrução às condições climatéricas.
130. Que no início da instrução os formandos não tivessem conseguido formar em U no tempo e nos moldes exigidos pelo arguidoDD.
131. Que face a isso, os arguidosDD, DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, tivessem desferido bofetadas nos formandos como castigo, provocando-lhes dores.
132. Que AAAAA se tivesse sentido confuso e com dores musculares.
133. E tivesse regressado à instrução de tiro, tendo efectuado 20 disparos.
134. Que alguns formandos tivessem tentado ajudar os seus camaradas, nomeadamente o AAAAA, que se encontrava prostrado no solo, porquanto não conseguia rastejar face à exaustão pelo calor e às agressões e que o arguido DDD, apercebendo-se disso, tivesse começado a gritar, dizendo: "deixa esse estar ai, quem cai não é para levar, quem não se aguenta é porque não presta", dando ordens para que todos os formandos prosseguissem os exercícios e não ajudassem os ofendidos, sendo que não providenciou para que fosse chamada a equipa de apoio sanitário.
135. Que na instrução de Tiro alguns formandos do ... tivessem caído, acabando por ficar prostrados no solo e tivessem pedido que lhes fosse prestado socorro, face ao estado debilitado em que já se encontravam, dado que apresentavam um elevado estado de cansaço.
136. Ainda durante a instrução de tiro em seco, o arguido DDD tivesse obrigado todos os formandos do Grupo ... a rastejar e a rebolar em cima de silvas, fotografadas a fls. 11 do Apenso 10, as quais provocaram feridas.
137. Eliminado.
138. Eliminado.
139. Eliminado.
140. Que quando as silvas não iam para baixo, os arguidos FFF, GGG e HHH empurravam com os pés os ofendidos.
141. Que os arguidos DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, à ordem do arguidoDD, tivessem agarrado em todos os ofendidos pelos braços e os empurrados para dentro das silvas, fazendo-os cair uns por cima dos outros, com o propósito de lhes provocar danos no corpo designadamente feridas na face, braços, mãos e pernas idênticas às que constam do Apenso 14, como provocaram.
142. Que TTTT tivesse sofrido lesões corporais graves ao ponto de ter ficado com o corpo em carne viva.
143. Que o arguidoDD, vendo o estado em que se encontrava TTTT, não o encaminhou para os socorristas e, com enorme frieza, face ao sofrimento do ofendido, o tivesse privado do consumo de água, bem sabendo que na qualidade de instrutor competia-lhe analisar as situações de risco de desidratação e era obrigado a hidratar o ofendido.
144. Que após a instrução o arguido HHH por se ter apercebido que o ofendido TTTT não tinha um dos carregadores, lhe tivesse ordenado que rastejasse de novo por cima das silvas e lhe tivesse desferido um pontapé no ombro esquerdo, provocando-lhe mais feridas e dores.
145. Que as feridas provocadas nos formandos no decurso da instrução de tiro tenham sido idênticas às das fotografadas a fls 3, 6, 7 e 8 do Apenso 14 e que os arguidos FFF, GGG e HHH, agiram com o propósito de provocar lesões no corpo dos formandos, designadamente feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas, sendo que a instrução de tiro de combate não prevê a execução deste exercício nas silvas».
146. Que a esta instrução tivesse assistido o arguido AAA - Oficial instrutor do 2. ° Grupo (P2), sendo que o oficial tinha por obrigação impedir os maus-tratos físicos praticados pelos instrutores e auxiliares da instrução de tiro.
147. O que não fez, por aceitar a prática de actos violentos contra os ofendidos a quem devia assegurar a hidratação e condições de segurança por forma a permitir-lhes prosseguir a instrução sem feridas e hidratados.
148. Que os arguidos AA e MM, se tivessem apercebido do estado de fadiga extrema e desidratação dos ofendidos do 2.° Grupo (P2), e que não tivessem providenciado pela sua hidratação, nem impedido a prática de castigos e actos violentos contra os ofendidos, e tivessem visto feridas expostas que os formandos apresentavam e que sabiam que podiam provocar infecções graves e, não obstante isso, tivessem autorizado que tais actos violentos fossem praticados em todas as instruções, violando gravemente os deveres do militar e disciplina militar.
149. Que a temperatura na viatura fosse superior à temperatura exterior, motivo por que os formandos manifestaram dificuldades respiratórias e cansaço extremo.
150. Que os instruendos tivessem bebido 4 a 5 tampas de cantil de água (entre 128ml a 160ml - menos de uma garrafa de água de 33cl), quantidade de água manifestamente insuficiente face aos níveis elevados de exercícios físicos, durante o tiro de combate, à temperatura do ar e do solo que já se faziam sentir e, consequente temperatura corporal dos instruendos, tanto mais que AAAAA e VVVV já apresentavam alterações do estado cognitivo.
151. Que no final da instrução de Técnicas de Combate 1, os formandos tivessem terminado com a água que restava no cantil.
152. Que entre as 21h30 do dia ... de ... de 2016 e as 12h20 do dia ... de ... de 2016, os formandos do 2.º Grupo (P2) tivessem bebido no máximo 1,5 litros de água.
153. Que durante o almoço TT porque estava com muita sede, tivesse começado a beber água sem ter sido autorizado pelos arguidos AAA e LL e, a dada altura, o arguido LL gritou que só podiam beber água no final da refeição, ao mesmo tempo que dava ordem aos formandos para comerem a ração de combate.
154. Apercebendo-se disso, que o arguido LL tivesse chamado o TT e perguntado por que motivo estava a falar com ele sentado e, como castigo, ordenou-lhe que ficasse de braços em prancha, ao que o TT, temendo pela sua integridade física, obedeceu.
155. Que arguido tivesse então lhe desferido um número indeterminado de bofetadas, bem sabendo que o seu estado clínico exigia repouso e hidratação.
156. Que TT tivesse voltado a vomitar, perante a passividade e indiferença dos arguidos AAA e LL.
157. Eliminado.
158. Que o arguido AA tinha conhecimentos específicos na área da medicina e ele ou o arguido GG soubessem, no momento em que o grupo P2 iniciou a formação da tarde, que alguns dos formandos desse grupo tinham vomitado, outros tinha perdido os sentidos no período da manhã e tivessem sido sujeitos a bofetadas, pontapés e rastejar nas silvas, apresentando inúmeras danos no corpo ».
159. Que que no decorrer da instrução de ..., ZZZZ e TT, tivessem caído e ficado prostrados no solo.
160. Que TTTT tivesse sido acordado pelo arguido LL, que lhe colocou os dedos nos olhos e lhe desferiu número indeterminado de bofetadas e pontapés nas costas, provocando-lhe lesões corporais e abandonou-o no solo até ao final da instrução, alegando que aquele estava a fingir.
161. Que RRRR, não tivesse condições de prosseguir a instrução e tivesse sido obrigado pelos arguidos MM e AAA a continuar na instrução, apesar de não ter condições para realizar qualquer exercício.
162. Que a situação clínica se tivesse agravado minuto a minuto existindo instruendos prostrados no solo e sem reacção face à perda de água e de electrólitos e sob o risco de se desenvolver um desequilíbrio iónico que poderá ser fatal, conjugada com o racionamento de água imposta pelos arguidos AA, MM e AAA.
163. Que estes arguidos tivessem assistido à degradação física e mental dos formandos, e que MM e AAA tivessem chamado o arguido GG, o qual após ligeira observação, tivesse determinado que AAAAA e TT fossem transportados para a tenda que servia de enfermaria, ficando a soro.
164. Que a montagem e desmontagem do bivaque do ... tivesse decorrido entre as 3h e as 4h.
165. Que o ... tivesse dormido cerca de duas horas.
166. Que entre as 06h20m e as 07h00m, os formandos tivessem consumido 2 embalagens de bolachas (10 bolachas), 2 embalagens de doce, em vez de 3 embalagens de bolachas.
167. Que os arguidos AA, MM e NN tivessem aceitado que os formandos fossem privados de parte da ração de combate prevista para o pequeno-almoço.
168. Que face às temperaturas elevadas que já se faziam sentir, ao tipo de instrução com elevado desgaste físico, importaria que a mesma fosse seguida pelos instrutores Oficiais com o máximo de cuidado, gerindo o risco de desidratação e tendo sempre em consideração as condições físicas de cada instruendo, com vista ao necessário aumento da hidratação e/ou acompanhamento da equipa sanitária.
169. Eliminado.
170. Que os arguidosDD, DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, tivessem desferido bofetadas nos formandos como castigo, provocando-lhes dores.
171. Que o arguidoDD aos gritos tivesse dito a EE para apanhar o bloco e lhe tivesse provocado (com o soco) hematomas.
172. Que no condicionamento da instrução de Tiro de Combate, os arguidos FFF, GGG e HHH, tivessem desferido número indeterminado de bofetadas, socos e pontapés em GGGGG, provocando-lhe dores e lesões físicas e o tivessem obrigado a executar os exercícios apesar de saberem que o mesmo já estava profundamente exausto.
173. Que GGGGG tivesse desmaiado na sequência das agressões praticadas pelos arguidos FFF, GGG e HHH.
174. Que na sequência do desmaio. GGGGG tivesse sido transportado para a ambulância e sido observado pela enfermeira, XXXXX, a qual lhe deu a beber 3 goles de água com um produto em pó, dizendo-lhe que regressasse à instrução, porque já estava bem.
175. Que GGGGG tivesse dito ao arguido HHH que estava confuso e com sede.
176. Que o GGGGG estivesse num estado confusional e pudesse disparar inadvertidamente contra os formandos e instrutores e que tivesse a boca aberta à espera que lhe dessem água.
177. Que nesta instrução alguns formandos tivessem caído e acabado por ficar prostrados no solo e tivessem pedido que lhes fosse prestado socorro, porquanto apresentavam um estado de exaustão e desidratação, que se manifestava por vómitos.
178. Que durante tal instrução PPPPP e EE tivessem vomitado por apresentarem um quadro clínico de exaustão pelo calor.
179. Que PPPPP tivesse dificuldades de locomoção, não se conseguisse movimentar e durante o tiro não conseguisse focar o alvo, porquanto via a tábua a balançar, face ao estado confusional em que já se encontrava, provocado pela desidratação, o que não impediu, numa atitude totalmente irresponsável, o arguido DD de o obrigar a efectuar tiro com munições reais.
180. Que tivesse sido em cima das silvas fotografadas a fls. 11 do Apenso 10 que arguido DDD obrigou todos os formandos do ..., a rastejar e a rebolar.
181.O que todos os formandos, acima identificados, com receio, tivessem acabado por fazer, saltando uns por cima dos outros para o interior das silvas.
182. Que na sequência do castigo referido em 172 do não provado, FFFFF, GGGGG, HHHHH, IIIII, JJJJJ, EE , KKKKK, LLLLL, MMMMM, PP, NNNNN, OOOOO, PPPPP, QQQQQ e RRRRR, tivessem se lesionado na face, braços, mãos, cotovelos e pernas com feridas idênticas às que constam no Apenso 14, as quais não foram tratadas, provocando naqueles dores, tanto mais que continuaram a praticar exercícios no solo com as feridas expostas»..
183. Que ainda durante o tiro de combate, RRRRR tivesse dito ao arguido DDD que já não estava a conseguir ver bem, que não conseguia focar o alvo, face ao estado confusional em que se encontrava provocado pela desidratação.
184. Que o arguido DDD tivesse perguntado a RRRRR se queria alguma coisa para ver melhor e apercebendo-se do estado de degradação neurológica em que o mesmo se encontrava, em vez de o encaminhar para os socorristas e afastá-lo da carreira de tiro, lhe tivesse desferido um soco na cabeça, provocando-lhe dores e um hematoma.
185. Que na sequência da agressão e por se encontrar profundamente desidratado e extremamente cansado, RRRRR tivesse caído no solo.
186. Que ao local tivessem acorrido os arguidos LL e BBB - Encarregados do 2.º e 3.º Grupo e o arguido LL tivesse agarrado o RRRRR pelo pescoço, lhe desferido número indeterminado de bofetadas na face e o arrastado para as silvas, após o que, num acto de crueldade, tivesse empurrado a sua cabeça contra as silvas, esfregando a face do mesmo no silvado, provocando-lhe várias feridas na face, idênticas às fotografadas no Apenso 14 e que também não foram tratadas.
187. Eliminado.
188. Que as feridas provocadas no PP, em consequência do castigo referido em 274 do provado, não foram tratadas e infectaram.
189. Que aos formandos que hesitassem em entrar nas silvas, os arguidos DDD e EEE, tivessem agarrado naqueles pelos braços para os empurrar para dentro das silvas.
190. Que os arguidos DDD, EEE, FFF, GGG e HHH tivessem agido com o propósito de provocar danos no corpo dos formandos do grupo P3, ao ministrar a instrução de tiro de combate que não prevê quaisquer exercícios em silvas, na medida em que agiram em execução de ordens dadas pelo arguidoDD.
191. Que a esta instrução tivesse assistido o arguido NN.
192. O qual, como Oficial instrutor do ... Grupo (P3) tinha por obrigação impedir os maus-tratos físicos praticados pelos instrutores e auxiliares de tiro e não o tivesse feito por aceitar a prática de actos violentos contra os formandos.
193. Que, quanto à instrução ministrada na manhã ao ..., os arguidos AA e MM tivesse autorizado a prática de castigos e actos violentos contra os formandos ou que tivessem visto as feridas expostas que os formandos apresentavam.
194. Que tivesse sido por, na viatura a temperatura ser superior à do exterior, que os formandos do grupo ... tivessem manifestado dificuldades respiratórias e cansaço extremo.
195. Que a quantidade de água que o arguido BBB tenha ordenado aos formandos para beberem na área do bivaque, tivesse sido de 4 a 8 tampas de cantil de água (entre 128ml a 256ml - menos de uma garrafa de água de 33cl) ao ..., quantidade de água manifestamente insuficiente face aos níveis elevados de exercícios físicos, durante o tiro de combate, à temperatura do ar e do solo que já se faziam sentir e, consequente temperatura corporal elevada dos formandos, e que muitos deles já apresentassem alterações do estado cognitivo.
196. Que devido à situação clínica dos formandos, tivesse ocorrido um intervalo, durante o qual lhes foi permitido beber entre 4 a 8 tampas de cantil de água (128 ml a 256 ml - menos de uma garrafa de água de 33 cl).
197. Eliminado.
198. Que tivesse sido dada ordem a PPPPP, pelo arguido NN, para se colocar à parte da instrução, porquanto tinha a arma em modo de fogo, sem munições e como castigo, lhe tivessem ordenado que rastejasse, rebolasse e corresse, o que agravou o estado de desidratação que o ofendido PPPPP apresentava.
199. Que os sinais de cansaço e desidratação do PPPPP fossem tão evidentes que o arguido NN, depois de o ter castigado, lhe tivesse deitado água na face e a socorrista lhe tivesse dado água para beber.
200. Que entre as 21h30 do dia ... de ... de 2016 e as 12h20 do dia ... de ... de 2016 os formandos do....º Grupo (...) tivessem bebido no máximo um cantil de água (1 litro).
201. Que LLLLL tivesse dificuldade em caminhar por apresentar contracções dolorosas dos músculos.
202. Que PP tivesse dito aos arguidos NN e BBB e a alguns formandos do seu Grupo, que tinha fortes dores de cabeça e tonturas.
203. E que os arguidos NN e BBB tivessem ignorado e que soubessem que as dores de cabeça e tonturas, naquelas circunstâncias, só podiam ser provocadas por exposição ao sol durante um largo período de tempo, fadiga extrema e desidratação, sinais de risco que poderiam evoluir até uma falência multiorgânica.
204. E, apesar disso, o arguido NN, tivesse considerado que o formando PP estava em condições de prosseguir a prova, tendo-o obrigado a realizar as instruções do período da tarde.
205. Eliminado.
206. O arguido AA e o médico GG soubessem que alguns dos formandos do grupo ... tinham vomitado e outros perdido os sentidos no período da manhã e tivessem sido sujeitos a maus-tratos físicos (bofetadas, pontapés, rastejar nas silvas).
207. O arguido NN não os tivesse deixado desistir, os tivesse chamado para a instrução e como os mesmos não conseguissem caminhar, o arguido, aos gritos, tivesse ordenado aos formandos: LLLLL e RRRRR que os fossem buscar em 5 minutos.
208. O arguido MM, se tivesse aproximado dos ofendidos NNNNN e GGGGG e sabendo que os mesmos já se encontravam em falência orgânica, lhes tivesse ordenado que rastejassem à volta do Grupo que iniciara a instrução.
209. Tendo-o feito com o propósito de aumentar o desgaste físico dos ofendidos, provocando-lhes dores em todo o corpo e a exposição das feridas no solo escaldante, bem sabendo que podiam infectar.
210. Que LLLLL e RRRRR tivessem ido buscar PPPPP.
211. Que o arguido NN lhes tivesse dado ordem para que rebolassem e dessem cambalhotas ao pé de si, apesar de saber do estado de fadiga crónica do ofendido PPPPP.
212. Eliminado.
213. Que NNNNN, LLLLL e MMMMM tivessem sido colocados a soro.
214. Que o arguido GG só aceitasse formandos na tenda da enfermaria quando os mesmos já não se conseguiam movimentar e que só tivesse transferido NNNNN e MMMMM após se encontrarem prostrados no solo.
215. Que no final da instrução de ..., o arguido NN, soubesse que não hidratou nenhum dos formandos e que a tenda que servia de enfermaria já se encontrava lotada e que por isso tivesse permitido que os formandos que não foram para a tenda, bebessem cerca de 6 a 8 tampas de água (192 m1 a 256 ml- menos que uma garrafa de água de 33 cl).
216. Que o arguido BBB tivesse começado aos gritos, porquanto viu o formando EE beber água e aproximando-se deste, lhe tivesse desferido um número indeterminado de socos na face e na cabeça, provocando-lhe lesões e dores.
217. Que o arguido BBB tivesse ordenado ao formando EE que rastejasse sobre as silvas, o que o mesmo fez, por medo, e em consequência do que sofreu feridas em todo o corpo, idênticas às fotografadas no Apenso 14.
218. Que RRRRR tivesse sido obrigado a rastejar sobre as silvas, e não se conseguisse levantar por sentir tonturas e dores faces às feridas que sofreu.
219. Que em consequência de ter rastejado sobre as silvas RRRRR apresentasse feridas no corpo, idênticas às fotografadas no Apenso 14 e se tivesse arrastado no solo para conseguir movimentar-se.
220. Que RRRRR se tivesse mantido prostrado no solo, e o arguido NN tivesse dado ordem ao PP para levar a mochila de RRRRR.
221. Eliminado.
222. Que MM e AA tivessem mantido PP a soro no interior da tenda, sem terem adoptado quaisquer outros procedimentos, designadamente medidas de arrefecimento corporal e transferência urgente para um Hospital.
223. Qual a hora exacta a que a ... foi interrompida.
224. Eliminado.
225. Que SS não tenha adaptado a hidratação às condições climatéricas e que todas as instruções tivessem sido ministradas sem períodos de descanso entre elas.
226. Eliminado.
227. Eliminado.
228. Que desde as 21h30 do dia ... de ... de 2016 até cerca das 16h00 do dia ... de ... de 2016, os formandos do Grupo de Graduados tivessem sido autorizados a ingerir cerca de 2 litros de água, os formandos do 1.º Grupo (P1) a ingerir cerca de 2 litros de água, os formandos do 2.º Grupo (P2), cerca de 3 litros de água e os formandos do 3º Grupo (P3), cerca de 2,5 litros de água.
229. Que o instruendo TTTT tivesse ido para a tenda que servia de enfermaria e que os instruendos UU, UUU, MMMMM, NNNNN, OOOOO, RRRRR, TTT, PPP, QQ e LLLLL, tivessem ficado a soro.
230. Que a tenda que servia de enfermaria tivesse capacidade para oito pessoas.
231. Que tenha sido a falta de refrigeração da tenda que servia de enfermaria que tenha provocado um aumento da temperatura corporal dos instruendos.
232. E que por esse motivo, os responsáveis pela prova, arguidos AA, MM e o médico, GG, fossem obrigados a transferir para os Hospitais os doentes que se encontravam na tenda, e que a temperatura corporal dos doentes exigisse medidas terapêuticas urgentes que só podiam ser efectuadas nos Hospitais, nem tendo o INEM, condições para tratar doentes em tendas de campanha.
233. Eliminado.
234. Que os arguidos, Oficiais instrutores - BB, ZZ, AAA, NN,DD, AA - Diretor da Prova, MM ¬Comandante de Companhia e GG - médico, tivessem optado por manterem um pacto de silêncio, desprezando o estado de saúde dos doentes que se encontravam num estado profundo de sofrimento físico e psíquico, face à falência de inúmeros órgãos do corpo por desidratação, traduzidos por tremores, espasmos, convulsões, gemidos, vómitos, diarreias, estados confusionais e lesões neurológicas.
235. Que o OO não reagisse a estímulos e gemesse desde as 16h.
236. Que PP se contorcesse com dores.
237. Que fossem 18h quando PP vomitou e que este tivesse deixado de reagir a estímulos.
238. Que o arguido SS não tivesse experiência em utilizar um DAE (Desfibrilhador Automático Externo) e que o DAE tivesse provocado o aumento da temperatura corporal a OO.
239. Que face à resposta do DAE - afastar do corpo - o arguido SS tivesse continuado a utilizar o aparelho por tempo indeterminado.
240. Que o arguido SS tivesse proferido a expressão" O que é que eu fiz?".
241. Que a equipa do INEM tivesse chegado ao local pelas 21h.30m
242. Que o médico do INEM tivesse informado o CODU qual o enfermeiro que efectuara as manobras de reanimação.
243. Que nessa conversa o médico do INEM tivesse referido que OO tivesse falência circulatória, hipoxia, aumento das necessidades metabólicas, provocados pelo Golpe de Calor.
244. Que o OO apresentasse pele rigidez pouco comum para aquela idade.
245. Que o médico e o enfermeiro do INEM tivessem tentado realizar compressões e ventilações.
246. Eliminado.
247. Que o formando OO tenha sofrido de uma subida rápida da temperatura corporal superior a 40.ºC.
248. Que PP se encontrasse deitado no chão e totalmente vestido quando foi observado pelo médico do INEM.
249. PP se apresentasse semicomatoso, obnubilado, com movimentos de mãos descoordenados e não reactivo a estímulos.
250. O médico tivesse providenciado de imediato para que PP fosse arrefecido com toalhas e sacos plásticos de gelo seco.
251. Que PP não tivesse qualquer tipo de resposta a estímulos.
252. Que LLLLL registasse 39º - 40º C.
253. Que fosse do conhecimento de todos os Oficiais o número de internados na enfermaria e que houvesse por parte destes uma tentativa de evitar o conhecimento do estado de saúde dos doentes por parte dos outros médicos, e que por isso não tivessem transferidos os instruendos para o HFAR.
254. Que a ... não tivesse sido cancelada e que todos os doentes tivessem que ser transferidos para Hospitais civis ou para o HFAR.
255. Que os enfermeiros da ... fossem incapazes de funcionar com o DAE disponível, ou que este já não fosse utilizado pelo INEM, e que só tenha provocado a degradação do estado de saúde dos ofendidos internados.
256. Que na manhã do dia ...-...-2016, apesar de ter sido cancelada pelo Tenente-general SSSSS, toda a instrução prevista, os arguidos instrutores dos Grupos (Graduados, P1, P2 e P3), o Director da Prova - arguido AA e o Comandante de Companhia - arguido MM, na presença do Comandante do Regimento - Coronel QQ, tivessem reiniciado a "...", tendo sido realizada Técnicas de Combate 1 (...), desobedecendo, assim, às ordens do Comandante ....
257. Face ao cansaço acumulado, por desidratação e exposição ao sol, durante a instrução do dia ...-...-2016 e a instrução da manhã do dia ...-...-2016, tivessem entrado na tenda que servia de enfermaria os ofendidos TT e PPPPP e o arguido SS tivesse dito: "assim não dá, está muita gente na enfermaria!".
258.O arguido SS ao exclamar "assim não dá, está muita gente na enfermaria", o tivesse feito com o propósito de não prestar assistência a mais dois formandos.
259. Eliminado.
260. Eliminado.
261. Eliminado.
262. Eliminado.
263. Eliminado
264. Eliminado.
265. Eliminado.
266. Eliminado.
267. Eliminado.
268. Eliminado.
269. Que a sintomatologia apresentada por LLLL se verificasse desde o dia ... de ... de 2016.
270. Eliminado
271. Eliminado.
272. Que tivesse sido a existência de um edema cerebral agudo que inviabilizou o transplante de fígado de PP
273. Eliminado.
772. Eliminado.
773. Que logo no início da denominada "...", os formandos foram confrontados com comportamentos profundamente violentos dos formadores e só o medo da prática de comportamentos ainda mais violentos que caracterizaram a actuação de todos os formadores, do Director da Prova, do Comandante de Companhia e até da equipa sanitária - médico e enfermeiro, justificou que os formandos tenham permanecido durante a noite do dia ... de ... de 2016, no Campo de Tiro ....
774. Que não tivesse sido permitido aos instruendos desistir, sendo obrigados a permanecer no Curso.
274. Que OO apresentasse sinais evidentes de hipertermia, desequilíbrio, fraqueza muscular, alucinações, vómitos durante todas as instruções e os arguidos AA, MM, NN e GG, se tivessem disso apercebido e o tivessem obrigado a prosseguir os exercícios sob um sol escaldante, apesar de todos saberem de acordo com a formação que lhe foi ministrada que perante tais sinais de risco.
274-A. Que os arguidos ZZ e AAA tivessem recebido ordem do arguido MM que recebera indicação do arguido GG, para que os instruendos fossem molhados, tendo ordenado aos instruendos que o fizessem.
274-B-.Que tenha sido dada prioridade amarela ao soldado JJJJ, Alferes III, Soldado HHHH, Furriel OOO e Sargento MMM, tendo sido dado prioridade verde a todos os restantes instruendos.
274-C. Que JJJ tenha alterado a sua vivência quotidiana e se sinta amedrontado e em permanente sobressalto, não conseguindo descansar e evitando o contacto com familiares e amigos.
275. Que os arguidos AA, MM, BB, CC e GG, por um lado, e os arguidos AA, MM e NN e GG, por outro, desde 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, tivessem obrigado OO e PP, respectivamente, à prática dos exercícios físicos acima descritos.
275-A. Que os arguidos AA, MM e ZZ tenham obrigado UU à prática dos exercícios físicos acima descritos.
275-B. Que AA, MM e BB e NN tenham obrigado algum instruendo à prática dos exercícios físicos acima descritos.
276. Que o arguido SS conhecesse o estado de desidratação profunda em que se encontrava OO e tivesse utilizado um DAE sem ter experiência para tal e que soubesse que o ofendido OO podia sofrer graves lesões neurológicas e cardíacas dado que não lhe era permitido utilizador um DAE nos moldes em que o fez, porquanto ainda provocou um maior aquecimento corporal e que tais lesões poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica, conformando-se com esses resultados, mas, todavia, não previu e confiou que a morte do ofendido OO sobreviria.
277. Que PP apresentasse sinais evidentes de hipertermia, desequilíbrio, fraqueza muscular, alucinações, vómitos durante todas as instruções e obrigaram e que os arguidos AA, MM, NN e GG, se tivessem disso apercebido e o tivessem obrigado a prosseguir os exercícios sob um sol escaldante, apesar de todos saberem de acordo com a formação que lhe foi ministrada que perante tais sinais de risco.
278. Eliminado.
279. Que os arguidos AA, MM, ZZ e GG soubessem ou que UU apresentasse sinais evidentes de hipertermia, desequilíbrio, fraqueza muscular, alucinações, vómitos e obrigaram-no a prosseguir os exercícios sob um sol escaldante.
280. E que não o tivessem feito, provocando no ofendido as lesões corporais descritas a fis. 145 do Apenso 4, designadamente grave insuficiência hepática e renal, e as intercorrências infecciosas as quais representavam perigo para a vida.
281. Eliminado.
282. Eliminado.
283. Que o arguido CC tivesse determinado que LLL, RR e PPP rastejassem sobre as silvas e que tivesse provocado e agido com o propósito de lhes provocar lesões corporais.
284. Que o arguido CC tivesse desferido socos e pontapés no instruendo MMM, e tivesse provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais.
285. Eliminado.
286. Eliminado.
287. Eliminado.
288. Eliminado.
289. Que o arguido AAA, apesar do condicionamento de água imposto pelos seus superiores, arguidos AA, MM, com a conivência do arguido GG, tivesse autorizado que aqueles bebessem mais água e tivesse mantido como medida de segurança tempos de repouso.
290. Eliminado.
291. Eliminado.
292. Que o arguido MM provocou e tivesse agido com o propósito de provocar lesões corporais nos instruendos OOOO, NNNNN e GGGGG.
293. Que o arguido ZZ provocou e tivesse agido com o propósito de provocar lesões corporais e elevado sofrimento a OOOO.
294. Que o arguido CCC provocou e tivesse agido com o propósito de provocar lesões corporais e elevado sofrimento a OOOO.
295. Que o arguidoFF ao obrigar durante a GAM, os formandos III, RR, JJJ, KKK, LLL, MMM, NNN, OOO, PPP e OO a rastejar nas silvas, tivesse provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais.
296. Eliminado.
297. Que os comportamentos dos arguidos, ao provocar feridas idênticas às fotografadas no Apenso 14, tivessem sido expressamente proibidos durante a prova pelo arguido GG, correspondendo a práticas ancestrais que visam humilhar e ofender corporalmente os formandos, privando-os da necessária formação de tiro, essencial para o treino operacional.
298. Que no caso do ....º Curso ..., o instrutor de tiro, arguidoDD e os arguidos DDD, EEE, FFF, GGG e HHH se tivessem limitado a ordenar a prática de alguns exercícios e de seguida tivessem ordenado aos formandos que saltassem para as silvas porque, provocando-lhes feridas em todas as partes do corpo, bem sabiam que assim os impediam de efectivamente praticar tiro e adquirir algumas competências que depois seriam aperfeiçoadas no treino operacional.
299. Que o arguidoDD tivesse provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais em JJJ
300. Que o arguido DDD tivesse provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais em MMMM e RRRRR.
301. Que o arguido FFF tivesse provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais nos instruendos OOOO e GGGGG.
302. Que o arguido HHH tivesse provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais nos formandos TTTT e GGGGG.
303. Que o arguido GGG tivesse provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais em GGGGG.
304. Que o arguido LL provocou e tivesse agido com o propósito de provocar lesões corporais nos instruendos TTTT e RRRRR.
305. Que o arguido BBB tivesse provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais em EE.
306. Eliminado.
306-A. Que BB, CC, MM, ZZ, CCC, AAA e LL soubessem que as consequências nefastas da desidratação resultassem em lesões renais e neurológicas.
307. Eliminado
308. Eliminado.
309. Que o arguido CC tivesse, por sua iniciativa, fornecido mais água aos instruendos, do que estava prevista no Guião.
310. Que o arguido CC tivesse fornecido aos instruendos, antes do almoço, uma garrafa de 1,5 litros (para quatro instruendos), para além de terem bebido "à vontade" do cantil.
311. Que tivesse sido fornecida água suplementar ao instruendo OO.
312. Que tivesse sido o arguido CC que levou OO da MAN para o jeep que o transportou para a tenda que servia de enfermaria.
313. Que antes de iniciar o deslocamento da carreira de tiro para a zona de bivaque o arguido CC tivesse telefonado ao arguido BB informando-o do mau estado de saúde de vários instruendos e que seria necessária uma viatura mais rápida para os transportar para o posto de saúde principal.
314. Que os instruendos do Grupo de Graduados tivessem bebido todo o cantil de água ao pequeno almoço.
315. Que a ingestão de água pelos instruendos do Grupo de Graduados se tivesse cifrado entre os 4 e 5 litros até às 16h do dia ... de ... de 2016
316. Que o Comandante do Regimento, QQ, na manhã do dia ..., estivesse a apoiar os instruendos que estavam a ser observados na enfermaria do Campo de Tiro ....
317. Que UUUU e AAAAA se tivessem recusado a fazer a instrução e AAA e LL tivessem decidido afastá-los do grupo de instrução.
318. Que pelas 15h50m tivesse sido dado ordem pelo Capitão MM para que AAA cessasse a instrução.
319. Que até às 16h os instruendos do Grupo de Praças 2 tivessem ingerido quatro cantis de água.
320. Que o arguido GG não tivesse conhecimento da Directiva nº .../2016 nem do Guião da Prova.
321. Que até o arguido GG ter sugerido não existia médico durante as Provas.
322. Que OO foi sujeito a hidratação imediata (solução pole electrolítica), remoção da roupa, arrefecimento corporal, os membros inferiores levantados e mantida vigilância regular.
323. Que a avaliação do instruendo OO tenha se centrado no estado de desidratação (prega cutânea e desidratação da mucosa), tempo de preenchimento capilar, temperatura corporal, frequência respiratória e frequência cardíaca.
324. Que o arguido ZZ tivesse ordenado que o Soldado VVV fosse auxiliado pela equipa sanitária por se queixar de irritação nos olhos.
325. Que o "carrossel" desempenhasse um exercício de aquecimento para a Prova de Tiro.
326. Eliminado.
327. Que JJJ tivesse sido impedido de se hidratar e dormir.
328. Que quando JJJ tivesse manifestado sede, tonturas e faltas de ar lhe tivesse sido ordenado que rastejasse por cima das silvas, provocando-lhe lesões corporais ao nível das mãos, braços e pernas.
329. Que os arguidos tivessem, então, agido com o propósito de o humilhar e provocar lesões corporais.
330. Que tais actos castigos tivessem provocado stress emocional, fadiga crónica, dores e infecções em resultado das feridas.
331. Que JJJ tivesse sofrido um número indeterminado de bofetadas na cabeça e no pescoço.
332. Que JJJ se encontrasse numa situação de falência orgânica eminente.
J) Fundamentação de facto pelo Tribunal da Relação de Lisboa
O Tribunal da Relação de Lisboa, depois de tecer considerações jurídicas sobre o erro de julgamento, vícios, in dúbio pro reo, prova indirecta, impugnação e reapreciação da prova, apreciação oficiosa de nulidades e vícios na matéria de facto e ainda omissões de pronúncia considerou, em sede de fundamentação o seguinte:
Explicado que se mostra o regime da nulidade, atenhamo-nos aos autos.
No ponto 222 do não provado consta que «MM e AA tivessem mantido PP a soro no interior da tenda, sem terem adoptado quaisquer outros procedimentos, designadamente medidas de arrefecimento corporal e transferência urgente para um Hospital».
Contudo, verifica-se que o Tribunal não se pronunciou sobre imputação dos mesmos factos que foi feita a GG no ponto 389 da acusação.
Como acima se referiu, por força do disposto no artigo 431º/a) do CPP, a decisão do Tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada sempre que do processo constem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, o que é manifestamente, o caso.
Esta omissão é suprível precisamente pela aplicação da referida norma e porque resulta do provado que «o arguido GG não transferiu nenhum doente para o HFAR, nem se dirigiu a qualquer Hospital para preparar o internamento urgente dos formandos internados na tenda que servia de enfermaria»; que o ofendido só foi transferido para o hospital cerca de cinco horas depois de ser internado, quando o médico já se tinha ausentado do campo de exercícios; sendo que foi mantido na enfermaria, sem refrigeração (conforme se prova em 316) enquanto se prova que havia uma ambulância com refrigeração; e porque, conforme referido na fundamentação «tomou-se ainda em consideração o depoimento das testemunhas YYYYY e ZZZZZ, socorristas e XXXXX, enfermeira e dos arguidos SS, enfermeiro, e GG, médico, as quais asseveraram que a tenda não tinha refrigeração, não tendo por estes sido mencionado quaisquer outros procedimentos para além de terem retirado o dólman e as botas aos instruendos e colocado a soro os mais críticos, donde se conclui que não foram tomadas quaisquer outras medidas de arrefecimento corporal, extraindo-se essa ilação também do teor do relatório de Inspeção Técnica Extraordinária ao Curso ..., - fls. 112 do Apenso 12 - onde aparecem descritas as medidas de arrefecimento corporal, sendo que nenhuma destas foram usadas pela parte da equipa sanitária, nomeadamente toalhas ou outras peças molhadas, inexistindo a possibilidade de gelo por não disporem do mesmo».
Esta omissão de pronúncia será suprida, nesta fase, em recurso, considerando provado que «GG manteve PP a soro no interior da tenda, sem ter adoptado quaisquer outros procedimentos, designadamente medidas de arrefecimento corporal e transferência urgente para um Hospital».
B - Dos vícios de contradição insanável da fundamentação e/ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova:
Os vícios supra-referidos correspondem a defeitos distintos de uma sentença, como acima se referiu quando explicação sumária do regime de cada um.
O acórdão recorrido efectuou um exaustivo relato da prova produzida. É esse relato que nos permite analisar, com segurança, a existência de vícios e proceder à correcção daqueles que sejam encontrados.
Diga-se, aliás, que encontrámos nas transcrições feitas nos recursos, sobretudo no recurso apresentado pelo Ministério Público inteira correspondência entre o relato da prova feito pelo acórdão recorrido e as declarações transcritas.
Contudo, em face do presente acórdão, verificamos que fazer uma análise individualizada de cada um dos dois vícios em causa levaria mais do que a uma duplicação de trabalho, a uma perda irreparável da sequência lógica da apreciação, até porque por várias vezes se verificam os dois tipos de vícios quanto ao mesmo assunto (não quanto aos mesmos factos, obviamente, mas quanto ao mesmo núcleo factual), pelo que optámos pela sua análise conjunta.
Antes de se entrar na análise individualizada dos referidos vícios é conveniente fazer um apertado resumo do conteúdo fáctico do processo, tendo em conta a aplicação genérica da noção de experiência comum ao objecto do processo, partindo do que consta do provado, do não provado, da fundamentação da aquisição probatória e dos documentos para que ela remete.
Este processo versa sobre as vicissitudes que ocorreram na prova 0 do ...º curso dos ..., no decurso da qual faleceram dois formandos e vários outros careceram de tratamentos e internamento hospitalar, em virtude daquilo que clinicamente (cientificamente) é denominado como “golpe de calor”.
Consistindo, o golpe de calor, numa forma de doença, há que perceber a que se referem os documentos que o referem.
Segundo o artigo intitulado de «Ondas de calor», «Impacto sobre a saúde» da autoria de Natália Marto, do Serviço de Medicina Interna do Hospital de São José, do Centro Hospitalar de Lisboa, «O golpe de calor é uma emergência médica caracterizada pela instalação súbita de hipertermia (temperatura corporal superior a 40 °C) e disfunção neurológica central. Associa-se a um síndroma de resposta inflamatória sistémica e evolui para disfunção multiorgânica. (…)
O golpe de calor pode resultar da exposição a temperaturas ambiente elevadas (golpe de calor clássico) ou de exercício físico intenso e prolongado (golpe de calor exercional). (…)
O golpe de calor pode evoluir rapidamente para síndroma de disfunção multiorgânica, complicando-se com encefalopatia, insuficiência renal aguda, síndroma de dificuldade respiratória aguda, citólise hepática, isquemia intestinal e coagulação intravascular disseminada. Nos doentes com golpe de calor exercional, é frequente a rabdomiólise, traduzida por hiperfosfatémia, hipercaliémia e aumento da cretinina-fosfoquinase. A hipoglicemia está frequentemente associada»
Conforme resulta dos relatórios clínicos juntos, relativos a vários instruendos, esta doença teve por causa a conjugação de três factores: uma carga extrema de exercício físico, a sujeição dos formandos a temperaturas climatéricas muito elevadas e a falta de hidratação ao longo do período em que decorreu a prova - ou seja, desde cerca das 21h30 do dia ...-...-2016 até cerca das 12h00 do dia ...-...-2016, sendo que o período especialmente relevante para os factos sujeitos ao presente processo judicial ocorreu no dia ..., desde a chegada ao campo de tiro ..., de madrugada, até ao final do dia, havendo ainda que considerar os efeitos desses factos na vida e saúde dos formandos que se prolongaram pelos períodos de tempo referidos no provado, sendo que no que se refere ao ofendido PP ocorreram até ao seu falecimento, no dia ...-...-2016.
A instrução está sujeita aos objectivos e regras pré-determinados pela hierarquia, descritas no chamado Guião da Prova 0 (que está junto ao processo sob a denominação de apenso 01, a partir de folhas 109), que foi uma das referências documentais da fundamentação da aquisição probatória, como da mesma consta.
Segundo o guião efectivamente aplicado na prova (porque houve um outro, falso, feito posteriormente, que consta do início desse apenso 01) o «consumo de água previsto é de 3 cantis de água por dia (as situações de consumo adicional serão propostas pelos instrutores ou pela equipa Sanitária e sancionadas pelo Diretor da Prova)»; «o Instrutor demonstra indiferença pela condição física do instruendo, de modo a que o mesmo seja levado a crer que a equipa de instrução não se importa com o estado de cansaço apresentado (esta demonstração de indiferença é apenas aparente, estando toda equipa de instrução discreta mas permanentemente atenta à condição física e psicológica dos Instruendos, intervindo e tomando as medidas consideradas adequadas para a segurança dos mesmos)»; «A sensação de abandono provocada nos Instruendos é apenas aparente, os Instrutores estarão permanentemente atentos aos Instruendos no sentido de verificar a sua capacidade para continuar em prova (em nenhuma situação, algum instruendo será efectivamente, mesmo que temporariamente, abandonado)»; «o reabastecimento de água e hidratação são alvo de especial atenção por parte dos Instrutores (acompanhamento presencial), no sentido de garantirem que os Instruendos se alimentam às horas das refeições e se hidratam (essencialmente) ao longo dos períodos de instrução».
Ora, o próprio exército apresentou um Guião para o ...º curso – o referido guião falso – que estabelecia que «o consumo de água pelos instruendos constitui uma das preocupações fundamentais do Diretor de Prova sendo que o mínimo diário obrigatório é de 5 cantis. O Diretor de Prova, mediante a sua interpretação das condições de humidade e temperatura, níveis de esforço desenvolvidos, parecer do médico ou das equipas de instrução, poderá decidir aumentar a dotação diária, bem como implementar outras medidas adicionais de hidratação», «o reabastecimento de água e hidratação são alvo de especial atenção por parte dos instrutores (acompanhamento presencial), no sentido de garantirem que os Instruendos se alimentam às horas das refeições e se hidratam (essencialmente) ao longo dos períodos de instrução», e o « reabastecimento (enchimento do cantil) é efetuado 5 vezes ao dia (antes/após as refeições), salvo se houver decisão do Diretor da Prova para reabastecimentos adicionais, o que ocorrerá em momentos a definir pelo Diretor de Prova», «os Instruendos bebem à ordem e recebem indicações para racionar o consumo de acordo com o tempo que deve durar a água e o biorritmo».
Do exposto resulta a evidência de que o próprio Exército, fazendo constar de um falso guião uma hidratação que não teve qualquer correspondência com o Guião aplicado e, muito menos, com o consumo real que resulta do provado, reconheceu que a prova 0 foi efectuada segundo parâmetros de hidratação que tentou esconder, precisamente por serem completamente desadequados e terem sido a causa das doenças determinadas nos formandos, fazendo constar de um falso guião uma hidratação que não teve qualquer correspondência com o Guião aplicado e, muito menos, com o consumo real que resulta do provado.
Só esta intenção, segundo regras de experiência comum, justifica que o Exército Português tenha falsificado um guião da prova, alterando precisamente a matéria concernente à quantidade de água a fornecer aos formandos e as regras relativas ao consumo dessa água.
Do exposto retira-se que o próprio Exército, em consonância com aquilo que foi percepcionado no local e com os relatórios clínicos elaborados, reconheceu a desadequação da hidratação fornecida às necessidades fisiológicas normais dos formandos (três cantis por dia) ou seja, que a falta de hidratação foi uma das causas da situação grave de saúde em que foram colocados, o que será, necessariamente, um elemento a ter em consideração sempre que se analisar a questão, a propósito de cada instruendo.
O guião aplicado foi o do ...º curso ..., que foi executado entre ... de Fevereiro e ... de Março do mesmo ano (folhas 34 do apenso 12), ou seja, num período do ano com baixas temperaturas (46).
Considere-se que a prova 0 é a primeira prova do curso, o que significa que ocorreu a partir de ... de Fevereiro. Do exposto resulta a desconsideração, por parte do Exército, das diferenças nas condições atmosféricas em que o curso ...º iria ser (e foi) realizado, o que influía, naturalmente, nas necessidades de hidratação dos formandos sujeitos a provas extremamente exigentes a nível físico.
A par do exercício, executado em parte sobre silvas (o GAM), prova-se que os formandos foram sujeitos a ordens não previstas no guião, consistentes em sobrecarga de exercícios físicos, como flexões, colocação em prancha de punhos, rastejar no chão e a ordens para se atirarem para as silvas - inclusivamente de cabeça, tal como consta do provado – bem como para rastejarem em cima das silvas.
As silvas como resulta de foto contida apenso 10, apresentam uma consistência típica daquela fase do ano – portanto, de acordo com as regras de experiência comum - em forma de moita densa, sem chão à vista, com ramos secos e espinhosos cruzados, sendo que, por natureza, tais arbustos são caracterizados por serem dotados de espinhos grandes e perfurantes.
Ainda segundo as regras de experiência comum os espinhos das silvas provocam, pelo menos, cortes na pele, mais ou menos superficiais, conforme a sua dimensão, o estado de secura - e, inerentemente, a capacidade de penetração na pele e na carne - e a intensidade e forma com que se dá o choque entre o corpo e o espinho.
Resulta dos relatórios de autópsia constantes do provado e das fotografias contidas no apenso 14, para o qual, aliás, a fundamentação remete, que os falecidos instruendos apresentavam múltiplas equimoses e escoriações, necessariamente produzidas no decurso da prova e, pelo menos em parte, no que toca às escoriações lineares, pelos espinhos das silvas. De acordo com as regras de experiência comum, as lesões provocadas pelos mesmos factores actuando nas mesmas circunstâncias, são similares para toda a gente. Ou seja, todos os instruendos foram sujeitos ao mesmo tipo de lesões. Disso nos dá conta, entre outros, o ponto 221 do provado ao referir que 15 instruendos «rastejaram no seio das silvas, motivo por que se lesionaram na face, braços, mãos, cotovelos e pernas com feridas idênticas às que constam nas fotografias acima referidas do Apenso 14, (…)».
Uma escoriação é, por definição, um ferimento simples, que atinge a camada superior da pele. «Geralmente têm sangramento discreto, mas costumam ser dolorosos devido à exposição das terminações nervosas».
Uma ferida é uma lesão que interrompe a continuidade da pele. «Considera-se ferida qualquer solução de continuidade da superfície da pele, quer seja superficial sem grande hemorragia - escoriação -, quer seja profunda (…)», o que inclui, necessariamente escoriações e arranhões.
Do exposto resulta que a distinção que no acórdão recorrido se faz entre arranhões, escoriações e feridas, não tem justificação científica nem semântica e, nem tão pouco, reflecte regras da experiência comum nem tem relevo jurídico porque em lugar nenhum se define, por palavras, a gravidade das feridas a que se faz alusão.
Da mesma forma assume-se a existência de «lesões leves» enquanto se nega a existência de «lesões corporais», como se este termo não contemplasse todo o tipo de lesões no corpo. É evidente que estes termos têm uma carga conclusiva, mas eles foram usados ao longo do acórdão, pelo que a distinção feita não tem por fundamento, necessariamente, a questão da diferença entre facto e conclusão. De novo se verifica uma colisão com a semântica e com as regras de experiência comum através do uso de uma terminologia alternada que não tem correspondência com diferentes formas de realidade.
Outro tanto se passa com a questão da qualificação das ordens emitidas pelos formadores relativas ao rastejar e atirar-se para as silvas.
A par da consideração de que tinham sido aplicados determinados castigos aos formandos (pontos 74, 86, 184 e 205 do provado) foi considerado sucessivamente não provado que determinadas outras condutas exigidas aos formandos em consequência do cometimento de falhas fossem consideradas castigos, com a justificação dada (na fundamentação do ponto 139 do não provado) de que «Acresce que tais exercícios são habituais como forma de chamada de atenção para algo mal executado e como forma de recordar aos instruendos para que na próxima se aprimorem». Ora a função apresentada coincide precisamente com a filosofia do castigo.
Um castigo é uma forma de repreensão; uma consequência negativa que se impõe ao autor de um acto ou comportamento considerados incorrectos; uma sanção; algo que podendo ter fins meramente educativos é usada para reprimir uma conduta considerada indevida.
No caso, estamos face a castigos na medida em que às “falhas” se fazia corresponder uma acção penosa para o visado, ou porque provocava um excesso de cansaço com consequências na capacidade de sucesso nas provas de acesso aos ... – motivo pelo qual os instruendos ali se encontravam – ou porque lhes determinava necessariamente lesões no corpo, de gravidade indefinida (basta pensar na perfuração de um olho), o que é a única finalidade que se encontra para as ordens de se debaterem com silvas naquele estado de secura.
A par dos castigos há situações em que não se refere por que motivo os formandos tiveram que rastejar ou mergulhar em silvas.
As ordens para se atirarem ou rastejarem nas silvas têm necessariamente subjacente a intenção de causar lesões no corpo, consistentes, pelo menos, em pequenas feridas, arranhões e escoriações que, por sua vez, provocam pressão psicológica precisamente pelas dores e desconforto consequentes, o que resulta, inabalavelmente, da experiência comum. Não se encontram outras justificações possíveis para este tipo de determinações feitas no decurso da prova.
Para esta conclusões resultantes da experiência comum são irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não será bem assim. Estão em causa conhecimentos inerentes às mais básicas experiências da vida e os formandos são seres sencientes como qualquer outro humano.
Outra questão que se coloca, de forma genérica, é acerca do desconhecimento que os formadores e hierarquia teriam dos sintomas de golpe de calor, desidratação e suas consequências.
O golpe de calor é uma noção clínica complexa, como acima referido, pelo que não se exige a ninguém que conheça pormenorizadamente os seus sintomas, excepto ao médico. O que justifica a presença de um médico numa operação deste tipo é precisamente a mais valia que acarreta a disponibilização dos seus conhecimentos diferenciados sobre as afectações da saúde que poderiam estar em causa no decurso da prova.
Já quanto aos sintomas e consequências do calor excessivo, em conjunto com exercícios físicos – ao ar livre - e desidratação o mesmo não se passa.
Desde logo, é do conhecimento comum que o calor provoca desidratação – é por isso que todos os animais precisam de beber, até mais no verão do que no inverno – e que se morre de desidratação, cujo sintoma normal é a sede.
A desidratação é mais ou menos rápida conforme a intensidade das actividades físicas a que o organismo se submete, ao calor a que está sujeito e a características pessoais que influam na resistência física (como a idade ou estado de saúde).
A desidratação grave leva a lesões perigosas e à morte – é por isso que se faz apelo, todos os verões, aos cuidados a ter com a hidratação da população mais idosa e dos bebés (que não sabem comunicar que têm sede), aconselhando as pessoas, inclusivamente, a dirigirem-se aos sobrelotados hospitais para tratamento deste tipo de situações.
É por desidratação que se morre nos países mais pobres, em consequência da falta de água e de doenças que provocam diarreias e vómitos – notícias que são recorrentes nos media.
Temos todos, necessariamente, um conhecimento derivado da experiência comum sobre as consequências da desidratação que consiste, pelo menos, em saber que pode levar a que se contraiam doenças graves e permanentes e até à morte.
Contudo, mais do que isso, verifica-se que todos os arguidos eram militares e ..., ou seja, passaram por provas idênticas àquelas que se descrevem, o que lhes fez sentir na pele os efeitos do calor e do cansaço, aliado à pouca hidratação. Não podem, portanto, alegar desconhecimento das consequências dos agentes envolvidos.
E, por acréscimo, segundo o guião da prova, todos eles tinham por função vigiar e manter a hidratação dos formandos de modo a mantê-los aptos para continuarem os exercícios, o que implica, necessariamente, uma formação específica quanto a estes temas de saúde.
A hierarquia tinha experiência de formação, porque a tinha ministrado em cursos anteriores, e os formadores, com excepção dos arguidos ZZ e AAA (vide ponto 447 do provado), não eram formadores de primeira viagem, sendo que todos eles sabiam das suas obrigações, o que tinha por pressuposto necessário a capacidade e o conhecimento adequado para as cumprir.
Significa isto que quer os sintomas, quer as consequências lesivas do estado de desidratação, a cuja vigilância estavam especialmente adstritos, eram do conhecimento de formadores e hierarquia. A simples existência de um DAE no equipamento de apoio clínico indicia que toda a equipa sabia que podia haver situações em que era necessário o seu uso, pelo que não se pode consentir no entendimento de que quem quer que fosse, da equipa em causa, ignorava os possíveis efeitos de uma prova com este nível de exigência.
Contudo, estamos a reportar-nos a um conhecimento genérico, típico da experiência comum e não a um conhecimento clínico, do qual se pudesse retirar que os arguidos, com excepção óbvia do médico, soubessem, por exemplo, que as lesões decorrentes do golpe de calor são tipicamente renais e neurológicas, ou possam provocar desagregação das fibras musculares do coração.
Consta da fundamentação que o médico GG admitiu que todos os instruendos sofriam de desidratação, sendo que essa desidratação à hora de almoço tinha que se apresentar com gravidade, porque o próprio acórdão refere que cerca das 14 horas o próprio contactou com o HFAR avisando que iria internar instruendos.
Resulta da própria fundamentação da aquisição probatória que os formandos, que seriam, por princípio, as testemunhas idóneas para saber o que sofreram, mitigaram os factos e as suas consequências em julgamento, contrariando de forma frontal depoimentos já prestados nos autos, sendo que houve mesmo extracção de certidões para procedimento criminal por falsidade de depoimento, tal foi a desconformidade verificada.
No que concerne ao específico conhecimento que AA foi tendo acerca do estado de saúde dos formandos, há que considerar que se prova, no ponto 307 que «após o almoço, o arguido AA falou ao telefone com o Comandante do Regimento ..., QQ, alertando-o do calor que se fazia sentir, tendo aquele sugerido que no dia seguinte, fosse alterado o horário das instruções a ministrar», sendo que o facto está adequadamente fundamentado nos seguintes termos «relativamente à prova de que o arguido AA telefonou ao Comandante do Regimento QQ, o Tribunal escorou-se nos registos telefónicos constantes de fls. 13584/13656 onde se mostram registadas as chamadas efetuadas por este arguido, tendo sido com base nas suas declarações que mereceram credibilidade que o Tribunal considerou que este terá referenciado o calor que se fazia sentir, no seguimento do qual aquele lhe terá sugerido que no dia seguinte a prova se iniciasse uma hora mais cedo, com vista a terminar também uma hora mais cedo antes do almoço e que fazer um intervalo de almoço fosse até às 16h00m, retomando-se as instruções só a partir dessa hora, nem que isso implicasse uma hora de instrução noturna para compensar».
Como é da experiência comum, o que preocuparia qualquer pessoa colocada na posição de AA não era o facto de estar calor, mas as consequências da intensidade do mesmo na saúde dos formandos, em face das exigências físicas a que estavam a ser sujeitos. E a resposta dada por QQ só pode vir na decorrência da manifestação dessa preocupação: que se aligeire o exercício no dia seguinte.
Daqui retira-se, com segurança que, pelo menos a partir da hora de almoço, AA (e o próprio Comandante do Regimento, Coronel QQ) tinha conhecimento do estado de doença de muitos formandos e que isso o preocupava (a ele, AA).
Quanto ao médico, Capitão do Quadro Permanente, GG a questão coloca-se em termos semelhantes.
Consta da fundamentação que por volta das 14 horas ligou para o Hospital das Foças Armadas (HFAR) a comunicar que previa o internamento de formandos, o que só se justifica, segundo regras de experiência comum, pelo conhecimento do estado de doença dos mesmos, desde momento anterior a esse telefonema.
Ora, esse conhecimento está implícito a partir do momento em que houve instruendos internados na enfermaria, porque lhe cabia, exclusivamente, a competência para determinar os internamentos na enfermaria - vide Guião (apensos 01 e 19), para que a fundamentação remete, do qual consta que «apenas os instruendos que realmente necessitem de um maior apoio ou estabilização serão levados para a ambulância, Posto de Socorros do bivaque de apoio ou mesmo evacuados, sendo esta avaliação da responsabilidade do Oficial Médico presente».
Também há uma afirmação recorrente de que AA e GG não tinham conhecimentos sobre motricidade humana.
Claramente que há um erro notório na apreciação da prova quando se afirma que não se prova que um médico tenha conhecimentos específicos na área da motricidade humana, matéria que visa precisamente o estudo dos fenómenos associados à compreensão aprofundada dos processos de produção e dos efeitos do movimento humano.
Quando se fala de motricidade humana no âmbito deste processo estamos necessariamente a reportar-nos a ocorrências que, nessa esfera de conhecimento, poderiam determinar lesões físicas. Ora qualquer médico tem, necessariamente, pela sua qualificação profissional, conhecimentos de motricidade que fogem ao cidadão comum, ou seja, ao conhecimento resultante da experiência comum e, nessa medida, são especiais, específicos, especialíssimos!
A motricidade reporta-se ao aparelho músculo esquelético que é estudado nas faculdades de medicina, em termos extremamente aprofundados quanto aos fisiatras e ortopedistas, por exemplo, mas que implica, já por si, conhecimentos específicos aprofundados inerentes à formação clínica geral.
Ora, resultando, além do mais, que o arguido além do curso de medicina à data, tinha iniciado a Especialidade em ..., tendo-se dedicado à área de emergência e trauma (ponto 740 do provado) – especialidade que veio a terminar - e que à data, conciliava o trabalho como médico militar, com a realização de urgências em hospital civil e prestação de serviços no INEM (ponto 745 do provado) - estamos, sem dúvida, perante um indivíduo com especiais conhecimentos sobre a matéria, na sua qualidade de médico, inseparável do seu ser como pessoa, quaisquer que fossem as funções que exercesse.
Independentemente de o facto ser pouco relevante para a apreciação do mérito dos recursos, porque claramente que as doenças e morte que sobrevieram na sequência das provas são metabólicas, o certo é que também o arguido AA tinha necessariamente conhecimentos de motricidade humana, porque se prova que frequentou e concluiu os cursos profissionais militares de, entre outros, Instrutor de ..., tendo a chegar a exercer funções Instrutor nessa área (pontos 477 e 478 do provado).
Coloca-se ainda a questão da constante invocação de que não se provou que estes e aqueles formandos se tivessem sentido cansados e desidratados.
Quanto a isso nada melhor para perceber a desadequação da conclusão do que a própria fundamentação da aquisição probatória do ponto 191 do provado, que refere que «a convicção de que a elevada temperatura do ar e do solo e o racionamento da água, bem como o esforço físico contribui para um elevado estado de cansaço dos instruendos e sua desidratação e que isso se foi agravando ao longo do dia, resultou do facto destes terem referido sentirem sede e cansaço e de terem tido necessidade de receberem assistência sanitária, da descrição que em audiência de julgamento fizeram dos sintomas e muitos terem sido evacuado para a tenda que servia de enfermaria e, ainda, de outros terem carecido de posteriormente serem transferidos para o Hospital das Forças Armadas. Com efeito todos os instruendos descreveram sentirem-se cansados com exceção de VVV que declarou que nunca se sentiu cansado e esteve sempre em condições de continuar, no entanto o seu depoimento não mereceu relevância na medida em que não é credível que perante a diversidade de exercícios e intensidade destes, a par das temperaturas que se registaram naquele dia, não tivesse sentido cansaço como os demais instruendos».
A menção a normas e regulamentos será retirada do provado.
Postas estas considerações genéricas, cabe apreciar os vícios de contradição insanável e erro notório relativos ao provado e ao não provado e o primeiro também quanto à própria fundamentação da aquisição probatória.
Relembre-se que a análise dos vícios que se fará tem por único reporte o texto do acórdão, ou seja, o seu estrito elemento literal. A detecção dos mesmos ocorre apenas mediante a comparação entre os vários pontos do provado e do não provado e a fundamentação da aquisição probatória exarada no próprio acórdão para cada um desses pontos.
A referida fundamentação não foi inquinada por nenhum dos pedidos de reapreciação de prova formulados ao abrigo do disposto no artigo 412º/3 e 4 do CPP, antes pelo contrário. Resulta dos imensos excertos da prova transcritos, sobretudo no recurso do Ministério Público, a coincidência entre essa fundamentação e a prova produzida.
Quanto ao provado:
- Quanto ao ponto 132 (que o instruendo OO apenas cuspia em seco e, num estado confusional, dizia que estava ali para curar as feridas) a fundamentação exarada não permite a conclusão de que OO cuspia em seco, mas antes que cuspia e se babava. Isso mesmo consta da fundamentação da aquisição probatória: «a socorrista ZZZZZ foi clara ao descrever o estado do OO (…afirmou) que vinha um pouco desorientado e a cuspir saliva (…), RR disse que (…) no início, o OO parecia normal e bebeu água, mas depois começou a tossir e a cuspir». Consta ainda que NNN referiu «recordar-se de se ter apercebido, já após ter sido retirado da instrução, que perto de si se encontravam JJJ, OOO, RR e o OO, este último junto a uma árvore, mas continuava a não se percetível o que dizia e babava-se».
Ora, cuspir saliva e babar-se não pode ser entendido como cuspir em seco. Sendo este o resumo da prova sobre o assunto que consta da fundamentação da aquisição probatória, o provado terá que lhe corresponder.
O ponto 132 passa, portanto, a ter a seguinte redacção: «o instruendo OO apenas cuspia e se babava e, num estado confusional, dizia que estava ali para curar as feridas».
- Quanto ao ponto 133 do provado (que o arguido CC aproximou-se do instruendo OO e colocou, junto à boca do mesmo, um punhado de terra que apanhou do chão, ao mesmo tempo que dizia "cospe lá agora, burro, pacação”) a fundamentação dada, quer a propósito do mesmo, quer do ponto 66 do não provado, reporta-se exclusivamente à colocação de terra na boca do OO e não junto da boca.
Da fundamentação da aquisição probatória deste ponto do provado consta que «não obstante o arguido SS ter negado ter assistido à colocação de terra na boca do OO, pelo arguido CC, ou sequer ter limpo a sua cara da terra, referindo que quem deu água e assistência ao OO foi a socorrista ZZZZZ, o Tribunal formou a convicção de que isso teria ocorrido com fundamento no facto de ter havido mais de uma testemunha a confirmar esse episódio, as quais mereceram credibilidade na forma como depuseram.
Com efeito, tal situação foi relatada pela testemunha MMM que testemunhou ter visto o arguido CC aninhado, ao pé do OO, a colocar-lhe terra na zona da boca (…) e o arguido SS foi ter com o OO e limpou-o, usando água de uma garrafa.
Também RR declarou ter presenciado o arguido CC a pegar num pedaço de areia do chão com a mão e a colocá-la próximo da cara do OO, tendo ficado com a ideia de que fora colocado na boca, embora não tenha visto. (…) Mais acrescentou que viu o enfermeiro SS deitar água na cara do OO para lha limpar.
Por sua vez, JJJ contou que (…) viu o arguido CC de cócoras, junto ao OO, a dizer-lhe repetidamente "cospe lá agora. Não viu o que o 1° Sargento CC terá feito, mas passado um bocado, pareceu-lhe que o OO estava com falta de ar. Nessa altura, surgiu o enfermeiro SS (que conhecia por ter sido ele a dar-lhes instrução de primeiros socorros) e viu-o a deitar água, segundo lhe pareceu, na zona da boca do OO ao mesmo tempo que, com a outra mão livre, na mesma zona, fazia gestos como se a estivesse a limpar.
Esta situação foi ainda descrita por MMM que explicitou ter visto o arguido CC aninhado junto ao OO e colocar-lhe terra na boca. (…) Detalhou ainda que reparou que a baba que o OO deitou tinha terra depois do arguido CC dali sair, quando antes estava limpa. Depois disso, o enfermeiro SS, foi limpar com água a boca do OO, já depois do CC ter abandonado o local. Foi ainda confirmada o acima descrito pela testemunha AAAAAA, condutor da ambulância do Regimento de Transportes ("citadina") que (…) apanhou terra do chão e atirou-a para a boca daquele, tendo a terra ficado na zona da boca. Posteriormente foi dada água ao instruendo.»
De facto há testemunhos que dizem ter visto apenas o gesto em direcção à zona da boca. Mas JJJ disse que depois desse acto de CC o instruendo ficou com falta de ar, o que indicia a entrada de terra na sua boca, já seca por falta de hidratação, e MMM deixou bem esclarecido que a terra foi colocada na zona da boca do OO, motivo pelo qual o enfermeiro lha foi limpar, acto que todas as testemunhas referidas disseram ter visto. SS, o enfermeiro, negou «ter assistido à colocação de terra» o que não significa que tal não tenha sucedido, mas teve um depoimento absolutamente desconforme com o das restantes testemunhas que se referiram à situação, o que aponta para a falsidade do mesmo, neste ponto, numa evidente tentativa de proteger o arguido.
Na conformidade dom a prova relatada, a redacção deste ponto 133 do provado passa a ser a seguinte: «O arguido CC aproximou-se do instruendo OO e colocou na boca do mesmo um punhado de terra, que apanhou do chão, ao mesmo tempo que dizia "cospe lá agora, burro, pacação”».
Em consequência desta alteração impõe-se a alteração do ponto 427 do provado que passará a conter-se nos seguintes termos: «o arguido CC ao colocar terra na boca de OO, quando o mesmo já apresentava desidratação, bem sabia que ofendia o corpo deste e lhe causava mal-estar, o que quis».
- O ponto 135 contem em si mesmo uma contradição. Não é correcto afirmar que uma pessoa que cambaleia não se consegue movimentar. Movimentar-se-á com dificuldade, como qualquer coxo, mas movimenta-se. Consequentemente será retirada a expressão «não conseguia movimentar-se» do provado, que passará para o não provado.
- Entre os pontos 138 (no percurso, os instruendos PPP e MMM apercebendo-se de que o OO enrolava a língua e revirava os olhos, um deles tentou colocar-lhe uma tampa de cantil na boca para impedir que sufocasse) e 146 (no percurso para a zona das tendas, PPP e apercebendo-se de que OO enrolava a língua e revirava os olhos, colocou-lhe uma tampa de cantil na boca para impedir que sufocasse) há apenas aparente contradição quanto às afirmações de que tentou colocar a tampa e colocou a tampa. Partindo do princípio, que se nos afigura consentâneo com a evolução dos factos e com o descrito na fundamentação da aquisição probatória, que se esteja a falar de momentos diferentes, não ocorre incompatibilidade entre os dois referidos pontos.
- Quanto aos pontos 384 e 385 (a situação clínica de MMM resultou da acção de agente físico - calor, em contexto de esforço físico e tais lesões determinaram como consequência direta e necessária 15 dias de doença com incapacidade para o trabalho) verifica-se que os documentos a que têm reporte, contidos no apenso 10, e que coincidem com as lesões aqui referidas, reportam-se ao formando TT e não a MMM. Ou seja, há aqui um manifesto lapso de escrita (não erro notório) que urge corrigir, pelo que onde se refere MMM passará a constar TT. Os pontos referidos passarão a conter-se na seguinte redacção «384. A situação clínica de TT resultou da acção de agente físico - calor, em contexto de esforço físico. 385. Tais lesões determinaram-lhe como consequência direta e necessária 15 dias de doença com incapacidade para o trabalho».
- Quanto ao ponto 460 (até próximo das 16h o instruendo OO não tinha mostrado exaustão ou lipotomia e durante as instruções anteriores não tinha sido assistido pelo arguido GG ou por qualquer membro da equipa sanitária) o que resulta da fundamentação da aquisição probatória é que o instruendo OO até ter saído da instrução de tiro de combate, que começou às 14 e 10, e duraria até às 16 horas (conforme resumo das actividades, constante do apenso 10) e durante as instruções anteriores não foi assistido pelo arguido GG ou por qualquer membro da equipa sanitária, sendo que do ponto 100 do provado consta (devidamente fundamentado), que durante o exercício de Técnicas de Combate 2 (...), que decorreu até à hora de almoço «nesta instrução, face à elevada temperatura que se fazia sentir acima descrita e à insuficiente ingestão de água e ao esforço físico exigido - corrida em círculo e queda na máscara (mochila)-, todos os formandos denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação, situação que se agravou dado que não foram autorizados a beber água pelo arguido BB».
Resulta do provado que todos os instruendos, nesta altura, tinham demonstrado sérios sinais de exaustão, tanto mais que a prova foi suspensa.
Quanto aos sinais de lipotimia, que estão descritos como sensação de desmaio iminente, palidez, tonturas, suor, vista que “escurece”, enjoo, zumbido nos ouvidos, nada se provou.
Em face do exposto há que considerar não provado «que até próximo das 16h o instruendo OO já tinha mostrado sinais de lipotimia», ficando no provado que «durante as instruções anteriores e até ter saído da instrução de tiro de combate o instruendo OO já tinha mostrado sinais de exaustão e não tinha sido assistido pelo arguido GG ou por qualquer membro da equipa sanitária».
- O ponto 624 (o arguido NN não tem antecedentes criminais) encontra-se em contradição com a fundamentação. Do provado a 624 consta que o arguido NN não tem antecedentes criminais e da fundamentação consta que «relativamente ao registo de um antecedente criminal por parte do arguido NN o Tribunal fundamentou-se no teor do registo criminal deste, junto a fls. 6415 a 6416 verso». Em conformidade com o registo criminal há que considerar provado que «o arguido NN sofreu uma condenação por condução de veículo em estado de embriaguez».
Quando ao não provado (relembra-se que os factos constantes deste rol são aqueles que se considerou que não se provaram, o que não significa que se tenha provado o contrário do que aí se refere):
- Consultada a acusação verifica-se que os ponto 1 a 10 do não provado se reportam a cursos anteriores, pelo que ficará a constar da respectiva redacção o esclarecimento.
- Quanto ao ponto 11 (que todos os arguidos soubessem que a prova se realizaria com elevadas temperaturas (entre os 35.º e 39.º C) - face ao aviso "Amarelo" difundido pelo Instituto Português de Meteorologia e Atmosfera – IPMA e que o racionamento da água correspondia a 3 litros), verifica-se que não tem reporte para a fundamentação, contraria um facto notório de conhecimento de qualquer pessoa - porque essas temperaturas são típicas do verão - e o local da prova era descoberto, ao sol. O reporte do conhecimento das temperaturas para o aviso difundido pelo IPMA não se prova e é indiferente que se prove para a questão de aferir se os arguidos sabiam, ou não, que a prova se realizaria com elevadas temperaturas, facto notório por ser do conhecimento comum, atendendo à estação do ano e às condições atmosféricas dos dias anteriores.
Mais se verifica que no que se refere quanto à quantidade de consumo de água, de 3 litros, o não provado é contrariado pelo que consta do guião - que foi distribuído aos instrutores (pontos 54 e 61 do provado) - pelo que aos mesmos foi transmitido (ponto 67 do provado) sendo essa quantidade a “ norma” seguida pelos cursos anteriores (conforme guiões juntos aos autos), pelo que todos os arguidos sabiam disso (ponto 62). O essencial dos factos aqui contidos passa para provado, mediante a seguinte redacção: «Todos os arguidos sabiam que a prova se realizaria com elevadas temperaturas e que o racionamento da água correspondia a 3 litros».
- No ponto 13 diz-se que não se prova (que os instruendos e instrutores tivessem chegado ao Campo de Tiro ... provindos da ..., cerca das 02h00).
Ora, o contrário resulta da conjugação dos pontos do provado sob os números 69, por um lado e 75, 154, 205 e 250, por outro, por força dos quais se extrai necessariamente que, tendo os arguidos acabado a marcha, que foi o primeiro exercício e durou uma hora, pelas 3 horas da madrugada começaram a montar o bivaque, que era a operação seguinte. Daqui se conclui que chegaram uma hora antes das três, ou seja, por volta das 2 h da madrugada.
Este facto será excluído do não provado e passará para o provado com a seguinte redacção: «Os instruendos e instrutores chegaram ao Campo de Tiro ... provindos da ..., cerca das 02h00».
- Quanto ao ponto 15 (que tivesse havido um aumento da carga física e, consequentemente que, conjugada com a privação de sono, tivesse implicado um decréscimo da performance física e o aumento do risco de fadiga crónica) o seu conteúdo reporta-se ao ponto 75 do provado – isto é, à ocorrência de um aumento da carga física por força dos castigos impostos pelo arguido CC, consistentes em flexões e rastejar, por conta do desalinhamento das tendas.
A fundamentação exarada é meramente conclusiva e inapta a produzir o segmento não provado, segundo as regras da lógica de da experiência comum. Dela consta que «não se provou que “em resultado das flexões ou do rastejar, tivessem ficado incapazes de realizar as instruções seguintes, as tivessem executado com dificuldade ou que a sua performance tivesse ficado afetada na Ginástica Educativa, ou daí tivesse advindo um aumento de fadiga crónica enquanto algo duradouro e permanente. O facto de não se ter dado como provado parte do alegado no ponto 89 da acusação, quanto ao aumento do risco de fadiga crónica, deveu-se à inexistência de qualquer prova que pudesse concluir nesse sentido a que acresce que a fadiga crónica não surge da prática de um exercício físico num dado momento, mas constitui algo duradouro e permanente, independente de se ter ou não efetuado um exercício físico. (…) Por outro lado, embora existisse algum cansaço e, não obstante a privação do sono e o aumento da carga física possam implicar um decréscimo da performance física, não ficou, contudo, demonstrado que foi isso ocorreu naquela altura. Com efeito, a testemunha OOO explanou que da atividade física e por não terem dormido, existia já um certo cansaço, salientando, no entanto, que os exercícios físicos até àquele momento não tinham sido "nada de especial". Acresce que fadiga crónica implica que haja uma fadiga duradoura no tempo sem que a causa esteja associada a exercícios físicos.»
Ora, em causa não está necessariamente a existência, naquele momento, de uma situação fadiga crónica, mas apenas do risco dessa situação. Consequentemente não pode estar em causa um nexo de causalidade entre essa fadiga crónica (que não se afirma que existe) e qualquer incapacidade ou dificuldades sentidas durante a GE ou a influência dos exercícios anteriores no cansaço sentido naquele momento.
Claramente este ponto contraria o disposto no ponto 78 provado (49) e, sobretudo, o facto notório que consiste em que fazer flexões e rastejar causa cansaço, ou seja, que houve um aumento da carga física que, por si só (quanto mais acompanhado da privação de sono) desencadeou um decréscimo na capacidade de desempenho físico e uma maior propensão à fadiga decorrente da prova em curso.
Este ponto, por ser contrário às regras de experiência comum, passa para o provado sob os seguintes termos «Por força do descrito em 75, 76 e 77 do provado os instruendos suportaram um aumento da carga física que conjugada com a privação de sono, implicou um decréscimo da performance física e o aumento do risco de fadiga».
- A matéria do ponto 16 (que as flexões e o rastejar fossem exercícios físicos não planeados, e que os formandos tivessem sido sujeitos a estes exercícios durante a montagem do bivaque, pelos arguidos AA, MM e BB, os quais, em vez de preservarem, na véspera do primeiro dia de formação, a capacidade física dos formandos, desgastaram-nos física e psiquicamente, provocando-lhes níveis de ansiedade e cansaço, bem como dificuldades respiratórias devido ao pó que os formandos foram obrigados a inalar enquanto rastejavam) reporta-se também ao provado sob o ponto 75.
A fundamentação exarada foi de que «por não se encontrarem presentes no momento da montagem do bivaque e consequentemente, quando foi ordenado a execução de flexões e rastejar pelo arguido CC, o Tribunal considerou não provado que tivessem sido os arguidos AA, MM e BB que sujeitaram os formandos aos referidos exercícios. Além do mais, o arguido AA declarou que na reunião preparatória de quadros foi dada orientação que, quando os instruendos não efetuassem corretamente um exercício, eram sancionados com o máximo de dez flexões. Assim, na montagem do bivaque, a sua execução incorreta implicava a execução no máximo de dez flexões, as quais eram também aplicadas nas instruções. Esclareceu que estas orientações já vinham do Comandante antecedente e que ele apenas as reiterou. Se a sanção fosse diversa ou mais gravosa, interviria. Também pelo facto de nenhuma das testemunhas ter mencionado ter tido dificuldades respiratórias em resultado da execução de tais exercícios durante a montagem do bivaque, ou que tivessem inalado pó, o Tribunal considerou não provado tal alegação.»
Mais uma vez a fundamentação exarada não consente a conclusão tirada.
Em lado nenhum se dá como provado que os instruendos graduados só fizeram 10 flexões no decurso de toda a montagem do bivaque que, consoante o provado, foi tentada por várias vezes. Ainda que essas ordens tivessem sido cumpridas, por cada castigo – o que resulta das declarações prestadas quanto aos grupos de Praças - não se sabe quantos castigos de flexões foram determinados para este grupo, de graduados, sendo que os castigos impostos implicaram também rastejar no solo, por tempo e em condições não determinadas. Ou seja, o provado sobre as instruções dadas não reflecte o que tenha sido a realidade. E isto é tanto mais evidente quando se refere que não se provou que tenha sido o arguido AA quem tenha determinado os castigos.
Que as flexões não eram exercícios físicos planeados, no sentido de constarem do Guião, que pormenorizadamente descrevia cada exercício, também se prova.
Mais se prova que quem determinou estes castigos foi o arguido CC, pelo que se tem que manter no não provado que os formandos, durante a montagem do bivaque, tenham sido sujeitos a estes exercícios pelos arguidos AA, MM e BB bem como as imputações subsequentes.
Em resultado do exposto, o ponto 16 do não provado passa a referir que: «os formandos foram sujeitos a flexões e a rastejar (durante a montagem do bivaque), pelos arguidos AA, MM e BB, os quais, em vez de preservarem, na véspera do primeiro dia de formação, a capacidade física dos formandos, desgastaram-nos física e psiquicamente, provocando-lhes níveis de ansiedade e cansaço, bem como dificuldades respiratórias devido ao pó que os formandos foram obrigados a inalar enquanto rastejavam» e fica a constar do provado que «as flexões e o rastejar eram exercícios físicos não planeados no Guião da Prova».
- Quanto ao ponto 18 (que os arguidos AA, MM e BB, tivessem por função supervisionar a hidratação e a alimentação e tivessem aceite que os formandos fossem privados de água e de parte da ração de combate prevista para o pequeno-almoço) a justificação dada é de que não se provou que estivessem presentes no pequeno almoço e porque nada lhes foi transmitido donde pudessem inferir ter havido qualquer omissão quanto à distribuição de água e, consequentemente, aceitação quanto a esse facto.
O facto de estarem ou não no pequeno almoço não interfere com a definição das respectivas funções, que aliás, neste aspecto, resultam do guião da prova, conjugado com o facto de exerceram funções de superiores de hierárquicos relativamente aos formadores, e bem assim do provado em 80 (que os arguidos AA, MM, BB e CC sabiam que a hidratação ao pequeno-almoço dos formandos era essencial e fazia parte do plano de hidratação do Guião entregue).
Daqui resulta que há que colocar no provado que «os arguidos AA, MM e BB, tinham por função supervisionar a hidratação e a alimentação» e deixar no não provado que: « os arguidos AA, MM e BB tivessem aceite que os formandos fossem privados de água e de parte da ração de combate prevista para o pequeno-almoço».
- Quanto ao ponto 19 (que a quantidade de água reabastecida pelos formandos após o pequeno-almoço, fosse inferior a 1 litro) esta matéria reporta-se ao grupo de graduados, relativamente à qual já se analisou a questão da água disponível e do consumo de água, que comprova precisamente que a quantidade de água reabastecida pelos formandos após o pequeno-almoço, foi inferior a 1 litro, porque 1 litro era a capacidade do cantil e eles não chegaram a acabar a água que estava no cantil desde o momento em que partiram para a .... Este ponto será excluído do não provado por manifesta contradição com o provado
- Quanto ao ponto 20 (que o arguido BB soubesse que os formandos tinham sido privados do consumo de água ao pequeno-almoço, o que reduziu ainda mais a tolerância ao calor e provocou nos mesmos maior fadiga face ao desgaste físico próprio da instrução) ele decompõe-se em dois assuntos diferentes.
A questão da falta de conhecimento do arguido BB sobre a privação de água está tratada quanto ao ponto 18 e foi a única que foi justificada probatoriamente.
A afirmação relativa às consequências da falta de hidratação não tem qualquer fundamentação e é absolutamente contrária às regras da experiência comum. Esta afirmação contida no não provado, além do mais, contraria as instruções dadas a que se refere o ponto 56 do provado (consta ainda do referido Guião o seguinte: "o reabastecimento de água e hidratação são alvo de especial atenção por parte dos instrutores (acompanhamento presencial), no sentido de garantirem que os instruendos se alimentem às horas das refeições e se hidratam (essencialmente ao longo dos períodos de instrução)) e no conteúdo do ponto 80 do provado (que os arguidos AA, MM, BB e CC sabiam que a hidratação ao pequeno-almoço dos formandos era essencial e fazia parte do plano de hidratação do Guião entregue).
Em face do exposto há que manter no não provado «que o arguido BB soubesse que os formandos tinham sido privados do consumo de água ao pequeno-almoço» e passar para o provado que «a privação de consumo de água ao pequeno-almoço reduziu ainda mais a tolerância ao calor e provocou nos mesmos maior fadiga face ao desgaste físico próprio da instrução»;
- No que respeita ao ponto 21 (que os arguidos BB e CC, ambos ..., soubessem que face à elevada carga física da instrução, que durou quase duas horas, à elevada temperatura que se fazia sentir a céu aberto (entre 24 e 32,4.º C) e ao manterem os formandos privados de água, tal instrução provocaria nos formandos ansiedade, náuseas, vómitos, cansaço físico extremo, desidratação e eventuais estados confusionais, o que provocou) a contrariedade do conteúdo do mesmo às regras de experiência comum é evidente. Tão evidente que o contrário do que se diz corresponde precisamente ao que aconteceu e se mostra relatado quer no provado quer na fundamentação da aquisição probatória.
Há ainda que considerar que estes arguidos já tinham sido formadores em outros cursos ... e, perante a exigência que é feita de manutenção dos formandos em boas condições de hidratação sabiam, necessariamente, mais aprofundadamente do que qualquer pessoa comum, quais as consequências da desidratação em elevado esforço, ampliado pelos efeitos do calor. Aliás, no curso 123, onde ambos os arguidos foram formadores (pontos 517 e 534 do provado) houve situações de rabdomiólise que se repetiram no curso 125 em que diversos formandos foram sujeitos a período de hemodiálise em ambiente hospitalar conforme se pode verificar pelo apenso 11 junto aos autos. Ora os arguidos, enquanto ... e na qualidade de formadores num curso em que houve ocorrências semelhantes àquelas que aqui se descrevem sabiam dos riscos em causa.
O único ponto a ressalvar é que, tendo-se entendido que o arguido BB não soube da interdição de consumo de água ao pequeno almoço, o facto não lhe é oponível, sendo a afirmação disso mesmo uma pura redundância.
A justificação da aquisição probatória não tem correspondência lógica com a conclusão tirada no ponto em causa. O que se disse foi que «por não ter sido estabelecida qualquer relação nem as testemunhas terem prestado quaisquer declarações nesse sentido, o Tribunal considerou não provado que a instrução de ... dada pelos arguidos BB e CC naquelas circunstâncias, tenha provocado nos formandos, ansiedade, náuseas, vómitos, cansaço físico extremo, desidratação e eventuais estados confusionais, posto que nenhum dos instruendos apresentou ou referiu qualquer desta sintomatologia durante o decurso desta instrução. PPP afirmou que teve já algumas dificuldades durante a ..., mas "nada por aí além"; KKK apenas referiu que o MMM e o JJJ estavam a ficar sempre para trás, sendo que este último apenas descreveu que se sentia muito quente, com a boca seca, via tudo à roda e custava-lhe a respirar. Já MMM descreveu que sentia mais sede por causa do calor, que começou a ter dificuldades físicas, mas apenas mencionou ter caibras na fase final da ...».
Ora, uma coisa é o que os instruendos sentiram na sequência da ..., outra o que possam ter referido aos instrutores «durante o decurso desta instrução». A falta de queixas, no momento da prova, não é indício de que o facto não tenha ocorrido, até porque de cada vez que os formandos se manifestavam corriam o risco de ser castigados, como resulta demonstrado do provado.
Por outro lado o que se diz que se provou em julgamento corresponde precisamente ao que se afirmou na acusação/pronúncia: MMM e JJJ ficavam para trás, JJJ manifestou boca seca, dificuldade em respirar, vista toldada e muito calor; MMM sentia mais sede e teve dificuldades físicas e cãibras no final da prova e MMM teve algumas dificuldades. Esta foi a prova identificada e toda ela converge para a prova dos factos em causa.
Resta assim retirar o ponto do não provado e considerar provado que «os arguidos BB e CC, ambos ... sabiam que face à elevada carga física da instrução da ..., que durou quase duas horas, à elevada temperatura que se fazia sentir a céu aberto (entre 24 e 32, 4.º C) e ao manter os formandos privados de água, tal instrução provocaria nos formandos ansiedade, náuseas, vómitos, cansaço físico extremo, desidratação e eventuais estados confusionais, o que provocou».
- No que respeita ao ponto 26 (que na instrução da GAM, PPP e MMM tivessem desmaiado em consequência da perda de líquidos e outros nutrientes e JJJ tivesse sentido tonturas e falta de ar) temos que considerar que está provado, sob o ponto 93, que nessa instrução da GAM, MMM e PPP desmaiaram, e JJJ sentiu sede, tonturas e falta de ar.
Quanto ao motivo dos desmaios foram, obviamente, a conjugação do esforço físico com o calor e a desidratação, sendo que esta consiste precisamente na perda de líquidos e outros nutrientes, pelo que o ponto se tem que considerar provado nos seguintes termos: «Na instrução da GAM, PPP e MMM desmaiaram em consequência da perda de líquidos e outros nutrientes e JJJ sentiu tonturas e falta de ar», sendo eliminado do não provado.
- Quanto ao ponto 27 (que face à grave situação clínica de PPP e MMM, o arguido FF tivesse revelado elevado desprezo pela situação clínica dos mesmos e tivesse ordenado a alguns formandos que pegassem pelos pés do PPP e do MMM e os arrastassem para as silvas, pretextando que eles estavam a fingir, com o propósito de lhes provocar lesões corporais) há que atender a que da fundamentação consta que «os próprios instruendos pormenorizaram que o percurso que lhes foi ordenado fazer, implicava terem de passar por cima das silvas».
Ou seja, o não provado reporta-se unicamente ao arrastar para as silvas, já que o demais está provado no ponto 94 do provado (que na instrução da GAM, PPP e MMM desmaiaram em consequência da perda de líquidos e outros nutrientes).
Significa isto que, tendo os formandos desmaiado, ao serem arrastados, teriam que passar por cima das silvas, pelo que não pode considerar-se que a ordem dada visasse provocar-lhes lesões corporais, se bem que isso fosse uma consequência necessária da forma escolhida para os retirar do local.
Assim, este ponto do não provado fica com a seguinte redacção: «o arguido FF, ao agir como descrito em 94 do provado tivesse revelado elevado desprezo pela situação clínica dos formandos PPP e MMM ou que tenha ordenado que os arrastassem para as silvas, pretextando que eles estavam a fingir, com o propósito de lhes provocar danos no corpo»
- Quanto ao ponto 28 (que o mesmo arguido tivesse obrigado os restantes formandos - III, RR, JJJ, KKK, LLL, NNN, OOO e OO - a rastejar por cima das silvas, com o propósito de lhes provocar lesões corporais, como provocou, designadamente feridas nos braços, mãos e pernas) da fundamentação exarada consta que «também por falta de prova, não se deu como provado que tivesse sido com o propósito de lhes provocar lesões corporais ou os humilhar, que o arguido FF ordenou ou obrigou III, RR, JJJ, KKK, LLL, NNN, OOO e OO a rastejar por cima das silvas, não tendo também sido referido por qualquer destes que tivessem ficado com feridas nos braços, mãos e pernas, mas apenas reportado a existência de arranhões/ escoriações».
Desta fundamentação retira-se que quem deu a ordem a que se refere o ponto 95 do provado foi o arguido FF e que, como é da experiência comum, a intenção só podia ser provocar as lesões nesse ponto referidas, que são formas de feridas.
Daqui se retira que este ponto deve ser excluído do não provado e há acrescentar ao provado que «sob ordem do arguido FF os formandos agiram como descrito em 95 do provado, com o propósito de lhes provocar feridas, como provocaram, designadamente arranhões e escoriações nos braços, mãos e pernas».
- Quanto ao ponto 30 (que os arguidos FF, BB e CC, tivessem agido com o propósito de humilhar e provocar feridas no corpo dos ofendidos, como provocaram, idênticas às fotografadas no Apenso 14, com grave violação dos procedimentos a adoptar durante o Curso, bem sabendo os arguidos que as suas condutas eram contrárias aos deveres do militar e disciplina militar, revelando sentimentos incompatíveis como respeito pela dignidade dos ofendidos) temos que esta matéria vem reportada, na acusação à instrução GAM, o que importa fazer constar.
Consta da fundamentação que «do depoimento conjunto de todos os instruendos ouvidos - III, RR, JJJ, KKK, LLL, NNN e OOO - não se extraiu pois, que o propósito do instrutor da Ginástica de Aplicação Militar fosse, em qualquer das ordens dadas aos formandos graduados, o de provocar lesões de qualquer índole àqueles, ou de humilhá-los, e consequentemente e por também se não ter ficado provado que durante a GAM os arguidos BB e CC estivessem presentes, respondeu-se de forma negativa aos pontos 112 e 113 da acusação».
Ora, a questão não tem que ver com as ordens dadas, genericamente, mas com as ordens de rastejar nas silvas, especificamente, sendo que estes depoimentos não resistem à aplicação das regras de experiência comum.
A intenção subjacente ao que consta do ponto 30 só pode ser assacado ao arguido FF, uma vez que não se considerou provado que os arguidos BB e CC estivessem presentes.
A questão da distinção entre feridas e arranhões já acima foi tratada e é artificiosa.
A questão da contrariedade aos deveres e sentimentos militares é conclusiva e pressupõe a avaliação da conduta à luz dos documentos que os definem, o que determina a sua exclusão do rol da matéria de facto provada.
Do ponto 538 da acusação retira-se a imputação de danos aos formandos III, RR, JJJ, KKK, LLL, MMM, NNN, OOO, PPP e OO.
Do ponto do não provado foram excluídos os formandos MMM, PPP e OO, sem qualquer fundamentação, sendo que estes três formandos foram sujeitos ao mesmo tratamento nas silvas do que os demais.
As fotografias contidas no apenso 14 são relativas às lesões sofridas por OO, consistem, pelo menos, em arranhões, mas evidenciam ainda situações de falta de pele e até de bocados de carne, em determinados pontos do corpo da vítima. Neste ponto tem aplicação o disposto no artigo 431º/CPP, que extravasando a questão do vício, permite, muito embora, a alteração do provado.
Do exposto resulta que se impõe a exclusão do ponto do não provado quando ao que se refere ao arguido FF, passando a figurar no provado que «o arguidoFF agiu com o propósito de humilhar e provocar feridas no corpo dos ofendidos, nomeadamente de III, RR, JJJ, KKK, LLL, MMM, NNN, OOO, PPP e OO como provocou». Quanto aos demais arguidos o ponto mantem-se no não provado.
- Quanto ao ponto 31 (que durante a instrução de GAM, os arguidos FF e BB não tivessem hidratado os ofendidos como era sua obrigação, nem tivessem chamado a equipa sanitária para lhes prestar assistência, e que os instruendos apresentassem inúmeras feridas e que soubessem que podiam infectar e provocar infecções graves), a fundamentação da aquisição probatória exarada foi a de que MMM e PPP foram assistidos pela equipa sanitária e foi-lhes fornecida água nessa altura.
Ocorre é que a matéria que se dá como não provada não se reporta a estes dois formandos, especificadamente, nem à hidratação feita pela equipa sanitária, mas à falta de fornecimento de água pelos arguidos FF e BB a todos os instruendos durante a instrução da GAM.
Ora, descrevendo o provado todas as situações em que os instruendos foram autorizados a beber, nada constando quanto ao fornecimento de água durante a instrução infere-se, com a necessária segurança, que nessa fase da prova não foram hidratados.
Esta conclusão reforça-se em face do que consta dos pontos 93 e 98 do provado (entre a GAM e a ... os arguidos BB e CC não deram intervalo e nem autorizaram que os formandos bebessem água, apesar da sede, do cansaço e das dores que sentiam em consequência das feridas provocadas pelas silvas) e bem assim do referido na fundamentação da aquisição probatória, por diversas vezes, de que durante as instruções não era fornecida água aos instruendos – o que se compreende pela necessidade de manter o ritmo da instrução.
No que se reporta às feridas, o assunto está esclarecido quanto aos pontos anteriores, sendo que consta da fundamentação que os instruendos MMM e PPP foram assistidos pela equipa sanitária, mas também que foram levados até ao local onde esta se encontrava, ou seja, a equipa não foi chamada pelos arguidos. Quanto à possibilidade de as feridas infectarem resulta da experiência comum.
Assim este ponto será retirado do não provado, passando a constar do provado que «durante a instrução de GAM, os arguidos FF e BB não hidrataram os formandos nem chamaram a equipa sanitária para lhes prestar assistência, sendo que os instruendos apresentavam feridas que eles sabiam que podiam infetar».
- Quanto ao tema de prova do ponto 34 (que, como castigo, os arguidos BB e CC, não tivessem dado intervalo e tivessem privado de água os instruendos, apesar da sede, do cansaço e das dores que sentiam, algumas delas em consequência das feridas provocadas pelas silvas, como castigo) resulta apenas provado que os instruendos padeceram de muito cansaço, desidratação e, obviamente, de dores pelos cortes feitos pelas silvas. Não constando do provado a concessão de um período de descanso nem o fornecimento de água no intervalo que houve entre o fim da GAM e o início da ..., que seria, segundo o estabelecido no guião, de 10 minutos, e sendo que durante esse período os formandos foram obrigados a percorrer determinado percurso a rastejar e voltar em corrida (96 do provado) impõe-se o entendimento de que nem foi cumprido o período de descanso nem a hidratação que, por regra, ocorria entre as provas, conforme da fundamentação consta.
Aliás, da própria fundamentação consta que «embora NNN tivesse contado que por não terem cumprido o tempo não tiveram intervalo e foram logo fazer a instrução de Técnicas de Combate 2, o tribunal formou a convicção que isso se deveu ao facto de terem que cumprir o horário estabelecido para cada instrução e o não cumprimento do tempo estabelecido para irem buscar as mochilas, não terá permitido qualquer espaço temporal para descansarem».
A única pessoa relativamente à qual se prova que bebeu durante este percurso foi RR, mas porque bebeu às escondidas (98 do provado) o que não releva para prova de que foi autorizada a hidratação, que é aquilo que está em causa.
Que as ordens em causa possam ser considerado castigo - reacção por algo mal feito – não é claro, porque se desconhece o motivo que o determinou. Contudo verifica-se que a ordem dada que ocupou o intervalo entre as duas provas apresenta uma natureza absolutamente extravagante, pois que não se descreve algo semelhante quanto qualquer dos outros grupos da formação.
Do exposto resulta que este ponto será eliminado do não provado e passará a constar do provado com a seguinte redacção «entre a GAM e a ... os arguidos BB e CC não deram intervalo e nem autorizaram que os formandos bebessem água, apesar da sede, do cansaço e das dores que sentiam em consequência das feridas provocadas pelas silvas».
- No que respeita ao ponto 36 (que tais castigos visassem desgastar fisicamente os formandos, provocando-lhes stress emocional, fadiga crónica, dores e infecções em resultado das feridas, afectando as actividades da massa muscular e reduzindo a tolerância ao calor) ele tem reporte para o ponto 118 da acusação e para a GAM.
É evidente a contrariedade do seu teor às regras de experiência comum.
A fundamentação da aquisição probatória refere-se apenas aos castigos imputados por falta de cumprimento do tempo da execução do exercício imposto durante o intervalo das provas e a um eventual castigo, que não se prova, por o RR ter bebido dizendo que «em consequência, e porque em estreita conexão com o acima vertido, não se pode dar como provado que tais ações tivessem tido as consequências descritas no ponto 119 da acusação, porque parte dele exterioriza uma opinião pessoal que não pode ser, nesta parte, considerada pelo Tribunal».
Mantendo o reporte apenas à matéria dos pontos 96 e 97, ocorre que, segundo as regras da experiência comum, a falta de descanso durante os 10 minutos previstos de intervalo entre as provas e a falta de hidratação agravaram necessariamente o desgaste físico dos formandos, provocando-lhes stress emocional e mais fadiga com a consequente afectação da actividade da massa muscular e redução da tolerância ao calor.
O stress emocional decorre não só do facto de os formandos se terem visto obrigados a mais um exercício mas, sobretudo, pela retirada do intervalo, com que naturalmente contavam, porque estava previsto no guião e estava a ser cumprido entre as provas, para alguma reposição da vitalidade física e, eventualmente, consumo de água.
Face ao exposto, este ponto será excluído do não provado e passará a constar do provado que «o atrás referido, bem como o constante dos pontos 96 e 97 do provado, ocorrido durante a GAM, agravou o desgaste físico dos formandos, provocando-lhes stress emocional, fadiga e afectação da actividade da massa muscular e reduzindo a tolerância ao calor».
- Quanto ao ponto 37 (que os arguidos AA e MM, se tivessem apercebido do estado de fadiga extrema e desidratação dos ofendidos do Grupo de Graduados, não tendo providenciado pela hidratação dos mesmos, nem impedido a prática de castigos e actos violentos contra os ofendidos, que os formandos apresentassem feridas expostas e que os arguidos tivessem visto feridas expostas e soubessem que podiam provocar infecções graves e, não obstante isso, tivessem autorizado que tais actos violentos fossem praticados em todas as instruções), a fundamentação apresentada foi de que «além do mais, não ficou clara a presença dos arguidos AA e MM durante esta instrução, sendo que pelo primeiro arguido foi dito que a presença deles era repartida, não se encontrando em simultâneo ambos na mesma instrução. De igual modo os instruendos ouvidos negaram a existência de feridas expostas, apenas tendo reportado arranhões, que em alguns casos vieram a sarar com o decurso do tempo, sem necessidade de tratamento ou intervenção médica».
Este ponto do não provado tem reporte para a GAM, segundo os próprios termos da acusação.
Se os arguidos presenciaram os castigos e actos violentos praticados na GAM desconhece-se, mas que ninguém os impediu é um facto. Também é certo que não providenciaram pela hidratação dos formandos, que não foram hidratados, pura e simplesmente. Aliás, não se prova sequer a presença destes arguidos no decurso da prova ou do intervalo.
No que concerne à noção de feridas expostas, ela abrange desde pequenos arranhões a feridas perfurantes. Sabendo-se, como os arguidos sabiam, que todos os instruendos tinham rastejado em silvas, pelo menos no decurso do exercício de GAM, cujo percurso assim foi estabelecido, era seguro que todos eles apresentassem feridas, pelo menos nas zonas expostas da pele.
Do exposto resulta provado que «os arguidos AA e MM, não providenciaram pela hidratação dos formandos na GAM, sabiam que eles apresentavam feridas expostas, bem sabendo que poderiam infectar e não impediram a prática de castigos e actos violentos contra eles».
Mantem-se no não provado «que após a GAM os arguidos AA e MM se tivessem apercebido do estado de fadiga extrema e desidratação dos ofendidos do Grupo de Graduados, ou que tivessem autorizado que actos violentos fossem praticados em todas as instruções».
- O ponto 39 (que tenha sido o facto de não terem sido autorizados a beber água durante a instrução da ..., pelo arguido BB, que tenha causado a sintomatologia apresentada por LLL) não tem qualquer suporte na fundamentação. Contudo resulta do provado que o mesmo apresentava um tal estado de desidratação e exaustão pelo calor que sofreu tonturas, falta de ar e perdeu os sentidos durante a instrução de ..., pelo que foi transportado para a enfermaria e não voltou à instrução (pontos 101, 107 e 108 do provado). Esta instrução foi ministrada pelos arguidos BB e CC, entre as 11h30 e as 12h20.
É da experiência comum que toda esta sintomatologia resulta da acumulação do cansaço e de desidratação em que se encontravam os instruendos desde a entrada no campo de tiro, porque desde então beberam um máximo de 10 cl depois da marcha, que terá terminado por volta das três horas da madrugada, mais outros 16 cl, no máximo, entre as 10h20 e 10h30 (pontos 72 e 89 do provado), ou seja, estiveram sete horas sem beber, em exercícios pesados, sob um calor escaldante. Uma hora depois, perante um exercício especialmente desgastante, como é descrito no ponto 99 do provado, a imputação do estado de afectação na saúde deste e dos outros formandos só pode ser resultante da desidratação, para a qual contribuiu fortemente a ausência de bebida entre as 11h30 e as 12h20 da manhã, altura em que se faziam sentir temperaturas atmosféricas na ordem dos 36º a 38,7º e no solo, na ordem dos 44,68º a 45,64º.
Aliás, o reconhecimento da desadequação dos três cantis de água para a manutenção de um mínimo de hidratação resulta do teor do Guião forjado, de onde consta que o mínimo de água a consumir seria de 5 cantis, com possibilidade de implementação de outras medidas adicionais de hidratação (pontos 58 e 59 do provado).
A sintomatologia apresentada por LLL no decurso da ... é correspondente àquela apresentada por outros formandos, que acabaram internados, provocada pela exaustão física e desidratação. Segundo as regras da experiência comum os mesmos sintomas, apresentados nas mesmas situações devem-se, por princípio, às mesmas causas. Não se refere nada, na fundamentação da aquisição probatória, que exclua a aplicação do princípio, pelo que se impõe a eliminação deste ponto do não provado, passando a constar do provado que: «o facto de não terem sido autorizados a beber água durante a instrução da ... pelo arguido BB, contribuiu para a sintomatologia apresentada por LLL».
- Relativamente ao ponto 40 (que o ofendido NNN se encontrasse prostrado no solo e o arguido CC o tivesse mandado levantar e aos gritos e lhe tivesse dito: "que estava a atrapalhar os camaradas”!) há dois segmentos a considerar.
O primeiro, saber da correcção do entendimento de que o NNN não esteve prostrado no solo, que resulta implicitamente negado pelo facto que se prova, de que desmaiou. Não se desmaia de pé – é um facto notório. Estando em campo, sem ninguém para aparar a queda, o desmaio faz-se para o chão e implica, por natureza um estado de máxima prostração. Portanto esta parte não pode manter-se no não provado por contradição com o provado sob o ponto 101. O facto contido no não provado está implícito no ponto 101 do provado, pelo que nada há que acrescentar quanto ao assunto.
No que respeita à segunda parte, ela está fundamentada quando se refere que «não se deu provado que o arguido CC tivesse ordenado ao NNN que se levantasse, e gritado que estava a atrapalhar por não ter sido feita prova quanto a isto» pelo que se manterá no não provado nos seguintes termos «que depois de o ofendido NNN ter desmaiado o arguido CC o tivesse mandado levantar e aos gritos e lhe tivesse dito: "que estava a atrapalhar os camaradas”».
Do provado passará a constar que «tendo desmaiado, NNN ficou prostrado no solo».
- Quanto ao ponto 42 (que PPP tivesse muita sede, sentisse a boca seca, os batimentos cardíacos muito fortes e acelerados e tonturas) a fundamentação dada foi que: «não se deu como provado que PPP só executou 3 minutos da instrução de ... (carrossel) porquanto tinha muita sede, sentia a boca seca, batimentos cardíacos muito fortes e acelerados e tonturas, porquanto não foi feita prova quanto a esta matéria». Premissas e conclusão não são concordantes. O que resulta ínsito à fundamentação é que realmente PPP tinha muita sede, sentia a boca seca, os batimentos cardíacos muito fortes e acelerados e tonturas. O que não se prova, face a essa fundamentação, é que só tenha executado 3 minutos de ..., o que já constava do não provado e não está em causa no teor do ponto em análise.
Assim resta eliminar este ponto do não provado e passar para o provado que: «PPP tinha muita sede, sentia a boca seca, os batimentos cardíacos muito fortes e acelerados e tonturas».
- No ponto 44 afirma-se que não se prova (que ao almoço, o que restava de água nos cantis dos quatro formandos, III, KKK, OOO e OO, correspondesse a 680 ml - um pouco mais de uma garrafa de meio litro). Não há contradição nem erro notório quanto a este ponto, mas convém precisar melhor aquilo que a respeito se prova.
No que concerne a III e KKK prova-se que não foram autorizados a beber depois da marcha (ponto 72 do provado). Partindo do princípio mais favorável, de que tinham os cantis cheios quando chegaram ao campo de tiro, e provando-se que só lhes foi dada autorização para beber, no máximo 160 ml, depois da ..., restariam 840 ml. Contudo há que deduzir deste valor o que foi consumido na higiene dos formandos que, segundo a fundamentação da aquisição probatória, era feita com a água do cantil enchido antes de chegar a ..., consumo esse cuja quantidade se desconhece.
Quanto aos formandos OOO e OO coloca-se a mesma questão quanto à quantidade de água despendida na higiene, se bem que provando-se que beberam, num máximo, 288 ml, a quantidade de água que tinham no cantil não podia ultrapassar os 712 ml.
Impõe-se, portanto, o entendimento de que o ponto em causa tem por pressuposto um determinado consumo de água desse cantil com a qual os instruendo fizeram a higiene
- O ponto 45 (que os arguidos MM, na qualidade de Comandante de Companhia e BB e CC, tivessem conhecimento dos sinais de risco elevado de desidratação profunda e consequentes consequências orgânicas, nomeadamente, lesões renais e neurológicas, que poderão evoluir até a uma falência multi-orgânica e à morte e ignoraram tais sinais) reporta-se ao momento da formatura da tarde e ao facto de só dois formandos nela terem comparecido.
A fundamentação exarada foi de que não se provou que os arguidos tivessem tais conhecimentos e que «acresce que, nem RR, nem MMM, nem PPP, nem LLL e nem NNN, tiveram lesões renais e neurológicas, nem estes apresentaram uma situação clínica que tivesse evoluído para a falência multi-orgânica e a morte».
Realmente (felizmente!) nem todos os formandos faleceram na prova, o que não justifica o ponto do não provado em causa, sendo que, aliás, a imputação constante do ponto 138 da acusação acrescentava que «e o primeiro não deu instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos, ponderarem sobre uma menor intensidade da carga física e aumentarem os períodos de repouso durante as instruções do período da tarde», o que não foi considerado no rol do provado e do não provado.
Como acima se explicou, as manifestações e as consequências da desidratação são um facto notório - toda a gente sabe que o ser humano pode morrer de desidratação - e eram, na circunstância, necessariamente do conhecimento dos arguidos, que estavam especialmente adstritos a evitar a referida doença, pelas próprias regras contidas no guião da prova.
Quanto ao demais, há que referir que se prova que ninguém deu instruções no sentido de evitar as lesões consequentes a que o ponto se refere, nem quanto aos formandos deste grupo nem aos demais, o que a fundamentação justifica amplamente com o facto de terem que ser seguidos à risca os procedimentos constantes do guião.
Em face do exposto, impõe-se que o conteúdo do ponto seja retirado do não provado e passe para o provado, nos seguintes termos: «os arguidos MM e BB e CC, tinham conhecimento dos sinais de risco de desidratação e consequentes consequências orgânicas, que podem evoluir até a uma falência multi-orgânica e à morte, ignoraram tais sinais e não deram instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos, nem ponderaram sobre uma menor intensidade da carga física e o aumento dos períodos de repouso durante as instruções do período da tarde».
- No que toca aos pontos 46 (que o diretor da prova, o arguido AA, como ..., tivesse conhecimentos específicos nas áreas da medicina e da motricidade humana e soubesse que os formandos já apresentavam estados de desidratação profunda e que alguns tivessem vomitado, outros perdido os sentidos no período da manhã e foram sujeitos a maus-tratos físicos (bofetadas, pontapés, rastejar nas silvas) apresentando inúmeras lesões corporais) e 47 (que o médico GG, como ... tivesse conhecimentos específicos na área da motricidade humana e soubesse que os formandos já apresentassem estados de desidratação profunda e que alguns deles tivessem vomitado e tivessem sido sujeitos no período da manhã a maus-tratos físicos (bofetadas e pontapés), apresentando inúmeras lesões corporais), a justificação dada para o não provado foi esta: «por não se ter feita qualquer prova de que o arguido AA tivesse conhecimentos específicos quer na área de medicina, quer na área de motricidade humana, a resposta a esta matéria foi também ela negativa, sendo este também, o fundamento que levou a não dar como provado que o arguido GG tivesse conhecimentos específicos na área de motricidade humana.
Também por inexistência de prova de que lhe fora transmitida qualquer informação quanto ao facto de ter havido formandos que desmaiaram de manhã, não se deu como provado que o arguido AA disso tivesse conhecimento.
Igualmente não se fez prova que os instruendos no período da manhã tivessem vomitado ou tivessem sido sujeitos a maus-tratos, designadamente, bofetadas e pontapés e, embora tivessem rastejado nas silvas, não se depreendeu que isso não tivesse decorrido fora do âmbito da instrução.
Embora o arguido GG tenha conhecimentos específicos na área de medicina, não foi possível dar como provado que este, e muito menos o arguido AA, tivessem conhecimento que haveria formandos que apresentassem desidratação profunda, por nenhuma prova ter sido feita que apontasse para essa conclusão nesta fase da ...».
Também estes factos se reportam ao momento da formatura da tarde.
Como acima se referiu a afirmação relativa à ausência de prova de que o médico e o director da prova tivessem conhecimentos de motricidade humana contraria as especificidades da qualidade de médico e os conhecimentos adquiridos pelo director da prova, quer enquanto comando quer em face daquilo que se prova serem as suas habilitações.
Do provado e da fundamentação da aquisição probatória pouco resulta quanto à actividade dos dois arguidos durante o decurso da prova.
No entanto, a questão do necessário conhecimento pelos arguidos AA e GG, por volta das 14 horas, de que os formandos já apresentavam estados de desidratação, que alguns tinham vomitado e outros perdidos os sentidos no período da manhã, está implicitamente provada face às diligências que os dois fizeram a essa hora, a esse respeito. AA contactou o seu superior hierárquico por isso mesmo – e não foi para lhe dar conhecimento de que estava um dia muito quente, como é óbvio - e GG ligou para o HFARR para que estivessem preparados para receber instruendos. Qualquer destas duas atitudes demonstram um conhecimento cabal do estado de saúde da generalidade dos instruendos e alguma preocupação com os efeitos da continuação da prova naquelas precisas situações, por parte de AA, e com a evolução clínica dos instruendos, quando ao arguido GG.
Impõe-se, pois, a consideração dos factos em apreço como provados.
Tome-se nota que apenas se situa a mesma no período da manhã a perda de sentidos por parte de alguns instruendos, pelo que a referência feita na fundamentação de que não se provou que os formandos do grupo de graduados tivessem vomitado de manhã é inócua para considerar não provada a referida perda de sentidos.
Além do acima referido, há que considerar que do ponto 115 do provado resulta que o arguido GG sabia que alguns dos formandos do grupo dos Graduados já tinham perdido os sentidos no período da manhã. Sabia disso e de tudo o mais que se passou relativamente aos que foram internados na enfermaria, porque, segundo o Guião, a transferência para essa enfermaria era da sua exclusiva competência, o que implicava o conhecimento sobre a situação clínica dos transferidos.
Por fim, há outra questão conexa com estes pontos do não provado que se tem que ter em conta.
A GAM foi praticada, pelo menos, em parte, passando por um silvado, conforme se refere vastamente na fundamentação (por exemplo, quanto aos pontos 93 e 95 do provado). Estando todos os arguidos no campo de treinos todos eles sabiam que os formandos iriam, necessariamente, sofrer arranhões pelo contacto com as silvas, como está descrito quanto a alguns (ponto 94 do provado). Ou seja, era do conhecimento de todos os arguidos que, feito este exercício, os formandos estariam feridos em virtude do contacto do corpo com os espinhos.
Em conclusão: há que considerar provado que «à hora da formatura da tarde o Diretor da Prova, o arguido AA, que tinha conhecimentos específicos na área da motricidade humana, sabia que os formandos apresentavam estados de desidratação, que alguns tinham vomitado, outros perdidos os sentidos no período da manhã e foram sujeitos a rastejar nas silvas apresentando feridas» e que «o médico GG, que tinha conhecimentos específicos na área da motricidade humana, sabia que os formandos apresentavam estados de desidratação, que alguns deles tinham vomitado e que apresentavam feridas».
Para o não provado vai que «à hora da formatura da tarde que o Diretor da Prova, o arguido AA e o arguido GG soubessem que os formandos tinham sido sujeitos a bofetadas e pontapés».
- Quanto ao ponto 48 (que durante a instrução de tiro os formandos tivessem sido privados de água por decisão do arguidoDD e com a conivência dos arguidos BB e CC que assistiam à instrução) a fundamentação exarada foi de que «também por não ter sido apurado quaisquer factos donde decorresse que os formandos foram privados de água durante a instrução do tiro, por decisão deDD e conivência dos arguidos BB e CC, conclui-se que isso não se verificou. Com efeito, nenhum dos instruendos mencionou que tivesse ficado privado de água por qualquer ação daqueles, sendo que por alguns deles foi referido que não se tinha por hábito parar uma instrução para que fosse dada água. Além do mais, RR revelou que fora dado água a PPP quando este caiu no condicionamento do tiro, pelos Cabos, embora não soubesse concretizar qual deles».
Manifestamente o conteúdo deste ponto não se reporta à excepção – relativa ao PPP, que bebeu na circunstância de desmaiado – mas à regra – relativa ao ocorrido quanto à generalidade dos formandos - durante a instrução de tiro.
Já acima se referiu que da fundamentação resulta que a regra era de que durante os períodos de instrução não havia ordens para beber, como se reitera na fundamentação aduzida quanto a este ponto.
Resulta do Guião (apensos 01 e 19) a obrigação de acompanhamento permanente pela Companhia de Formação mediante a formulação de que «Durante a fase de execução da prova os Instruendos estão sempre sob controlo e vigilância permanente da Companhia de Formação».
No que concerne ao conhecimento dos factos pelo arguido BB, não obstante resultar de que fazia parte do grupo de instrutores, desconhece-se, ao certo, se ele cumpriu tal obrigação ou não, ou seja, se se esteve presente durante a instrução ministrada porDD e, consequentemente, se sabia do ocorrido.
Quanto a CC sabe-se que esteve nesta instrução, no decurso da qual colocou terra na boca do OO.
Então, o acima referido implica que este ponto passe para o provado na versão de que «durante a instrução de tiro os formandos não beberam água, por decisão do arguidoDD com a conivência do arguido CC que assistiu à instrução» ficando no não provado «que durante a instrução de tiro os formandos tivessem sido privados de água mediante a conivência do arguido BB».
- O ponto 49 (que JJJ e PPP não tivessem conseguido fazer flexões e tivessem perdido os sentidos na instrução de tiro e ficado prostrados no solo), contraria os pontos 120 e 121 do provado que dão nota que os dois não conseguiram fazer os exercícios e caíram, tendo sido necessário levantá-los. Se foram levantados era porque estavam caídos sem se conseguirem levantar, ou seja, prostrados no chão.
Assim prova-se que «JJJ e PPP não conseguiram fazer flexões, caíram e ficaram prostrados no solo na instrução de tiro», o que passará a constar do rol do provado, passando para o não provado «que JJJ e PPP tivessem perdido os sentidos na instrução de tiro».
- Quanto ao ponto 51 (que PPP e JJJ tivessem prosseguido a instrução contra a sua vontade, não tendo ambos sido hidratados) não foi vertida qualquer fundamentação. Este facto reporta-se à prova de tiro de combate, mais propriamente durante a explicação teórica sobre o tiro, conforme consta da acusação, matéria relativamente à qual consta, do ponto 121 do provado, que JJJ foi obrigado a prosseguir a instrução, depois de ter caído.
A falta de hidratação apenas se prova relativamente ao JJJ, que foi levantado para continuar os exercícios. PPP foi retirado da instrução, pelo que quanto a ele a questão da hidratação não se coloca sequer, porque se desconhece o que se passou depois desse momento.
A falta de hidratação para prosseguir com os exercícios resulta da regra imposta e seguida de que durante a instrução os formandos não eram hidratados.
Assim, passa para o provado que «JJJ prosseguiu a instrução de tiro de combate contra a sua vontade, não tendo sido hidratado» e fica no não provado «que PPP tivesse prosseguido a instrução de tiro de combate contra a sua vontade».
- Quanto ao ponto 53 (que as condutas descritas tivessem provocado sofrimento físico e psicológico e o arguidoDD soubesse que essas condutas provocavam nos formandos esse sofrimento) a matéria reporta-se à instrução de tiro.
Não há fundamentação para este ponto de facto, sendo que ele não se reporta apenas ao conteúdo do ponto 52 do não provado porque no 52 está em causa apenas o ofendido JJJ. O ponto 53 reporta-se «aos formandos», ou seja, a todos eles, e tem por referência o provado de 118 a 123.
Ora, é por demais evidente que o descrito sob esses pontos do provado causou sofrimento físico e psicológico aos formandos, aliás conforme referido no ponto 118, a que acresce o desgaste emergente de o JJJ ter sido obrigado a prosseguir a prova, nos termos que constam dos pontos 120 e 122.
Na conformidade, o ponto será eliminado do não provado e passará a constar do provado que «as condutas descritas de 118 a 122 provocaram sofrimento físico e psicológico nos formandos, o que era do conhecimento do arguidoDD».
- No que respeita ao ponto 54 (que RR, JJJ e PPP se encontrassem a cambalear e confusos) a fundamentação fornecida refere que «o Tribunal considerou não provado que RR, JJJ e PPP se encontravam a cambalear e confusos no momento em que o arguido GG os avistou, porque não foi feita prova que corroborasse estes sinais».
Ora não estando em causa, no teor do ponto, o momento em que o médico os avistou, a fundamentação exarada é desprovida de relação com o conteúdo da afirmação feita.
Resta, no entanto, a presunção de que o não provado resulta da ausência de prova em contrário, pelo que se mantém o ponto com o acréscimo decorrente da fundamentação, pelo que a sua redacção será «que RR, JJJ e PPP se encontrassem a cambalear e confusos no momento em que o arguido GG os avistou».
- Quanto ao ponto 55 (que quando o arguido GG ordenou a RR, JJJ e PPP que rastejassem, o tivesse feito com o propósito de agravar as lesões físicas e neurológicas dos ofendidos, bem sabendo que dessa forma potenciava os sinais de risco elevado de desidratação profunda e consequentes consequências orgânicas, nomeadamente, lesões renais e neurológicas, que poderão evoluir até a uma falência multi-orgânica e à morte, com elevado desprezo, ausência de responsabilização e revelando um total desrespeito pela situação de falência orgânica em que se encontravam os referidos ofendidos e com violação grave dos deveres do militar e disciplina militar) estão em causa assuntos distintos, a saber:
1. Que quando o arguido GG ordenou a RR, JJJ e PPP que rastejassem, o tivesse feito com o propósito de agravar as lesões físicas e neurológicas dos ofendidos;
2. Que soubesse que dessa forma potenciava os sinais de risco elevado de desidratação profunda;
3. Que soubesse que dessa forma potenciava consequências orgânicas de lesões renais e neurológicas;
4. Que essas lesões renais e neurológicas poderiam evoluir até a uma falência multi-orgânica e à morte;
5. Que tenha agido com elevado desprezo, ausência de responsabilização e revelando um total desrespeito pela situação de falência orgânica em que se encontravam os referidos ofendidos;
6. Que tenha agido com violação grave dos deveres do militar e disciplina militar.
Esta matéria tem por reporte o que consta do 124 do provado: «o arguido GG, médico, ordenou a RR, JJJ e PPP que rastejassem alguns metros em direção à ambulância, perguntando-lhes ainda se sabiam o que é que eram os ..., apercebendo-se do estado de exaustão e desidratação» depois de se ter considerado provado que (123) «face ao estado de fadiga e desidratação dos instruendos JJJ, RR, PPP, o arguido DD aos gritos, deu-lhes ordem para saírem da instrução de tiro e encaminhou-os na direção do arguido GG, que assistiu a tudo», sendo que o “tudo” consiste em que os «formandos JJJ e PPP, durante a explicação teórica sobre o tiro, não conseguiram efetuar os exercícios, e caíram», «ambos foram levantados e JJJ foi obrigado a prosseguir a instrução» e o «instruendo JJJ quando estava em frente ao alvo para efetuar o tiro, continuava a sentir-se muito confuso, debilitado e muito enfraquecido, motivo por que colocou o joelho em terra para chamar à atenção dos instrutores».
A fundamentação exarada foi de que «De igual modo não ficou provada a intenção por parte do arguido GG de lhes provocar lesões ou agravar quaisquer lesões que estes pudessem ter, nem sequer sido isso referido por qualquer uma destas testemunhas. Antes pelo contrário, ficou provado que aquele os encaminhou para o local onde se encontrava a equipa sanitária para que fossem assistidos, tendo-lhes ordenado que se levantassem, assim que tomou conhecimento de que não tinham almoçado, denotando preocupação com o seu estado. Além do mais, não consta dos elementos clínicos constantes dos autos relativos a estes três instruendos, ou sequer por aqueles foi dito, que tivessem sofrido lesões neurológicas. Também não ficou demonstrado existir qualquer correlação entre o facto de aqueles terem rastejado alguns metros por ordem do arguido GG e o terem ficado desidratados, até porque não foram alegados factos suscetíveis de concluir que a desidratação tenha resultado desse acto.
Acresce ainda que os formandos foram categóricos em afirmar que assim que foi comunicado ao arguido GG que não tinham almoçado, este os mandou levantar e dirigir-se para ao pé da ambulância. Isto mesmo foi asseverado pelo próprio arguido GG quando prestou declarações»
Começando pelo fim, o que consta do ponto 6 é conclusivo porque implica apreciação de normas aplicáveis à conduta, pelo que terá que ser excluída essa parte da longa frase de não provado.
Quanto ao ponto 1 a fundamentação vai buscar elementos estranhos e posteriores à conduta em causa para a justificar, o que é inaceitável.
A questão está em saber qual a intenção do arguido (no momento em que ordenou a dois indivíduos exaustos, desidratados, cheios de calor que, depois de terem demonstrado incapacidade para executar os exercícios - que também os levariam ao sucesso de completar o curso, que almejavam - foram encaminhados para um médico, pelo instrutor, que percebeu a gravidade do respectivo estado de saúde) ao obrigá-los a rastejar em direcção à ambulância que os levaria à enfermaria, destinada ao acolhimento dos casos mais graves. E a resposta só pode ser uma: crueldade.
A conduta do arguido equivaleu à exigência de um sacrifício (algo exigido em condições de manifesta incapacidade) arbitrariamente estabelecido (na medida em que consistia num exercício não previsto no Guião) sem fins terapêuticos (o arguido é médico e era nessa qualidade e na de chefe da equipa sanitária que fazia parte da formação).
É evidente que o único fim susceptível de ser visado com a actuação do arguido foi a de humilhar, provocar novas lesões e/ou agravar as que, visivelmente, já tinham. Essas lesões, sendo neurológicas, eram físicas.
É da experiência comum que esta conduta agravaria o estado de elevada desidratação, que foi a causa concorrente com o calor e o esforço físico para a queda dos instruendos no solo, e eram do particular conhecimento do médico as consequências do agravamento de um tal estado de saúde, que está demonstrado nos autos - determinou lesões renais e neurológicas, falência multiorgânica e em dois casos, morte.
7. Todos os instruendos que foram internados por golpe de calor apresentaram os mesmos sintomas aqui referidos quanto a estes arguidos, que depois agravaram atingindo inclusivamente situações de rabdomiólise. Estava, como esteve, fora do controlo efectivo desde arguido a evolução das doenças causadas por calor, esforço físico e desidratação pelo que corresponde à verdade dizer que que ele sabia que ao majorar a desidratação, o cansaço e o calor, potenciava consequências orgânicas de lesões renais e neurológicas; que poderiam evoluir até a uma falência multi-orgânica e à morte, como ocorreu no caso dos dois instruendos falecidos.
Tendo o arguido perfeito conhecimento dos efeitos da sua actuação na saúde dos instruendos, sendo a sua actuação funcionalmente infundada e motivada por pravidade, impõe-se o entendimento de que agiu com elevado desprezo, ausência de responsabilização e revelando desrespeito pela situação de falência orgânica em que se encontravam os referidos ofendidos.
Do exposto resulta que este ponto sai do não provado e passa para o provado com a seguinte redacção: « Quando o arguido GG ordenou a RR, JJJ e PPP que rastejassem, actuou com o propósito de agravar as lesões físicas e neurológicas dos ofendidos, bem sabendo que dessa forma potenciava os sinais de risco elevado de desidratação profunda e consequentes consequências orgânicas, nomeadamente, lesões renais e neurológicas, com desprezo, ausência de responsabilização e revelando desrespeito pela situação de falência orgânica em que se aqueles se encontravam ».
- Quanto aos pontos 56 a 61, a fundamentação dada não se contém em premissas que permitam as conclusões (sabe-se quando OOO desmaiou - 127 do provado - e o resto não tem relação com os factos não provados). Contudo, resta partir do princípio que nada se provou a respeito.
- Quanto ao ponto 62 (que a temperatura do ar fosse de 40,2º C e OO não tivesse conseguido processar as ordens que lhe eram transmitidas e que o estado confusional se devesse à exaustão pelo calor) a fundamentação refere que «Apesar de se ter provado que OO já não conseguiu efetuar o tiro e tinha dificuldades em manter-se em pé, não foi contudo possível apurar nem se fez prova relativamente aos sintomas sentidos pelo mesmo, não tendo sido possível concluir que aquele não conseguia processar as ordens que lhe eram transmitidas»
Está provado e consta da fundamentação da aquisição probatória que a prova começou às 14h10 (e não às 14h30 como consta do apenso 11) e que tinha a duração de 1h50 minutos - como as dos demais grupos - devendo terminar às 16 horas, como consta do referido apenso.
De igual modo, está provado (no ponto 130) que o ofendido OO após executar os exercícios de condicionamento — rastejar, rebolar, executar marcha hiperflectida e cambalhotas - chegou à linha de tiro e não conseguiu processar as ordens que lhe eram transmitidas, não conseguiu efectuar o tiro, por apresentar um elevado estado confusional face à exaustão pelo calor, que se manifesta por sede intensa, tonturas, ansiedade, fadiga e um estado de desidratação profunda, para além de apresentar dificuldades em manter-se de pé.
Este ponto reporta-se ao artigo 160 da acusação, que é relativo ao momento em que OO chegou à linha de tiro, não tendo conseguido efectuá-lo.
Se a prova começou às 14h10 e se se prova que OO só chegou à linha de tiro depois de executar os exercícios de condicionamento - rastejar, rebolar, executar marcha hiperfletida e cambalhotas (ponto 130 do provado) – só com estes elementos não se pode fixar. com precisão, a hora da ocorrência, mas foi seguramente algum tempo depois do início da prova.
Quanto à não prova da temperatura o acórdão recorrido não dá qualquer explicação.
Contudo, verifica-se que, segundo o ponto 43 do provado às 14:00 horas a temperatura média em ... foi de 39.2°C e em ... de 37.3°C; às 15:00 horas a temperatura média em ... foi de 40.2°C e em ... de 38.3°C e às 16:00 horas a temperatura média em ... foi de 39.9°C e em ... de 38.9ºC, o que impede que se fixe a temperatura nos 40.2ºC, mas permite que se fixe a mesma na ordem dos 39º a 40ºC.
Está provado que, com a temperatura do solo e a do ar acima referidas, OO chegou à linha de tiro e não conseguiu efectuar o tiro, por apresentar algum estado confusional para além de apresentar dificuldades em manter-se de pé.
OO faleceu na sequência de um duro golpe de calor, que se caracteriza pela conjugação de situações de excesso de cansaço, calor e falta de hidratação. Desde o momento em que demonstrou os supra-referidos sintomas não fez quaisquer outros exercícios e foi internado. É da experiência comum, então, que os sintomas apresentados quando adoeceu se deviam já à exaustão, ao calor e à desidratação.
O que se queira significar com o não conseguir processar informações é duvidoso. Não se percebe se seria não as conseguir compreender ou não as conseguir executar, pelo que, na dúvida se mantem o segmento no não provado.
O estado confusional do instruendo consta do provado nos pontos 130 e 132.
Em face do exposto, há que levar ao provado que: «a temperatura do ar rondava os 39º/40ºC e o estado confusional de OO devia-se à exaustão pelo calor e desidratação» e ao não provado «que OO não tivesse conseguido processar as ordens que lhe eram transmitidas».
- A redacção dos pontos 63 (que o OO tivesse sido assistido pelo arguido SS, em campo aberto, sob um sol intenso e já apresentasse sinais de degradação neurológica e o arguido SS não lhe prestou assistência necessária) e 64 (que OO não reagisse) tem que ser situada no tempo, sob pena de não se entender e haver mesmo contradição entre o provado e o não provado quanto a este último ponto. Estes factos reportam-se ao momento seguinte à saída do formando da instrução.
Assim torna-se necessário precisar em cada um dos pontos esse momento, pelo que a respectiva redacção passará a constar dos seguintes termos: 63. «Que a seguir a ter saído da instrução, o OO tivesse sido assistido pelo arguido SS, em campo aberto, sob um sol intenso e já apresentasse sinais de degradação neurológica e o arguido SS não lhe prestou assistência necessária» e 64. «Que a seguir a ter saído da instrução, OO não reagisse».
- Quanto ao ponto 66 (que o arguido CC ao colocar terra na boca do OO fê-lo, bem sabendo que podia sufocar o ofendido e matá-lo) a fundamentação dada foi de que «também por falta de prova ou de quaisquer indícios que apontassem nesse sentido, o Tribunal considerou não provado que o arguido CC fê-lo bem sabendo que podia sufocar o OO e matá-lo. Esta inferência sustenta-se ainda nas declarações do perito LLL que efetuou a autópsia ao cadáver de OO, no relatório de autópsia médico-legal de fls. 973 a 987/1012 a 1026, no relatório de exame anatomopatológico de fls. 989 e no estudo histopatológico de fls. 990 a 991/1031 a 1032 e análises de fls. 992 a 994, 1027/1028, 1033 a 1035 dos autos, e ainda no teor do exame anatomopatológico junto a fls. 1029 a 1035 dos autos onde não consta a existência de terra nos órgãos daquele, tendo o primeiro afirmado que a morte não se deveu à ingestão de terra e que esta não foi encontrada em nenhum dos órgãos internos do OO».
Este facto tem reporte para o ponto 133 do provado com a redacção de que: «O arguido CC, aproximou-se do instruendo OO e colocou dentro da boca do mesmo, um punhado de terra que apanhou do chão, ao mesmo tempo que dizia "cospe lá agora, burro, pacação”».
O entendimento contido na fundamentação de que não foi encontrada terra nos órgãos do falecido está por demonstrar em absoluto, na medida em que consta do respectivo relatório de autópsia, a existência de «aspiração brônquica de material estranho», consistente com aí aludida, «presença dentro do lúmen dos ramos brônquicos de material estranho, em parte lamelar, em parte em forma reticulada e ainda de material consistente com origem alimentar» sendo que, por definição, a expressão “material lamelar” engloba espécies minerais como a grafite e as argilas. O achado, a ser relativo a decorrências da prova, o que também não está demonstrado, poderia ser derivado de aspiração de terra ou de pó, o que não se pode afirmar, mas também não é infirmável.
A actuação do arguido CC, ao colocar terra na boca de uma pessoa altamente desidratada, que se babava e cuspia, com evidente comprometimento neurológico e descontrole dos movimentos temporomandibulares - e inerente impossibilidade de coordenar tais movimentos no sentido de evitar a entrada de terra dentro boca ou de expulsar a que lá tivesse entrado - foi, em razão da experiência comum, apta a causar-lhe algum grau de sufoco. A terra tem efeito absorvente e foi, manifestamente, colocada para provocar uma maior secura na boca do instruendo, sabendo perfeitamente o arguido que ele estava em situação de elevada desidratação. Contudo, desta conclusão não se pode retirar, com a adequada certeza jurídica, que esse grau de sufoco fosse causa adequada de provocar a morte do instruendo.
Que lhe provocaria um agravamento sensível do estado de saúde, não temos dúvidas, tal como não teve o enfermeiro SS, que tratou de a limpar imediatamente. Realmente valeu ao instruendo, na oportunidade, a presença e a presença de espírito do enfermeiro, que lhe tirou a terra da boca, assim conseguindo anular as consequências prováveis da actuação do arguido.
Agora, o salto para o perigo de morte é que se considera excessivo e não fundamentado, enquanto conclusão que se imponha em resultado da aplicação das regras de experiência comum à escassez dos factos provados quanto às efectivas condições em que o acto foi praticado. Para esse risco não é indiferente o facto de, na altura, a terra ter entrado, ou não, na boca do instruendo (ou ainda, de ele ter a boca aberta ou fechada quando a terra o atingiu), tal como a quantidade que possa ter entrado, mas tudo isto são factos que se desconhecem ou não se podem considerar assentes (repare-se que há uma testemunha que diz que a seguir à actuação de CC ele se engasgou, o que aponta para a entrada de terra na boca, o que é insuficiente para prova relevante quanto à questão em apreço).
Não há, portanto, prova firme, segura e sólida para considerar que a intenção de CC fosse sufocar e matar o ofendido, ou que o arguido tenha admitido a possibilidade de provocar lesões que lhe causassem perigo de morte, ou sequer que essa sua actuação pudesse ter como consequência, necessária ou adequada, provocar um perigo de morte ao ofendido.
Do ponto 427 do provado consta que o arguido CC ao colocar terra na boca de OO, quando o mesmo já apresentava desidratação, bem sabia que ofendia o corpo deste e lhe causava mal-estar, o que quis, o que contraria manifestamente o ponto 66 do não provado, reportado à mesma ocorrência.
Os factos contidos no ponto 427 extraem-se claramente de toda a factualidade anterior, segundo a qual os formandos, entre os quais OO, estiveram sem beber desde o fim da marcha (em que foram autorizados a beber 3 a 4 tampas de cantil, o que corresponde a um máximo de 1 dl) até ao fim da instrução TCBI, que terminou às 10h20m, altura em que no máximo beberam novamente 1 dl, o que perfaz um período de tempo de exercícios sob um calor extremo (que para ser percepcionado por um adulto não precisa de ser medido por um termómetro) durante sete horas. A isto acresce o facto de ter havido formandos sem dormir, desconhecendo-se se foi o caso do OO.
Quando o arguido atira o punhado de terra para a boca do OO, no decurso da instrução da tarde, já tinham desmaiado vários instruendos, desde a instrução da GAM, que começou às 10h30m ((MMM, PPP, NNN e JJJ), já havia instruendos na enfermaria a soro, que não voltaram mais à instrução (LLL e NNN - pontos 107 e 108 do provado), RR tinha sido posto à sombra e molhado, porque o estado de desidratação já não aconselhava sequer a que bebesse, naquela altura (102 e 103 do provado), e só 4 instruendos tinham conseguido chegar a almoçar, sendo que desses 4 apenas 2 comparecerem na formatura da tarde, entre os quais OO (114 do provado). Ou seja, à hora a que ocorreram os factos a equipa estava claramente exausta, desidratada, a precisar de assistência clínica.
O arguido, enquanto instrutor da prova, acompanhou o grupo de graduados desde a chegada ao Campo de Tiro ... - o que resulta profusamente contido no provado desde o ponto 70 ao 151.
Viu os instruendos caírem de exaustão, sabendo perfeitamente - como qualquer cidadão comum colocado em idênticas circunstâncias, porque é da experiência comum - que essa exaustão resultava da conjugação do esforço físico exigido pelos exercícios, com o calor anormal que se fazia sentir e a falta de hidratação. O calor e o cansaço atenuam-se com hidratação - o que é um facto de conhecimento notório, sendo exclusivamente esse o tratamento dado aos enfermos - e os formandos tinham sido privados da hidratação mínima prevista no guião da prova (também por ordens suas), desde madrugada, durante 7 horas consecutivas, com exercícios extenuantes.
Mas mais do que conhecimentos emergentes da experiência comum, o arguido tinha necessariamente especial conhecimento dos sinais de desidratação, porque lhe era exigido, como aos demais formadores, uma especialíssima atenção a esse aspecto, conforme consta do Guião da prova.
Segundo a lógica comum qualquer exigência é consequência do reconhecimento da capacidade de ser correspondida, o que em termos militares se traduz em que essa exigência correspondia à firme noção da hierarquia de que os formadores designados tinham conhecimentos adequados à prossecução dos fins visados, o que aliás, quanto ao arguido, está ainda escudado no longo percurso militar e de formador que detinha, relatado essencialmente nos pontos 533 e 534 do provado. O arguido, enquanto formador de outros cursos e militar experimentado, tinha necessariamente a formação adequada para corresponder às exigências de prevenção sobre a manutenção da saúde, designadamente a hidratação e alimentação dos formandos, que eram feitas nos sucessivos guiões que regiam as provas em que participou.
Consta do Guião do ....º Curso ..., que foi o guião aplicado neste curso e foi efectivamente distribuído aos instrutores, que: «o controlo do acesso à água constitui essencialmente um elemento de ação psicológica...» (ponto 55 do provado) e que «o reabastecimento de água e hidratação são alvo de especial atenção por parte dos instrutores (acompanhamento presencial), no sentido de garantirem que os instruendos se alimentem às horas das refeições e se hidratam (essencialmente ao longo dos períodos de instrução)» (ponto 56 do provado) e consta das normas Gerais de Segurança na parte respeitante à GAM a imposição de: «ter permanentemente em atenção o grau de fadiga dos instruendos através da detecção dos sintomas corporais» (ponto 92 do provado), o que é uma regra de cuidado extensiva a toda a prova.
Mais consta do provado que arguido CC privou os formandos de beberem água durante o pequeno almoço, apesar de saber que lhes deviam ser garantidas alimentação e água (ponto 79); os arguidos AA, MM, BB e CC sabiam que a hidratação ao pequeno-almoço dos formandos era essencial e fazia parte do plano de hidratação do Guião entregue (ponto 80); e que pós a GE, os formandos não tiveram intervalo e o arguido BB, não lhes deu ordem para beberem água, apesar do calor que já se fazia sentir, sendo que o arguido CC sabia que os formandos não tinham bebido água ao pequeno-almoço (ponto 83), o que se traduz no conhecimento, por parte do arguido, de que os formandos se encontravam num estado de desidratação que ultrapassava em muito a função de elemento de acção psicológica a que estava destinada e que era causa, ou concausa, das quebras na saúde que a maioria dos instruendos vinha sofrendo.
Em face do exposto dúvidas não temos de que as regras de experiência comum, aplicadas à questão dos sinais de falta de hidratação do OO que, quando o arguido lhe coloca terra na boca, impõem que se considere que ele sabia, porque tinha que saber enquanto pessoa normal, que o formando estava exausto pelo exercício, calor e desidratação, o que, além do mais era evidente pelos sinais que apresentava de desorientação e até falta de força para se manter em pé e que tinha feito um esforço enorme para chegar àquela fase da prova, onde muitos outros não chegaram. Tal conhecimento não contende, no entanto com a inviabilidade de se puder dar como provado o acima referido perigo de morte.
Impõe-se, assim, que se passe que: «o arguido CC ao colocar terra na boca do OO fê-lo sabendo que, como consequência directa e necessária da sua conduta, agravava o estado de desidratação e mal estar do instruendo», mantendo no não provado que «o arguido CC ao colocar terra na boca do OO fê-lo, bem sabendo que podia sufocar o ofendido e matá-lo».
- No que respeita ao ponto 67 (que OO apresentasse sinais evidentes de lesões neurológicas graves e desidratação) ele reporta-se à matéria do ponto 166 da acusação, ou seja, ao momento em que o instruendo tentou subir para o veículo e não conseguiu, o que corresponde ao episódio descrito de 135 a 150 do provado.
O Tribunal recorrido refere isto mesmo, na fundamentação da aquisição probatória: «Este episódio foi corroborado por PPP que elucidou, que foi um dos que ajudou o OO a subir para a viatura porque, inicialmente, aquele teria pedido ajuda por não conseguir levantar-se do local onde estava sentado, tendo havido necessidade de o irem buscar. Afirmou que aquele estava lúcido e lhe pediu ajuda, não se recordando deste ter caído. Colocaram-no na viatura, tendo ficado deitado no meio desta, com a cabeça nas suas pernas. Recorda-se de ter visto a sua cara mudar de expressão, como se estivesse a ter um AVC. Os maxilares ficaram duros e os olhos revirados. Pôs-lhe água na boca, mas o OO já não respondia embora tentassem falar com ele. A determinada altura, tentaram abrir-lhe a boca para a língua não enrolar e para lhe darem água, mas ele não deixava. Teve então a iniciativa de colocar uma tampa do cantil na boca com o intuito de impedir que OO enrolasse a língua. Não se recorda de o ter ouvido a gemer. Inicialmente o arguido CC ia na cabine com o motorista, mas a determinado momento a viatura parou e o arguido veio para a parte de trás. A testemunha terá chamado a atenção ao arguido CC de que o OO não estaria a sentir-se bem e que parecia que estava a ter um AVC. Este abriu os olhos ao OO para ver como estava, mas não se recordava do que teria dito.
Explanou ainda que quando chegaram à área do bivaque, o OO continuava sem falar e já não estaria consciente, mas tremia. Quando a viatura parou e ajudaram o OO a desembarcar este ficou com a equipa sanitária que entretanto foi chamada.
JJJ contou que durante a viagem o OO começou a revirar os olhos e o PPP colocou-o em cima das suas pernas, ao mesmo tempo que o ia chamando, mas aquele nunca teve qualquer reação. Afirmou ainda que o MMM tentou abrir-lhe a boca para que ele não enrolasse a língua. A determinada altura a viatura parou e o arguido CC entrou, tendo o PPP dito-lhe que o OO não estava bem, ao que aquele ter-lhe-á perguntado se ele era enfermeiro. Frisou que, durante o trajeto, o PPP estava muito preocupado com o OO e dizia que o que se estava a passar, também tinha visto a acontecer ao seu pai.
Deste modo, e não obstante PPP ter declarado que não se lembrava da resposta dada pelo arguido CC quando lhe transmitiu que o OO não estava bem e que vira a mesma situação suceder com o seu pai quando este teve um AVC, o Tribunal ficou convencido de que aquele o terá questionado se ele era enfermeiro, pela forma credível e isenta que RR e JJJ narraram os factos e referiram este episódio.
JJJ mencionou ainda que, quando chegaram à zona de bivaque, desembarcaram e o OO foi tirado da viatura e colocado no chão pelos camaradas, continuando o PPP a insistir que aquele estava mal.
Também KKK descreveu que ajudou o OO a embarcar na viatura porque aquele não conseguia andar e não se recordava dele falar. Esclareceu ainda que durante o trajeto, aquele nunca falou e embora achasse que não estava desmaiado, descreveu que ele "era como se estivesse mas não estava". Mais detalhou que durante o percurso aquele deitou uma aguadilha branca pela boca e depois espuma branca. À chegada à zona de bivaque, foi deitado no chão, na posição lateral de segurança.
Por sua vez RR contou que, quando pararam, o OO foi tirado da viatura por si e outros camaradas e foi posto no chão, atrás da viatura, em posição lateral por ideia dele. Depois, alguém o mandou ir buscar água para dar ao OO (alguém que terá chegado) e, quando voltou, já este estava a ser assistido por um soldado, que não sabe quem era. Referiu ainda que quando regressou, o corpo do OO estava a tremer, como se tivesse espasmos.»
A questão da desidratação está provada no ponto 427 do provado, está analisada e resulta da experiência comum, em face das concretas circunstâncias descritas.
Lesões neurológicas apresentam sintomas como confusão, dificuldade em falar e dificuldade em controlar os músculos, o que se prova que o ofendido padecia no momento em causa. Prova-se que o ofendido não conseguia movimentar-se, cambaleava, desfaleceu antes de entrar para a viatura e teve que ser ajudado a subir para ela pelos outros formandos, que o deitaram no chão em posição de segurança.
Isto revela que até os colegas do ofendido, esses sim, sem formação clínica nem experiência em socorrismo, perceberam o estado de degradação neurológica do OO e tomaram cuidados adequados à salvaguarda da sua saúde, na medida em que lhes era possível.
Até o MMM, que estava a sentir-se mal porque logo a seguir desmaiou, providenciou pelos cuidados mais básicos ao OO (pontos 146 e 148 do provado).
Prova-se que na viatura, portanto logo a seguir a ser lá colocado, o OO enrolava a língua e revirava os olhos, não falava, foi retirado da MAN por alguns camaradas e não reagia (pontos 135 a 150 do provado), o que não é mais do que uma sequência dos sintomas de graves lesões neurológicas - que era de tal modo constatável que os instruendos que o acompanhavam tomaram providências para que não sufocasse, colocando-lhe uma tampa de cantil na boca. Mais se prova que PPP chamou a atenção ao arguido CC de que o OO estava mal (dizendo que também tinha visto assim o seu pai quando este sofreu um AVC).
Do exposto resulta à evidência que o contrário do conteúdo do ponto 67 tem suporte probatório que o sustente, impondo-se a eliminação deste ponto desse rol.
Dúvidas não há de que o facto está provado, pelo que passará a constar desse rol na versão de que «OO apresentava sinais evidentes de lesões neurológicas e desidratação».
- O ponto 70 (que PPP tivesse desmaiado face ao estado de desidratação em que se encontrava) está relacionado com o ponto 148 do provado do qual consta que «durante o percurso, o instruendo MMM desmaiou no interior da viatura».
O desmaio deste formando, como os desmaios dos demais instruendos, resultou manifestamente do estado de desidratação em que todos se encontravam pelo que o ponto será retirado do não provado e acrescentado ao provado.
- A fundamentação do ponto 71 (que os instruendos tivessem chegado à zona do bivaque, cerca das 15H45 e que LLL e NNN se encontrassem na enfermaria desde as 12h00 e os ofendidos III e OOO desde as 15H30 e que PPP tivesse ido para a enfermaria logo quando chegou à área de bivaque) refere que «apenas se tendo apurado que os dois primeiros foram para a enfermaria após o término da instrução de Técnicas de Combate 2 e III e OOO foram diretamente da instrução de tiro, embora tivessem aguardado pelo seu término. Já relativamente a PPP este referiu que apenas foi para a enfermaria à noite»
O que releva não são as horas e minutos absolutamente precisos dos acontecimentos descritos, mas a altura em que ocorreram.
Ora, sabendo-se que a ... foi ministrada entre as 11h30 e as 12h20, e dizendo a fundamentação que LLL e NNN foram para a enfermaria após este exercício, fica assente que estiveram lá desde poucos minutos depois das 12h20.
Quanto a III e OOO, se foram para a enfermaria depois da instrução de tiro, que terminava às 16 horas, foram seguramente alguns minutos depois dessa hora.
Quanto a PPP só se sabe o que consta do ponto 356 (de onde costa que na enfermaria estavam cerca de 20 doentes, já que OOOOO e PPP só foram para a enfermaria após a interrupção da instrução nocturna) e da respectiva fundamentação, o que implica que tenha ido para a enfermaria após as 20h00.
Então temos que considerar provado que «LLL e NNN estavam na enfermaria desde minutos depois das 12h20, os ofendidos III e OOO desde poucos minutos depois das 16h00 e PPP após as 20h».
Continua no não provado «que os instruendos tivessem chegado à zona do bivaque, cerca das 15H45».
- No que respeita aos pontos 74 (que o arguido GG, médico, tivesse percepcionado que III, OOO, MMM, PPP, LLL, NNN e OO que se encontravam no interior da tenda, apresentassem graves lesões físicas e neurológicas, provocadas pela desidratação profunda e consequente consequências orgânicas, nomeadamente lesões neurológicas e lesões renais e hepáticas, que poderiam evoluir até uma falência multi-orgânica e à morte) e 75 (que o arguido GG não tivesse decidido em momento algum transferir os doentes em estado crítico para um Hospital), a justificação dada foi de que «tal decisão recaia sobre o arguido GG, enquanto responsável por aquela equipa. E quanto a este, veio a apurar-se que o arguido GG no final do dia determinou a transferência do PP e do OO para o Hospital das Forças Armadas, ainda que apenas no final do dia. Nas suas declarações afirmou que a opção de transferência para o Hospital das Forças Armadas, quer do OO, quer do PP, se deveu, não ao agravamento do estado dos formandos, mas por não ter havido melhoria. Relativamente a este e não obstante os conhecimentos detidos na área da medicina, não foram descritos quaisquer sintomas na acusação nem em julgamento foram trazidos ao conhecimento deste Tribunal, dos quais se pudesse concluir que III, OOO, MMM, PPP, LLL, NNN e OO padecessem de lesões físicas (para além dos arranhões) e neurológicas, as quais fossem observáveis e detetáveis naquele momento pelo médico e demais presentes na enfermaria».
O que se prova a respeito é o que consta do ponto 322 do provado, ou seja, que antes do jantar o arguido informou o enfermeiro para preparem PP e OO com vista à sua transferência para o HFARR, dando-lhes prioridade emergente e não urgente, por considerar que o estado dos mesmos se mantinha inalterado. E que depois disso se ausentou sem que tivesse transferido qualquer doente para o HFAR nem ido a qualquer hospital preparar a transferência dos doentes (ponto 324 do provado).
A justificação para este ponto do provado foi de que: «também foi com base no que o próprio declarou que o Tribunal concluiu que GG não procedeu à transferência de PP e de OO, nem se dirigiu a nenhum Hospital para preparar essa transferência, uma vez que afirmou que perto da hora do jantar deu essa indicação ao enfermeiro SS, tendo-se apurado que após isso saiu do Campo de Tiro ... ainda antes destes serem transferidos. No tocante a este último aspeto foi ainda considerado o testemunho de BBBBBB, médica do Hospital Militar que se encontrava de serviço nesta instituição no dia dos factos e que relatou que existe um número de telemóvel através dos quais os médicos contatam em caso de necessidade, tendo sido contatada telefonicamente pelo arguido GG para esse número, julga que pelas 14h, o qual mencionou que estava num treino do ..., onde havia casos de desidratação e que precisaria de enviar alguns doentes para o hospital, não se tendo deslocado pessoalmente ao hospital. Os termos em que depôs mereceu credibilidade ao tribunal e levou à convicção de que o arguido GG percecionou a necessidade de proceder à transferência de alguns instruendos para o hospital ainda durante a tarde, daí tendo realizado o primeiro telefonema para o Hospital das Forças Armadas».
Estando o provado devidamente fundamentado, e sendo o ponto 75 contraditório com esse provado, porque transferir e dar uma ordem para preparar uma transferência não são a mesma coisa – quanto muito são fases distintas da mesma operação - só se tendo provado ordem, há que considerar provado que «o arguido GG não determinou, em momento algum a transferência imediata de doentes em estado crítico para um Hospital», retirando o ponto 75 do não provado.
O que consta do ponto 74 resulta necessariamente das funções deste arguido a quem estava adstrita a competência exclusiva para determinar o transporte e, por consequência, internar doentes na enfermaria pelo que tinha que saber o estado em que se encontravam, e está implícito no telefonema que se prova que o arguido fez, cerca das 14 horas, a avisar que tinha doentes para enviar para o hospital, o que significa que sabia que havia instruendos com lesões ou doenças que não tinham condições para serem tratadas ao nível da enfermaria de campanha.
Este ponto reporta-se, no entanto ao momento anterior àquele em que o arguido abandona o local.
Ora se mandou preparar o OO e o PP para serem transferidos isso significa que percepcionou o estado deles, o que só era viável tendo-se deslocado à enfermaria onde estavam internados os restantes formandos supra indicados. Aliás, repete-se era da sua exclusiva competência o internamento na enfermaria, pelo que desde o primeiro internamento sabia quem lá estava e porque lá estava e que quando percepcionou o estado OO e o PP se apercebeu também do estado dos demais internados no mesmo local.
Desses formandos alguns vieram a ser efectivamente internados no HFAR – III e PPP e OO faleceu. Os restantes estavam na enfermaria, com sinais de desidratação grave, dos quais, em face do já referido, poderiam advir as consequências referidas.
Assim o referido ponto 74 será retirado do não provado e passa para o provado nos seguintes termos: «o arguido GG, médico, percepcionou que III, OOO, MMM, PPP, LLL, NNN e OO que se encontravam no interior da tenda da enfermaria, apresentavam lesões físicas e neurológicas, provocadas pela desidratação profunda que poderiam evoluir para lesões renais e hepáticas e até para uma falência multiorgânica e morte».
- Estes dois pontos surgem em conexão com o ponto 73 (que AA e MM soubessem que III, OOO, MMM, PPP, LLL, NNN e OO se encontravam no interior da tenda apresentando graves lesões físicas e neurológicas, provocadas pela desidratação profunda e consequente consequências orgânicas, nomeadamente lesões neurológicas e lesões renais e hepáticas, que poderão evoluir até uma falência multi-orgânica e à morte e nada deliberaram).
A fundamentação exarada foi de que «no diz respeito aos arguidos, AA e MM, constatou-se que não possuíam conhecimentos sobre o agravamento do estado clínico dos instruendos já que isso não lhes foi transmitido.
Estando os formandos internados na enfermaria, sob a alçada da equipa sanitária, não cabia aos arguidos MM e AA intervir, fosse quanto ao tipo, modo ou forma de tratamento ou quaisquer outros procedimentos relativos ao tratamento daqueles, nomeadamente quanto à sua transferência para o Hospital».
Esta fundamentação, a contrario, justifica a prova do ponto 74 do não provado, na medida em que imputa precisamente ao médico (enquanto chefe da equipa sanitária) o conhecimento (e a responsabilidade) do que se passava na enfermaria.
A fundamentação transcrita não justifica a consideração dos factos como não provados na medida em que não está em causa o agravamento da situação clínica dos internados, mas o estado deles. Muito menos se cuida de saber a quem cabia decidir do tratamento clínico a dar-lhes, o que era da exclusiva competência do corpo clínico, mormente do médico.
Estes arguidos não tinham conhecimentos clínicos, mas sabiam, como os demais formadores, que do conjunto do calor, do esforço físico exacerbado e da desidratação – como consta do guião e se prova que sucedeu – podem resultar graves lesões físicas e neurológicas que pode até determinar sérias lesões permanentes (neurológicas, renais e hepáticas) e até a morte. A carreira de AA implica mesmo especial formação e conhecimento prático dessa realidade (pontos 477 a 481).
A chamada telefónica de AA para QQ demonstra conhecimento do estado caótico em que se encontravam inúmeros formandos cerca das 14 horas e preocupação com as consequências da continuação da prova naquelas condições. Cerca de duas horas depois e exercícios cumpridos restavam, no máximo, dois formandos em actividade, o que tinha que ser do conhecimento deste arguido, tanto que resolveu assumir a ordem de parar a prova.
MM, ouvido pelo arguido AA sobre a ordem de parar a prova, pronunciou-se no sentido de não prosseguir a prova tendo em conta as exigências das instruções programadas (pontos 309, 311 e 458) o que significa que sabia do estado clínico dos instruendos.
Que os estes dois arguidos nada deliberaram (deliberar é tomar uma decisão) até cerca das 16h para impedir as consequências danosas na saúde dos formandos, também é verdade.
O que não se retira do texto do acórdão recorrido é que AA ou MM soubessem da identidade dos formandos que estavam na tenda da enfermaria, sendo que o ponto se reporta a instruendos do grupo dos graduados.
Ou seja, impõe-se a passagem para o provado de que «AA e MM sabiam que havia formandos do grupo de graduados que se encontravam no interior da tenda apresentando lesões físicas e neurológicas, provocadas pela desidratação e consequente consequências orgânicas, que poderiam evoluir até uma falência multiorgânica e à morte, e nada deliberaram».
- No que concerne ao ponto 76 (que o 1.º Grupo (P1) tivesse sido autorizado a beber cerca de 2 a 3 tampas de água do cantil (cerca de 64 ml a 96 ml, muito menos que metade de uma garrafa de água de 33 c1) há que situar a afirmação, que segundo a fundamentação se reporta a durante ou após a marcha feita à chegada à ..., o que é relevante para se perceber de que momento concreto da prova se está a falar.
Assim a sua redacção passará a ser de «que o 1.º Grupo (P1) tivesse sido autorizado a beber cerca de 2 a 3 tampas de água do cantil (cerca de 64 ml a 96 ml) durante ou após a marcha».
- O ponto 79 (que os arguidos MM e ZZ tivessem aceite que os formandos fossem privados de parte da ração de combate prevista para o pequeno-almoço e que o arguido MM tivesse por função, supervisionar a hidratação e a alimentação dos formandos) reporta-se a dois factos distintos.
Quanto ao primeiro foi explicada a ausência de prova.
Quanto ao segundo verifica-se que a afirmação do não provado está em clara contradição com as obrigações acometidas a todos os formadores, referidas nos pontos 56 e 57 do provado, que correspondem a instruções contidas no guião da prova para que a qual a fundamentação da aquisição probatória remete, e com o disposto no ponto 173 do provado, de que «o arguido MM - Comandante da Companhia e responsável por garantir a segurança de todos os formandos».
Na conformidade, apenas a segunda parte do ponto 79 será excluída do não provado e passará para o provado nos seguintes termos: «o arguido MM tinha por função, supervisionar a hidratação e a alimentação dos formandos».
- Quanto ao ponto 80 (que após a instrução de ..., os formandos tivessem tido cerca de 10 minutos de intervalo) o contrário resulta da conjugação do disposto nos pontos 161 a 164 do provado, devidamente fundamentado, e redunda no cumprimento dos horários previstos no guião, que implicavam 10 minutos de intervalo entre cada treino, pelo que a fundamentação dada de que nenhuma das testemunhas se referiu a isso é inócua. Nessa medida será retirado do não provado e passará para o provado com a seguinte redacção: «Após a instrução de ..., os formandos tiveram cerca de 10 minutos de intervalo».
- O ponto 87 (que OOOO não tivesse conseguido efectuar tiro por não se encontrar em condições psíquicas, e que o seu estado de exaustão se devesse ao calor e à falta de água, e tivesse sido constantemente pressionado com empurrões e pontapés pelo arguido FFF para que continuasse, porque o arguido dizia que OOOO estava a "fazer ronha “) tem por fundamentação que «da prova produzida em audiência de julgamento não se extraiu que a razão de OOOO não ter logrado efetuar o tiro se deveu ao facto de não se encontrar em condições psíquicas para o fazer, uma vez que apenas foram apresentadas motivações de natureza física. Quanto às causas do sucedido, não foi igualmente produzida prova quanto às mesmas, nomeadamente que a exaustão de OOOO se devesse ao calor e à falta de água».
Dando por reproduzido tudo o que acima se disse quanto à causa das lesões apresentadas por todos os doentes, é de considerar provado que em OOOO a causa do estado de exaustão fosse o calor e a falta de hidratação, em conformidade com o que consta provado no ponto 178, pelo que este ponto passará a conter-se no não provado na versão de «que OOOO não tivesse conseguido efectuar tiro por não se encontrar em condições psíquicas, e que tivesse sido constantemente pressionado com empurrões e pontapés pelo arguido FFF para que continuasse, porque o arguido dizia que OOOO estava a "fazer ronha “» passando para o provado que «a causa do estado de exaustão de OOOO devia-se ao calor, exercício físico e à falta de água».
- O ponto 90 (que o arguido MM durante a instrução de Tiro de Combate do....º Grupo (P1 ), tivesse visto que todos os ofendidos apresentavam sinais evidentes de exaustão pelo calor e feridas provocadas pelas silvas, nomeadamente os ofendidos OOOO, UUU, DDDD, QQ, JJJJ, TTT, HHHH e IIII) está necessariamente inquinado porque provando-se que acompanhou a instrução de Tiro de Combate do ... (em 172 do provado) durante a qual «SSS, TTT, UUU, QQ, VVV, WWW, XXX, YYY, ZZZ, AAAA, BBBB, LLL, DDDD, EEEE, FFFF, GGGG, HHHH, IIII, JJJJ, UU, KKKK, LLLL, MMMM, NNNN, OOOO, PPPP e QQQQ sofreram arranhões nas mãos, braços e pernas» (ponto 175 do provado), está necessariamente provado que o arguido assistiu ao que se passou durante essa instrução, ou seja, a tudo o que está descrito.
Impõe-se, portanto, a eliminação deste ponto do não provado passando-o para o provado na versão de que «o arguido MM durante a instrução de Tiro de Combate do ....º Grupo (P1), viu que todos os ofendidos apresentavam sinais evidentes de exaustão pelo calor e feridas provocadas pelas silvas, nomeadamente os ofendidos OOOO, UUU, DDDD, QQ, JJJJ, TTT, HHHH e IIII».
- A fundamentação do ponto 96 (que as feridas com que ficaram SSS, TTT, UUU, QQ, VVV, WWW, XXX, YYY, ZZZ, AAAA, BBBB, LLL, DDDD,EEEE, FFFF, GGGG, HHHH, IIII, JJJJ, UU, KKKK, LLLL, MMMM, NNNN, OOOO, PPPP e QQQQ tivessem sido consequência de castigos infligidos no tiro e que estes tivessem continuado a praticar exercícios no solo com as feridas expostas e tivessem sentido dores) foi de que «o Tribunal considerou que ficou amplamente demonstrado que os instruendos do Grupo ... dos ..., não obstante terem sofrido arranhões decorrentes de terem ido para as silvas e de terem rastejado sobre as mesmas, estes não infetaram nem de tal ação resultaram feridas, muito menos expostas, pelo que, embora tivessem continuado a praticar exercícios, nenhuma testemunha referiu ter sentido dores por esse motivo, tendo sido nessa medida considerado não provada tal matéria. Acresce que houve formandos que referiram que quando chegaram à ... trataram os arranhões com betadine, como foi o caso de BBBB que referiu ter ficado com arranhões e queimaduras ligeiras e DDDD que referiu terem ficado com pus e infetado, tendo por isso colocado betadine quando regressou à ..., tendo JJJJ salientado que todos os camaradas tinham o mesmo que ele, arranhões, contusões, hematomas, decorrentes das silvas mas também dos mais exercícios da ..., mas nenhum instruendo relatou a existência de feridas expostas. Na sua grande maioria afirmaram que aqueles se curaram por si, sem necessidade de tratamento. Dos seus depoimentos não foi possível discernir quais os arranhões que resultaram dos exercícios de rastejar, rebolar ou das silvas, nem as testemunhas descreveram terem sentido dores».
A argumentação é, de per se, contraditória: os formandos não tiveram feridas abertas, mas sofreram arranhões, contusões, hematomas e queimaduras, decorrentes das silvas, tendo um deles referido que as lesões ficaram com pus e infectadas.
A questão da artificialidade da distinção entre feridas e arranhões e feridas simples e feridas abertas ou expostas já foi tratada, dando-se aqui por reproduzida.
Prova-se que estes ofendidos foram por várias vezes cumprir castigos nas silvas, cuja consequência está já esclarecida: feridas e dores.
Prova-se ainda que pelo menos parte do percurso da GAM implicava passar por um silvado, pelo que as feridas e dores infligidas também se devem à execução do exercício.
Este ponto não refere que as feridas não tenham sido tratadas nunca, mas só que não o foram até terem terminado os exercícios, pelo que a parte da fundamentação relativa ao assunto também é inapta a justificar o não provado.
Assim resta concluir que se prova que «as feridas com que ficaram SSS, TTT, UUU, QQ, VVV, WWW, XXX, YYY, ZZZ, AAAA, BBBB, LLL, DDDD, EEEE, FFFF, GGGG, HHHH, IIII, JJJJ, UU, KKKK, LLLL, MMMM, NNNN, OOOO, PPPP e QQQQ foram também consequência de castigos infligidos no tiro de combate sendo que eles continuaram a praticar exercícios no solo com as feridas expostas e sentiram dores» retirando-se este ponto do provado.
- O ponto 97 (que tais condutas visassem agredir fisicamente os formandos, provocando-lhes lesões corporais, designadamente feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas, com grave violação dos procedimentos a adoptar durante o Curso, bem sabendo os arguidos DD, DDD, FFF, que as feridas provocariam graves infecções porque nem sequer eram tratadas e que o rastejar nas silvas não faz parte de qualquer exercício físico autorizado pelo Exército Português) está na sequência do ponto 96.
Também aqui o essencial da questão está tratado, sendo da experiência comum que as zonas mais atingidas terão sido, pelo menos, as que não estavam cobertas com o camuflado (diz-se “pelo menos” porque do relatório de autópsia de OO resulta que ele tinha escoriações a nível dos compartimentos internos dos joelhos, o que significa que houve perfurações no camuflado).
Não está provado que as feridas não fossem tratadas, porque da fundamentação do ponto anterior resulta que, pelo menos quanto a alguns formandos, o foram.
Quanto à questão de saber se o exercício foi, ou não, autorizado prova-se que no Guião se estabeleceu que o percurso do exercício GAM passava, em parte, dentro de silvas, mas sabe-se, pelos documentos relativos ao percurso contidos no Guião, para os quais a prova remete, que o local do exercício estava definido por aproximação, ou seja, poderia não implicar, necessariamente, a passagem pelas silvas.
A «grave violação dos procedimentos a adotar durante o Curso» é matéria conclusiva.
Assim impõe-se a passagem para o provado que «que tais condutas visaram provocar lesões no corpo dos formandos, designadamente feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas, bem sabendo os arguidos DD, DDD, FFF, que as feridas poderiam provocariam infecções e que o rastejar nas silvas não faz parte de qualquer exercício físico previsto nos Guiões.»
No não provado fica «que as feridas não tivessem sido tratadas».
- O ponto 99 (que ZZ e CCC não tivessem impedido os maus-tratos físicos por aceitarem a prática de actos violentos contra os formandos) reporta-se à instrução de tiro, conforme resulta do ponto 208 da acusação.
A fundamentação dada foi de que «não se deu provado que o arguido ZZ tivesse visto agressões uma vez que nenhum dos instruendos logra indicar que este estivesse junto ao local onde eram executados os exercícios de tiro e embora tivesse estado a assistir, o espaço onde a mesma decorria bem como o local onde o condicionamento era efetuado, distava do ponto onde se localizava a ambulância (conforme foi comprovado no exame ao local) e onde permaneciam os membros externos àquela instrução. Com efeito, após a entrega dos instruendos à equipa de tiro, os instrutores do Grupo e os Encarregados de grupo, retiravam-se para junto da equipa sanitária, permanecendo a alguma distância e onde decorria o condicionamento e o tiro, não sendo possível ao Tribunal formar a convicção de que aquele tivesse visão clara de todos os movimentos. Ademais, os instruendos ao serem formalmente entregues ao oficial de tiro, ao arguido DD, era este que passava a deter o controle sobre os formandos, não podendo o arguido ZZ intervir nessa instrução, para além de que, face à hierarquia estabelecida no exército, sendo o arguido ZZ Alferes e tendo arguido DD o posto de Tenente, a sua intervenção estava também por essa via limitada, pelo que, por tudo o exposto, o Tribunal formou a convicção de ZZ não podia e nem tinha obrigação de intervir também por não ter visionamento os alegados maus-tratos».
Esta fundamentação, que se reporta unicamente ao arguido ZZ, colide com o provado sob o ponto 176 que refere que «A esta instrução assistiram os arguidos ZZ - Oficial instrutor do 1.º Grupo (P1) e CCC» e com a respectiva fundamentação de onde consta que «Quanto ao facto de se ter dado como provado que ambos os arguidos ZZ e CCC assistiram à instrução de tiro o Tribunal fundamentou-se nos depoimentos dos instruendos que deram como presente este último na caixa da viatura que os transportou de e para o tiro, e nas declarações de ZZ que asseverou ter acompanhado o grupo pelo qual era responsável, conjuntamente com o arguido CCC. Explicou que o fez, dado ser a primeira vez que era instrutor do Curso ... e queria perceber os pormenores».
Havendo uma adequada fundamentação probatória quanto ao provado, de que ambos acompanharam o grupo, e reportando-se o não provado ao desconhecimento do que se passou, necessariamente fora do percurso da instrução de tiro e dentro de silvas, durante dois períodos de tempo forçosamente não insignificantes (rastejar não é um facto instantâneo), a única justificação dada - de que não foi possível ao Tribunal formar a convicção de que tivessem uma visão clara de todos os movimentos - é insuficiente para considerar o facto não provado.
De qualquer modo, o que está em causa não é a percepção, mas o facto de não terem impedido os maus-tratos físicos, no caso, as ordens de rastejar e se atirarem para as silvas, o que se prova que não fizeram porque eles ocorreram efectivamente.
A questão da aceitação de actos violentos, na situação, não é equacionável porque estando impedidos de intervir no decurso da instrução, a omissão não implica a referida postura.
Assim, passa para o provado que «ZZ e CCC não impediram as ordens dadas aos formandos de rastejar e de se atirarem para as silvas» e fica no não provado «que ZZ e CCC tivessem aceite a prática de actos violentos contra os formandos na instrução de tiro».
- No que respeita ao ponto 100 (que os arguidos AA e MM se tivessem apercebido do estado de fadiga extrema e desidratação dos formandos do 1.º Grupo (P1), e não tivessem providenciado pela hidratação dos mesmos, nem impedido a prática de castigos e actos violentos contra os ofendidos; que tivessem visto as feridas expostas que os formandos apresentavam e soubessem que podiam provocar infeções graves e, não obstante isso, tivessem autorizado que tais actos violentos fossem praticados em todas as instruções, violando gravemente os deveres do militar e disciplina militar) a fundamentação foi de que «a inexistência de factos e provas que permitissem inferir por parte do Tribunal que os arguidos AA e MM tivessem percecionado o estado dos formandos do ..., ou tivessem assistido a quaisquer actos de violência contra os instruendos, além de que relativamente ao primeiro arguido não houve qualquer referência à sua presença durante a execução de instrução de tiro daquele grupo, determinaram que o Tribunal considerasse não provada tal matéria. Com efeito, do exame ao local conjugado com os depoimentos, depreendeu-se que a instrução de tiro decorreu afastada do local das demais instruções, situando-se a zona onde os exercícios transcorreram num vale não arborizado, em cujo acesso ficava estacionada a ambulância, com a respetiva equipa sanitária e quem acompanhasse os instruendos, bem como os arguidos AA e MM quando estes a assistiam à instrução de tiro. Deste modo, o distanciamento entre o local dos exercícios e este ponto criaram no Tribunal uma dúvida razoável quanto à possibilidade destes terem noção do estado dos instruendos».
Que os arguidos não providenciaram pela hidratação dos formandos nem impediram a prática de castigos e actos violentos contra os ofendidos do grupo P1 e dos demais, está implícito porque se provou que estes factos ocorreram.
Ora, prova-se que MM acompanhou a instrução de tiro de combate e até interagiu com um dos instruendos que estava incapaz (pontos 172 e 173 do provado). Necessariamente este arguido viu o que se passou durante esta instrução, ou, de acordo com a fundamentação destes pontos do provado, pelo menos a partir de metade da mesma, o que implica que se tenha apercebido do estado de fadiga extrema e desidratação dos formandos do 1.º Grupo (P1), que tivesse visto as feridas expostas que os formandos apresentavam e soubesse que podiam provocar infecções graves.
Quanto a AA, desconhece-se o que terá sabido quanto a esta precisa matéria, pelo que os factos relativos a si se deverão manter no não provado, se bem que seja pouco verosímil que, num grupo em que todos estavam obrigados a reportar os acontecimentos ao Director da Prova, tendo para o efeito sido disponibilizados aparelhos de comunicação, conforme consta dos guiões, ele se tenha mantido toda a manhã na ignorância do que se estava a passar, até porque depois de almoço fez o contacto acima referido que implicava o conhecimento do estado geral de doença dos formandos.
Assim resta passar para o provado que «o arguido MM apercebeu-se do estado de fadiga extrema e desidratação dos formandos do 1.º Grupo (P1), e quer ele quer AA não providenciaram pela hidratação dos mesmos, nem impediram a prática de castigos contra os ofendidos, sendo que MM viu as feridas expostas que os formandos apresentavam e sabia que podiam provocar infecções » ficando no não provado «que o arguido AA se tivesse apercebido do estado de fadiga extrema e desidratação dos formandos do 1.º Grupo (P1)».
- Quanto ao ponto 103 (que o instruendo OOOO se encontrasse semiconsciente e com muitas dificuldades em respirar, prostrado no solo, sem conseguir levantar-se) ele tem reporte para o ponto 213 da acusação, que se reporta ao momento em que o formando foi retirado da viatura "MAN" e foi levado para a área bivaque. Ora resulta do provado, devidamente fundamentado, que «OOOO devido ao estado de fadiga e desidratação em que se encontrava teve que ser retirado por alguns formandos da viatura "MAN" e foi apoiado por estes para a área bivaque» (ponto 178) e «nessa altura o instruendo OOOO já não falava, estava com a respiração ofegante e descontrolada» (ponto 179).
Como a fundamentação apresentada para este facto - de que «por não ter sido feita prova que demonstrasse que OOOO estivesse num estado semiconsciente, prostrado no solo e sem conseguir levantar-se, o Tribunal deu como não provada esta situação, tendo inclusive tal facto sido infirmado pelas declarações de UU que contou que, por ordem do arguido ZZ, foi com o OOOO, amparando-o, buscar a ração deste» - não abrange as dificuldades em respirar, já antes provadas, este segmento tem que sair do não provado, pelo que a redacção do ponto passará a ser de que «o instruendo OOOO se encontrasse semiconsciente, prostrado no solo, sem conseguir levantar-se».
- O ponto 104 (que chegados à zona de bivaque, OOOO não tivesse enchido o cantil, nem tivesse feito a limpeza do armamento por continuar prostrado no solo, sem receber qualquer assistência, e que os arguidos ZZ e CCC se tivessem apercebido da grave situação clínica do OOOO e soubessem que era elevado o risco de desidratação profunda e de lesões renais e hepáticas) tem que ver com o que se passou na hora de almoço, relativamente à qual ficou provado que «OOOO, durante o almoço, ficou prostrado no solo» e «não conseguiu levantar-se, continuando prostrado no solo e o arguido ZZ não lhe providenciou assistência sanitária» (pontos 184 e 185 do provado).
A fundamentação foi de que «também por ninguém se ter referido a isso, antes ter sido infirmado pela testemunha IIII, o Tribunal considerou não provado que OOOO não tivesse enchido o cantil à hora do almoço. Com efeito, IIII declarou que o OOOO não se aguentava em pé e foram encher os cantis, tendo aquele sido amparado por ele e que julga que o arguido MM veio segurar o OOOO para que ele enchesse o cantil, o que foi confirmado por JJJJ que disse que ao almoço, no bivaque, o OOOO foi ajudado a ir à água e a regressar à área do almoço, salientando ainda que este permaneceu deitado ou sentado e os camaradas tentaram que ele comesse.
Também não se considerou provado que o OOOO não limpou a arma dado não ter havido qualquer prova que permitisse o Tribunal chegar a essa conclusão. Com efeito, as testemunhas referiram que o OOOO teve de ser ajudado quer na saída da camioneta, quer para chegar à zona de bivaque, mas nunca mencionaram que este não tivesse limpo a arma, pelo que o Tribunal não ficou com certezas relativamente ao aí afirmado. Relativamente a esta questão apenas se apurou que a testemunha UU teria, por ordem do arguido ZZ, ido buscar a arma do OOOO».
Ora, salvo melhor opinião, da fundamentação resulta provado precisamente que não foi o OOOO, por si, quem foi encher o cantil, mas que os outros instruendos o arrastaram até ao local onde se encheu o seu cantil.
Mais se prova que ele permaneceu prostrado no solo durante a hora de almoço, sem se conseguir levantar até perante o castigo dado aos outros instruendos (ponto 184 do provado) para “fomentar” que o fizesse, e sem ter recebido assistência, o que inviabiliza a dúvida sobre se limpou ou não a arma.
Provando-se que os arguidos ZZ e CCC estavam no local (pontos 180 e 184 do provado) é imperioso considerar que se aperceberam da situação clínica do mesmo e dos riscos que acarretava.
Assim este ponto passa para o provado nos seguintes termos: «Chegados à zona de bivaque, OOOO foi levado a encher o cantil, não fez a limpeza do armamento, por continuar prostrado no solo, sem receber qualquer assistência, e os arguidos ZZ e CCC aperceberam-se da situação clínica do OOOO e sabiam que era elevado o risco de desidratação profunda e de lesões renais e hepáticas decorrentes» eliminando-se o mesmo do não provado.
- Em consequência do atrás referido o ponto 107 do não provado passará a ter a seguinte redacção «que o formando OOOO não tivesse bebido e, apesar disso, o arguido ZZ tenha pressionado OOOO a levantar-se, desferindo-lhe número indeterminado de bofetadas na face».
- O ponto 112 (que durante a formatura da tarde - cerca das 14H00 - alguns dos formandos do ... não tivessem comparecido por se encontrarem exaustos pelo calor e desidratados, e que os arguidos MM, na qualidade de Comandante de Companhia, ZZ e CCC, tivessem conhecimento dos sinais de risco elevado de desidratação profunda e consequentes consequências orgânicas, nomeadamente, lesões renais e neurológicas, que poderão evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, como aliás veio a acontecer, e tivessem ignorado tais sinais, e o primeiro não dando instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos, ponderarem sobre uma menor intensidade da carga física e aumentarem os períodos de repouso durante as instruções do período da tarde) desdobra-se em múltiplas afirmações que têm que ser individualizadas.
A fundamentação dada foi apenas relativamente à presença ou ausência na formatura e consistiu em que «também por não ter sido feita prova nesse sentido, uma vez que nenhuma testemunha referiu ou logrou indicar quais os formandos do ... que não tinham comparecido à formatura, o Tribunal considerou não provado este facto. Apesar do Tribunal ter ficado convicto de que havia já por parte dos formandos alguma dificuldade de locomoção e destreza devido ao cansaço, não resultou, contudo, evidente que houve formandos do ... que não tivessem ido à formatura. A este propósito, TTT referiu que foram aos "bocadinhos" para a formatura porque já estavam cansados. Deste modo, não se deu como provado que OOOO já não tivesse ido à formatura das duas horas, até porque isso foi infirmado pela testemunha FFFF que declarou que aquele foi para a formatura, a andar, com a ajuda dos camaradas e ainda formou. Isto foi confirmado por outras testemunhas, como foi o caso de JJJJ o qual explanou que o OOOO precisou de ajuda para ir para a formatura, LLL que explicou que OOOO foi ajudado pelos camaradas, tendo ido amparado por estes para instrução de ..., XXX que asseverou que tiveram que ajudar o OOOO a ir para a formatura e por FFFF que confirmou que depois do almoço o OOOO foi para a formatura com a ajuda dos camaradas e ainda formou»
A explicação dada justifica a primeira afirmação do ponto.
Quanto ao entendimento de que os arguidos MM, na qualidade de Comandante de Companhia, ZZ e CCC tivessem conhecimento dos sinais de risco elevado de desidratação profunda e consequentes consequências orgânicas, nomeadamente, lesões renais e neurológicas, que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, como aliás veio a acontecer, e tivessem ignorado tais sinais, o assunto já foi analisado e tem que ser considerado provado.
Quanto à afirmação seguinte, de que o primeiro não deu instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos e não ponderaram sobre uma menor intensidade da carga física e pelo aumento dos períodos de repouso durante as instruções do período da tarde, isso resulta implícito do reconhecimento de que todos os instrutores cumpriram o plano de instrução contido no guião.
Assim fica no não provado «que durante a formatura da tarde - cerca das 14H00 - alguns dos formandos do ... não tivessem comparecido por se encontrarem exaustos pelo calor e desidratados».
Passa para o provado que «os arguidos MM, ZZ e CCC, tinham conhecimento dos sinais de risco de desidratação e consequentes consequências orgânicas, que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, como aliás veio a acontecer, e ignoraram tais sinais, o primeiro não dando instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos e todos por não terem determinado uma menor intensidade da carga física e o aumento os períodos de repouso durante as instruções do período da tarde».
- O ponto 113 (que o mesmo tivesse sido feito pelo Diretor da Prova, o arguido AA e pelo médico GG e que o primeiro tivesse conhecimentos específicos na área da medicina e ambos tivessem conhecimentos específicos na área de motricidade humana e soubessem que os formandos já apresentavam estados de desidratação profunda, alguns deles tinham vomitado, outros perdido os sentidos no período da manhã e tivessem sido sujeitos a maus-tratos físicos (bofetadas, pontapés, rastejar nas silvas), apresentando inúmeras lesões corporais) reporta-se ao grupo P1 e ao período da manhã.
Resulta da fundamentação que o arguido GG tinha conhecimento do estado dos geral formandos, tanto que pelas 14 horas ligou para o HFAR a avisar que ia internar formandos - sendo que o internamento só se justificava pelo reconhecimento de que a gravidade do estado dos mesmos não permitia tratá-los na enfermaria - e que logo no início da ... foi chamado para assistir OOOO, pelo que se prova que teve contacto com o grupo, pelas 14 horas, e viu o estado do mesmo (o que consta da fundamentação ao ponto 115 do não provado).
A questão dos conhecimentos específicos de ambos em motricidade humana está esclarecida.
O eventual desconhecimento do estado geral de saúde dos formandos, nesta altura, por parte do arguido AA não se pode considerar, quer em face do provado em 201 – em que se relata que ele próprio chamou o médico face ao estado de doença geral dos formandos - quer porque, tendo o médico que reportar ao director da prova toda a sua actuação, a feitura do referido telefonema para o HFAR e a intenção transmitida tinham que ser do conhecimento do mesmo, até porque ele próprio, na mesma altura, fez contactos com o seu superior hierárquico alertando-o para a inconveniência de manter a instrução nos termos planeados.
Contudo, isto nada nos diz sobre o conhecimento específico dos dois arguidos quanto à identidade cos formandos atingidos, ou seja, que pertencessem ao grupo P1.
Em face do exposto não se mostra adequada a fundamentação exarada de que «o Tribunal não deu como provado que o Diretor da Prova, arguido AA e o médico GG, enquanto ... e com conhecimentos específicos nas áreas da medicina e da motricidade humana, sabiam que os formandos do ... já apresentassem estados de desidratação profunda, que alguns deles tivessem vomitado, ou perdido os sentidos no período da manhã, ou que tivessem sido sujeitos a maus-tratos físicos (bofetadas, pontapés, rastejar nas silvas), ou até mesmo que apresentassem inúmeras lesões corporais, porque nenhuma prova foi feita desse conhecimento. Mesmo relativamente à desidratação que o arguido GG admitiu que todos os instruendos tinham, não se conseguiu apurar que os instruendos do Grupo de praças 1, apresentassem nesta altura uma desidratação profunda e, consequentemente, que este dispusesse de qualquer informação ou sinal por parte dos instruendos que lhe permitisse chegar a essa conclusão. Pelas mesmas razões não se conclui que fosse do conhecimento destes arguidos que algum instruendo tivesse vomitado, até porque os próprios formandos procuraram ocultar essa informação com receio de serem retirados da instrução.»
Em face do exposto prova-se que «o mesmo foi feito pelo Diretor da Prova, o arguido AA e pelo médico GG sendo que o segundo tinha conhecimentos específicos na área da medicina e ambos tinham conhecimentos específicos na área de motricidade humana e sabiam que os formandos já apresentavam estados de desidratação profunda e inúmeras feridas» e não se prova que «o arguido AA e o médico GG soubessem que alguns dos formandos do grupo P1 tinham vomitado, outros perdido os sentidos no período da manhã e tivessem sido sujeitos a maus-tratos físicos (bofetadas, pontapés, rastejar nas silvas)».
- No que respeita ao ponto 115 (que no decorrer da instrução de ..., o instruendo OOOO estivesse sempre prostrado no solo, ao sol, com a respiração ofegante, sem qualquer atenção por parte dos arguidos ZZ e CCC, os quais numa atitude desumana o mantiveram o ofendido numa situação de elevado desgaste físico e psíquico, bem sabendo que provocavam no mesmo sofrimento, dor, angústia e sentimento de humilhação perante os outros formandos) a fundamentação dada foi de que «relativamente ao que se passou com este durante a instrução de ..., o Tribunal deu como não provado que os instrutores não lhe tivessem dado qualquer atenção, mantendo-o numa situação de elevado desgaste físico, na medida em que nem OOOO referiu essa situação, nem nenhuma testemunha o declarou. Em bom rigor, não foram aduzidos factos em julgamento que permitissem materializar o alegado na pronúncia de que OOOO tivesse sido mantido numa situação de desgaste físico. Com efeito, a testemunha UU contou que aquele ainda conseguiu fazer alguma coisa mas depois ficou deitado no chão a dizer que não conseguia, tendo sido levado para o centro do círculo e lhe sido ordenado que fizesse flexões e ficasse em prancha, acabando por sair do círculo juntamente com outros três camaradas, os quais foram mandados deitarem-se à sombra de uma árvore que se encontrava próxima. Já o arguido ZZ declarou que, logo no início, o OOOO parava numa máscara e apercebendo-se que estava com sinais de desgaste reportou essa situação ao arguido MM, e passados três minutos o OOOO foi retirado da instrução por ordem daquele».
Este ponto do não provado reporta-se à ..., ministrada a partir das 14h10.
Consta do ponto 192 do provado que OOOO ficou prostrado no chão e foi retirado da instrução. Segundo a fundamentação da aquisição probatória, o arguido ZZ declarou que, logo no início, o OOOO parou numa máscara e passados três minutos foi retirado da instrução. UU contou que aquele ainda conseguiu fazer alguma coisa, mas depois ficou deitado no chão a dizer que não conseguia. Da conjugação das duas declarações resulta que essa “alguma coisa” foi dar início à formação, sendo que depois ficou deitado no chão e mais tarde foi retirado da instrução.
Do provado resulta que OOOO ficou prostrado no chão e foi retirado da instrução (192) com o fundamento de que «relativamente ao que se passou com o OOOO durante a instrução de ..., ficou o Tribunal convicto de que este teria ficado, ao fim de algum tempo, prostrado no chão, tendo sido depois retirado da instrução e socorrido».
Sendo que se prova que o instruendo, desde antes do almoço, que estava com a respiração ofegante e tento tal facto sido passado para o provado, precisamente por haver fundamentação em contrário, não há como não considerar provada a matéria aqui em causa, porque a situação de desidratação se foi agravando, naturalmente, e não lhe foi prestada qualquer assistência, o que também se prova.
A questão da atitude dos arguidos está colocada em termos amplos, reportada aos momentos anteriores à evacuação do ofendido. E, na verdade, ele apresentava desde manhã um elevado desgaste físico, que pelas suas características e em face das regras de experiência comum provoca sofrimento, dor e angústia, ou seja, também desgaste psicológico.
Face ao exposto dúvidas não restam de que se tem que considerar provado que «no decorrer da instrução de ..., o instruendo OOOO ficou prostrado no solo, com a respiração ofegante, sem atenção por parte dos arguidos ZZ e CCC, os quais mantiveram o ofendido numa situação de elevado desgaste físico e psíquico, bem sabendo que provocavam no mesmo sofrimento, dor, angústia».
Quanto ao sentimento de humilhação perante os outros formandos isso não decorre como consequência necessária do provado pelo que será mantido no não provado sob a seguinte redacção «que no decorrer da instrução de ... o instruendo OOOO se tenha sentido humilhado perante os outros formandos».
- O ponto 116 (que TTT sentisse muito calor no corpo e na cabeça e não conseguisse ver bem) não tem fundamentação e está parcialmente em contradição com o ponto 193 do provado, que refere que «TTT sentia muito calor, acabando por desmaiar e foi transferido para a tenda que servia de enfermaria, ficando a soro por se encontrar desidratado».
Se se prova que sentia muito calor isso significa que tinha calor no corpo, ou seja, para a questão basta-se o que está no provado. Fica não provado «que TTT não conseguisse ver bem» e passa para o provado que «TTT sentia muito calor no corpo e na cabeça».
- No que concerne ao ponto 125 (que o arguido MM tivesse por função supervisionar a hidratação e alimentação dos formandos e que ele e AAA tivessem aceitado que os formandos fossem privados de parte da ração de combate prevista para o pequeno almoço) é notório que a primeira afirmação corresponde às funções que lhe estavam especialmente adstritas, enquanto comandante da prova, pelo que passará para o provado que «o arguido MM tinha por função supervisionar a hidratação e alimentação dos formandos», ficando no não provado que «MM e AAA tivessem aceitado que os formandos fossem privados de parte da ração de combate prevista para o pequeno almoço».
- O ponto 128 é meramente conclusivo, pelo que será retirado do não provado.
- A ausência de prova a que se reporta o ponto 136 (que ainda durante a instrução de tiro em seco, o arguido DDD tivesse obrigado, por castigo, todos os formandos do Grupo ... a rastejar e a rebolar em cima de silvas, fotografadas a fls. 11 do Apenso 10, as quais provocaram feridas) refere-se apenas à questão de a ordem dada ser considerada castigo ou não. Resulta do 219 do provado que «durante a instrução de tiro em seco o arguido DDD ordenou a todos os formandos do ... que rastejassem e rebolassem em cima das silvas, as quais têm picos e provocaram arranhões».
A fundamentação dada foi de que «embora se tenha provado que os instruendos rebolaram e rastejaram em cima das silvas, e embora o guião seja omisso quanto a isso, da narrativa trazida a julgamento pelos formandos inferiu-se terem tais exercícios sido executados no âmbito da instrução inicial de tiro, o dito condicionamento, o qual consistia justamente em rebolar, rastejar, correr, etc. Deste modo, não se pode concluir que a ordem de rastejar em cima de silvas seja decorrência de um castigo infligido pelo arguido DDD. Foi essa a ideia transmitida pelos formandos, tendo WWWW afiançado que ao rastejar tiveram que passar em cima das silvas, mas que isso fez parte do condicionamento do tiro e não foi um castigo. O mesmo tendo sido referido por DDDDD que disse que foram às silvas no aquecimento para o tiro, tendo-lhes sido ordenado para rastejarem nas silvas. Em consequência ficou com alguns arranhões, nos braços e quando confrontado com as fotografias do Apenso 14, admitiu que ficou com arranhões idênticos às das fotografias mas não com quaisquer feridas similares às retratadas. Acentuou que o percurso nas silvas era normal no exercício. Além do mais, não proibindo que estes se desenrolem em cima de silvas, e as testemunhas referiram que rastejaram também em locais sem silvas, mas também tiveram que passar por estas».
Ora, não constando do guião tal instrução, sendo que os formadores estavam tão absolutamente adstritos ao cumprimento do Guião que se nem consideraram – nem os seus superiores hierárquicos - a sua adequação às especiais condições do dia, não há cabimento para considerar a ordem como restrita à boa execução das finalidades da prova, até porque mais nenhum grupo se referiu a que os exercícios de condicionamento tenham sido executados sobre silvas. Este foi um procedimento exclusivo para este grupo, com a agravante de que, conforme consta da fundamentação, o Guião não define sequer quais os precisos lugares onde devia decorrer cada um dos exercícios.
As declarações dos ofendidos em julgamento revelaram-se condicionadas, como resulta evidente de toda a fundamentação da aquisição probatória e como foi assumido pelo Tribunal recorrido.
As teses aventadas não têm qualquer verosimilhança face à experiência comum e às regras a que o arguido estava adstrito, pelo que apenas se pode entender a sua actuação como uma imposição arbitrária, um castigo (pelo menos) porque nem visou compensar qualquer falta dos formandos.
Assim passa para o provado a menção a que a ordem foi dada como castigo.
- O ponto 137 (tendo sido por receio que os instruendos rastejaram e saltaram por cima das silvas) está em estreita conexão com o ponto 138 (que na sequência de tal castigo os instruendos tivessem ficado com feridas que provocaram dores, tanto mais que continuaram a praticar exercícios no solo com as feridas expostas). Esta questão já foi objecto de análise, sendo que a conclusão retirada anteriormente se aplica, tal e qual, e é um reflexo do que está provado em 221.
Na conformidade resta retirar estes dois pontos (137 e 138) do não provado e dar como provado que «durante a instrução de tiro em seco, o arguido DDD obrigou todos os formandos do Grupo ... a rastejar e a rebolar em cima de silvas, na sequência do que os instruendos ficaram com feridas que provocaram dores, tanto mais que continuaram a praticar exercícios no solo com as feridas expostas».
- O ponto 139 (que o arguido DD tivesse decidido castigá-los e ao ordenar aos instruendos que rastejassem em cima das silvas, fê-lo com o propósito de os desgastar fisicamente, humilhá-los e provocar lesões corporais- feridas - como provocou) reporta-se ao fim da instrução de tiro, na sequência do provado em 222, 223 e 224 (que no final da instrução de Tiro de Combate, o arguido DD a pretexto de que a os exercícios efectuados pelos instruendos não tinham sido eficazes, ordenou-lhes que rastejassem, por cima das silvas; todos os instruendos foram de novo obrigados a rastejar pelas silvas por ordem do arguido DD que era coadjuvado pelos arguidos DDD e EEE, sendo que UUUU foi obrigado a saltar de cabeça para as silvas e foi empurrado para cima de outro instruendo que já estava com o corpo de lado a tentar proteger a cabeça e os olhos e os que hesitavam em entrar nas silvas eram empurrados para as silvas).
Aqui tem pleno cabimento a concepção de castigo, tanto mais que é isso mesmo a que se refere a fundamentação dada de que «Acresce que tais exercícios são habituais como forma de chamada de atenção para algo mal executado e como forma de recordar aos instruendos para que na próxima se aprimorem, pois trata-se de um grupo de militares cujo treino se destina a ser usado posteriormente em situações de confronto cujos erros podem ser fatais, pelo que, de acordo com os instruendos essa ordem foi tida pelos mesmos como meio de não esquecerem os aspetos que falharam e em momentos futuros terem maior acuidade» antecedida pela consideração de que «pelos mesmos fundamentos e não obstante se ter apurado que voltaram a rastejar sobre as silvas após o tiro por este ter sido incorretamente executado e por ordem de DD o qual era coadjuvado pelos arguidos DDD e EEE, o Tribunal não considerou que isso tivesse sido motivado pelo propósito de os desgastar fisicamente, humilhá-los ou provocar-lhes feridas e que aqueles tivessem aceitado rastejar sobre as silvas por receio, na medida em que, dos depoimentos prestados, foi notório que o fizeram por entenderem isso como sendo uma ordem, tendo percecionado o rastejar e rebolar como parte da instrução independentemente do local onde ocorria»
Em consequência do referido o conteúdo deste ponto será excluído do não provado e passará para o provado nos seguintes termos: «O arguido DD decidiu castigar os formandos e, ao ordenar aos instruendos que rastejassem em cima das silvas, fê-lo com o propósito de os desgastar fisicamente, humilhá-los e provocar danos no corpo- feridas - como provocou».
- O ponto 145 do não provado (de que os arguidos DD, DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, tivessem agido com o propósito de provocarem lesões corporais nos formandos, designadamente feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas idênticas às das fotografadas a fls. 3, 6, 7 e 8 do Apenso 14, porquanto a instrução de tiro de combate não prevê quaisquer exercícios em silvas, contra os formandos) tem por fundamento «que também não foi possível concluir ao Tribunal, face à prova produzida, que os arguidos DD, DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, agiram com o propósito de provocarem lesões corporais nos instruendos, designadamente feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas idênticas às das fotografadas a fls, 3, 6, 7 e 8 do Apenso 14, não se tendo extraído tal intencionalidade. Por outro lado, os locais onde eram executadas as instruções estava predeterminado, não sendo escolha dos instrutores ou dos encarregados de instrução que se limitavam a ministrar».
Esta fundamentação contraria o que acima foi referido quanto ao ponto 97 e a fundamentação do ponto 136 acima mencionada quanto à definição (ou melhor, não definição) dos precisos locais onde eram executados os exercícios.
Aqui temos reflectida novamente a questão da distinção entre arranhões e feridas, sem qualquer reporte para a realidade, porque ambos são sinónimos, quer na linguagem comum quer numa perspectiva clínica - em que a distinção que se faz é relativa à gravidade das feridas e não à noção de ferida.
Este ponto de facto prova-se quanto à acção dos três arguidos, relativamente às ocorrências anteriormente descritas, que se referem apenas a idas para as silvas ordenadas e executadas por arguidos DD, DDD e EEE. O seu conteúdo é uma decorrência resultante da experiência comum em face dos factos aí descritos.
Quanto à questão da identificação das feridas com as contidas nas folhas 3,6,7 e 8 do apenso 14, há que tomar em conta que dessas fotografias constam tanto feridas ligeiras – arranhões e escoriações - como faltas de pedaços de tecido. Só nessa medida é que se mantem no não provado a afirmação de que não há semelhança entre as feridas sofridas pelos formandos aqui em causa e aquelas aí contidas, porque a menção genérica pode ser errada.
Nada se prova quanto a FFF, GGG e HHH neste episódio, pelo que quanto a eles o ponto manter-se-á no não provado.
No mais, resta levar ao provado que «os arguidos DD DDD e EEE, agiram com o propósito de provocar lesões no corpo dos formandos, designadamente feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas, sendo que a instrução de tiro de combate não prevê a execução deste exercício nas silvas», e manter também no não provado «que as feridas provocadas nos formandos no decurso da instrução de tiro tenham sido idênticas às das fotografadas a fls 3, 6, 7 e 8 do Apenso 14».
- Quanto ao ponto 157 (que durante a formatura da tarde - cerca das 14H00 - alguns dos formandos não tivessem comparecido por se encontrarem exaustos pelo calor e desidratados, sendo que o arguido MM, na qualidade de Comandante de Companhia, AAA e LL tinham conhecimento dos sinais de risco elevado de desidratação profunda e consequentes consequências orgânicas, nomeadamente, lesões renais e neurológicas, que poderão evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, como aliás veio a acontecer, ignoraram tais sinais, o primeiro não deu instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos, ponderarem sobre uma menor intensidade da carga física e aumentarem os períodos de repouso durante as instruções do período da tarde) a questão que se coloca é tão-somente relativa à afirmação de que os arguidos MM, AAA e LL não tinham conhecimento dos sinais de risco elevado de desidratação profunda e suas consequências orgânicas e à falta de instruções aos formadores para aumentarem o consumo de água dos formandos, para ponderarem sobre uma menor intensidade da carga física e para aumentarem os períodos de repouso durante as instruções do período da tarde, porque a falta de comparência de alguns formandos já consta do provado, nos pontos 114 e 289.
Da fundamentação da aquisição probatória, quanto ao assunto, resulta que «também porque nenhuma prova ter sido feita quanto aos conhecimentos que os arguidos MM, AAA e LL possuíam sobre os sinais de risco de desidratação e respetivas consequências orgânicas, nomeadamente, lesões renais e neurológicas, o Tribunal conclui pela invalidade de tal afirmação».
A questão mostra-se analisada quanto a outras afirmações idênticas e o que foi dito tem aqui inteira aplicação.
O comandante da companhia, enquanto tal e pela sua experiência (pontos 500 e 502 do provado) e os restantes formadores nessa qualidade e também pela respectiva experiência (pontos 581 a 583 e 597 e 598) tinham necessariamente que ter conhecimento sobre os sinais de desidratação – e do respectivo risco – porquanto isso era uma exigência inerente às suas funções e ao bom cumprimento das ordens de segurança a que estavam adstritos pelas regras que constavam do Guião da prova, aliás comuns aos diversos Guiões contidos no apenso 19.
Que não foram dadas ordens para alteração dos exercícios e dos períodos de repouso resulta do provado relativamente aos pontos que descrevem as horas dos exercícios - que têm correspondência com o plano traçado - e de toda a fundamentação exarada reportada ao cumprimento escrupuloso do plano do curso.
Quanto à falta de comparência na formatura da tarde de alguns instruendos, visando todos eles ser admitidos nos ..., para o que teriam que ter aprovação na prova em curso, esse facto justifica-se, como resulta claramente do provado, pela exaustão provocada pelo excesso de esforço físico, de calor e de desidratação.
Assim impõe-se eliminar o ponto do não provado e passar para o provado que «durante a formatura da tarde - cerca das 14H00 - alguns dos formandos não compareceram por se encontrarem exaustos pelo esforço físico, calor e desidratados, sendo o arguido MM, AAA e LL tinham conhecimento dos sinais de risco de desidratação e respectivas consequências orgânicas que podem evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, como aliás veio a acontecer, e o primeiro não deu instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos, nem todos ponderarem sobre uma menor intensidade da carga física e aumento dos períodos de repouso durante as instruções do período da tarde».
- Quanto ao ponto 158 (que o mesmo tivessem feito o Diretor da Prova, arguido AA e o médico GG, e estes, como ..., tivessem conhecimentos específicos na área da motricidade humana, e o arguido AA tivesse conhecimentos específicos na área da medicina, e sabiam que os formandos já apresentavam estados de desidratação profunda, alguns deles vomitaram, outros perderam os sentidos no período da manhã e foram sujeitos a maus-tratos físicos (bofetadas, pontapés, rastejar nas silvas), apresentando inúmeras lesões corporais) ele está reportado ao início da formação no período da tarde.
A fundamentação limitou-se a referir que «o mesmo decorre relativamente aos conhecimentos do arguido AA pois nenhuma prova foi feita de que possuísse conhecimentos específicos médicos», o que é manifestamente insuficiente para concluir pelos restantes factos levados ao não provado.
A questão da prova dos factos aqui referidos coloca-se em termos semelhantes ao já referido quanto ao ponto 113, com a diferença de que aqui não está em causa a identidade dos formandos doentes, mas sim um conhecimento genérico sobre a situação de doença que afectavam muitos deles.
A questão dos conhecimentos específicos em motricidade humana, por parte de ambos os arguidos, e em medicina por parte do AA está apreciada, tal como a questão do conhecimento por estes arguidos do estado dos formandos, que o levou o médico a contactar o HFAR e o director da prova o seu superior hierárquico, pelas 14h.
O que se disse atrás quanto ao conhecimento sobre os maus tratos, nos quais se inclui o rastejar nas silvas, aplica-se, de onde resulta que, no que concerne a este grupo não há prova para considerar tais factos como provados.
Assim impõe-se levar ao provado que «o mesmo fizeram o Diretor da Prova, o arguido AA e pelo médico GG sendo que o segundo tinha conhecimentos específicos na área da medicina e ambos tinham conhecimentos específicos na área de motricidade humana e sabiam que os formandos já apresentavam estados de desidratação profunda e inúmeras feridas»
Mantém-se no não provado «que o arguido AA tinha conhecimentos específicos na área da medicina e que ele ou o arguido GG soubessem, no momento em que o grupo P2 iniciou a formação da tarde, que alguns dos formandos desse grupo tinham vomitado, outros tinha perdido os sentidos no período da manhã e tivessem sido sujeitos a bofetadas, pontapés e rastejar nas silvas, apresentando inúmeras danos no corpo .
- Quanto ao ponto 159 (que no decorrer da instrução de ..., VVVV, ZZZZ, TT, TTTT, AAAAA e RRRR tivessem caído e ficado prostrados no solo, porquanto sentiam dores no corpo, tonturas, visão turva e cãibras) ele é contrariado precisamente pelos pontos 243 a 245, fundamentados de forma adequada, que relatam que VVVV sentia-se com dores no corpo, tonto, com a visão turva e com cãibras, TTTT sentia-se com dores no corpo, tonturas, tinha visão turva e cãibras e RRRR já tinha dificuldades em ver com nitidez, acabando por desmaiar.
A fundamentação também não corrobora a afirmação porque refere precisamente que «também não se deu como provado que VVVV, ZZZZ, TT, TTTT, AAAAA e RRRR caíram e ficaram prostrados no solo por isso ter sido infirmado pelos próprios. Assim, TT apenas narrou que foi retirado da instrução e foi colocado à sombra, situação também confirmada por RRRR que, não obstante ter dito que caiu, contou que quando acordou estava debaixo de uma árvore e com ele estava um socorrista que lhe deu água. De igual modo VVVV contou que foi retirado da instrução e posteriormente levado para a enfermaria que fora montada para apoio à ...,
Também a testemunha TTTT referiu que VVVV ou o AAAAA, foram arrastados para ao lado, na instrução, porque já não conseguiam mais e CCCCC também narrou que houve camaradas que foram retirados da instrução, colocados debaixo de uma árvore e distribuída água»; «O Tribunal não deu como provado que AAAAA tenha ficado prostrado no solo durante a instrução de ... (Técnicas de Combate 2 ou "Carrossel") dado essa situação não ter sido reportada por ninguém, inclusive pelo próprio já que este contou que não se recordava de ter terminado o carrossel, mas asseverou que após o término desta instrução, foi para a área de bivaque onde permaneceu, negando que tivesse sido transportado para tenda que servia de enfermaria à .... Esclareceu que após terem arrumado o bivaque e quando embarcaram nas viaturas para regressarem à ..., queixou-se a um instrutor de dor de cabeça, tendo sido encaminhado para o posto médico do próprio Campo de Tiro ... e daí, após ter sido observado por um médico, para o Hospital das Forças Armadas.
De igual modo, por isso ter sido desmentido por TT, não se deu como provado que este tivesse ido para a enfermaria, na medida em que declarou que terminado o carrossel, dirigiram-se todos para a área do bivaque. Jantaram e dormiram até ao dia seguinte. Após terem acordado, fizeram uma instrução ligeira e uma pequena marcha até às viaturas. Não desmaiou, mas não sentia as pernas e por isso foi encaminhado pelo arguido BBB para a ambulância e desta para a ambulância civil do INEM, pelo Alferes ZZ, não tendo chegado a entrar na enfermaria existente no campo de tiro ....»
Ora, daqui resulta que RRRR disse que tinha caído e que não se recordava sequer de ter terminado a instrução e VVVV e AAAAA foram arrastados para o lado, o que pressupõe que estivessem caídos no chão.
Do exposto resulta que quanto a este ponto se prova que «no decorrer da instrução de ..., VVVV, AAAAA e RRRR caíram e ficaram prostrados no solo, porquanto sentiam dores no corpo, tonturas, visão turva e cãibras sintomas esses também sentidos por TTTT».
Fica a constar do não provado «que no decorrer da instrução de ..., ZZZZ e TT, tivessem caído e ficado prostrados no solo».
- Quanto ao ponto 167 (que os arguidos AA, MM e NN, que tinham por função, supervisionar a hidratação e a alimentação dos formandos, tivessem aceitado que os formandos fossem privados de parte da ração de combate prevista para o pequeno-almoço) o que se prova é que os arguidos referidos tinham por função, supervisionar a hidratação e a alimentação dos formandos, o que passará para o provado, quanto a este grupo (P3) mantendo-se o demais no não provado.
Assim não se prova «que os arguidos AA, MM e NN tivessem aceitado que os formandos fossem privados de parte da ração de combate prevista para o pequeno-almoço» e prova-se que «os arguidos AA, MM e NN que tinham por função, supervisionar a hidratação e a alimentação dos formandos».
- O ponto 169 (que os arguidos NN e DD tivessem privado os formandos de água e não tivessem adaptado a instrução às condições climatéricas) obteve a seguinte fundamentação «Por nenhuma testemunha ter referido que durante a instrução de tiro estivesse presente o arguido NN, deu-se como não provado a sua presença.
Já o facto de não se ter considerado que NN e de BBB tivessem que tomar atenção à instrução de tiro, teve como fundamento a circunstância de se tratar de uma instrução específica, ministrada pelo arguido DD e restantes instrutores e auxiliares de tiro, na qual apenas estes podiam intervir, passando os instruendos a estar sob o domínio, as ordens e orientações apenas destes últimos, a partir da sua entrega formal a este corpo de instrução.
A convicção do Tribunal que levou a considerar não provado que os arguidos NN e DD tivessem privado os formandos do ..., assentou no facto de não ter sido feita prova nesse sentido, já que quaisquer das situações particularizadas na acusação donde se pudesse extrair tal ilação, não foram comprovadas. Por outro lado, dos depoimentos e declarações prestados, o Tribunal formou a convicção que os responsáveis pelo controle à ingestão de água pelos formandos, eram os Comandantes e os Encarregados de grupo, visto que os instrutores das instruções específicas apenas intervinham na sua ministração, as quais decorriam sem interrupções, pelo que, salvo em situações excecionais, estas não eram interrompidas para que os formandos fossem autorizados a beber água. Além do mais, vários formandos deste grupo referiram que lhes foi autorizado beberem umas tampas após a instrução de Tiro, como foi o caso de FFFFF.
Quanto ao facto de não se ter provado a alegação de que os arguidos NN e DD não adaptaram a instrução de Tiro às condições climatéricas fundamentou-se no facto desta compreender uma panóplia de exercícios previamente definidos, como acima já se explicou, conforme se depreende da ficha de instrução ficha de instrução individual constante de fis. 101 a 107 do apenso 01 (e que consta também de fis. 119 a 122 do apenso 23), cabendo, por isso, aos instrutores apenas ordenar a sua execução. Acresce que, relativamente ao arguido NN, não sendo este instrutor de Tiro, não tinha competência e por isso, não podia intervir quanto ao modo de execução da mesma».
A referida fundamentação peca porque o período a que se reporta o ponto do não provado vai desde o início da prova até ao fim da prova de tiro de combate e, quanto a este período de tempo, prova-se, de forma fundamentada, que: «244.Finalizada a marcha, os formandos do 3.º Grupo (P3), do qual fazia parte o PP, não foram autorizados a beber água pelo arguido NN»;
255. Após a GE os formandos não tiveram intervalo e o arguido NN não lhes deu ordem para beberem água, apesar do calor que já se fazia sentir»;
278. Chegados à área de bivaque, o arguido BBB, deu ordens aos formandos para beberem tampas de cantil de água em quantidade não apurada».
Por outro lado, o entendimento aqui desenvolvido sobre quem recaía a responsabilidade de fornecer água aos formandos, eximindo dela os formadores, não tem suporte em facto nenhum, contraria o guião e bem assim aquilo que resulta do provado, de que eram os instrutores quem, de uma forma geral, permitia ou não o consumo de água após as instruções, ainda que de acordo com os limites decorrentes do máximo dos 3 litros por dia.
Quanto à não adaptação dos exercícios ao calor a fundamentação, na fundamentação da aquisição probatória confunde-se competência com execução, sendo que a matéria a que o ponto se reporta é apenas saber se foi feito, ou não.
Quanto à prova da não adaptação dos exercícios ao calor resulta provado da fundamentação exarada.
Confunde-se ainda, na fundamentação da aquisição probatória, instrução com vigilância da integridade física e saúde. O facto de os instrutores de determinada prova serem aqueles determinados apenas para dar essa específica formação não retira aos demais elementos do grupo de instrução, designadamente aos superiores hierárquicos, a responsabilidade que lhes estava acometida de verificarem o estado de saúde dos formandos, sendo que, necessariamente, estavam lá para agir enquanto hierarquia, ou seja, também para esse fim.
Assim resta a eliminação deste ponto do não provado e a sua passagem para o provado nos seguintes termos «o arguido NN privou os formandos de água após a marcha e após a GE o mesmo tendo feito DD desde o início do tiro de combate até à chegada ao bivaque, sendo que não adaptaram a instrução às condições climatéricas».
- O ponto 174 (que tal desmaio tivesse sido provocado pela perda de líquidos e outros nutrientes e pelas agressões e GGGGG tivesse sido transportado para a ambulância e sido observado pela enfermeira, XXXXX, a qual lhe deu a beber 3 goles de água com um produto em pó, dizendo-lhe que regressasse à instrução, porque já estava bem) reporta-se à matéria do provado em 263, que refere que GGGGG desmaiou e vem na sequência do ponto anterior que refere que «durante a instrução, GGGGG, manifestou sinais de exaustão, face à privação de água, à temperatura do ar e do solo e ao elevado desgaste físico».
Sabendo-se, como se sabe, que esta era uma condição comum à generalidade dos formandos e que tinha por consequência desmaios, entre o mais, não há justificação não considerar que o desmaio se deveu a quaisquer outras circunstâncias – desconhecidas, na medida em que não se provaram. Aliás, provou-se que «264.Tal desmaio, foi provocado pela exaustão, motivo por que GGGGG foi observado por um membro da equipa sanitária e lhe foi dada água, após o que regressou à instrução», ou seja, a hidratação removeu as causas do desmaio.
A fundamentação exarada para a não prova do restante foi de que «embora se tenha apurado que GGGGG foi observado por um membro da equipa sanitária todavia não foi possível concluir que teria sido a enfermeira XXXXX e que esta lhe teria dado a beber três goles de água e ordenado que regressasse à instrução, já que aquele afiançou que foi por sua vontade que voltou à instrução».
Em face desta justificação e das regras da experiência comum aplicadas à situação em curso impõe-se a consideração de «que o desmaio de GGGGG foi provocado pela perda de líquidos e outros nutrientes» considerando-se não provado «que na sequência do desmaio GGGGG tivesse sido transportado para a ambulância e sido observado pela enfermeira, XXXXX, a qual lhe deu a beber 3 goles de água com um produto em pó, dizendo-lhe que regressasse à instrução, porque já estava bem».
- O ponto 175 (que GGGGG tivesse dito ao arguido HHH que estava confuso e com sede) tem uma fundamentação ininteligível «foi também pelo facto deste ter dito que o que retorquiu ao arguido HHH que estava a sentir-se mal, deu-se como não provado que lhe tivesse transmitido que estava confuso e com sede» e o 176 não têm fundamentação alguma, aplicando-se aqui a regra já seguida, mantendo-os no não provado.
- O ponto 182 (que na sequência de tal castigo, FFFFF, GGGGG, HHHHH, IIIII, JJJJJ, EE , KKKKK, LLLLL, MMMMM, PP, NNNNN, OOOOO, PPPPP, QQQQQ e RRRRR, se tivessem lesionado na face, braços, mãos, cotovelos e pernas com feridas idênticas às que constam no Apenso 14, as quais não foram tratadas, provocando naqueles dores, tanto mais que continuaram a praticar exercícios no solo com as feridas expostas) reporta-se aos factos que não foram considerados provados em 172 desse rol.
Fazendo a necessária circunstanciação ficará a constar do não provado «que na sequência do castigo referido em 172 do não provado, FFFFF, GGGGG, HHHHH, IIIII, JJJJJ, EE , KKKKK, LLLLL, MMMMM, PP, NNNNN, OOOOO, PPPPP, QQQQQ e RRRRR, se tivessem lesionado na face, braços, mãos, cotovelos e pernas com feridas idênticas às que constam no Apenso 14, as quais não foram tratadas, provocando naqueles dores, tanto mais que continuaram a praticar exercícios no solo com as feridas expostas».
- O ponto 187 (que o arguido DD tivesse decidido castigar os formandos e ao ordenar que rastejassem nas silvas fê-lo com o propósito de os desgastar fisicamente, humilhá-los e provocar lesões corporais - feridas - com provocou) está reportado ao ponto 276 do provado que tem por fundamentação que «apurou-se que o ..., após o tiro, foram de novo às silvas com fundamento nos depoimentos prestados pelas testemunhas que integravam este grupo, os quais reconheceram que executaram mal o tiro e por isso tiveram que rastejar nas silvas. Todavia, da prova produzida, não se inferiu estar subjacente qualquer intencionalidade de humilhar ou provocar feridas aos seus membros, por parte do arguido DD. Os próprios formandos, com exceção de FFFFF que afirmou ter entendido tal ordem como um castigo com o intuito de provocar dor, percecionaram aquela como um meio de os alertar para serem mais prudentes no manuseamento das armas, não se tendo sentido humilhados. Foi o caso de KKKKK que relatou um episódio ocorrido com ele em que, por ter perdido o quico lhe foi ordenado que fosse para as silvas, o que fez, mas que não sentiu humilhado com tal ordem».
O que se descreve quanto à intenção chama-se castigo, como acima já foi bastamente explicado e, tal como também já foi referido, a ordem não podia ter outra intenção para além de causar desgaste físico e emocional, humilhação e feridas, aos instruendos.
Consequentemente, a matéria deste ponto será retirada do não provado e passará integralmente para o provado, na redacção de que «o arguido DD castigou os formandos e ao ordenar que rastejassem nas silvas fê-lo com o propósito de os desgastar fisicamente, humilhá-los e de lhes provocar feridas, como provocou».
- Quanto ao ponto 188 (que o mesmo tivesse acontecido com o PP, o qual também foi empurrado para cima das silvas e em consequência disso tivesse sofrido feridas em todo o corpo, fotografadas a fls. 6, 7 e 8 do Apenso 14, que não foram tratadas e infectaram), a fundamentação dada foi de que «não se deu como provado que PP tivesse sido empurrado para as silvas na medida em que não houve quaisquer testemunhos que confirmassem esta alegação factual».
Como o início da frase indica - o “mesmo que aconteceu com o PP” – o que está em causa é a afirmação de que este instruendo foi castigado, como os outros que pertenciam ao mesmo grupo e se sujeitaram às mesmas imposições, mediante ordens para rastejar em cima das silvas o que, com toda a certeza, lhe causou, como aos demais, as feridas que estão retratadas nas imagens referidas do apenso 14, que contem precisamente a reportagem fotográfica feita ao instruendo, já depois do seu falecimento.
Que essas feridas não tenham sido tratadas e que tenham infectado, não se prova. É certo que estas afirmações se reportam à falta de tratamento e infecções ocorridas no decurso da prova, mas quanto a isso nada se refere na fundamentação da aquisição probatória, sendo que o que está descrito quanto a este formando e à questão das feridas, no relatório de autópsia é que já estavam cobertas de crostas, se bem que tal verificação tenha sido feita com reporte para a data do óbito, ocorrido sete dias depois.
É evidente que não se podem imputar todas as feridas descritas no relatório da autópsia como resultado deste castigo, mas que algumas terão dele resultado não se duvida, pelo que se tem que considerar provado que essas feridas estavam retratadas, também, na reportagem fotográfica de fls. 6, 7 e 8 do Apenso 14.
Assim passa para o provado que «o mesmo aconteceu com o PP, o qual também teve que rastejar em cima das silvas e, em consequência disso, também sofreu feridas no corpo, fotografadas a fls. 6, 7 e 8 do Apenso 14». Fica no não provado «que as feridas provocadas no PP, em consequência do castigo referido em 276 do provado, não foram tratadas e infectaram».
- Quanto ao ponto 189 (que aos formandos que hesitassem em entrar nas silvas, os arguidos DDD, EEE, FFF, GGG e HHH à ordem do arguido DD, tivessem agarrado naqueles pelos braços e os empurrado para dentro das silvas, fazendo-os cair uns por cima dos outros, com o propósito de lhes provocar lesões corporais, designadamente feridas na face, braços, mãos e pernas idênticas às que constam do Apenso 14, como provocaram) a fundamentação exarada foi de que « também não foi feita prova de que os instruendos que hesitavam em entrar tivessem sido empurrados uma vez que nenhuma testemunha admitiu ter sido empurrada, tendo todas relatado que se atiraram de forma voluntária. Foi o que sucedeu com LLLLL que relatou que houve quem tivesse sido empurrado pelos Cabos (os arguidos HHH, GGG e FFF), mas não identificou quem tendo afirmado que no seu caso foi às silvas de livre vontade, assim como BBBBB e UUUU que afirmaram terem visto camaradas seus a serem empurrados mas não nomearam quem. Também EEEEE afirmou ter-se atirado logo à ordem, assim como AAAAA. Nesta medida, considerou-se não provado que os arguidos DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, à ordem do arguido DD, tivessem agarrado os formandos e o empurrado para dentro da silva com o intuito de lhes provocar ferimentos, uma vez que recolhidos todos os depoimentos dos Grupos P2 e P3 que fizeram esta instrução em conjunto, não foram identificados instruendos que tivessem sido empurrados. Acresce ainda que o guião era omisso quanto à escolha do local ou do tipo de solo onde deveria ser executado os exercícios, igualmente não determinando que fosse proibido executar exercícios em silvas.
De igual forma não foi possível inferir qualquer intencionalidade por parte dos arguidos de provocar lesões»
Bem, na verdade resulta da própria fundamentação que os instruendos foram empurrados para as silvas.
Não se apurou quem foi empurrado, mas isso não tem qualquer relevo para a questão colocada, que era tão-somente saber se os supra-referidos arguidos, que estiveram a administrar a formação em curso, tinham empurrado os formandos, ou não.
O que se impõe apurar, em face da redacção do ponto do não provado e do ponto da acusação/pronúncia não é quem tinha sido empurrado, mas quem empurrou.
Ora, em face da fundamentação da aquisição probatória onde, a propósito de justificar a falta de intencionalidade dos autores dos empurrões como direccionada para a produção de ferimentos, identificam-se esses mesmos autores dos empurrões, sendo que a testemunha LLLLL relatou que houve quem tivesse sido empurrado pelos arguidos HHH, GGG e FFF.
Quanto às questões relativas à intenção e ao resultado da acção, dão-se por reproduzidas as análises já feitas a propósito.
No que respeita ao facto de os empurrões para as silvas terem sido determinados pelos indivíduos que os praticaram, por mote próprio, ou à ordem do arguido DD, é notório que em face da absoluta hierarquização das condutas, típica da instituição militar, nada se passaria sem que a determinação viesse do responsável por aquele concreto exercício de formação. Para além desta constatação decorre do provado que a ordem partiu do próprio como se pode ver pelo teor dos pontos 222 e 223: «No final da instrução de Tiro de Combate, o arguido DD a pretexto de que a os exercícios efetuados pelos instruendos não tinham sido eficazes, ordenou-lhes que rastejassem, por cima das silvas»; «Todos os instruendos foram de novo obrigados a rastejar pelas silvas por ordem do arguido DD que era coadjuvado pelos arguidos DDD e EEE, sendo que UUUU foi obrigado a saltar de cabeça para as silvas e foi empurrado para cima de outro instruendo que já estava com o corpo de lado a tentar proteger a cabeça e os olhos».
Perante estes pontos do provado mais se tem que considerar assente que os empurrões para as silvas fizeram cair instruendos uns por cima dos outros.
A questão do reporte para a generalidade das fotografias contidos no apenso 14 não se pode considerar assente, pela razão acima já referida, de que aí se retratam diversos tipos de ferimentos, leves e profundos, não se podendo afirmar com segurança que aos instruendos em causa foram provocadas lesões idênticas a todos os tipos nesse apenso retratatos.
Assim impõe-se a passagem para o provado, pelo menos, de que «aos formandos que hesitassem em entrar nas silvas, os arguidos FFF, GGG e HHH, à ordem do arguido DD, empurram-nos para dentro das silvas, fazendo-os cair uns por cima dos outros, com o propósito de lhes provocar danos no corpo, designadamente feridas na face, braços, mãos e pernas, como provocaram» e fica no não provado «que aos formandos que hesitassem em entrar nas silvas, os arguidos DDD e EEE, à ordem do arguido DD tivessem agarrado naqueles pelos braços para os empurrar para dentro das silvas».
- O ponto 190 (que os arguidos DD, DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, tivessem agido com o propósito de provocar lesões corporais nos formandos, designadamente feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas idênticas às das fotografadas a fls. 3, 6, 7 e 8 do Apenso 14, porquanto a instrução de tiro de combate não prevê quaisquer exercícios em silvas) não obteve fundamentação mas o facto é que resulta provado, como facto notório aliado à constatação de que o Guião não prevê que o exercício tiro de combate deva ser efectuado sobre silvas.
Contudo, acerca desta questão há que considerar que o instrutor responsável pela instrução era DD e, portanto, cabia-lhe a ele determinar o local onde os exercícios seriam executados, pelo que neste capítulo é inteiramente sua a responsabilidade por esta decisão.
Assim resulta provado que «o arguido DD agiu com o propósito de provocar danos no corpo dos formandos, designadamente feridas na face, cotovelos, braços, mãos, joelhos e pernas sendo que a instrução de tiro de combate não prevê quaisquer exercícios em silvas» e não provado «os arguidos DDD, EEE, FFF, GGG e HHH tivessem agido com o propósito de provocar danos no corpo dos formandos do grupo P3, ao ministrar a instrução de tiro de combate que não prevê quaisquer exercícios em silvas, na medida em que agiram em execução de ordens dadas pelo arguido DD».
- Quanto ao ponto 193 (que os arguidos AA e MM, se tivessem apercebido do estado de fadiga extrema e desidratação dos instruendos do 3.º Grupo (P3), não tivessem providenciado pela hidratação dos mesmos, nem impedido a prática de castigos e actos violentos contra os aqueles, tendo visto as feridas expostas que os formandos apresentavam e que soubessem que podiam provocar infecções graves e, não obstante isso, tivessem autorizado que tais actos violentos fossem praticados em todas as instruções, violando gravemente os deveres do militar e disciplina militar) verifica-se que ele tem reporte específico para o grupo P3 e para o período da manhã.
Aqui tem perfeito cabimento o que já se referiu quanto a outros grupos.
Se os arguidos AA e MM presenciaram os castigos e actos violentos praticados durante a manhã sobre os elementos que compunham o grupo P3, desconhece-se. Aliás, não se prova sequer a presença destes arguidos no decurso das provas ou dos intervalos. Mas que ninguém os impediu é um facto.
Também é certo que não providenciaram pela hidratação dos formandos. Ou seja, que os arguidos não providenciaram pela hidratação dos formandos nem impediram a prática de castigos e actos violentos contra os ofendidos do grupo P3, está implícito porque se provou que estes factos ocorreram
No que concerne à noção de feridas expostas, ela abrange desde pequenos arranhões a feridas perfurantes. Sabendo-se, como os arguidos sabiam, que todos os instruendos tinham rastejado em silvas, pelo menos no decurso do exercício de GAM, cujo percurso assim foi estabelecido, era seguro que todos eles apresentassem feridas, pelo menos nas zonas expostas da pele.
Quanto a ambos os supra referidos arguidos, desconhece-se o que terão sabido quanto a esta precisa matéria, pelo que os factos relativos a si se deverão manter no não provado.
Contudo, repete-se, é pouco verosímil que, num grupo em que todos estavam obrigados a reportar os acontecimentos ao Director da Prova, sendo este coadjuvado pelo Comandante da Companhia, tendo para o efeito sido disponibilizados aparelhos de comunicação, conforme consta dos guiões, que os mesmos se tenham mantido toda a manhã na ignorância do que se estava a passar. Chama-se de novo à colação o telefonema feito por AA depois de almoço, que implica o conhecimento do estado geral de doença dos formandos.
Do exposto resulta provado que «os arguidos AA e MM, não providenciaram pela hidratação dos formandos do 3.º Grupo (P3), nem impediram a prática de castigos e actos violentos contra os aqueles, sendo que sabiam que eles apresentavam feridas expostas, que poderiam infectar».
Mantem-se no não provado «que, quanto à instrução ministrada na manhã ao ..., os arguidos AA e MM tivessem autorizado a prática de castigos e actos violentos contra os formando, ou que tivessem visto as feridas expostas que os formandos apresentavam».
- O ponto 197 (que na instrução da Ginástica de Aplicação Militar o formando JJJJJ tivesse vomitado durante os exercícios, e PPPPP, se tivesse deitado no chão e pedido água, não lha tendo sido dada pelo arguido FF, nem pelos responsáveis pelo Grupo, os arguidos NN e BBB, apesar de se terem apercebido dos sinais de fadiga e desidratação extrema dos formandos) está em contradição com os pontos 283 e 284 do provado, que referem que o formando JJJJJ vomitou e não foi assistido por ninguém, sendo que este ponto teve como fundamentação que «o Tribunal considerou provado que JJJJJ vomitou e não foi assistido por ninguém com fundamento nas suas declarações que admitiu ter vomitado e não ter sido assistido por ninguém».
Também do ponto 283 do provado consta que «nesta instrução, face ao calor, ao racionamento de água, aos exercícios realizados e ao esforço físico exigido face ao tipo de prova, todos os formandos, nomeadamente, LLLLL, GGGGG, NNNNN, MMMMM, PPPPP e JJJJJ, (este último vomitou) denotavam cansaço e desidratação, sendo que durante os exercícios, o formando PPPPP, deitou-se no chão e pediu água, que não lhe foi dada pelo arguido FF, nem pelos responsáveis pelo Grupo, os arguidos NN e BBB, apesar de se terem apercebido dos sinais de fadiga e desidratação dos formandos», sendo que a fundamentação dada foi de que «a prova de que na GAM face ao calor, aos exercícios, à sua intensidade e ao constante racionamento da água, todos os formandos, nomeadamente, LLLLL, GGGGG, NNNNN, MMMMM, PPPPP e JJJJJ denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação, resultou da conjugação do depoimento destes. Neste sentido PPPPP depôs que sentia-se exausto e com sede e, relativamente a LLLLL, contou que este se queixou aos arguidos NN e BBB que tinha dores e sentia-se cansado no decurso da instrução de progressões.
Segundo HHHHH, na instrução de Ginástica de Aplicação Militar, PPPPP foi ficando para trás e atirou-se para o chão dizendo que não fazia mais não obstante um instrutor ter ido ter com ele e o empurrar para continuar. Por esse motivo, o exercício que estavam a fazer e da qual a testemunha era parelha, teve que procurar outro camarada».
Ora, a fundamentação dada quanto ao não provado foi de que «de igual modo ficou por provar que JJJJJ tivesse vomitado durante a instrução da Ginástica de Aplicação Militar, já que nem este nem qualquer outra testemunha referiu tal episódio
Por ter sido infirmado pela testemunha PPPPP, o Tribunal não considerou provado que se tivesse deitado no chão e pedido água, e que lha tivessem negado os arguidos FF, NN e BBB ou que tivesse sido castigado pelo arguido NN por ter a arma em modo de fogo. Com efeito, quanto ao que se passou durante a Ginástica de Aplicação Militar PPPPP apenas descreveu que pediu para desistir, mas disseram-lhe, como forma de o motivar, "não se desiste, falamos à noite", e que alguém lhe terá deitado água na cara quando estava com os olhos fechados, embora não soubesse identificar quem. Frisou ainda que o arguido FF lhes deu ordem a todos para beberem, o que ele fez. QQQQQ que declarou ter visto PPPPP por duas ou três vezes deitado no chão na instrução da Ginástica de Aplicação Militar afirmou não se recordar daquele ter pedido água. Por sua vez, HHHHH também nada referiu quanto a ter sido negada água ao PPPPP, não obstante ter explanado que este, durante aquela instrução, na prova do carrinho de mão, ficou para trás e atirou-se para o chão dizendo que não fazia mais, apesar um instrutor ter ido ter com ele e o ter empurrado para continuar. Também ninguém relatou qualquer episódio ocorrido com a arma do PPPPP, ou que NN lhe tivesse ordenado para rebolar, rastejar ou correr como forma de castigo».
Da fundamentação da aquisição probatória vertida quanto ao ponto 207 do não provado conta que « (…)com base nas declarações da testemunha PPPPP que declarou que durante a instrução das progressões (...) mencionou ao arguido MM que queria desistir, pois estava em sofrimento, sentia-se cansado e com sede, ao que aquele lhe terá retorquido que lhe daria um copo de água à noite, tendo essa ideia motivado o formando a continuar, o que fez, completando a instrução, nada tendo declarado acerca do arguido NN».
Considerado o conjunto da fundamentação vertida para os pontos 283 do provado, coadjuvada com a dada quanto ao ponto 207 do não provado, verifica-se que o ponto 283 está devidamente fundamentado e que o ponto 197 do não provado contraria a prova que se produziu em audiência, devendo assim ser eliminado e levado ao provado, sob a seguinte redacção: « Na instrução da Ginástica de Aplicação Militar o formando JJJJJ vomitou durante os exercícios, e PPPPP, deitou-se no chão e pediu água, não lha tendo sido dada pelo arguido FF, nem pelos responsáveis pelo Grupo, os arguidos NN e BBB, apesar de se terem apercebido dos sinais de fadiga e desidratação extrema dos formandos».
- Quanto ao ponto 205 (que o arguido MM, na qualidade de Comandante de Companhia, NN e BBB tivessem conhecimento dos sinais de risco elevado de desidratação profunda e consequentes consequências orgânicas, nomeadamente, lesões renais e neurológicas, que poderão evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, como aliás veio a acontecer, e tivessem ignorado tais sinais, o primeiro não tendo dado instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos, e ponderado sobre uma menor intensidade da carga física e aumento dos períodos de repouso durante as instruções do período da tarde), a fundamentação dada foi de que «ainda relativamente ao arguido MM, não obstante desempenhar funções de Comandante de Companhia, este não podia alterar a ordem, intensidade ou tipo de exercícios a executar durante as instruções, bem como decidir o aumento de água. Nesta medida e tendo em consideração o sentido dado na alegação de que este não deu instruções aos formadores para aumentarem o consumo de água e diminuir a intensidade da carga física enquanto Comandante da Companhia, o Tribunal entendeu não dar como provado essa factualidade na medida em que, não fez, porque não o poderia fazer».
Ora, a questão coloca-se nos precisos termos do já analisado a propósito do ponto 112, que se aplica, mutatis mutandis, ao grupo P3.
Assim o referido conteúdo sai do não provado e passa para o provado na redacção de que «os arguidos MM, NN e BBB, tinham conhecimento dos sinais de risco de desidratação e consequentes consequências orgânicas que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica e à morte, como aliás veio a acontecer, sendo que o primeiro não deu instruções aos formadores (instrutores) para aumentarem o consumo de água dos formandos e nenhum determinou uma menor intensidade da carga física e o aumento os períodos de repouso durante as instruções do período da tarde».
- O ponto 206 (que o mesmo tivesse feito o Director da Prova, arguido AA e o médico GG, os quais, como ... tivessem conhecimentos específicos nas área da motricidade humana e AA na área da medicina e soubessem que as condições atmosféricas se tinham agravado, aumentando as temperaturas do ar e do solo e que os formandos já apresentassem estados de desidratação profunda, alguns deles vomitaram, outros perderam os sentidos no período da manhã e foram sujeitos a maus-tratos físicos (bofetadas, pontapés, rastejar nas silvas), apresentando inúmeras lesões corporais) foi fundamentado nos seguintes termos «não obstante GG ter conhecimentos específicos na área de medicina, a prova feita em audiência de julgamento não foi suficiente para permitir ao Tribunal afastar qualquer dúvida razoável, de que este se tivesse apercebido que os instruendos estivessem num estado de desidratação, como descreve a pronúncia, profunda . Além do mais, embora fosse ..., a sua atuação na ... era enquanto médico e por isso não podia intervir nas instruções, definir a sua intensidade ou quantidade da água a consumir pelos formandos, sendo que sempre que algum instruendo foi assistido por ele ou por qualquer elemento da equipa sanitária, foi-lhe fornecida água.
O mesmo se diga quanto ao arguido AA na medida em que não ficou demonstrado que este possuísse conhecimentos específicos nas áreas de medicina e motricidade humana ou de que os instruendos do ... estivessem no estado descrito pela acusação e este arguido tivesse disso conhecimento».
A questão coloca-se em termos semelhantes ao já referido em 113, de onde consta a explicação de que, estando o ponto reportado ao grupo P1 não se pode afiançar que conhecimento concreto tinham os arguidos acerca do estado dos respectivos formandos, porque o que se prova é que tinham um conhecimento geral da decadência de muitos formandos, mas não se sabe concretamente, de quais.
Em face do exposto prova-se que «o mesmo foi feito pelo Diretor da Prova, o arguido AA e pelo médico GG sendo que o segundo tinha conhecimentos específicos na área da medicina e ambos tinham conhecimentos específicos na área de motricidade humana e sabiam que os formandos já apresentavam estados de desidratação e inúmeras feridas» e não se prova que «o arguido AA e o médico GG soubessem que alguns dos formandos do grupo P3 tinham vomitado, outros perdido os sentidos no período da manhã e tivessem sido sujeitos a maus-tratos físicos (bofetadas, pontapés, rastejar nas silvas)».
- O ponto 212 (que LLLLL tivesse carregado às costas PPPPP durante as Técnicas de Combate 1, e com o peso do corpo daquele tivesse acabado por cair no solo) teve a seguinte fundamentação «não se deu como provado que LLLLL e RRRRR tivesse ido buscar PPPPP e que o primeiro o tivesse carregado às costas durante a instrução de Técnicas de Combate 1, na medida em que RRRRR não depôs, LLLLL não relatou esse episódio e nenhuma outra testemunha o afirmou, nem o próprio PPPPP Deste modo e porque mais ninguém reportou esta situação e LLLLL apenas descreveu que ajudou o PPPPP no momento da formatura, o que foi confirmado por outros testemunhos conforme atrás se mencionou, o Tribunal ficou convicto que se isso tivesse ocorrido também durante as Técnicas de Combate 1, a testemunha LLLLL se recordaria. Na descrição que fez dos factos relatou que do esforço de ter carregado o PPPPP, sentia-se exausto e caiu no chão desmaiado, tendo acordado com o arguido MM a lhe despejar água para cima e a dar-lhe umas chapadas. Foi posto na ambulância onde lhe deram água com redrate».
Ora, o que resulta do provado, afinal, é precisamente que LLLLL carregou às costas o referido instruendo, e em consequência do esforço desmaiou. Ele próprio o disse e mais ninguém o infirmou, como resulta da fundamentação.
Consequentemente impõe-se exclusão do não provado e a passagem do ponto para o provado nos seguintes termos «LLLLL carregou às costas PPPPP durante as Técnicas de Combate 1, e com o peso do corpo daquele caiu no chão».
- O ponto 214 (que o arguido GG só aceitasse formandos na tenda da enfermaria quando os mesmos já não se conseguiam movimentar e que só tivesse transferido NNNNN, LLLLL e MMMMM após se encontrarem prostrados no solo) tem por fundamentação que «da descrição das testemunhas, mormente de NNNNN, LLLLL e MMMMM, o tribunal não inferiu que estes tivessem ficado prostrados no solo na medida em que foram socorridos e retirados do local da instrução. A questão que se coloca não é saber se foram levados do local da instrução, mas se só foram socorridos depois de estarem no chão.
Acrescenta a fundamentação que «embora estivessem exaustos, nenhuma destas testemunhas relatou que tivessem ficado prostrados, visto que NNNNN referiu ter tido dores na virilha, que corresponderia a uma pubalgia e que depois foi enviado para a enfermaria; LLLLL contou que depois da formatura estava exausto e caiu, desmaiando, tendo acordado com o arguido MM a lhe dar umas chapadas e depois foi para a ambulância; MMMMM declarou ter ido para enfermaria pelo seu próprio pé, dado que tinha uma hérnia mal tratada que o impedia de acompanhar o grupo, tendo, por esse motivo, sido retirado da instrução e encaminhado para a enfermaria».
Nada se retira desta fundamentação com interesse para a análise da questão, a não ser que LLLLL desmaiou e como ninguém desmaia em pé, é da experiência comum que ficou prostrado no chão, pelo menos enquanto o desmaio durou.
A responsabilidade do internamento na enfermaria de campanha pertencia ao médico, o arguido GG, conforme resulta do Guião da prova.
Assim, impõe-se a consideração de que «LLLLL só foi internado na enfermaria, a cargo do arguido GG, depois de ter caído, desmaiado», facto que passará para o provado.
No não provado fica «que o arguido GG só aceitasse formandos na tenda da enfermaria quando os mesmos já não se conseguiam movimentar e que só tivesse transferido NNNNN e MMMMM após se encontrarem prostrados no solo».
- Quanto ao ponto 221 (que a situação clínica do ofendido PP se tivesse agravado minuto a minuto, e que os arguidos MM, AA e GG tivessem assistido à degradação física e mental do ofendido PP) foi dada a fundamentação de que «não foi possível apurar ao Tribunal em que momento o estado de saúde de PP se agravou. Para além do relato relativo ao momento que levou à sua retirada da instrução e ao seu encaminhamento para a tenda que servia de enfermaria, desconhece-se qual a sintomatologia que este apresentou durante o tempo que aí permaneceu. Os relatos sobre o estado de saúde deste são parcos na medida em que os instruendos que permaneceram na tenda falam que PP teve espasmos, estava agitado, teria arrancado o soro, mas não foi possível percecionar através dessas narrativas em que momento e de que forma o agravamento ocorreu, reportando-se os dados clínicos já a um momento tardio, quando o INEM se encontrava no Campo de Tiro .... Apenas se logrou apurar que em todas as avaliações médicas de que foi alvo, nunca registou qualquer melhoria e terá sido essa inexistência de evolução positiva que a determinado momento o arguido GG decidiu pela sua transferência para o Hospital, sendo esse também o fundamento da opção de igualmente transferir OO.»
Ora bem, se o formando passou do estado de fazer exercício, a não se mexer, não falar a não se manter em pé, a ter febre, consciência alterada e já na enfermaria, segundo a própria fundamentação da aquisição probatória transcrita, passou a ter espasmos e agitação a ponto de arrancar o soro (e entrou em convulsões, se bem que já na ambulância), é porque o seu estado clínico se agravou entre o momento em que foi colocado em enfermaria e aquele em que foi levado para ao hospital. Disso mesmo nos dá conta o disposto no provado segundo o qual:
«318. PP tinha espasmos, acabando por ser sedado para que os enfermeiros conseguissem colocar-lhe a agulha de soro.
319. A administração de soroterapia aos formandos não surtiu qualquer efeito no caso de (…) PP, uma vez que desde o momento em entraram na tenda que servia de enfermaria nunca apresentaram sinais de melhoria.
320. PP vomitou.
332. Na conversa com o CODU, o médico do INEM pede para abrirem nova ficha para o PP, dado que o mesmo estava prostrado, com hipertermia de 40. °C, desidratação, hipoglicemia de 50 e hipotensão 80,50
345. Após as 21h45, o médico do INEM, a pedido do arguido AA observou PP, que se encontrava deitado.
346. O médico verificou que o PP apresentava-se de olhos fechados, pouco reactivo e com alteração do estado de consciência
349. Já no interior da ambulância militar, PP teve uma convulsão, manteve a febre, apresentando-se prostrado, tendo sido transferido para o Hospital ...».
Mais se provou que MM viu o PP no momento em que foi retirado da instrução e foi ele quem o mandou para a enfermaria – provado sob 302 e 303 - do que resulta o conhecimento da respectiva situação clínica.
GG, AA e MM decidiram a suspensão da prova, pouco depois das 16h00 precisamente porque conheciam o gravíssimo estado clínico dos formandos, naturalmente, conforme provado em 308 e 309, e GG previu, desde antes do telefonema das 14 horas, que iria que ter que fazer transferências para o HFAR.
Aliás, assumindo por bom o cumprimento das funções que lhes estavam adstritas, nem se pondera que depois do encerramento da prova por elevada degradação da saúde dos formandos, os referidos arguidos se não tivessem mantido a par da evolução dos doentes, especialmente dos mais críticos.
De todo o exposto retira-se como provado que «a situação clínica do ofendido PP se agravou progressivamente e os arguidos MM, AA e GG conheciam o estado clínico do PP», pelo que tal ponto sairá do não provado.
- Quanto aos pontos 223 (qual a hora exacta a que a ... foi interrompida e que os formandos que ainda não se encontravam incapacitados e a soro, já não tivessem condições físicas e psíquicas para executarem qualquer exercício físico) e 224 (que a interrupção da ... tivesse sido devido à situação de catástrofe humanitária que se vivia no Campo de Tiro ..., em consequência da privação do consumo de água, do calor intenso que se fazia sentir e elevada carga física dos exercícios, o que era do conhecimento de todos os Oficiais instrutores, Diretor da Prova, Comandante de Companhia e Médico) o Tribunal deu a justificação de que «o Tribunal considerou não provado que a interrupção da instrução se devesse à situação de catástrofe humanitária conforme alude a acusação, desde logo com base no número de instruendos que naquele momento foram encaminhados para a enfermaria - cerca de vinte instruendos dos sessenta e sete que integravam o ...º Curso ... e estavam a realizar a ... - que não permite ao Tribunal extrair a ilação de que se vivenciasse uma situação de catástrofe humanitária, atendendo à dimensão que esta tem. Por outro lado, da prova produzida inferiu-se que a sua interrupção se deveu não só ao número de instruendos que estavam internados mas também devido ao calor, sendo ideia retomá-la quando já não se fizesse sentir tanto calor».
Resulta do provado que a após o almoço AA falou ao telefone com o Comandante do Regimento ..., QQ, alertando-o para a intensidade do calor que se fazia sentir, tendo aquele sugerido que no dia seguinte fosse alterado o horário das instruções a ministrar e que, após as 16h interrompeu a prova, depois de ter ouvido os arguidos GG e o MM, tendo GG dito que tinha vários instruendos na enfermaria e que não tinha recursos para acompanhar as instruções subsequentes e MM concordado em não prosseguir a prova tendo em conta as exigências das instruções programadas.
Do exposto resulta que a interrupção se deveu não apenas ao calor que se fazia sentir (a parte mais quente do dia já tinha passado), mas sobretudo à previsão de que a continuação dos exercícios agravaria as condições de exaustão e desidratação dos formandos, não havendo condições para atender mais doentes na enfermaria, o que o médico considerou expectável, pois só assim se justifica que tenha tido a opinião que se acima se descreve.
No provado diz-se que na enfermaria estavam, pelo menos, 22 formandos (pontos 314 e 356 do provado) – praticamente um terço do grupo, composto por 67 formandos - (sendo que, como abaixo se verá havia, pelo menos, mais dois).
Mais se prova que outros saíram das formações sem terem dado entrada na enfermaria. Se saíram é porque não tinham condições físicas (nem psíquicas) para continuar.
Do grupo de graduados, com 10 instruendos, onde se inseria OO, relativamente a quem os recursos se reportam, há notícia no provado de que todos se sentiram mal e que sete foram internados (LLL, NNN, III, OOO, OO e MMM estavam a soro e PPP foi internado à noite). Quanto a RR e a JJJ já vinham tendo problemas de saúde desde a manhã e saíram de ambulância, por ordem do arguido GG (ponto 125) pelo que, à partida, deveriam ter sido internados ou se o não foram também não estavam em condições de continuar.
Apenas relativamente a KKK nada se prova que indicie o seu estado de saúde.
Do grupo P1, dos 27 formandos, sabe-se que OOOO, TTT, HHHH, IIII, JJJJ e QQ estavam a soro na enfermaria e que UUU e UU também aí estavam internados.
Do grupo P2, com 15 formandos, TT, VVVV, ZZZZ, TT, TTTT, AAAAA e RRRR estavam especialmente afectados, tendo sido internado, a soro, VVVV.
Do grupo P3, com 15 formandos, onde se inseria PP, relativamente a quem os recursos se reportam, PP e RRRRR estavam internados e a soro, NNNNN, MMMMM, LLLLL e OOOOO (à noite), foram internados. Mais foi particularmente referido no provado a situação de doença de GGGGG, PPPPP, JJJJJ e EE.
Consta dos pontos 100, 191, 233, 241 e 280 do provado, relativos aos quatro grupos de formandos, que todos eles denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação, situação que se agravou ao longo do dia.
Em face do provado, resumido aliás nos referidos pontos 100, 191, 233, 241 e 280, não se pode escamotear a situação de exaustão e desidratação em que a generalidade dos formandos se encontrava e, particularmente, a situação de incapacidade funcional com que os supra mencionados se estavam a deparar. Isto impõe a alteração do não provado nesta parte.
Do exposto retira-se que «quando a ... foi interrompida, dos formandos que ainda não se encontravam internados e a soro, os demais já não tinham condições físicas e psíquicas para executarem qualquer exercício físico, em consequência da privação do consumo de água, do calor intenso que se fazia sentir e da elevada carga física dos exercícios, o que era do conhecimento de todos os Oficiais instrutores, Diretor da Prova, Comandante de Companhia e Médico».
Fica no não provado «qual a hora exacta a que a ... foi interrompida».
- Quanto ao ponto 224 (que a interrupção da ... tivesse sido devido à situação de catástrofe humanitária que se vivia no Campo de Tiro ..., em consequência da privação do consumo de água, do calor intenso que se fazia sentir e elevada carga física dos exercícios, o que era do conhecimento de todos os Oficiais instrutores, Diretor da Prova, Comandante de Companhia e Médico) o que não se pode considerar provado é que houvesse uma situação de catástrofe humanitária, afirmação conclusiva e bombástica que não releva rigorosamente nada para a prova do que quer que seja.
Quanto às razões da suspensão da prova, é evidente que se prenderam com o estado de doença dos formandos, em consequência da privação do consumo de água, do calor intenso que se fazia sentir e elevada carga física dos exercícios, o que era do conhecimento de todos os Oficiais instrutores, Diretor da Prova, Comandante de Companhia e Médico, e foi o motivo pelo qual ela foi suspensa, pelo que tais factos deverão passar para o provado, eliminando-se o ponto do não provado. Assim passará a constar do provado que « A interrupção da ... foi devida à situação de doença dos formandos, em consequência da privação do consumo de água, do calor intenso que se fazia sentir e elevada carga física dos exercícios, o que era do conhecimento de todos os Oficiais instrutores, Diretor da Prova, Comandante de Companhia e Médico».
- Quanto ao ponto 225 (que os arguidos AA, MM, BB, ZZ, AAA, NN, GG e SS, tivessem todos formação no que respeita ao conhecimento dos sinais de alerta de sintomatologia de falência física e, não obstante isso, tivessem violado voluntariamente todos os procedimentos adoptados nos cursos de todas as Forças Especiais da ..., prosseguindo as instruções, sob um sol intenso, com temperaturas muito elevadas mesmo no período da manhã, sem períodos de descanso entre as diferentes instruções - de elevado desgaste físico - e sem um plano de hidratação adaptado às condições climatéricas, de acordo com as normas da ..., o que provocou como consequência directa e necessária um estado de fadiga e desidratação extremo em todos os formandos internados, o que os arguidos bem sabiam e aceitaram) convém dilucidar as várias questões que se colocam.
Desde logo a referência a procedimentos normativos é conclusiva, pelo que sai do rol dos factos.
O que interessa à apreciação do mérito da acusação não são os sintomas de falência física mas os de desidratação, aliada ao especial esforço físico exigido na prova e ao calor anormal, o que é claramente um menos relativamente à falada falência física.
A fundamentação exarada refere que «relativamente aos conhecimentos dos sinais de alerta de sintomatologia de falência física, embora o médico tivesse conhecimentos de medicina, o Tribunal não pode considerar este facto provado nos termos em que foi plasmado na acusação uma vez que, durante o julgamento, não foram trazidos à discussão quaisquer sinais que indiciassem que qualquer um dos instruendos, nomeadamente OO e PP, evidenciassem esses sinais no momento do seu internamento na tenda de enfermaria, ficando por conhecer qual a sintomatologia que estes dois instruendos apresentavam nesse momento, quais os sinais que a esse respeito exteriorizavam e eram percetíveis, para além dos indícios que evidenciaram na última instrução por aqueles executada. Acresce que as normas da ..., não só não foram indicadas na acusação quais as que foram violadas, como se trata de regras de normalização que se destinam a ser aplicadas a uma congregação de forças de diversos países que atuam conjuntamente a nível internacional. O Treino de cada força nacional é feito de acordo com os procedimentos internos de cada país e por vezes até sigilosos. Além do mais, para que essas normas sejam adotadas pelos Estados membros da ..., carecem de estar vertidas num ... e, por sua vez, este ser publicado em Diário da República, não existindo conhecimento da existência de quaisquer ...'s que versem sobre o treino e a prova em causa, tendo também os arguidos e as testemunhas que depuseram, afirmado desconhecerem qualquer ... nesse sentido».
Quanto à sintomatologia que os instruendos OO, PP e os demais internados apresentavam, quando foram internados na tenda da enfermaria, tal consta minimamente esclarecido no provado.
SS era enfermeiro e não tinha poderes para interferir nas decisões sobre a instrução.
Que os arguidos soubessem o que de concreto estava para acontecer é algo que não se prova, evidentemente, mas que tinham conhecimentos que lhes permitia prever o que poderia acontecer, resulta da experiência comum, da experiência pessoal de cada um deles, na qualidade de ... e do necessário conhecimento do teor do guião da prova, no qual havia um especial alerta para este tipo de situações.
Então, impõe-se a consideração de que se prova que «os arguidos AA, MM, BB, ZZ, AAA, NN e GG tinham conhecimento dos sinais de alerta de desidratação aliada ao especial esforço físico exigido na prova e ao calor anormal e, não obstante isso, prosseguiram e deixaram prosseguir as instruções, de elevado desgaste físico, sob um calor intenso, com temperaturas elevadas, mesmo no período da manhã, sem que tenham adaptado a hidratação às condições climatéricas, o que provocou, como consequência directa e necessária, um estado de fadiga e desidratação extremas em todos os formandos internados, o que os arguidos previram e aceitaram».
Ficará a constar do não provado «SS não tenha adaptado a hidratação às condições climatéricas e que todas as instruções tivessem sido ministradas sem períodos de descanso entre elas».
- O ponto 227 (que tais condutas, tivessem sido praticadas voluntária e conscientemente pelos arguidos AA, MM, BB, ZZ, AAA, NN, GG e SS, e tivessem violado em elevado grau os deveres do militar e da disciplina militar) está reportado para a matéria dos pontos 225 e 226.
A parte final é meramente conclusiva.
Na parte que tem reporte para o conteúdo do ponto 225 do provado, a matéria prova-se quanto a todos os arguidos aí referidos com excepção do enfermeiro SS, e na parte que tem reporte para o ponto 226 do provado só os factos em causa só se provam relativamente aos arguidos quanto aos quais se provou que deram as ordens ou praticaram os actos aí ordenados, o que ficará expresso.
Assim, o ponto será eliminado do não provado e ficará no provado que «as condutas, atrás referidas foram voluntária e conscientemente praticadas pelos arguidos AA, MM, BB, ZZ, AAA, NN GG».
- O ponto 226 (que tivessem sido infligidos maus-tratos físicos aos formandos e tivessem provocado aos mesmos, como consequência directa e necessária lesões corporais, designadamente feridas por todo o corpo, hematomas e dores) é conclusivo, não obteve fundamentação fáctica e, em parte, mostra-se contrariado pelo provado.
Os maus tratos são mera conclusão sendo que, no caso, os factos que poderiam conduzir a essa conclusão estão descritos como sendo ordens de se lançarem e rastejarem nas silvas, empurrões para as silvas - a alguns formandos de cabeça -, socos, bofetadas e colocação de terra na boca, tudo actos que visaram e provocaram feridas, hematomas, dores e mau estar físico e psicológico.
Assim resta eliminar este ponto do não provado e passá-lo para o provado nos seguintes termos «Os formandos foram obrigados a lançarem-se e rastejarem nas silvas, foram empurrados para as silvas, receberam socos, bofetadas e OO a colocação de terra na boca, conforme acima descrito, sendo que todos esses actos visaram provocar-lhes feridas, hematomas e dores».
- Quanto ao ponto 228 é conclusiva a expressão «quantidades muito inferiores às necessárias para qualquer ser humano, nomeadamente militares das Forças Especiais, face à onda de calor que se fazia sentir e à elevada carga física das instruções», pelo que será retirada do não provado.
- O ponto 232 (e que por esse motivo, os responsáveis pela prova, arguidos AA, MM e o médico, GG, fossem obrigados a transferir para os Hospitais os doentes que se encontravam na tenda, e que a temperatura corporal dos doentes exigisse medidas terapêuticas urgentes que só podiam ser efetuadas nos Hospitais, nem tendo o INEM, condições para tratar doentes em tendas de campanha) é meramente conclusivo e inclui matéria do foro clínico não referida pela fundamentação, pelo que será excluído, tal como o ponto 233 (facto esse que os arguidos AA, MM e GG não podiam ignorar.) que está na sua dependência.
- Quanto ao ponto 244 (que o OO apresentasse pele baça ou que a rigidez fosse pouco comum para aquela idade), provando-se que o médico informou que o OO apresentava pele baça e que apresentava rigidez (ponto 335 do provado), essa matéria tem de sair do não provado.
- Quanto aos pontos 246 (que constasse do relatório da autópsia que o enfarte cardíaco tivesse sido por desidratação profunda) e 247 (que a causa da morte de OO tivesse sido por falência multiorgânica em consequência de exercício físico, falta de água em ambiente quente, causado por uma subida rápida da temperatura corporal superior a 40.ºC, provocando vários síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluem hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda e alteração grave do estado de consciência (obnubilação, estado confusional, convulsões até à morte)), a fundamentação exarada foi a seguinte «por não constar do relatório da autópsia médico legal realizada ao cadáver de OO, que o enfarte cardíaco tivesse como causa a desidratação profunda ou, sequer, constar qualquer alusão à desidratação, tendo esse acrescento sido inserido pelo Ministério Público na descrição que fez quanto ao que constaria naquele relatório, sem qualquer suporte probatório a fundamentá-lo, o Tribunal deu como não provado tal matéria. Por tal motivo o Tribunal apenas fez constar e deu como provadas as causas lesões expressas nesse relatório, tendo expurgado tudo o que dele não constasse, da descrição da factualidade provada. Pela mesma razão o Tribunal não logrou efetuar aqui a co-relação estabelecida pelo Ministério Público entre a falência multi-orgânica, o exercício físico, a falta de água e o ambiente quente, e as lesões descritas.
Foi também esse o fundamento de não se ter dado provado que a causa da morte de OO tivesse sido por falência multi-orgânica em consequência de exercício físico, falta de água em ambiente quente, causado por uma subida rápida da temperatura corporal superior a 40.ºC, provocando vários síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluem hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda e alteração grave do estado de consciência (obnubilação, estado confusional, convulsões até à morte), uma vez que tais conclusões não se encontram vertidas no relatório da autópsia, o qual refere como causa da morte Golpe de Calor».
Está provado quanto a esta matéria que:
- A vítima apresentava «sinais de desidratação: olhos encovados e perda de elasticidade da pele - quando tracionada, na região abdominal (pele não retorna ao normal após ser tracionada). Cabeça: normal conformação craniana evidenciando conjuntivas palpebrais muito congestionadas observando-se, no seu seio, algumas hemorragias punctiformes do tamanho de bicos e cabeças de alfinete» (ponto 338 do provado);
- «O extenso enfarte hemorrágico subendocárdico, que não (isquémico) por ausência de lesões coronárias, observado macroscopicamente na autópsia e confirmado histologicamente, bem como as alterações compatíveis com uma necrose tubular aguda, a que se associa a mioglobinúria em consequência de rabdomiólise, constituem todos achados clássicos do quadro de Golpe de Calor» (ponto 340 do provado);
- «Por outro lado, o enfarte cardíaco referido, por ação tóxica direta do calor ou por sensibilização às catecolaminas por stress físico aumentado, pode conduzir a arritmias cardíacas igualmente descritas neste contexto e que poderiam determinar a morte, mesmo na ausência dos achados macro e microscópicos acima descritos» (ponto 341 do provado);
- «Macroscopicamente foram ainda observadas hemorragias petequiais múltiplas sub-conjuntivias, sub-pleurais, sub-epicárdicas e também nas paredes do terceiro ventrículo e no pavimento do quarto ventrículo, que podem ser explicadas pelo aumento da fragilidade capilar coincidente com a anoxia e o colapso circulatório, e associadas ao quadro descrito» (ponto 342 do provado);
- «Consta do relatório de autópsia como causa de morte de OO "golpe de calor"» (ponto 343 do provado);
- «De todo o circunstancialismo descrito resultaram para o PP, várias síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluíram, hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda, alteração do estado de consciência, obnubilação, estado confusional, convulsões e coma, designadamente uma falência multi-órgãos (hepática, neurológica, respiratória e renal)» (ponto 409 do provado).
Verifica-se que do relatório de autópsia a que se faz referência consta ainda que «os achados histopatológicos descritos não são específicos e devem ser correlacionados com a informação circunstancial e clínica ...".
A informação clínica que nos foi presente sobre o caso em apreço é muito clara quanto ao estado da vítima quando socorrida - desidratado, exausto, desorientado e com hipertermia - como vai mais longe no diagnóstico afirmando mesmo um "quadro clínico de golpe de calor e hipertermia»; «O extenso enfarte hemorrágico subendocárdico (que não isquémico, por ausência de lesões coronárias) observado macroscopicamente na autópsia e confirmado histologicamente, bem como as alterações compatíveis com uma necrose tubular aguda, a que se associa a mioglobinúria em consequência de rabdomiólise, constituem todos achados clássicos do quadro do golpe de calor.
Por outro lado, o enfarte cardíaco referido, por ação tóxica directa do calor ou por sensibilização às catecolaminas por stress físico aumentado, (pode) conduzir a arritmias cardíacas igualmente descritas neste contexto e que poderiam determinar a morte, mesmo na ausência dos achados macro e microscópicos acima descritos.
Macroscopicamente foram ainda observadas hemorragias petequiais múltiplas sub-conjuntivais, sub-pleurais, sub-epicárdicas e também nas paredes do terceiro ventrículo e no pavimento do quarto ventrículo, que podem ser explicadas pelo aumento da fragilidade capilar coincidente com a anoxia e o colapso circulatório, e associadas ao quadro descrito.
Os dados autópticos atrás circunstanciadamente descritos harmonizam-se assim com a hipótese de diagnóstico aventada, apresentando o falecido sinais macroscópicos e histológicos concordantes com a entidade nosológica acima referida».
Do exposto resulta que OO padeceu de falência multiorgânica (coração, cabeça, pulmões, destruição das fibras musculares - no que consiste a rabdomiólise que, por sua vez provoca insuficiência renal aguda, típica aliás do golpe de calor, conforme descrito no relatório de autópsia de PP e nos relatórios clínicos dos demais assistidos em meio hospitalar) de forma concordante com a hipótese de diagnóstico feita na informação clínica fornecida e, dizemos nós, com o a caracterização contida no próprio relatório da inspecção técnica extraordinária realizado ao Curso ... descrito no ponto 419 do provado, de onde consta “Golpe de calor provocado pelos exercícios” que «(...) os factores de risco associados a este tipo de golpe de calor incluem a fadiga generalizada, vestuário pesado e inapropriado, exposição directa ao sol, desidratação, ausência de acondicionamento cardiovascular e aclimatização ao calor, desidratação ou inacessibilidade à água e doenças crónicas».
Ora, constando do relatório de autópsia que a causa da morte do OO foi “golpe de calor”, e que apresentava sinais de desidratação, sendo o golpe de calor caracterizado clinicamente pela forma relatada, resultando do relatório de autópsia a assunção como correcta da informação clínica que apontava um quadro de desidratação, a conclusão a tirar é que está ínsito no relatório de autópsia que o enfarte cardíaco resultou de falência multiorgânica em consequência do exercício físico e falta de água em ambiente quente (o que corresponde a desidratação) provocando vários síndromes clínicos e a lesão de vários órgãos e sistemas, que incluem hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda e alteração grave do estado de consciência (obnubilação, estado confusional e convulsões).
Isso resulta aliás, descrito no relatório de autópsia que refere um quadro hemorrágico subendocárdico, o que significa que a rabdomiólise, consequente à desidratação, calor e esforço físico, provocou desagregação das fibras musculares do coração.
Assim impõe-se considerar provado que resulta do relatório de autópsia que «o enfarte cardíaco resultou do estado de desidratação, calor e exaustão física e a causa da morte de OO foi por falência multiorgânica, em consequência de exercício físico, falta de água em ambiente quente, provocando vários síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluem hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda e alteração grave do estado de consciência (obnubilação, estado confusional, convulsões até à morte».
Não se prova «que o formando OO tenha sofrido de uma subida rápida da temperatura corporal superior a 40.ºC». Assim será eliminado o ponto 246 e alterada, na conformidade, a redacção do 247.
- O ponto 249 (que PP se apresentasse semicomatoso, obnubilado, com movimentos de mãos descoordenados, não reactivo a estímulos e não falasse) reporta-se ao momento em que o instruendo que observado pelo médico do INEM.
Consta do ponto 303 do provado que quando PP foi retirado para a enfermaria já não falava nem conseguia andar sendo que o seu estado de saúde se foi agravando a ponto de ter espasmos e acabando por ser sedado para que os enfermeiros conseguissem colocar-lhe a agulha de soro (pontos 318, 319 e 320 do provado).
Há a certeza de que não falava, pelo que se impõe a retirada deste facto no não provado e a sua colocação no provado, passando a constar do não provado «que quando foi observado pelo médico do INEM, PP se apresentasse semicomatoso, obnubilado, com movimentos de mãos descoordenados, não reactivo a estímulos» e do provado que «quando foi observado pelo médico do INEM, PP não falava».
- O ponto 255 (que não houvesse termómetros próprios para medir a temperatura corporal e que os enfermeiros da ... fossem incapazes de funcionar com o DAE disponível, ou que este já não fosse utilizado pelo INEM, e que só tenha provocado a degradação do estado de saúde dos ofendidos internados) contraria o provado sob o ponto 457 (os soldados LLL e YYY do ... encontravam-se equipados com dispositivos para recolha de temperatura corporal, frequência cardíaca e respiratória) na medida em que um aparelho para medição da temperatura corporal é um termómetro.
Consequentemente, fica apenas no não provado «que os enfermeiros da ... fossem incapazes de funcionar com o DAE disponível, ou que este já não fosse utilizado pelo INEM, e que só tenha provocado a degradação do estado de saúde dos ofendidos internados».
- O ponto 259 (que constasse do relatório da perícia de dano corporal de UU como uma das causas da disfunção hepática e lesão renal aguda a desidratação) e o ponto 261 (que constasse do relatório da perícia de dano corporal que as lesões de UU tivessem resultado de desidratação) não têm correspondência com o alegado na acusação cuja redacção é de que «UU, na sequência de exposição a calor, esforço físico intenso e desidratação profunda, sofreu uma disfunção hepática e lesão renal aguda» na medida em que na acusação não se disse que tais lesões constassem do relatório de perícia médica.
A fundamentação exarada foi de que «relativamente à situação clínica de UU o Tribunal não considerou que a desidratação profunda tivesse sido, a par da exposição ao calor e ao esforço físico, a causa da disfunção hepática e lesão renal aguda sofrida por aquele, com fundamento no que consta no relatório da perícia de avaliação do dano corporal realizada àquela testemunha e constante de fls. 143 a 145 do Apenso 04, visto que dele não consta a indicação de desidratação profunda como tendo sido um dos factores das lesões sofridas pela testemunha, tratando-se de um acrescento do Ministério Público sem suporte documental ou testemunhal que apoie tal afirmação» e de que «igual fundamento levou o Tribunal a não dar como provado que as lesões sofridas por UU tivessem resultado de desidratação». Conforme resulta do texto transcrito a questão foi analisada com reporte para a desidratação profunda e não para a simples desidratação, o que significa que se descartou a análise do cerne da questão colocada no ponto do não provado, que se resume à desidratação.
Do provado em 370 resulta que «no dia ... de ... de 2016, UU, do 1.° Grupo (P1), foi transferido do Regimento ..., para o Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, dando entrada no HFARR pelas 19H33, com diagnósticos de rabdomiólise grave e desidratação, referindo dores lombares, urina escura, tonturas, temperatura corporal 37,8.°C, constando do diário clínico com a data de ...-...-2016 "que no dia ...-...-16 é submetido a violento esforço físico, em condições de calor extremo, sob restrição hídrica e sem aporte de sal, tendo ficado dorido e prostrado».
No ponto 374 do mesmo provado diz-se que «consta do relatório da perícia do dano corporal que: "UU, na sequência de exposição a calor, esforço físico, sofre uma disfunção hepática e lesão renal aguda com necessidade de técnica de substituição renal em contexto de desidratação e rabdomiólise graves, que obrigaram a um internamento hospitalar entre ...-...-2016 e ...-...-2016 e posterior vigilância ambulatória, na consulta de nefrologia até ...-...-2016, altura da alta, com indicação de medidas gerais de proteção renal. Como intercorrências durante o internamento há a referir infeção urinária e aumento do padrão inflamatório com substituição dos CVP."».
Em face do exposto há que eliminar estes pontos do não provado, e passá-los para o provado, de acordo com os termos com que foram alegados na acusação, ou seja, de que «uma das causas da disfunção hepática e lesão renal aguda de UU foi a desidratação».
- Quanto ao ponto 260 (que constasse do relatório que a sintomatologia apresentada por PPP (prostração marcada e tonturas) se devesse à fadiga extrema e à desidratação e que a sua situação clínica resultasse da desidratação) a questão coloca-se nos precisos termos da anterior.
Não consta da acusação que tal conclusão tenha resultado do relatório clínico, mas sim que «relacionando a informação circunstancial, a sintomatologia e os exames clínicos e analíticos concluiu-se que: a sintomatologia referida (prostração marcada, tonturas) deve-se à fadiga extrema e à desidratação».
A fundamentação dada foi reportada àquela que foi vertida quanto ao ponto anterior, pois aí se refere que «pelos mesmos fundamentos, por tal não constar das informações clínicas lavradas relativamente aos instruendos PPP, TT e AAAAA, o Tribunal não pode considerar provado que a sintomatologia por estes apresentada e a suas situações clínicas se devessem à fadiga extrema e à desidratação».
Do provado fez-se constar que «366. Relacionando a informação circunstancial, a sintomatologia e os exames clínicos e analíticos concluiu-se que: a sintomatologia referida (prostração marcada, tonturas) é inespecífica, surgindo em muitas patologias», o que consta nas conclusões da perícia feita.
Contudo, consta do relatório clínico elaborado pelo HFAR (que foi o local onde este instruendo foi atendido em primeiro lugar e já no dia seguinte à interrupção da prova) que aí chegou «prostrado e sonolento», «desde ontem prostração marcada tonturas e urina escura associada exposição ao calor e EF», que fez hidratação ev (endovenosa) sendo que uma hora depois estava melhorado, tendo continuado a fazer hidratação com poliG.
Mais consta do provado que PPP foi retirado da instrução de tiro já face ao estado de fadiga e desidratação que demonstrava, instrução essa que decorreu da parte da tarde, sendo que depois foi colocado em enfermaria, destinada aos casos mais graves conforme consta do apenso 19.
Do conjunto das circunstâncias apuradas quanto a este instruendo infere-se, sem dúvida, que «a sintomatologia apresentada por PPP (prostração marcada e tonturas), à entrada no HFAR deveu-se à fadiga extrema, ao calor e à desidratação», o que será retirado do não provado e aditado ao provado.
- Mais uma vez, a mesma questão coloca-se quanto ao ponto 261 (que constasse do relatório da perícia de dano corporal que as lesões de UU tivessem resultado de desidratação). A acusação não fez constar os factos com reporte para o relatório de perícia. O que releva é saber se os factos se provam ou não provam.
A fundamentação deste ponto é de que «igual fundamento levou o Tribunal a não dar como provado que as lesões sofridas por UU tivessem resultado de desidratação».
Consta do ponto 370 do provado que «no dia ... de ... de 2016, UU, (…) foi transferido (…) para o Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, dando entrada no HFAR pelas 19H33, com diagnósticos de rabdomiólise grave e desidratação, referindo dores lombares, urina escura, tonturas, temperatura corporal 37,8.°C, constando do diário clínico com a data de ...-...-2016 "que no dia ...-...-16 é submetido a violento esforço físico, em condições de calor extremo, sob restrição hídrica e sem aporte de sal, tendo ficado dorido e prostrado”».
Este ponto do não provado corresponde ao que consta do respectivo relatório médico, pelo que será excluído do não provado e passará para o provado na seguinte redacção «as lesões de UU foram resultado de desidratação, calor e exaustão física».
- Resulta do ponto 262 que não se provou (que a sintomatologia apresentada por TT - obnubilação e prostração - se devesse à fadiga extrema e desidratação).
Está provado em 379 do provado que «no dia ... de ... de 2016, TT, do 2.º Grupo (P2), foi transferido da enfermaria do Campo de Tiro ..., para o Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, dando entrada neste pelas 14H06, por apresentar um quadro clínico de Golpe de Calor, inconsciência, desidratação, prostração e sem conseguir anamenese, tendo tido alta hospitalar no dia ... de ... de 2016» e em 380 que «TT foi admitido no serviço de urgência obnubilado e prostrado, constando a referência a golpe de calor nessa manhã e traumatismo da perna direita 2 dias antes deste episódio, mas sendo as lesões osteo-articulares de ambos os joelhos anteriores ao evento», o que corresponde ao quadro clínico registado no boletim respectivo, pelo que se impõe a exclusão deste ponto do não provado e a sua inclusão no provado, nos seguintes termos «a sintomatologia apresentada por TT (obnubilação e prostração), deveu-se ao calor e à fadiga extrema e desidratação».
- O ponto 263 (que a situação clínica de TT tivesse resultado da desidratação) não tem qualquer reporte para o caso, porque não existe nenhum formando assim referenciado na sentença recorrida. Existe um denominado MMM (que se chama MMM) e um TT, cujo nome é TT.
Na conformidade resta a exclusão deste ponto do não provado porque não tem correspondência com qualquer facto relevante nem imputado na acusação.
- Quanto aos pontos 264 (que a sintomatologia referida (tonturas, vómitos e prostração) de AAAAA se devesse à fadiga extrema e desidratação) e 265 (que a situação clínica de AAAAA tivesse resultado de desidratação) a matéria em causa resulta do relatório clínico contido no apenso 8 do qual consta que o referido instruendo foi levado para o HFAR, por ambulância, por quadro de desidratação, tendo ficado só a fazer hidratação por soroterapia.
Do exposto, conjugado com o provado sob o ponto 386, resulta que a sintomatologia que apresentava resultava de um quadro de desidratação, que se sabe acompanhado de muito calor e elevado esforço físico, o que foi um quadro comum a todos os internados.
Assim, resta passar para o provado que «que a sintomatologia referida (tonturas, vómitos e prostração) de AAAAA deveu-se ao calor, à fadiga extrema e desidratação, elementos determinantes da sua situação clínica» retirando estes dois pontos do não provado.
- Os pontos 266 (que PPPPP, apresentasse tonturas e urina escura desde o dia ... de ... de 2016, após golpe de calor, durante esforço físico intenso e desidratação), 267 (que a sintomatologia apresentada por PPPPP se devesse à fadiga extrema e desidratação) e 268 (que a situação clínica de PPPPP tivesse resultado de desidratação) receberam a seguinte fundamentação «deu-se como não provado que PPPPP apresentasse tonturas e urina escura, desde o dia ... de ... de 2016 após golpe de calor, durante esforço físico intenso e desidratação, com fundamento na descrição do resumo de episódio de urgência do HFARR de fls.2 do Apenso 07.
O facto de se ter dado como não provado que a sintomatologia e a situação clínica de PPPPP se devesse à fadiga extrema e desidratação com fundamento no facto disso não resultar do relatório de perícia de avaliação do dano corporal junto a fls. 23 a 25 do Apenso 07, o qual apenas refere que terá resultado da ação do calor em contexto de esforço físico».
Do apenso 7 consta que o formando foi recebido dia ... HFAR e apresentava «desde hoje tonturas e urina escura»; «exposição ao calor e fez hidratação EV na enfermaria do exercício»; «plano hidratação»; conclusões «a situação clínica atrás referida será resultado da ação de agente físico calor em contexto de esforço físico e é compatível com a informação».
Mais uma vez resulta da experiência comum, ancorada na documentação hospitalar, que sendo a hidratação o plano médico desenhado para recuperar o doente, o mesmo apresentava um quadro de desidratação. Este formando já tinha recebido hidratação na enfermaria do exercício, o que significa que já nessa altura a sua situação de desidratação mereceu atendimento na enfermaria, por ser considerada grave e que o tratamento prestado foi precisamente para contornar esse estado de desidratação. É certo que não se considerou provado que ele tenha estado na enfermaria, mas o facto é que não havendo conhecimento de qualquer internamento na enfermaria de campanha posterior ao dia 4, se tem que assumir que tal ocorreu nesse dia 4.
Assim há que considerar assente que «que PPPPP, apresentasse tonturas e urina escura desde o dia ... de ... de 2016, após golpe de calor, durante esforço físico intenso e desidratação»; e que «a situação clínica e sintomatologia apresentada por PPPPP deveram-se à fadiga extrema e desidratação associadas ao calor»,
- Os pontos 269 (que a sintomatologia apresentada por LLLL se verificasse desde o dia ... de ... de 2016), 270 (que a sintomatologia apresentada por LLLL se devesse à fadiga extrema e desidratação) e 271 (que as lesões de LLLL tivessem resultado de desidratação) obtiveram a seguinte fundamentação «Também por não resultar essa informação dos elementos clínicos de LLLL que constam do Apenso 05, nomeadamente o relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls. 53 a 55, o Tribunal considerou não provado que a sintomatologia apresentada por esta testemunha se verificasse desde o dia ..., nem que se devesse à fadiga extrema e desidratação e que as lesões igualmente tivessem resultado da desidratação».
Resulta do provado que «396. No dia ... de ... de 2016, LLLL, do 1° Grupo (P1), foi transferido do Regimento ..., pelas 14H04, para o Serviço de Urgência do Hospital das Forças Armadas, por apresentar um quadro de desorientação e desidratação, apresentando-se muito prostrado, sonolento, pupilas isocóricas e isoreactivas, após golpe de calor, durante esforço físico intenso e desidratação, onde se manteve internado», «397. Ficou internado na urgência do HFARR até ...-...-2016, tendo sido transferido para internamento no serviço de medicina interna, tendo sido dada alta hospitalar a ...-...-2016, data em que o estado de saúde foi considerado restabelecido», «398. Relacionando a informação circunstancial, a sintomatologia e os exames clínicos e analíticos concluiu-se que a sintomatologia referida "(prostração marcada, tonturas) é inespecífica, surgindo em muitas patologias; alterações analíticas traduzem sofrimento muscular ligeiro com sinais de rabdomiólise» e que «399. As lesões atrás referidas resultaram de evento de natureza física - calor, em contexto de esforço físico».
Do apenso 5 consta que este formando «à entrada no SU apresentava-se sonolento, não orientado no tempo e espaço, com referência a ter-se instalado quadro clínico de prostração durante a manhã, com evidência de desidratação vindo sob terapêutica electrolítica parentérica»; «Foi submetido a medidas de hidratação».
Do exposto resulta, aliás em conformidade com a que acima foi sendo referido, que também este formando deu entrada no HFAR em situação de desidratação, e foi sujeito a terapia que visa precisamente a reposição dos fluidos no corpo, isto é, terapia de hidratação.
Pelo exposto impõe-se a passagem para o provado que «as lesões e a sintomatologia apresentada por LLLL deveu-se à desidratação em conjugação com o calor, em contexto de fadiga extrema», ficando no não provado «que a sintomatologia apresentada por LLLL se verificasse desde o dia ... de ... de 2016».
- O ponto 273 (que a causa da morte de PP tivesse sido devida provocando vários síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluem hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda e alteração grave do estado de consciência (obnubilação, estado confusional, convulsões até à morte) está em contradição com o provado em 409 «de todo o circunstancialismo descrito resultaram para o PP, várias síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluíram, hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda, alteração do estado de consciência, obnubilação, estado confusional, convulsões e coma, designadamente uma falência multi-órgãos (hepática, neurológica, respiratória e renal»
A fundamentação dada para o não provado foi de que «por também não ter sido essa a conclusão lavrada no relatório de necropsia relativa a PP quanto à causa da sua morte, o Tribunal não considerou provado que a mesma se devesse ao exercício físico, à falta de água em ambiente quente, causado por uma subida rápida da temperatura corporal superior a 40.ºC, provocando vários síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluem hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda e alteração grave do estado de consciência (obnubilação, estado confusional, convulsões até à morte)» e a fundamentação exarada para o provado referiu que «relativamente às lesões e à causa da morte de PP o Tribunal fundamentou-se no teor do relatório de autópsia constante de fls. 935 a 937/947 a 952 e aditamento ao relatório de fls. 1094 a 1096/1545 a 1551, estudo histopatológico de fls. 938 a 944/ 955 a 965, nas análises de fls. 945 e 946/ 953 a 954/1097 a 1098, bem como nas declarações e esclarecimentos, prestados pelo perito de medicina legal que realizou e elaborou o mesmo, CCCCCC».
Ora, o que resulta da fundamentação do não provado com relevo para a prova do segmento é que «o Tribunal não considerou provado que a mesma se devesse ao exercício físico, à falta de água em ambiente quente, causado por uma subida rápida da temperatura corporal superior a 40.ºc» - na sequência do que se considerou não provado o que antes se tinha considerado provado.
Resulta do provado que «407. A situação clínica de PP evoluiu para disfunção multiorgânica, com agravamento progressivo irreversível» e que «409. De todo o circunstancialismo descrito resultaram para o PP, várias síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluíram, hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda, alteração do estado de consciência, obnubilação, estado confusional, convulsões e coma, designadamente uma falência multi-órgãos (hepática, neurológica, respiratória e renal)» )» síndromes e com as lesões essas que estão descritos no relatório de autópsia como sendo as concretas patologias que antecederam a morte do formando, em concordância com o descrito no provado.
A questão que se coloca é unicamente saber se os diversos síndromes apontados nos relatórios clínicos foram, ou não, a causa da morte.
Dado que o provado tem reporte para o relatório de autópsia, e que clinicamente não foram descritos outros sintomas, sendo todos estes compatíveis com o invocado golpe de calor, impõe-se a consideração de que foram precisamente os vários síndromes que determinaram de forma directa e necessária, a morte de PP, como aliás já constava do ponto 409, pelo que passará para o provado que «a causa da morte de PP foi devida a vários síndromes clínicos e lesão de vários órgãos e sistemas, que incluem hipotensão, rabdomiólise, lesão hepática aguda, lesão renal aguda e alteração grave do estado de consciência», saindo o referido ponto do não provado.
- Quanto ao ponto 297 (que os arguidos tivessem provocado feridas idênticas às fotografadas no Apenso 14, e que tais comportamentos tivessem sido expressamente proibidos durante a prova pelo arguido GG correspondendo a práticas ancestrais que visam humilhar e ofender corporalmente os formandos, privando-os da necessária formação de tiro, essencial para o treino operacional) prova-se, como acima referido, que os comportamentos de alguns arguidos provocaram feridas idênticas às fotografadas no Apenso 14, tiradas precisamente a dois dos instruendos.
Consequentemente, a não prova é restrita ao facto de esses comportamentos terem sido expressamente proibidos durante a prova pelo arguido GG correspondendo a práticas ancestrais que visam humilhar e ofender corporalmente os formandos, privando-os da necessária formação de tiro, essencial para o treino operacional.
- Quanto ao ponto 772 (que AA, MM, GG, BB, CC, NN eDD tivessem conhecimento das circunstâncias em que ocorre o Golpe de Calor) a fundamentação dada foi de que «o Tribunal ficou convicto de embora AA, MM, BB, CC, NN eDD tivessem conhecimento da existência de Golpe de Calor, não tinham conhecimento das circunstâncias em que este ocorre, dado que não foi demonstrado que lhes tivesse sido transmitido qualquer informação ou recebido formação sobre este fenómeno».
A questão não se coloca quanto ao golpe de calor enquanto termo clínico mas quanto às causas naturais do golpe de calor e está dilucidada acima quanto a toda a equipa de formação, tendo-se considerado que todos eles sabiam da necessidade de manter os formandos convenientemente hidratados, sabiam que do esforço físico poderiam vir lesões graves – por isso mesmo fazia parte da formação uma equipa de enfermagem e um médico, e uma enfermaria equipada com desfribilhador – e tinham necessariamente conhecimento de que o calor implica desidratação, que a desidratação se agrava com esforço físico e que os três elementos em conjunto são potencialmente letais, factos que resultam da experiência comum e para os quais estavam advertidos pelo especial alerta que estava contido no Guião que lhes foi apresentado para execução.
Para além disso os arguidos referidos já tinham desempenhado funções de formadores em anteriores cursos, conforme consta do provado, ou seja, já tinham visto os efeitos do exercício em conjugação com a desidratação acontecerem.
Impõe-se, consequentemente, retirar este ponto do não provado e passar para o provado que «AA, MM, GG, BB, CC, NN eDD tinham conhecimento de que o calor, aliado ao esforço físico e desidratação eram aptos a provocar doenças e até a morte»
- A não prova dos pontos 275 (que os arguidos AA, MM, BB, CC e GG, desde 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, tivessem obrigado OO, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, acima descritos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, actuaram com intenção de ofender o corpo ou a saúde do ofendido OO e previram que dessas ofensas podiam resultar graves lesões neurológicas, cardíacas, renais e hepáticas, que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica, conformando-se com esses resultados, mas, todavia, não previram e confiaram que a morte do ofendido OO não sobreviria), e 278 (que os arguidos AA, MM, NN e GG, desde 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, ao obrigarem o ofendido PP, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, acima descritos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, constantes de fls. 1064 e 1072, e ao racionarem sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, actuaram com intenção de ofender o corpo ou a saúde do ofendido PP e previram que dessas ofensas podiam resultar graves lesões neurológicas, renais e hepáticas, que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica, tendo em conta que essas ofensas se traduzem numa falência de importantes órgãos e na provocação de perigo para a vida, conformando-se com esses resultados, mas, todavia, não previram e confiaram que a morte do ofendido PP não sobreviria) não tem qualquer reporte para a fundamentação da aquisição probatória exarada.
Estes factos não se provam na parte em que imputam aos arguidos a coação dos instruendos a executar os exercícios próprios do curso, no qual os formandos se inscreveram voluntariamente. Provou-se uma única situação, de um formador obrigar um formando a continuar um exercício e nada mais, pelo que a questão não pode ser generalizada aos arguidos supra referidos, nem a todos os formandos ou sequer ao formando UU.
GG não interferiu na execução de nenhum exercício, pelo que quanto a ele não se prova a sujeição a qualquer exercício.
Que os arguidos AA, MM, BB e CC, e que os arguidos AA, MM e NN tivessem sujeitado OO e PP, respectivamente, à prática dos exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, acima descritos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, tenham actuado com intenção de ofender o corpo e a saúde dos ofendidos, prova-se, porque era precisamente esse o fito da prova. Provocar mal-estar, lesões físicas e psicológicas e levar os ofendidos à superação, que no caso acabou na morte dos instruendos.
Que tenham previsto que dessas ofensas pudessem resultar graves lesões neurológicas, cardíacas, renais e hepáticas, que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica, e que se tenham conformado com esses resultados, também se prova, porque todos eles sabiam das consequências da conjugação do elevado esforço físico, com o calor e a desidratação e para isso estavam advertidos.
E por fim, também se prova, que não previram e confiaram que a morte dos formandos, entre eles os ofendidos OO e PP não ocorreria. Nada nos autos indicia, e muito menos suporta a prova do contrário, pelo que essa falta de conformação tem que se ser acrescentada ao provado, uma vez que, contida na acusação / pronúncia, mas sendo um facto duvidoso, beneficia os arguidos.
Assim, impõe-se levar ao provado os factos acima referidos, na versão de que « os arguidos AA, MM, BB e CC, por um lado, e os arguidos AA, MM e NN, por outro, sujeitaram OO e PP, respectivamente, à prática dos exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, acima descritos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, actuaram com intenção de ofender o corpo e a saúde dos ofendidos e previram que dessas ofensas podiam resultar graves lesões orgânicas, conformando-se com esses resultados, mas, todavia, não previram que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica e confiaram que não ocorreria a morte dos ofendidos OO ou PP.».
No não provado fica que «os arguidos AA, MM, BB, CC e GG, por um lado, e os arguidos AA, MM e NN e GG, por outro, desde 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, tivessem obrigado OO e PP, respectivamente, à prática dos exercícios físicos acima descritos».
- O mesmo se diga quanto ao ponto 281 (que os arguidos AA, MM, ZZ e GG, tivessem obrigado UU à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo e ao racionarem sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, tivessem actuado com intenção de ofender o corpo ou a saúde de UU e tivessem previsto que dessas ofensas podiam resultar graves lesões neurológicas, renais e hepáticas, que poderiam evoluir até a uma falência de órgãos vitais e previram que da falência de tais órgãos vitais resultasse perigo para a vida do ofendido, tendo-se conformado com esses resultados), pelo que resta passar para o provado que «os arguidos AA, MM e ZZ sujeitaram UU à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo e ao racionarem sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, tivessem actuado com intenção de ofender o corpo ou a saúde de UU e tivessem previsto que dessas ofensas podiam resultar graves lesões neurológicas, renais e hepáticas, mas, todavia, não previram que poderiam evoluir até a uma falência de órgãos vitais da qual resultasse perigo para a vida do ofendido, resultado com o qual não se conformaram ».
- Quanto aos pontos 286 (que os arguidos AA, MM, BB e GG, tivessem obrigado desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, III, LLL, MMM, NNN, OOO e PPP, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, soubessem que estes podiam sofrer graves lesões neurológicas, renais, hepáticas e desidratação extrema e se tivessem conformado com esses resultados), 287 (que os arguidos AA, MM, BB e GG, tivessem obrigado desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, TTT, UUU, QQ, HHHH, IIII, JJJJ, LLLL e OOOO, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, soubessem que estes podiam sofrer graves lesões neurológicas, renais, hepáticas e desidratação extrema e se tivessem conformado com esses resultados), 288 (que os arguidos AA, MM, BB e GG, tivessem obrigado desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, VVVV, AAAAA, TT e TTTT, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, soubessem que estes podiam sofrer graves lesões neurológicas, renais, hepáticas e desidratação extrema e se tivessem conformado com esses resultados) e 290 (que os arguidos AA, MM, NN e GG, tivessem obrigado desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, LLLLL, MMMMM, NNNNN, OOOOO, PPPPP e RRRRR, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, soubessem que os ofendidos podiam sofrer graves lesões neurológicas, renais, hepáticas e desidratação extrema e conformaram-se com esses resultados) não têm reporte para qualquer fundamentação contida na motivação da aquisição probatória.
Repete-se que estes factos não se provam na parte em que imputam aos arguidos a coação dos instruendos a executar os exercícios próprios do curso, no qual os formandos se inscreveram voluntariamente.
GG não interferiu na execução de nenhum exercício, pelo que quanto a ele não se prova a sujeição a qualquer exercício.
Contudo, prova-se que os arguidos sabiam que os exercícios eram desgastantes e intensivos, estavam a ser executados sob elevadas temperaturas do ar e do solo, que o consumo de água estava racionado e que desse conjunto de circunstâncias era previsível que pudessem resultar lesões no corpo e na saúde dos formandos nos termos atrás referidos.
Assim a matéria de tais pontos de facto passará para o provado nos seguintes termos:
«os arguidos AA, MM e BB, sujeitaram, desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, III, LLL, MMM, NNN, OOO e PPP, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, sabiam que estes podiam sofrer graves lesões orgânicas tendo-se conformado com esses resultados»:
« os arguidos AA, MM e BB, sujeitaram, desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, TTT, UUU, QQ, HHHH, IIII, JJJJ, LLLL e OOOO, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, sabiam que estes podiam sofrer graves lesões orgânicas, tendo-se conformado com esses resultados»;
« os arguidos AA, MM e BB, sujeitaram, desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, VVVV, AAAAA, TT e TTTT, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, sabiam que estes podiam sofrer graves lesões orgânicas tendo-se conformado com esses resultados»;
« os arguidos AA, MM e NN, sujeitaram, desde as 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, LLLLL, MMMMM, NNNNN, OOOOO, PPPPP e RRRRR, à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem o consumo de água, sabiam que os ofendidos podiam sofrer graves lesões orgânicas tendo-se conformado com esses resultados».
No não provado fica que «AA, MM e BB e NN tenham obrigado algum instruendo à prática dos exercícios físicos acima descritos»
- No que concerne aos factos imputados ao arguido GG nos pontos 275 , 278, 281, 286, 287, 288 e 290 prova-se que ele sabia as condições em que a prova estava a ser executada, não obstante não ser instrutor de exercícios. Conhecia as circunstâncias atmosféricas, o limite de hidratação e sabia das consequências da conjugação do calor com a desidratação e as feridas inerentes à execução da prova, porque já tinha servido em provas anteriores.
Quanto a ele, impõe-se, portanto, a prova de um menos relativamente ao que lhe foi imputado, consistente na afirmação de que se prova que «o arguido GG sabia que os formandos estavam sujeitos à prática dos exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, acima descritos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, com racionamento do consumo de água necessário para enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, mediante a intenção de causar ofensa no corpo e na saúde dos formandos e previu que dessas ofensas podiam resultar graves lesões neurológicas, cardíacas, renais e hepáticas, mas, todavia, não previu que poderiam evoluir até a uma falência de órgãos vitais da qual resultasse perigo para a vida do formandos, dentre eles OO e PP, resultado com o qual não se conformou ».
- O conteúdo do ponto 282 (que o arguido BB ao ordenar que LLL e RR, rastejassem nas silvas, tivesse agido com o propósito de lhes provocar lesões corporais) prova-se em face de todo o exposto, pelo que será excluído do não provado e passará para o provado nos seguintes termos «o arguido BB ao ordenar que LLL e RR, rastejassem nas silvas agiu com o propósito de lhes provocar feridas no corpo».
- O ponto 285 (que o OO já apresentasse lesões neurológicas e o arguido CC ao colocar terra na boca de OO, tivesse agido com o propósito de o impedir de respirar, tendo-lhe provocado lesões corporais que agravaram o seu estado de saúde) está parcialmente provado em face do que se provou que em 132 com a correcção agora feita de que «o instruendo OO apenas cuspia e se babava e num estado confusional dizia que estava ali para curar as feridas», e da análise acima referida quanto à intenção subjacente à actuação do arguido, pelo resta a sua retirada do não provado e colocação no provado nos seguintes termos «o OO já apresentava lesões neurológicas quanto o arguido CC lhe colocou terra na boca, tendo-lhe provocado maior desidratação, o que agravou o seu estado de saúde»
- A prova do conteúdo do ponto 291 (que o arguido GG ao ordenar que os ofendidos RR, JJJ e PPP que rastejassem na direcção da ambulância, tivesse agido com o propósito de lhes provocar lesões corporais e neurológicas, agravando o estado de saúde já debilitado que os mesmos apresentavam) resulta ínsita à própria atitude e ao estado em que os formandos se encontravam, registado sob os pontos 120 e seguintes, pelo que a matéria será excluída do não provado sendo que já se encontra provada nos termos acima fixados.
- O não provado no ponto 296 (que os arguidos DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, tivessem provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais no corpo dos instruendos dos Grupos P1, P2 e P3) contraria o que se prova quanto à actuação de todos eles. Para além do que resulta da análise em processo, há que considerar o que já constava dos pontos 174, quanto a FFF, 430 quanto a GGG, 268 quanto a HHH, 171, 219, 221 e 274 quanto a DDD, e 223 e 274 quanto a EEE.
Os pontos do provado acrescentados por força de vícios aqui analisados reforçam a danosidade da actuação destes arguidos, conforme passará a constar dos pontos 175-B, 274-C e 228-A quanto ao primeiro, 228-A e 274-C quanto ao segundo, 274-C quanto ao terceiro, 175-B e 228-A quanto ao quarto e 430-C quanto ao quinto.
Pelo exposto, este ponto passará para o provado, sob a redacção de que «os arguidos DDD, EEE, FFF, GGG e HHH, provocaram e agiram com o propósito de provocar danos no corpo dos instruendos dos Grupos P1, P2 e P3».
- Quanto ao ponto 299 (que o arguidoDD tivesse provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais em JJJ e TTT e EE) provam-se lesões decorrentes da actuação deste arguido quanto a TTT e EE.
Contudo, mais do que isso, decorre do ponto 539 da acusação a imputação aDD de agir com o propósito de provocar lesões corporais no corpo dos ofendidos dos Grupos P1, P2 e P3, nos mesmos termos do que resulta provado quanto a DDD, EEE, FFF, GGG e HHH o que tem reporte para o provado sob os pontos 174, 222, 223, 261 e 274 e, por força desta apreciação da prova também para a matéria que enformará os pontos 116-A, 245-B, 274-A e 430 D.
Manter-se-á, portanto, no não provado «que o arguidoDD tivesse provocado e agido com o propósito de provocar danos no corpo em JJJ» e passará para o provado que «o arguido DD provocou e agiu com o propósito de provocar danos no corpo em TTT e EE bem como no corpo dos instruendos dos Grupos P1, P2 e P3».
- Quanto ao ponto 304 (que o arguido LL provocou e tivesse agido com o propósito de provocar lesões corporais nos instruendos TTTT e RRRRR e TT) apenas se prova uma actuação com tais características junto de TT, pelo que ficará no não provado «que o arguido LL provocou e tivesse agido com o propósito de provocar danos no corpo nos instruendos TTTT e RRRRR» e passará para o provado que «o arguido LL provocou e agiu com o propósito de provocar lesões corporais em TT».
- Quanto ao ponto 305 (que o arguido BBB tivesse provocado e agido com o propósito de provocar lesões corporais nos formandos EE e RRRRR) o que se prova apenas tem reporte para factos danosos provocados em RRRRR, pelo que ficará no não provado «que o arguido BBB tivesse provocado e agido com o propósito de provocar danos no corpo em EE» e passará para o provado que «o arguido BBB provocou e agiu com o propósito de provocar danos no corpo em RRRRR».
- Quanto ao ponto 306 (que ao praticarem os factos acima descritos todos os arguidos tivessem criado um ambiente de pânico e sofrimento físico e psicológico nos ofendidos, sujeitando-os a tratamento não compatível com a natureza humana), 307 (que a atuação de todos os arguidos tivesse revelado um manifesto desprezo pelas consequências gravosas que provocaram nos ofendidos, e que os princípios e valores pelos quais se regem os arguidos revelaram desrespeito pela vida, dignidade e liberdade da Pessoa Humana, tratando os ofendidos como pessoas descartáveis) e 308 (que ao sujeitarem os militares, seus camaradas, ofendidos nos autos, a essa penosidade física e psicológica, sabiam todos os arguidos que excediam os limites permitidos pela Constituição da República Portuguesa e pelo Estatuto dos Militares da Forças Armadas, porquanto colocaram em risco a vida e a saúde dos ofendidos, o que aconteceu logo no primeiro dia de formação), naquilo que excedem a repetição de pontos anteriores, alguns dos quais considerados provados, são conclusivos, pelo que serão retirados do não provado.
- O ponto 326 (consta do guião que "apenas os instruendos que realmente necessitem de um maior apoio ou estabilização serão levados para a ambulância, Posto de Socorros do Bivaque ou mesmo evacuados, sendo a avaliação destes casos da responsabilidade do Oficial Médico presente que os propõe ao Diretor da Prova") contraria o próprio texto do guião, pelo que não se pode manter no não provado, passando para o provado.
- Quanto aos pontos 328 (que quando JJJ tivesse manifestado sede, tonturas e faltas de ar lhe tivesse sido ordenado que rastejasse por cima das silvas, provocando-lhe lesões corporais ao nível das mãos, braços e pernas), 329 (que os arguidos tivessem agido com o propósito de o humilhar e provocar lesões corporais) e 330 (que tais actos castigos tivessem provocado stress emocional, fadiga crónica, dores e infecções em resultado das feridas) eles resultam provados, o primeiro em consequência do provado sob 93 e 95 e os demais como consequências, decorrentes da experiência comum, dos referidos pontos.
Assim resta a exclusão destes pontos do não provado e a sua passagem para o provado, sob a redacção de que «quando JJJ manifestou sede, tonturas e faltas de ar foi-lhe ordenado que rastejasse por cima das silvas, o que lhe provocou danos no corpo ao nível das mãos, braços e pernas, stress emocional, fadiga e dores em resultado das ferida sendo que a ordem foi dada com o propósito de o humilhar e provocar danos no corpo».
- Em consequência do que acima foi referido quanto à não prova de que BB, CC, MM, ZZ, CCC, AAA e LL soubessem que as consequências nefastas da desidratação resultassem em lesões renais e neurológicas, esses factos passam para o não provado com a redacção de «que BB, CC, MM, ZZ, CCC, AAA e LL soubessem que as consequências nefastas da desidratação resultassem em lesões renais e neurológicas».
K) APRECIANDO
1. Questões Prévias
A. Invoca o Digno Procurador-Geral Adjunto, junto deste STJ, que por se tratar de lapso de escrita, ao abrigo do disposto no artigo 380.º, n.º 1, al. b), do CPP, deve ser alterado o texto do dispositivo no sentido de a condenação do arguido CC ser alterada para o tipo-base do nº 1 do art. 93º do CJM.
Cumpre apreciar,
Consta no dispositivo do acórdão da Relação:
«10- Condenar o arguido CC na pena de cinco anos e três meses de prisão, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo noventa e três, número dois, alínea d), do Código de Justiça Militar;»
No entanto, atenta a fundamentação e determinação da pena, designadamente, a fls. 1247, consta: “O arguido está incurso na prática de um crime cuja moldura vai de 2 a 8 anos de prisão”, tendo sido condenado numa pena de 5 anos e 3 meses de prisão.
O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando (...) a sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial. (al. b), do art.º 380.º, do C.P.P.)
E o Supremo Tribunal tem entendido que que “uma vez que a modificação essencial a que se refere a al. b), do n.º 1 do artigo 380.º do CPP deve ser aferida em relação ao que estava no pensamento do tribunal julgador decidir e não em relação ao que ficou escrito, é mister que tal pensamento se revele com inequivocidade bastante para se ajuizar devidamente da essencialidade ou da não essencialidade dessa modificação. É que a correcção para que a lei aponta e que o referido art. 380.º autoriza só pode ser ditada por erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade evidentes, já que de outro modo estaria aberta a passagem a um ínvio caminho conducente à alteração do decidido quando o poder jurisdicional se encontrasse esgotado, com risco para a segurança das decisões”4.
No caso sub judice, constata-se que a moldura penal referida no acórdão do Tribunal da Relação respeita à moldura do n.º 1 do artigo 93.º do CJM, conjugado com a fundamentação do acórdão.
Como bem observa o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto, junto deste STJ, consta da fundamentação:
“A actuação do arguido CC, ao colocar terra na boca de uma pessoa altamente desidratada, que se babava e cuspia, com evidente comprometimento neurológico e descontrole dos movimentos temporomandibulares - e inerente impossibilidade de coordenar tais movimentos no sentido de evitar a entrada de terra dentro boca ou de expulsar a que lá tivesse entrado - foi, em razão da experiência comum, apta a causar-lhe algum grau de sufoco. A terra tem efeito absorvente e foi, manifestamente, colocada para provocar uma maior secura na boca do instruendo, sabendo perfeitamente o arguido que ele estava em situação de elevada desidratação.
Contudo, desta conclusão não se pode retirar, com a adequada certeza jurídica, que esse grau de sufoco fosse causa adequada de provocar a morte do instruendo.
Que lhe provocaria um agravamento sensível do estado de saúde, não temos dúvidas, tal como não teve o enfermeiro SS, que tratou de a limpar imediatamente.
Realmente valeu ao instruendo, na oportunidade, a presença e a presença de espírito do enfermeiro, que lhe tirou a terra da boca, assim conseguindo anular as consequências prováveis da actuação do arguido.
Agora, o salto para o perigo de morte é que se considera excessivo e não fundamentado, enquanto conclusão que se imponha em resultado da aplicação das regras de experiência comum à escassez dos factos provados quanto às efectivas condições em que o acto foi praticado. Para esse risco não é indiferente o facto de, na altura, a terra ter entrado, ou não, na boca do instruendo (ou ainda, de ele ter a boca aberta ou fechada quando a terra o atingiu), tal como a quantidade que possa ter entrado, mas tudo isto são factos que se desconhecem ou não se podem considerar assentes (repare-se que há uma testemunha que diz que a seguir à actuação de CC ele se engasgou, o que aponta para a entrada de terra na boca, o que é insuficiente para prova relevante quanto à questão em apreço).
Não há, portanto, prova firme, segura e sólida para considerar que a intenção de CC fosse sufocar e matar o ofendido, ou que o arguido tenha admitido a possibilidade de provocar lesões que lhe causassem perigo de morte, ou sequer que essa sua actuação pudesse ter como consequência, necessária ou adequada, provocar um perigo de morte ao ofendido.
Do ponto 427 do provado consta que o arguido CC ao colocar terra na boca de OO, quando o mesmo já apresentava desidratação, bem sabia que ofendia o corpo deste e lhe causava mal-estar, o que quis, o que contraria manifestamente o ponto 66 do não provado, reportado à mesma ocorrência.
[…]
Impõe-se, assim, que se passe que: «o arguido CC ao colocar terra na boca do OO fê-lo sabendo que, como consequência directa e necessária da sua conduta, agravava o estado de desidratação e mal estar do instruendo», mantendo no não provado que «o arguido CC ao colocar terra na boca do OO fê-lo, bem sabendo que podia sufocar o ofendido e matá-lo”.
Reconhecido o erro, é preciso decidir se a irregularidade pode ser corrigida, nos termos da alínea b) do artigo 380.º do Código de Processo Penal.
In casu, o entendimento do tribunal é claro, resulta da lógica da decisão e do que ficou expresso, a referida correção do erro da decisão não viola direitos adquiridos do arguido CC, pois o alegado “benefício” resultava de um erro que lhe era facilmente reconhecível e que já se encontra plasmado na determinação da pena aplicada pelo Tribunal da Relação.
Pelo que, ao abrigo do artigo 380.º do Código de Processo Penal, determina-se a correcção do referido erro no acórdão do Tribunal da Relação, de ...-...-2024, passando a constar na Decisão, ponto 10), a fls. 1258:
“10 - Condenar o arguido CC na pena de cinco anos e três meses de prisão, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo 93.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar; (…)”
Registe-se, na 1ª Instância, a correção no local próprio.
B. Invoca o arguido BB, em sede de recurso que o acórdão condenatório incide sobre matéria que não fora alvo de recurso.
No entanto, escalpelizando os recursos para o Tribunal da Relação, constata-se nas conclusões B, V e X do recurso interposto pelos Assistentes JJ e KK que foram suscitados:
“B. A prova produzida em julgamento permite concluir que se encontra preenchido o tipo legal do crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física em relação aos seguintes Arguidos:
(…) iv) um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, na pessoa de OO, p. e p. pelos arts. 93.º, n.º 1 e 2, al. d) e 3.º, al. b), do CJM, praticado pelo BB;
(…)
V) Se a ofensa for de forma a provocar perigo para a vida, o agente incorre no agravamento previsto no art. 93.º, n.º 2, al. d), do CJM; se a ofensa vier a produzir a morte, o agente é punido nos termos do art. 93.º, n.º 3, al. b), do CJM.
As condutas atribuídas, nos factos provados do acórdão recorrido, a AA, MM, GG, BB e NN, nas pessoas de OO e PP, preenchem os requisitos do tipo objectivo desse crime; por seu turno, os factos aditados quanto a eles (FACTOS A, B e G) preenchem, a título de dolo directo (ou, pelo menos, dolo necessário), o tipo subjectivo de tal crime; a outro tempo, a título de dolo necessário (ou, pelo menos, de dolo eventual), tais factos preenchem a agravação prevista no art. 92.º, n.º 2, al. d), do CJM; finalmente, a falta de cuidado em terem verificado a possibilidade de se vir a produzir o resultado morte, como veio, implica, a título de negligência, o preenchimento da agravação prevista no art. 92.º, n.º 3, al. b) do CJM.
(…)
X) Assim sendo, devem os Arguidos AA, MM, GG, BB, NN, CC,DD eFF ser condenados pela prática dos crimes que lhes foram imputados na conclusão B.”
Ora, atenta a condenação do arguido BB no acórdão recorrido, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo 93.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, em causa está um crime de menor gravidade, incluído no âmbito do crime mais grave visado no recurso interposto para o Tribunal da Relação pelos assistentes JJ e KK, pelo que não assiste razão ao recorrente, improcedendo o requerido.
C. (In)Admissibilidade de recurso apresentado pelo arguido DD
O arguido DD foi condenado na 1.ª Instância pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93º, nº 1 do CJM, - ofendido EE -, na pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.
Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo pela prática de dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo noventa e três, número um, do Código de Justiça Militar, nas penas de dois anos e três meses de prisão, quanto ao crime cometido na pessoa de EE e de três anos de prisão no que concerne aos factos de que foi vitima PP, e na pena única de quatro anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução por cinco anos.
Inconformado o arguido interpôs recurso para o STJ.
O arguidoDD requereu, em súmula, como fundamento de recurso erro notório na apreciação da prova, requerendo a procedência do recurso, e a final a sua absolvição.
Vejamos a admissibilidade do recurso.
Nos termos dos artigos 46º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) e artigo 434º do Código de Processo Penal, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se “exclusivamente ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432º”.
O artigo 432º do Código de Processo Penal, estatui que “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º.
Por sua vez o artigo 400º do Código de Processo Penal, entre as várias decisões do Tribunal da Relação que não admitem recurso, estatui, na sua alínea e), que não cabe recurso dos “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância”
A actual redacção da alínea e) do artigo 400º do Código de Processo Penal, foi introduzida pela Lei n.º 94/2021 de 21 de Dezembro em obediência a jurisprudência do Tribunal Constitucional5 que tinha considerado inconstitucional a anterior redacção.
Assim, hoje, por força do artigo 400.º, n.º 1, als. e) e f), do CPP, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos da Relação, proferidos em recurso:
- Quando a pena de prisão aplicada não excede 5 anos (al. e));
- Ou quando, sendo confirmatória da decisão da 1.ª instância (dupla conforme), a pena aplicada não excede 8 anos (al. f)).
Tais limitações são interpretadas pelo STJ no sentido de que o recurso é inadmissível mesmo quando estejam em causa penas parcelares inferiores a 8 anos, ainda que a pena única de cúmulo seja superior, não podendo ser objeto de recurso a matéria referente aos crimes parcelares6.
O Tribunal Constitucional já firmou jurisprudência no sentido da não inconstitucionalidade desta interpretação normativa (cf. Ac. TC n.º 186/2013, entre outros).
No caso dos autos, os acórdãos da 1.ª instância e da Relação nenhuma das penas parcelares aplicadas ou mesmo a pena única, ultrapassa o limite de 5 anos de prisão.
Assim, estando em causa acórdão confirmatório (dupla conforme) e penas parcelares inferiores a 8 anos, é manifesta a inadmissibilidade do recurso, nos termos dos artigos 400.º, n.º 1, al. e), 432.º, n.º 1, al. b), e 434.º, todos do CPP.
A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula, nos termos do artigo 414º, nº 3 do Código de Processo Penal, o tribunal superior.
Por sua vez o artigo 420.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, estatui que o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão, de acordo com n.º 2 do artigo 414.º, segundo o qual o recurso não é admitido quando, entre outros motivos, a decisão for irrecorrível.
Face ao exposto, decide-se, ao abrigo dos artigos 432.º n.º 1 al. b), 400.º n.º 1 al. e) e 417.º, n.º 6, al. b), todos do Código de Processo Penal, rejeita-se o recurso do arguido DD, por ser manifesta a sua inadmissibilidade, no que concerne às demais questões por eles suscitadas.
2. Dos recursos
Vieram os arguidos GG, FF, BB, AA e CC interpor recurso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
O arguido GG foi absolvido na 1.ª instância de 2 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e d) e 3, al. b) do CJM, 26 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93º/ 1 do CJM, e 1 crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo93º/ 1 e 2, al. d) do CJM.
Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo condenou-o em 2 penas de 6 anos de prisão, relativas a cada um dos 2 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93.º, n.º 3, al. a), do Código de Justiça Militar, cometidos nas pessoas de OO e PP e, em cúmulo jurídico, na pena 7 anos e 6 meses de prisão.
O arguido FF foi absolvido na 1.ª instância de 10 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93º/ 1 do CJM.
Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo condenou-o na pena de 2 anos e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo 93.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar;
O arguido BB foi absolvido na 1.ª instância de 1 crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93º, n.ºs 1 e 2, als. a) e d), e 3, al. b) do CJM, e 8 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93.º, n.º 1, do CJM.
Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo condenou-o na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo 93.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar.
O arguido AA foi absolvido na 1.ª instância de 2 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos e punidos pelo artigo 93.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e d) e 3, al. b) do Código de Justiça Militar (CJM), 23 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93.º, n.º 1 do CJM, e 1 crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CJM.
Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo condenou-o -em 2 penas especialmente atenuadas de 14 meses de prisão, quanto a cada um dos 2 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93.º, n.º 3, al. a), do Código de Justiça Militar, cometidos nas pessoas de OO e PP e, em cúmulo jurídico, na pena 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
O arguido CC foi condenado na 1.ª Instância, pela prática de um crime abuso de autoridade por ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 93.º, n.º 1 do CJM, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.
Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo condenou-o na pena de 5 anos e 3 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo 93.º, n.º 2, al. d), do Código de Justiça Militar.
Inconformados com o decidido, os arguidos interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Tais recursos revelam-se admissíveis, nos termos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, conjugado com a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do mesmo diploma, uma vez que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação agravou a posição processual dos recorrentes.
Com efeito, os arguidos GG,FF, BB e AA, que haviam sido absolvidos em primeira instância, foram agora condenados nos moldes anteriormente referidos.
Já o arguido CC sofreu igualmente alterações na respetiva decisão condenatória, tendo sido agravada a pena que lhe havia sido aplicada.
Todavia, a competência cognitiva do Supremo Tribunal de Justiça permanece limitada às questões de direito, nos termos do artigo 434.º do Código de Processo Penal.
Assim, o recurso interposto de acórdão da Relação que decide um recurso continua a ter como único objetivo o reexame de matéria exclusivamente de direito, estando, portanto, o âmbito de cognição do STJ restrito a essa dimensão7.
Relativamente à impugnação da matéria de facto, importa reafirmar que o Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista – artigo 434º do Código de Processo Penal – a mesma está excluída dos seus poderes de cognição, excepto na dimensão dos vícios decisórios.
Por força desta limitação cognitiva, está também o Supremo Tribunal de Justiça impedido de conhecer das questões conexas e intrinsecamente estruturantes com a apreciação da matéria de facto, como a alegada violação do princípio da livre apreciação da prova, utilização de presunções judiciais ou mesmo o princípio in dúbio pro reo, o qual apenas releva em sede de matéria de facto, excepto se do texto da decisão revidenda, resultar qualquer dos vícios decisórios8
Apenas em sede de apreciação dos vícios decisórios, o Supremo Tribunal de Justiça pode sindicar a matéria de facto.
Apesar do que fica dito e desta limitação cognitiva deste Supremo Tribunal de Justiça, importa tecer algumas considerações sobre a alegação dos recorrentes sobre a pretensa violação dos princípios que regem a apreciação da prova e a utilização de presunções judiciais, ao dar como provado os elementos objectivos e subjectivos dos crimes imputados aos arguidos, ora recorrentes.
3. Violação das regras de apreciação da prova
Violação do artigo 127º do Código de Processo Penal e as regras de experiência comum na alteração da matéria de facto provada e não provada pelo Tribunal da Relação
Os arguidos AA, CC,FF e GG vieram suscitar em sede de recurso, a violação do artigo 127.º do Código de Processo Penal e as regras de experiência comum na alteração da matéria de facto provada e não provada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Por sua vez o arguidoFF e GG suscitam ainda a violação dos artigos 127º, 428º e 431º pelo Tribunal recorrido, quando interpreta os mesmos nestes termos absolutos: «Para estas conclusões resultantes da experiência comum são irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim», o que é inconstitucional, por violação do princípio da imediação, sufragando ser inconstitucional a interpretação do artigo 127º do CPP, conjugado com os artigos 428º e 431º do mesmo código, que permita ao tribunal de segunda instância modificar os factos dados como provados e não provados, fazendo uso das regras da experiência para considerar « irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim», prestados na audiência de julgamento na primeira instância, por violação do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da CRP, e do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (adiante CEDH).
O Tribunal da Relação de Lisboa interpreta e aplica inconstitucionalmente o artigo 127º, conjugado com os artigos 423º, 428º e 431º, todos do mesmo código e com os artigos 15º e 16º do CP, e o artigo 93, n.º 1 a 3, do CJM, no sentido de que o Tribunal recorrido pode condenar um arguido absolvido em primeira instância, fixando factos relativos ao seu dolo, consciência da ilicitude e motivação sem o ouvir em audiência em segunda instância, violando, assim o princípio das garantias de defesa e o princípio do contraditório, previstos no artigo 32º, nº 1 e 5, da CRP, e do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da CRP, e ainda do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6º, n.º 1, da CEDH.
Cumpre apreciar,
De acordo com o artigo 428.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, os Tribunais da Relação apreciam tanto matéria de facto como de direito.
Independentemente dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, a decisão sobre a matéria de facto pode ser alterada, nos termos do artigo 431.º do mesmo diploma, consagrando o duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, , tendo o poder de acrescentar, modificar ou suprimir matéria de facto se constarem todos os meios/elementos de prova que a sustentaram (cf. al. a) art. 431.º), que a prova tenha sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º (al. b) do mesmo artigo), ou que tenha ocorrido renovação da prova (al. c)).
O reexame da matéria de facto pela Relação, em sede de recurso, não implica a repetição do julgamento realizado em primeira instância. Compete à Relação apreciar apenas os pontos de facto especificamente indicados pelo recorrente na sua motivação (cf. artigo 412.º, n.º 3 do CPP), analisando as provas concretas que, segundo o recorrente, impõem uma decisão diferente da proferida, bem como aquelas cuja renovação tenha ocorrido, proferindo, com base nessas, uma decisão definitiva sobre os factos impugnados.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido da conformidade constitucional dos poderes de cognição atribuídos aos tribunais da Relação, tal como resultam do regime previsto nos artigos 410.º e 431.º do Código de Processo Penal. Considerou-se não ser inconstitucional a norma do artigo 410.º, na medida em que, quando a prova produzida em audiência não tenha sido documentada por iniciativa do recorrente, e não constem dos autos todos os meios de prova que sustentaram a decisão impugnada, o tribunal de recurso fique impossibilitado de proceder a uma reapreciação integral da matéria de facto, para além dos limites fixados no n.º 2 do referido artigo 410.º9.
Ao Tribunal da Relação impende o dever de fundamentar a sua decisão sobre a matéria de facto em termos equivalentes ao exigido ao tribunal de primeira instância, abrangendo tal dever a realização de um exame crítico das provas produzidas, nos termos do artigo 127.º do CPP. Esta exigência mantém-se, mesmo quando a decisão da Relação diverge da proferida pelo tribunal recorrido, independentemente de tal divergência importar uma alteração essencial ou meramente acessória da matéria de facto fixada na decisão impugnada.
A aplicação do princípio da livre apreciação da prova assume uma relevância que vai além da mera construção lógico-formal da decisão judicial, projetando-se em diversas vertentes fundamentais do processo penal. Destacam-se, entre outras, a sua estreita ligação com o princípio da presunção de inocência, o dever de fundamentação das decisões judiciais, o direito ao recurso e o direito à tutela jurisdicional efetiva. Nestes termos, impõe-se reconhecer a relação intrínseca e incontornável entre a livre apreciação da prova e a exigência de fundamentação das decisões em matéria penal.
Pelo que, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, sendo este princípio válido em todas as fases processuais, o julgador dispõe da liberdade para formar a sua convicção quanto à realidade dos factos, com base numa valoração que assenta no mérito concreto do caso, considerado na sua individualidade histórico-processual, tal como este se apresenta nos autos e foi adquirido no decurso da tramitação processual, mediante as alegações, respostas, inquirições e demais meios de prova produzidos. As regras da experiência comum e os critérios gerais de raciocínio funcionam, nesse contexto, como instrumentos orientadores da análise probatória, constituindo parâmetros auxiliares que estabelecem conexões de relevância, guiam a investigação da verdade material e permitem a formulação de juízos conclusivos, ainda que sempre suscetíveis de correção à luz da realidade do caso10.
A aceitação de limites à liberdade de apreciação da prova tem como consequência jurídica relevante o facto de que, uma vez verificados tais limites, a matéria torna-se suscetível de sindicância em sede de recurso, ainda que o tribunal ad quem tenha, em princípio, competência apenas para conhecer de matéria de direito. Tal possibilidade encontra consagração expressa no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, correspondendo ao que a doutrina tem designado como “recurso de revista alargada”.
Conforme expõe Michele Taruffo, a máxima de experiência constitui uma regra geral elaborada por via indutiva a partir da observação reiterada de determinados estados de coisas. Tal regra pode ser utilizada pelo magistrado como critério orientador para a fundamentação de seus raciocínios, servindo, enquanto norma geral, como premissa maior nos silogismos que estruturam a sua argumentação jurídica11.
A intervenção do tribunal de recurso revela-se tanto mais significativa nos casos em que a prova que fundamenta a decisão recorrida tenha caráter meramente indiciário, como naqueles em que a prova se consubstancia exclusivamente em depoimentos testemunhais. No primeiro cenário, compete ao tribunal de recurso verificar se existe, entre o facto indicante e o resultado extraído, uma inferência lógica que permita concluir pela probabilidade ou veracidade dos factos alegados. No segundo, cabe-lhe apreciar se a valoração dos depoimentos foi realizada em conformidade com as regras da lógica e da experiência comum. Esta abordagem não colide com o princípio da imediação da prova, dado que tanto os elementos probatórios quanto o juízo de valor que os sustenta se encontram devidamente consignados nos autos, de modo que não cabe ao tribunal de recurso proceder à repetição da prova já produzida, nem a validade da prova colhida na instância de origem é afetada12.
As regras da experiência são “ou o resultado da experiência da vida ou de um especial conhecimento no campo científico ou artístico, técnico ou económico e são adquiridas, por isso, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, em parte mediante investigação ou exercício cientifico de uma profissão ou indústria”13 que sustentam as presunções naturais, sem abdicar da necessária explicitação de um processo cognitivo e lógico rigoroso, desprovido de omissões ou contradições, o qual permite a extração de um facto desconhecido a partir de factos conhecidos, por serem conformes à realidade reiteradamente verificada, com alta probabilidade de veracidade14.
Existirá óbice legal que impeça o Tribunal da Relação, no exercício da sua função de controlo do erro de facto, de reapreciar na íntegra as provas, aproximando‑se, nesse particular, da postura do juiz de mérito?
Não implica, na prática, a sindicância da convicção judicial refazer o itinerário probatório desenhado no exame crítico da sentença?
A matéria de facto só se altera quando contraria, de modo manifesto, as regras da experiência comum, da lógica, do senso jurídico e dos conhecimentos científicos; ou assenta em métodos de prova vedados ou em meios de prova excluídos da apreciação livre do tribunal15.
Se assente que a Relação sindica a convicção formada em primeira instância, impõe‑se que também ela forme juízo próprio sobre o conjunto probatório. Nesse sentido, o Supremo Tribunal de Justiça já decidiu que, em sede de recurso de matéria de facto, a Relação deve intervir de modo efetivo no processo de formação da convicção, exercendo um “exercício crítico substitutivo”. Tal exercício traduz‑se na sobreposição, ou mesmo na substituição, da convicção originariamente formada, com base nas provas indicadas pelo recorrente, avaliando‑se individualmente cada um dos factos impugnados, e não permanecendo numa postura de mero observador externo ao julgamento16.
Em face da documentação probatória constante dos autos, o Tribunal da Relação encontra‑se habilitado a concluir por resultado diverso, sempre que os elementos de prova o justifiquem. A eventual ausência de imediação, oralidade ou contraditório, conjugada com o princípio da livre apreciação da prova, não pode constituir obstáculo genérico e permanente ao exame da matéria de facto pelas Relações. Essa problemática surge em todo recurso e deve ser acomodada no atual regime do Código de Processo Penal, sob pena de as Relações se autoexcluírem da sua função decisória no reexame dos factos, e que conduziria à desvirtuação efectiva do recurso de matéria de facto.
Conforme ensina Paulo Saragoça da Mata, “o entendimento que hoje temos por adquirido do direito ao recurso como um direito a uma efetiva dupla jurisdição apenas se torna possível se, em matéria de facto, a decisão da primeira instância for suscetível de apreciação (substancial) pelo Tribunal de recurso. Por outras palavras, ao Tribunal de recurso terá de ser possível, confrontar os juízos fácticos e inferências logicas constantes da decisão de primeira instância com as regras da experiência, da lógica, da racionalidade: da probabilidade e da razoabilidade. Esse o único modo plausível de conceber a dupla jurisdição que corresponde ao carácter comunicacional da decisão recorrida”17.
O princípio da livre apreciação da prova, expressamente consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, impõe, salvo quando a lei dispuser diferentemente, que a prova seja apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
A livre apreciação é uma liberdade “(…) de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”18, a qual tem na base as regras de experiência e a livre convicção daquele que a deve apreciar de forma racional, objectiva e crítica.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Outubro de 2008, sufragou “A livre apreciação da prova não se confunde com a apreciação arbitrária da mesma, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; trata-se antes de uma liberdade para a objectividade. Daí a íntima ligação entre o princípio da livre apreciação da prova e o da fundamentação e, através desta, a possibilidade/dever de ampla, efectiva e substancial intervenção do tribunal de recurso, verificando se as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, susceptíveis de objectivar a apreciação dos factos, foram observados, a respeito de cada um deles, na motivação apresentada pelo tribunal recorrido.”19.
De facto, a avaliação das provas não pode ser feita de forma ‘arbitrária’, ‘discricionária’ ou refletir uma apreciação subjetiva por parte de quem tem a responsabilidade de avaliá-las, sob pena de infringir o dever/princípio de buscar a verdade material, que é o objetivo final da justiça penal.
Germano Marques da Silva defende “(…) a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.”20.
Embora se trate de um poder vinculado, a violação do princípio ocorre apenas quando há desconsideração de prova legal, arbitrariedade, juízos subjetivos, ou fundamentações imotivadas, bem como em casos em que, segundo as regras de experiência de um homem médio, a prova produzida não seja suficiente para demonstrar o facto dado como provado. Somente nessas situações, é que o tribunal de recurso pode reavaliar a valoração da prova realizada pelo tribunal de primeira instância.
Na mesma senda, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro de 2017, “A intromissão da Relação no domínio factual, quando da reapreciação da prova, cinge-se a uma intervenção "cirúrgica", delimitada e restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo-se à sua correção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.”21
Alegam os recorrentes que o Tribunal da Relação estava impedido de alterar a matéria de facto provada, por força do princípio da imediação.
É inegável que, na avaliação da prova, o referido princípio é fundamental, e embora não se verifique no tribunal de recurso, a ausência de imediação não impede que este tribunal analise o julgamento da matéria de facto, conforme disposto na lei (artigo 428.º do Código de Processo Penal).
O Tribunal da Relação utilizou, com base nos factos dados como provados e nos elementos documentais constantes dos autos, a chamada prova indireta, circunstancial ou por presunção, a qual permite, a partir de um facto conhecido, deduzir, de forma incontestável e segundo as regras da experiência, outro facto e considerá-lo como provado.
Sobre o uso de presunções, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 07 de Janeiro de 2004, no processo n.º 03P3213, considerou que “(…) Na passagem de um facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido”22 e no acórdão de 09 de Fevereiro de 2005, proferido no processo n.º 04P4721, “(…) As presunções naturais são o produto das regras de experiência que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido, quando um facto é a consequência típica de outro (...) Na ilação derivada de uma presunção natural tem de existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido; a existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária.”23.
A utilização de presunções e prova indireta é autorizada por lei (artigos 349.º e 351.º do Código Civil) e encontra-se dentro do âmbito do princípio da livre apreciação da prova. Contudo, exige-se ao juiz uma maior cautela e fundamentação no raciocínio lógico de valoração da prova.
Em matéria de apreciação da prova, Alberto dos Reis considera que, “(…) o que está na base do conceito é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contraprova; porque o sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica.”24
Quanto à apreciação da prova, Alberto dos Reis defende que: “(…) neste regime, pois, se o juiz não procede como um autómato na aplicação de critérios legais apriorísticos de valoração, também não lhe é permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou, e cujo carácter racional se expressará na correspondente motivação.”25
Ora, olhando para estes ensinamentos e para a fundamentação constante do acórdão recorrido, facilmente se percebe que o Tribunal da Relação fez um raciocínio lógico e equilibrado das regras de experiência e uma adequada utilização da chamada prova indirecta, ao dar como provado o elemento subjectivo do tipo.
De facto, o elemento subjetivo do ilícito, o dolo (elemento volitivo) pertence à vida interior de cada indivíduo, sendo, portanto, de natureza subjetiva e não suscetível de apreensão direta. Sua existência só pode ser inferida a partir de factos materiais que permitam essa conclusão, sendo que o preenchimento dos elementos constitutivos da infração é o indício mais claro. A verificação do dolo pode ser comprovada por meio de presunções, fundamentadas no princípio da normalidade ou nas regras da experiência.
Por ser o elemento volitivo do dolo um acto interno do agente, que se manifesta pelos factos externos anteriores ou contemporâneos ao ilícito, ele deve ser considerado provado assim que os factos imputados, ou seja, o elemento objetivo do ilícito, forem dados como provados, salvo se houver circunstâncias que excluam o dolo ou a culpa.
O dolo (elemento intelectual e volitivo) é, portanto, dado como provado a partir das circunstâncias fáticas aceites, analisadas à luz das regras da experiência comum, conforme estabelece o princípio da livre apreciação da prova no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Considerando que o elemento volitivo do dolo é um acto interno do agente, que se manifesta através dos factos externos, anteriores ou contemporâneos ao ilícito, ele deve ser considerado provado assim que os factos imputados – ou seja, o elemento objetivo do ilícito – forem dados como provados, salvo se houver circunstâncias que excluam o dolo ou a culpa.
Da análise da decisão proferida pelo tribunal recorrido, verifica-se que este exerceu adequadamente as suas funções relativas ao duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, actuando no âmbito dos poderes que lhe são legalmente conferidos para acrescentar, modificar ou suprimir a matéria de facto, uma vez que os autos contêm todos os meios e elementos de prova que sustentam tal decisão (cf. alínea a) do artigo 431.º do CPP).
Adicionalmente, a prova foi impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º (cf. alínea b) do mesmo artigo), e foram igualmente invocados os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
O tribunal apreciou se a valoração dos depoimentos se deu em conformidade com as regras da lógica e da experiência comum, encontrando-se nos autos todos os elementos probatórios, bem como o respetivo juízo de valor que os fundamenta.
O recorrente AA invoca em sede de recurso que em violação do artigo 127.º do CPP, o acórdão do Tribunal da Relação altera o facto provado em 307 com base em meras suposições assentes na experiência comum (pág. 852), especulando não só sobre o conteúdo da conversa, mas também sobre o grau de conhecimento do arguido quanto a várias situações (conclusões VIII a X).
Resulta do facto provado em 307 no acórdão recorrido:
“307. Após o almoço, o arguido AA falou ao telefone com o Comandante do Regimento ..., QQ, alertando-o para o calor que se fazia sentir, tendo aquele sugerido que no dia seguinte fosse alterado o horário das instruções a ministrar.”
Por sua vez, no acórdão da 1.ª instância resulta como facto provado:
“307. Após o almoço, o arguido AA falou ao telefone com o Comandante do Regimento ..., QQ, alertando-o do calor que se fazia sentir, tendo aquele sugerido que no dia seguinte, fosse alterado o horário das instruções a ministrar.”
Confrontando este facto com o que resultou provado no acórdão da 1.ª instância, constatamos que a redação do facto provado em 307 é idêntica à fixada na 1.ª instância (cf. facto provado em 307), inexistindo qualquer alteração no referido facto.
A fundamentação que o acórdão recorrido faz, alicerçando-se em regras da experiência comum é legalmente admissível, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do CPP.
Os recorrentes/arguidos GG e FF contestam a alteração dos factos fixados quanto ao dolo sem que o Tribunal da Relação o tenha ouvido presencialmente (conclusão 28), alicerçando-se o primeiro recorrente no douto Parecer junto com o recurso, do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, invocando um Acórdão do TEDH26, no qual foi julgado que tal falta de audiência consubstanciaria uma violação do processo equitativo (cf. pontos 162 e 163 da motivação do recurso).
Suscitando ainda, juntamente com o arguidoFF, a inconstitucionalmente do artigo 127.º, conjugado com os artigos 423º, 428º e 431º, todos do mesmo código e com os artigos 15.º e 16.º do CP, e o artigo 93, n.º 1 a 3, do CJM, no sentido de que o Tribunal recorrido pode condenar um arguido absolvido em primeira instância, fixando factos relativos ao seu dolo, consciência da ilicitude e motivação sem o ouvir em audiência em segunda instância, violando, assim o princípio das garantias de defesa e o princípio do contraditório, previstos no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, e do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da CRP, e ainda do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Pelas razões anteriormente aduzidas os recorrentes não têm razão.
A reclamada violação das garantias de defesa e do contraditório constitucionalmente consagrados, apenas seriam postergados se estivéssemos perante um facto novo desconhecido dos arguidos, o que não é, manifestamente, o caso.
Tais factos constavam da acusação e da pronúncia e foram impugnados pelo Ministério Público, no seu recurso para a Relação, pelo que os arguidos tiveram oportunidade, em sede de resposta ao recurso, contraditar a argumentação da acusação e, nessa medida a decisão proferida não é uma decisão surpresa.
A circunstância de os aqui recorrentes terem sido recorridos no recurso interposto pelo Ministério Público e Assistentes para o Tribunal da Relação, não obsta ao exercício pleno do contraditório e do direito de defesa. Como refere o Tribunal Constitucional, no seu acórdão de acórdão nº 35/2023, de 8 de fevereiro de 2023, “(…) a faculdade de oferecer resposta ao recurso constitua meio idóneo e suficiente para que o arguido recorrido exerça cabalmente o seu direito de defesa perante o Tribunal de recurso, uma vez que o grau de antecipação das valorações a tomar que lhe é exigido para esse exercício não difere de modo relevante do que já lhe seria exigido.” 27
Gomes Canotilho e Vital Moreira, na análise ao artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, consideram que “este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da proteção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. Em “todas as garantias de defesa” engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação.”28 Este “direito a ser ouvido” e “contrariar a acusação”, traduz-se no “direito a dispor de oportunidade processual efetiva de discutir e tomar posição sobre quaisquer decisões que o afetem.” Ora, in casu essa oportunidade existiu ao longo do processo. Inexiste, pois, qualquer obliteração ou supressão do direito a ser ouvido.
De igual modo, foi respeitado o princípio do contraditório, constitucionalmente consagrado no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
O princípio do contraditório tem sido densificado pela jurisprudência constitucional, como “em que nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar», e de que a extensão processual desse princípio abarca a audiência de julgamento e «os atos instrutórios que a lei determinar”.29
Os recorrentes para além da possibilidade de contraditarem os factos em audiência, tiveram ampla oportunidade de contra-argumentar ao recurso interposto pelo Ministério Público e pelos Assistentes para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Inexiste, pois, qualquer inconstitucionalidade.
Não se verifica, assim, qualquer violação do princípio da imediação e da livre apreciação da prova, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do CPP, das garantias de defesa e do princípio do contraditório, previstos no artigo 32.º, n.º 1 e 5, da CRP, e a um processo equitativo, cfr. artigo 6.º, n.º 1 da CEDH, e muito menos do princípio non nova, sed nove, uma vez que o Tribunal da Relação, no exercício dos seus poderes de cognição sobre a matéria de facto, procedeu à verificação da existência do facto indicante e do resultado extraído, realizando uma inferência lógica que permitiu concluir pela probabilidade ou veracidade dos factos alegados, inexistindo nestes casos qualquer obrigatoriedade de audição do(s) arguido(s) ou notificação para exercício do contraditório, dado que não consiste numa decisão surpresa, porquanto os factos e qualificação jurídica constavam da acusação /pronúncia, tendo tido o arguido oportunidade de deles se defender em sede julgamento e de recurso, na(s) resposta(s) às alegações de recurso do Ministério Público e Assistentes, improcedendo, desta forma, o requerido.
Por sua vez, os arguidosFF e GG suscitam ainda, a violação dos artigos 127.º, 428.º e 431.º do CPP pelo Tribunal recorrido, quando interpreta os mesmos nestes termos absolutos: «Para estas conclusões resultantes da experiência comum são irrelevantes os depoimentos de quem quer que seja a dizer o contrário ou que não é bem assim».
Esta frase suscitada em sede de alegações de recurso pelos recorrentes GG eFF surge “desgarrada” do seu contexto, servindo para invocar como inconstitucional a interpretação do artigo 127.º do CPP, conjugado com os artigos 428º e 431º do mesmo código, por violação do princípio da imediação, que está ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da CRP, e do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6º, nº 1, da CEDH.
No entanto, lendo a fundamentação do acórdão recorrido, constata-se que a mesma se encontra inserida na análise dos “vícios de contradição insanável da fundamentação e/ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova”, a página 849, quando o acórdão recorrido refuta a argumentação expendida no acórdão da 1.ª instância sobre as regras de experiência comum relativamente aos castigos e ordens dadas aos formandos na ....
Da análise dos princípios explanados pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no que respeita ao princípio da livre apreciação da prova, constata-se que o mesmo fez uma adequada abordagem dos mesmos, ao nível jurisprudencial e doutrinal, devendo a referida expressão, diga-se, temerária, ser lida no contexto em que se insere, isto é, refutação dos argumentos aduzidos na 1ª instância.
Pelo que, mais não é que uma conclusão referente à análise de matéria colocada em crise em sede de recurso, inexistindo qualquer inconstitucionalidade na sua interpretação ou análise.
4. Vícios do artigo 410.º do Código de Processo Penal
Invocam os arguidos AA, BB e CC em sede de recurso a verificação do vício da al. b) do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, por sua vez o arguidoFF suscita a verificação dos vícios das als. b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, e o arguido GG a verificação dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
Cumpre apreciar,
O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça tem por objeto exclusivo, nos termos do artigo 434.º do Código de Processo Penal, o reexame das questões de direito, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 420.º do mesmo diploma.
Não obstante a limitação da cognição do tribunal ad quem à matéria de direito, admite-se que o recurso possa fundamentar-se na existência dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal — instituto este por vezes designado como “recurso de revista alargada”.
Neste sentido, conforme consagra o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/1030, “é oficioso o conhecimento dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do CPP, mesmo quando o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
Assim, compete ao Supremo Tribunal, ainda que oficiosamente, conhecer dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Dispõe o artigo 432.º, sob a epígrafe “Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”:
“1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º”
Nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em sede de recurso, pelos Tribunais da Relação que apliquem penas não privativas da liberdade ou penas de prisão não superiores a cinco anos, salvo quando a decisão da primeira instância tiver sido absolutória.
No caso concreto, o acórdão recorrido foi proferido, em sede de recurso, pela Relação de Lisboa, tendo os arguidos GG,FF, BB e AA, que haviam sido absolvidos em primeira instância, sido condenados. Já o arguido CC sofreu igualmente alterações na respetiva decisão condenatória, tendo sido agravada a pena que lhe havia sido aplicada. Não subsistindo, por conseguinte, dúvidas quanto à admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, importa, todavia, ter presente que este apenas conhece de matéria de direito, nos termos do artigo 434.º do Código de Processo Penal.
Tratando-se de acórdão da Relação proferido em recurso (cf. artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP), não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com fundamento nos vícios da decisão recorrida, nem em nulidades não sanadas, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, conforme decorre do aditamento introduzido pelo artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro. Diferente é o regime aplicável aos recursos interpostos ao abrigo das alíneas a) e c) do mesmo preceito.
Não obstante, tal limitação não prejudica o poder do Supremo Tribunal de Justiça de conhecer oficiosamente dos vícios da decisão de facto, caso a sua existência seja patente e obste à correta aplicação do direito.
Vejamos,
O artigo 410.º, n.º 2, do CPP estabelece que, mesmo quando a lei limita a análise do tribunal de recurso apenas a questões de direito, o recurso pode ser fundamentado, desde que o vício conste do texto da decisão recorrida, isoladamente ou em conjunto com as regras da experiência comum, nos seguintes casos:
a) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) Contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Estes vícios são de conhecimento oficioso e podem ser conhecidos pelo tribunal de recurso, mesmo sem requerimento das partes. Eles devem resultar exclusivamente do texto da decisão recorrida, sem consulta a outros elementos do processo, em respeito às garantias de defesa previstas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre salientar que os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP não se confundem com eventual divergência entre a convicção subjetiva do recorrente acerca da prova colhida em audiência e o convencimento judicial formado pelo tribunal, este último edificado em estrita observância ao princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do mesmo Código.
a. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Verifica-se a insuficiência sempre que, da análise do texto da decisão recorrida, isoladamente ou em conjunto com as regras da experiência comum, se constate a ausência de factos essenciais que deveriam ter sido apreciados pelo tribunal. Esses factos podem constar da acusação, do despacho de pronúncia, da contestação ou defesa, ou ainda dizer respeito a matéria cuja investigação é obrigatória, nos termos do artigo 340.º do Código de Processo Penal.
Em suma, trata-se de uma omissão na apreciação de factos que integram o objeto do processo, não se confundindo com mera falta de prova, mas sim com a inexistência de análise sobre elementos factuais relevantes.
Com efeito, “(…) o vício previsto pela al. a) do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, pela sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorreta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada (…).”31.
A decisão é insuficiente quando os factos apurados, no seu todo, não a sustentam, seja para condenar ou absolver “(…) Quando se afirma apenas que a matéria de facto é insuficiente para a condenação proferida, não se está a proceder à invocação deste vício, antes, em suma, a afirmar que o tribunal errou na aplicação do direito aos factos provados, o que não tem nada a ver com vícios da matéria de facto […]. Para se poder afirmar que em causa está o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada impõe-se que “[…] todos os factos pertinentes ao objecto do processo tenham sido averiguados em julgamento e obtido a necessária resposta, seja positiva seja negativa. Se se constatar que o tribunal averiguou exaustivamente toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objecto de processo – ainda que toda ela tenha obtido a resposta de «não provada», então – e só então – o vício da matéria de facto está afastado.
Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão. Já não será se o tribunal de julgamento deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo referido objecto de processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum. (…).”32.
Este vício não se confunde com a mera divergência, entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova e a convicção formada pelo tribunal, questão que se insere na livre apreciação da prova, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal33.
Caso todos os factos tenham sido devidamente analisados e apreciados no acórdão, considera-se o vício ultrapassado, sendo a matéria de facto suficiente para sustentar a decisão.
Compete ao recorrente indicar, de forma concreta e fundamentada, quais os factos que deveriam ter sido apreciados e não o foram, e cuja consideração seria determinante para uma decisão justa de condenação ou absolvição.
O recorrente GG vem suscitar, apoiando-se num parecer junto com as suas alegações de recurso, do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, invocando que não foi estabelecido, de forma minimamente credível, quantos cantis de água foram dados aos instruendos dos diferentes grupos de Graduados, P1, P2 e P3, o que constituiria uma insuficiência fatal para a decisão do tribunal recorrido.
De igual modo, o recorrente FF, em sede de recurso (conclusões 6 e 7), suscita a mesma questão.
Examinada a decisão recorrida constata-se que precisamente por não ter sido possível determinar, relativamente a todos os grupos e instruendos, as quantidades exactas de água fornecidas, registou‑se o facto não provado 228, segundo o qual não se demonstrou que, entre as 21h30 do dia ... de ... de 2016 e as 16h00 do dia ... de ... de 2016, os formandos do Grupo de Graduados tenham ingerido cerca de 2 litros de água, os do 1.º Grupo (P1) aproximadamente 2 litros, os do 2.º Grupo (P2) cerca de 3 litros e os do 3.º Grupo (P3) cerca de 2,5 litros.
Teremos de ter em consideração os factos que resultaram provados em 68-A, 69, 72, 73, 79, 79-A, 81, 83, 85, 88, 95-B, 98-A, 100, 110, 114 e 116-A, e importando salientar que, conforme o Guião da Prova (fls. 109 a 129 do Apenso 1), e considerando os factos provados em 51 e 54 a 57, os cantis deveriam ser reabastecidos nos seguintes horários: durante a primeira refeição (entre as 6h20 e as 7h), a segunda refeição (entre as 12h30 e as 14h) e a terceira refeição (entre as 19h e as 20h).
Além disso, o reabastecimento devia merecer especial atenção por parte dos instrutores, para assegurar que os instruendos se mantinham devidamente hidratados durante os períodos de instrução (facto provado em 56).
No que respeita ao grupo dos Graduados, apenas quatro dos instruendos — III, KKK, OOO e OO — prosseguiram para as provas realizadas após o almoço, tendo os demais sido evacuados para a tenda de enfermaria (factos provados em 106 e 107).
Assim, quanto a estes quatro instruendos que continuaram a instrução durante a tarde, até à realização da instrução de tiro, apenas lhes foi permitido consumir 1 litro de água, conforme resulta dos factos provados em 72, 88 e 110, os quais indicam a quantidade de água que lhes foi autorizada, não tendo chegado a ingerir a água do cantil reabastecido à hora do almoço (cf. factos provados em 114 e 116-A).
Dessa forma, constata-se que aos instruendos do Grupo de Graduados foi autorizada a ingestão de apenas 1 litro de água durante a tarde, quando, nos termos do racionamento previsto no Guião da Prova, poderiam ter ingerido até 2 litros, tendo consumido menos 1 litro do que o permitido para aquele período.
Até porque não podemos deixar de olvidar, que o fundamental não é a quantidade de água ingerida, mas as consequências da situação, que contribuíram para a grave desidratação e o golpe de calor sofrido por OO e PP, cfr. resulta amplamente provado em 162, 165, 168 a 180, 181-A, 185, 191, 192 a 199, 200, 200-A, 200-B, 200-C e 201, referente ao P1, em 233, 239-A, 239-B, 241 e 243 a 246, quanto ao P2, em 262, 263, 269, 270, 282, 283, 291, 292 a 295, 296, 297, 298, 301, 303, 304, 304-A, 304-B e 304-C, relativamente ao P3, e em 91, 93, 95-B, 98-A, 100, 101, 101-A, 102, 103, 104, 105, 105-A, 114, 114-A, 114-B, 115, 118, 120, 123, 126, 128, 129, 130, 132, 135 e 136, relativamente aos Graduados.
Acresce ainda dos factos que resultaram provados em 114-B, 115, 123, 124, 200-C, 239-A e B, 304- B e C, 306-A, 430-G e L, resulta o conhecimento dessa situação pelo arguido GG e a sua inação, que, mesmo ciente da grave desidratação dos instruendos, sobretudo dos grupos de OO (Graduados) e PP (P3), nada fez.
Por todo o exposto, mostra-se plenamente justificado o entendimento adotado no acórdão recorrido, conforme se lê a fls. 1181, não se verificando, portanto, qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou a alegada contradição insanável (conclusão 7 do recurso).
Preleccionando a decisão sobre a matéria de facto provada e considerando o conceito de insuficiência de factos para a decisão de direito, definido pela doutrina e jurisprudência, conclui-se que tal vício não se verifica.
Na verdade, os factos estão devidamente apurados, tendo proferido uma decisão condenatória sólida e fundamentada, não se vislumbrando, perante os factos provados e não provados, outra solução de direito.
b) Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão
O recorrente GG vem suscitar, nas suas alegações de recurso, a contradição entre o facto provado em 55 e os factos provados em 114, 115-A, 200-B e 304-B (conclusões 8 e 9), segundo o Recorrente, apenas o Diretor da Prova, nos termos do Guião, poderia decidir sobre o consumo adicional de água (facto provado 55), pelo que os Arguidos referidos não poderiam ter dado as instruções mencionadas nos factos citados.
Assim, como o recorrente FF suscita contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, porquanto a decisão recorrida afirma, que os graduados beberam menos de 1 (um) dos 3 (três) litros de água previstos (fls. 1181, 2º §), e dá como não provado que os graduados só beberam dois litros de água (Facto não provado 228, a fls. 1125) – (conclusões 25 e 26 do recurso)
Este vício ocorre quando a decisão tem uma contradição evidente e grave — como dar como provado um facto e, ao mesmo tempo, o seu contrário; ou considerar provados factos que não podem coexistir; ou ainda quando a fundamentação leva a uma decisão diferente da que foi tomada.
A contradição deve ser clara e poder ser percebida pelo tribunal de recurso, com base na experiência comum ou nos elementos do processo.
No caso da contradição insanável, ela verifica-se “quando no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito. (…) Há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou seja, quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto. (…) Ocorre contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão, ou seja, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão”34.
Sufraga Pereira Madeira, “[…] a contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão só importa a verificação do vício quando não seja suprível pelo Tribunal ad quem. Isto é, quando seja insanável. Se for um erro percetível pela simples leitura do texto da decisão, não poderá falar-se em vício de contradição, o qual só existirá se eliminado o erro pelo expediente previsto no art. 380.º do CPP, correção a que o próprio tribunal de recurso pode e deve proceder (n.º 2 do mesmo artigo), a contradição, persistir, então sim, sendo, insanável. .[…]”35.
Por outro lado, não há vício quando o recurso se baseia em valoração diversa da prova ou na aplicação legal que o juiz considerou adequada aos factos provados36
No entanto, analisados os factos provado em 55 e os factos provados em 114, 115-A, 200-B e 304-B e o facto não provado em 228, constata-se inexistir qualquer contradição, porque esses factos não se contradizem, pelo contrário, complementam-se.
O facto provado em 55 limita-se a transcrever o disposto no Guião da Prova, ao passo que os restantes factos se reportam à realidade efetivamente ocorrida no terreno, ou seja, à circunstância de terem ou não sido dadas instruções, independentemente da sua vinculação formal.
Acresce que o Guião da Prova apenas regula a decisão relativa ao consumo de água para além do limite diário de 3 litros, enquanto, durante as provas, a questão suscitada dizia respeito, essencialmente, à forma como era assegurada a distribuição de água aos instruendos, ainda dentro desse limite.
Por fim, nada impedia que GG, na qualidade de médico e responsável pela equipa sanitária, recomendasse ou determinasse alterações aos procedimentos adotados relativamente ao fornecimento de água e à situação de desidratação grave dos instruendos, matéria pela qual também detinha responsabilidade.
O recorrente GG vem suscitar, nas suas alegações de recurso, a contradição entre o facto provado em 311-A e os factos provados 239, 261 e 428 (conclusões 10 a 12).
Por sua vez o recorrente CC, em sede de recurso, invoca contradição entre o facto provado 311-A, que refere que os instruendos receberam “socos e bofetadas”, e o restante probatório, que não o referiria.
A contradição reside no facto de, no facto provado 311-A, serem mencionados “socos” e “bofetadas”, quando, de acordo com a factualidade apurada, apenas foi possível provar “um soco” contra EE e “uma bofetada” contra TT.
Contudo, da análise conjunta dos factos provados em 311-A, 239, 261 e 428, verifica-se a ausência de contradição, uma vez que tais factos são compatíveis e se complementam no quadro probatório.
O facto provado em 311-A resume as “sevícias” sofridas pelos instruendos, incluindo “socos” e “bofetadas” no plural por razões gramaticais. Contudo, assiste razão ao Recorrente ao apontar que deve ser corrigido para “um soco em EE” e “uma bofetada em TT”, correção esta que, por se tratar de lapso formal, pode ser feita pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Importa esclarecer que estes actos não envolvem OO, PP ou o arguido GG ou CC, sendo, portanto, irrelevantes para a responsabilidade criminal deste último. Essa irrelevância não se estende às “silvas” e “terra na boca”, que são relevantes para a caracterização das condutas ilícitas contra OO e PP.
Lapso de escrita.
Pelo que, ao abrigo do artigo 380.º do Código de Processo Penal, determina-se a correção do referido erro no acórdão do Tribunal da Relação, de 06-03-2024, onde consta socos e bofetadas deverá constar “um soco na pessoa de EE” e “uma bofetada na pessoa de TT”.
Registe-se, na 1ª instância, a correção no local próprio.
O recorrente GG vem suscitar, nas suas alegações de recurso, a contradição entre os factos provados em 123, 124 e 125 e a fundamentação do acórdão (conclusões 13 e 14).
Segundo a tese do Recorrente, tais factos seriam incompatíveis com o trecho da fundamentação do acórdão que afirma que o Arguido “não tinha competência para interferir na componente do conteúdo das instruções” (cfr. pág. 1191 do acórdão).
Todavia, da análise conjugada dos factos provados em 123, 124 e 125 e a fundamentação do acórdão, verifica-se a ausência de contradição insanável, dada a sua compatibilidade e complementaridade no contexto probatório.
Por um lado, a competência do Arguido, conforme definida no Guião da Prova, difere da atuação que efetivamente desempenhou durante a instrução; por outro lado, o acórdão não imputa ao Arguido interferência no conteúdo das instruções, mas refere-se a eventos ocorridos nos intervalos das provas, como os factos em análise (“A obrigação de vigilância clínica não conflita com a proibição de intervenção na execução dos exercícios, uma vez que não precisava ser exercida durante os períodos de exercício” – cfr. pág. 1222 do acórdão).
O recorrente GG vem suscitar, nas suas alegações de recurso, a contradição entre o facto provado em 302 e o facto provado em 461 (conclusão 16).
Ambos os factos, um retirado da acusação/pronúncia e o outro da defesa, referem-se ao mesmo momento, quando, após a prova do carrossel, PP começa a cambalear e é atendido por GG junto ao toldo de triagem (cf. factos provados em 296 a 303). Ou seja, esses factos já tinham sido reconhecidos na 1.ª instância, sem qualquer objeção do Recorrente.
No entanto, ao analisar os factos provados em 302 e 461, verifica-se que não há qualquer contradição grave, pois os elementos se complementam e são compatíveis.
O recorrente GG vem suscitar, nas suas alegações de recurso, a contradição entre os factos provados em 304, 304-A e 316 e os factos não provados em 231 e 232 (conclusão 17).
O acórdão recorrido manteve como não provado que a ausência de refrigeração na tenda de enfermaria tenha causado um aumento da temperatura corporal dos instruendos que ali recebiam assistência, tampouco que tal circunstância tenha tornado obrigatória a transferência dos doentes para o hospital.
Todavia, é evidente que isso não conflita com o fato de que PP permaneceu apenas sob soro, sem que o arguido GG adoptasse medidas para o arrefecimento corporal ou providenciasse sua transferência urgente ao hospital, mesmo diante do agravamento do quadro clínico do instruendo — situação que era de pleno conhecimento do Recorrente, que, ainda assim, o manteve dentro da tenda sem tomar as providências cabíveis.
Uma questão é não ter havido aumento comprovado da temperatura corporal; outra, distinta, é a ausência de medidas efetivas de arrefecimento, que eram indispensáveis para a estabilização clínica de PP e dos demais instruendos.
Pelo que, ao analisar os factos provados em 304, 304-A e 316 e os factos não provados em 231 e 232, constata-se inexistir qualquer contradição, porque esses factos não se contradizem, pelo contrário, complementam-se.
O recorrente GG vem suscitar, nas suas alegações de recurso, a contradição entre os factos provados em 323-B, 324 e 325-A e os factos provados em 17, 18, 431-A e 436 (conclusões 18 e 19).
Não se verifica, também aqui, qualquer contradição, porquanto os factos provados em 17, 18 e 431-A refletem apenas o conteúdo constante do Guião da Prova, ao passo que os factos provados em 323-B, 324 e 325-A relatam a realidade fáctica efectiva, no sentido de que o Recorrente não determinou a transferência dos doentes em estado crítico para o hospital, nem se dirigiu a qualquer unidade hospitalar para diligenciar quanto ao respetivo internamento.
Questão de natureza distinta consiste em aferir se competia ou não ao médico ordenar tal transferência, matéria que será objeto de apreciação ulterior, no momento próprio da subsunção jurídica dos factos à previsão legal aplicável.
Por fim, relativamente ao facto provado em 436, o seu teor não significa que o médico se encontrasse limitado à mera sugestão da transferência, sem poderes para a decidir, mas antes que competia exclusivamente ao médico propor tal transferência, conforme resulta expressamente do ponto 2 [SITUAÇÃO], alínea c., subalínea (2), item (l) do Guião da Prova.
Analisados os factos provados em 323-B, 324 e 325-A e os factos provados em 17, 18, 431-A e 436, não se verifica qualquer contradição, antes se complementam.
O recorrente GG vem suscitar, nas suas alegações de recurso, a contradição entre o facto provado em 115 e os factos não provados em 113, 158 e 206 (conclusões 20 a 22).
Os factos não provados em 113, 158 e 206 referem-se aos instruendos dos grupos de ... (P1, P2 e P3), enquanto o facto provado em 115 diz respeito ao grupo dos Graduados, conforme se constata lendo a factualidade constante em 70 a 151, inexistindo qualquer contradição.
O recorrente GG vem suscitar, nas suas alegações de recurso, a contradição entre o facto provado 306-A e os factos provados 55 e 458 (conclusão 23).
No facto provado 306-A, refere-se que o arguido GG, tal como outros arguidos, conhecia os sinais de alerta de desidratação, o esforço físico exigido e o calor extremo, mas, ainda assim, permitiram que as provas continuassem sem ajustar a hidratação, o que gerou as consequências descritas.
Já o facto provado 55 menciona apenas a possibilidade prevista no Guião da Prova de autorizar um consumo adicional de água, além dos três cantis, mediante proposta dos instrutores ou da equipa sanitária e com aprovação do Diretor da Prova. No entanto, isso não se confunde com a forma como a água foi distribuída, nem com a necessidade de adaptar o esforço físico às condições de calor.
Pelo que, ao analisar os factos provados em 306-A, 55 e 458304, 304-A e 316, constata-se inexistir qualquer contradição, porque esses factos não se contradizem, pelo contrário, complementam-se.
Invoca ainda o recorrente/arguido GG na conclusão 24 contradição (cf. pontos 127 a 129 da motivação do recurso) entre o facto não provado em 234 e o facto provado em 430-L, analisando tais factos constata-se que trata-se de situações diferenciadas e compatíveis, porquanto no facto não provado em 234 refere-se a um acordo de silêncio entre os coarguidos sobre várias situações, enquanto o facto provado em 430-L trata de um caso singular, relacionado com a ordem dada a RR, JJJ e PPP para rastejarem, conforme factos provados em 124 e 125.
Verificados o facto não provado em 234 e o facto provado em 430-L, conclui-se que não existe qualquer contradição, mas sim uma complementaridade entre eles.
O recorrente AA alega, nas suas alegações de recurso, que o Tribunal foi contraditório, pois, por um lado, afirma que o arguido sabia do estado dos instruendos, mas, por outro, na pág. 901 do acórdão, admite que isso não ficou provado (conclusão XV).
Contudo, não assiste razão ao recorrente, porquanto o desconhecimento do arguido AA sobre a instrução de tiro do grupo P1 (pág. 901) não contradiz o que foi dado como provado quanto ao seu conhecimento dos factos provados em 187, 200-B, 200-C e 201, inexistindo qualquer contradição.
O Recorrente AA invoca, nas suas alegações de recurso (conclusões XVI a XIX) que, a págs. 449 e 950, o acórdão recorrido dá como provado que o Arguido AA sujeitou OO e PP a exercícios com intenção de ofender o corpo e saúde dos mesmos, mas ao mesmo tempo dá como não provado que, no período em causa, os tivesse obrigado à prática de tais exercícios.
Transcreve-se páginas 949 e 950 do acórdão recorrido:
“(…)
Que os arguidos AA, MM, BB CC, e que os arguidos AA, MM e NN tivessem sujeitado OO e PP, respectivamente, à prática dos exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, acima descritos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, tenham actuado com intenção de ofender o corpo e a saúde dos ofendidos, prova-se, porque era precisamente esse o fito da prova. Provocar mal-estar, lesões físicas e psicológicas e levar os ofendidos à superação, que no caso acabou na morte dos instruendos.
Que tenham previsto que dessas ofensas pudessem resultar graves lesões neurológicas, cardíacas, renais e hepáticas, que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica, e que se tenham conformado com esses resultados, também se prova, porque todos eles sabiam das consequências da conjugação do elevado esforço físico, com o calor e a desidratação e para isso estavam advertidos.
E por fim, também se prova, que não previram e confiaram que a morte dos formandos, entre eles os ofendidos OO e PP não ocorreria. Nada nos autos indicia, e muito menos suporta a prova do contrário, pelo que essa falta de conformação tem que se ser acrescentada ao provado, uma vez que, contida na acusação / pronúncia, mas sendo um facto duvidoso, beneficia os arguidos.
Assim, impõe-se levar ao provado os factos acima referidos, na versão de que «os arguidos AA, MM, BB e CC, por um lado, e os arguidos AA, MM e NN, por outro, sujeitaram OO e PP, respectivamente, à prática dos exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, acima descritos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo, e ao racionarem sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas, actuaram com intenção de ofender o corpo e a saúde dos ofendidos e previram que dessas ofensas podiam resultar graves lesões orgânicas, conformando-se com esses resultados, mas, todavia, não previram que poderiam evoluir até a uma falência multiorgânica e confiaram que não ocorreria a morte dos ofendidos OO ou PP.».
No não provado fica que «os arguidos AA, MM, BB, CC e GG, por um lado, e os arguidos AA, MM e NN e GG, por outro, desde 02H00 de dia ... de ... de 2016 até às 16H20, tivessem obrigado OO e PP, respectivamente,àpráticadosexercíciosfísicosacimadescritos»-cfr. págs. 949 e 950 do acórdão recorrido. (…)
Atenta a leitura supra do acórdão recorrido, o mesmo é claro ao distinguir a omissão do arguido AA – que permitiu que OO e PP fossem submetidos aos exercícios – do facto de não ter ficado provado que ele os tenha forçado diretamente a praticá-los, o que são situações diferentes.
Também não se aceita a interpretação do Recorrente (pág. 959 do acórdão recorrido), que trata de uma intenção genérica não provada, diferente da situação concreta dos factos provados 430 e seguintes, como o próprio acórdão esclarece.
Pelo que, não se configura este vício quando o recorrente simplesmente discorda da valoração da prova feita pelo tribunal, nem quando a decisão decorre da subsunção legal correta dos factos provados.
Qualquer aparente contradição é meramente formal e não afeta a substância lógico-jurídica da decisão.
O recorrente BB invoca em sede de recurso a contradição entre a fundamentação e os factos provados referente aos factos provados em 96, 97, 98-A e 98-B e a fundamentação de págs. 1193, 1243 e 1244 (conclusões III a VII).
Alega, para o efeito, a inexistência de qualquer obrigação de prever um intervalo entre as provas realizadas (neste caso, entre a GAM e o ...), por não constar tal exigência do Guião de Prova, e a ausência de fundamento para considerar que, nesse período, existiria ordem para fornecer água aos instruendos.
Relativamente à inexistência no Guião de Prova da obrigação de um intervalo entre as provas realizadas (GAM e o ...), este está previsto no anexo ao Guião, que retracta o horário da ..., onde se verifica, logo na primeira linha da grelha (cf. fls. 26 do apenso 1), um intervalo de 10 minutos entre as provas em causa no grupo dos Graduados (GAM e ... – cf. factos provados em 89 e 99, e constante na fundamentação do acórdão recorrido a página 1193.
Já no que respeita à inexistência de fundamento para considerar que, nesse período, havia ordem para dar água aos instruendos, atendendo aos factos que resultaram provados em 56 e 57, o Guião determinava que o reabastecimento de água e a hidratação fossem controlados pelos instrutores, que tinham o dever de assegurar a alimentação nas horas previstas e a hidratação durante a instrução (cf. fundamentação página 1193 do acórdão recorrido), inexistindo qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão.
O recorrente CC invoca em sede de recurso contradição entre, por um lado, o Tribunal da Relação asseverar, a pág. 949 do acórdão recorrido, que o arguido CC agiu com intenção de ofender o corpo e a saúde de OO, e, por outro, no facto provado em 430-A, concluir que, embora as ofensas pudessem causar graves lesões, o arguido não previu que estas pudessem evoluir para falência multiorgânica, confiando que não resultaria a morte.
No entanto, inexiste qualquer contradição, porquanto uma coisa é saber que pode causar lesões, diferente será prever a falência dos órgãos e o risco de morte.
O recorrente CC alega em sede de recurso contradição entre a pág. 1181 do acórdão recorrido, que refere que os instruendos do grupo dos Graduados beberam apenas dois litros de água, e o facto não provado em 228, que dá como não provado que tivessem sido autorizados a ingerir cerca de dois litros.
Esta matéria já foi analisada quanto ao arguido GG, que suscitou o mesmo vício e argumentação, para a qual expendemos na integra a argumentação esgrimida, por uma questão de economia processual, acerca do vício ora invocado:
“Examinada a decisão recorrida constata-se que precisamente por não ter sido possível determinar, relativamente a todos os grupos e instruendos, as quantidades exatas de água fornecidas, registou‑se o facto não provado 228, segundo o qual não se demonstrou que, entre as 21h30 do dia ... de ... de 2016 e as 16h00 do dia ... de ... de 2016, os formandos do Grupo de Graduados tenham ingerido cerca de 2 litros de água, os do 1.º Grupo (P1) aproximadamente 2 litros, os do 2.º Grupo (P2) cerca de 3 litros e os do 3.º Grupo (P3) cerca de 2,5 litros.
Teremos de ter em consideração os factos que resultaram provados em 68-A, 69, 72, 73, 79, 79-A, 81, 83, 85, 88, 95-B, 98-A, 100, 110, 114 e 116-A, e importando salientar que, conforme o Guião da Prova (fls. 109 a 129 do Apenso 1), e considerando os factos provados em 51 e 54 a 57, os cantis deveriam ser reabastecidos nos seguintes horários: durante a primeira refeição (entre as 6h20 e as 7h), a segunda refeição (entre as 12h30 e as 14h) e a terceira refeição (entre as 19h e as 20h).
Além disso, o reabastecimento devia merecer especial atenção por parte dos instrutores, para assegurar que os instruendos se mantinham devidamente hidratados durante os períodos de instrução (facto provado em 56).
No que respeita ao grupo dos Graduados, apenas quatro dos instruendos — III, KKK, OOO e OO — prosseguiram para as provas realizadas após o almoço, tendo os demais sido evacuados para a tenda de enfermaria (factos provados em 106 e 107).
Assim, quanto a estes quatro instruendos que continuaram a instrução durante a tarde, até à realização da instrução de tiro, apenas lhes foi permitido consumir 1 litro de água, conforme resulta dos factos provados em 72, 88 e 110, os quais indicam a quantidade de água que lhes foi autorizada, não tendo chegado a ingerir a água do cantil reabastecido à hora do almoço (cf. factos provados em 114 e 116-A).
Dessa forma, constata-se que aos instruendos do Grupo de Graduados foi autorizada a ingestão de apenas 1 litro de água durante a tarde, quando, nos termos do racionamento previsto no Guião da Prova, poderiam ter ingerido até 2 litros, tendo consumido menos 1 litro do que o permitido para aquele período.
Até porque não podemos deixar de olvidar que o fundamental não é a quantidade de água ingerida, mas as consequências da situação, que contribuíram para a grave desidratação e o golpe de calor sofrido por OO e PP, cfr. resulta amplamente provado em 162, 165, 168 a 180, 181-A, 185, 191, 192 a 199, 200, 200-A, 200-B, 200-C e 201, referente ao P1, em 233, 239-A, 239-B, 241 e 243 a 246, quanto ao P2, em 262, 263, 269, 270, 282, 283, 291, 292 a 295, 296, 297, 298, 301, 303, 304, 304-A, 304-B e 304-C, relativamente ao P3, e em 91, 93, 95-B, 98-A, 100, 101, 101-A, 102, 103, 104, 105, 105-A, 114, 114-A, 114-B, 115, 118, 120, 123, 126, 128, 129, 130, 132, 135 e 136, relativamente aos Graduados.
Acrescido ainda dos factos que resultaram provados em 114-B, 115, 123, 124, 200-C, 239-A e B, 304- B e C, 306-A, 430-G e L, resulta o conhecimento dessa situação pelo arguido GG e a sua inação, que, mesmo ciente da grave desidratação dos instruendos, sobretudo dos grupos de OO (Graduados) e PP (P3), nada fez.
Por todo o exposto, mostra-se plenamente justificado o entendimento adotado no acórdão recorrido, conforme se lê a fls. 1181, não se verificando, portanto, qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou a alegada contradição insanável (conclusão 7 do recurso).”
O recorrente CC alega contradição entre os factos provados em 55 e 115-A, em que no facto provado em 55, prevê-se o consumo de três cantis de água por dia, com eventual aumento autorizado pelo Diretor da Prova, já no facto provado em 115-A, refere-se que MM, BB e o Recorrente CC não deram instruções para aumentar o consumo de água, nem consideraram reduzir o esforço físico ou aumentar o descanso.
Constata-se que o facto provado em 55 refere-se ao consumo adicional de água além dos três cantis previstos no Guião, ao passo que o facto provado em 115-A trata da gestão desses três cantis, tratando-se de situações diferenciadas.
Relativamente à invocada contradição por censurar o arguido CC por não dar instruções, sendo ele próprio instrutor, não procede. O Recorrente é referido nesse facto também por ter acompanhado provas dadas por outros instrutores, como FF ou DD.
Também não se verifica o vício de contradição insanável entre a decisão de facto e a sua fundamentação.
Analisando os factos provados e não provados, não se deteta qualquer contradição ou incompatibilidade. Da mesma forma, a fundamentação não revela incoerências que pudessem conduzir a decisão diferente.
A fundamentação do acórdão é clara, coerente e bem estruturada, sem erros visíveis na sua leitura. O raciocínio é lógico e consistente com a decisão final, inexistindo qualquer contradição, muito menos insanável.
c) Erro notório na apreciação da prova
O recorrente GG vem suscitar, nas suas alegações de recurso, o uso, pelo acórdão da Relação, de factos desfavoráveis ao Arguido que não constam nem da acusação, nem do despacho de pronúncia, nomeadamente a referência a um “telefonema” realizado pelo Arguido ao HFAR, atribuindo-lhe responsabilidade criminal, conforme consta nas páginas 851 e 852 do acórdão recorrido.
O erro notório na apreciação da prova ocorre quando o tribunal, ao valorar os factos, viola de forma evidente as regras da experiência comum ou critérios legais, chegando a conclusões que qualquer pessoa razoável ou operador jurídico consideraria inaceitáveis.
Este vício deve ser claro no próprio texto da decisão, sem exigir nova análise da prova, e resultar de uma leitura simples do acórdão.
Nos termos do artigo 374.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a sentença deve expor de forma clara os factos provados e não provados, bem como os fundamentos da convicção do tribunal, com análise crítica da prova.
Segundo Germano Marques da Silva, as regras da experiência comum baseiam-se em generalizações empíricas repetidas que conferem razoabilidade às decisões.
Compete ao Supremo Tribunal, mesmo oficiosamente, apreciar a existência dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, incluindo o erro notório, que abrange não só erros evidentes e grosseiros, mas também aqueles que, numa análise global e rigorosa, revelem manifesta incorreta valoração da prova.
No que se refere ao erro notório na apreciação da prova, este inclui não apenas os casos de “erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta”37, mas também situações em que, numa análise global e rigorosa da decisão, o jurista reconhece, sem dúvidas, que houve erro na apreciação da prova, desde que tal erro seja manifestamente notório38.
Por conseguinte, “(…) basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha de ser devidamente escrutinada – ainda que para além das percepções do homem médio comum – e sopesado à luz das regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”39.
Nesse sentido, o erro manifesto na apreciação da prova configura uma insuficiência que deve obrigatoriamente constar do texto da decisão recorrida. “quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou quando traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio”40. Estamos perante um vício intrínseco da própria sentença, “(…) de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. Para ocorrer este vício, as provas evidenciadas pela simples leitura do texto da decisão têm de revelar claramente um sentido e a decisão recorrida extrair ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial”41.
Este entendimento da jurisprudência é também seguido pela doutrina, como se alcança da transcrição do seguinte texto de Paulo Saragoça da Matta, no qual se refere que, ao tribunal de recurso cabe apenas “ (…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”
A crítica ao acórdão recorrido não procede, pois, o Tribunal está a analisar os erros na fundamentação da decisão de primeira instância, onde essa situação foi claramente mencionada (e não contestada pelo Arguido):
“O Tribunal concluiu que, mesmo sem ter dado a ordem imediatamente, o arguido planeou transferir os instruendos para o Hospital ainda na parte da tarde, com base no depoimento da médica BBBBBB, que disse ter sido contactada pelo arguido por volta das 14h, quando a colega que estava de serviço saiu para almoçar, informando da necessidade da transferência, sem especificar nomes ou números” (páginas 359 e 360 do acórdão de primeira instância).
Além disso, a menção a esse telefonema não foi o motivo da condenação do Arguido GG, tendo sido apenas um comentário para explicar o contexto.
O recorrente CC contesta a alteração feita pelo Tribunal da Relação ao facto provado em 133, que passou de “terra junto à boca” para “terra dentro da boca” de OO, alegando que tal contraria a prova testemunhal e pericial.
Consta nas páginas 855 e 856 do acórdão recorrido a seguinte fundamentação:
“- Quanto ao ponto 133 do provado (que o arguido CC aproximou-se do instruendo OO e colocou, junto à boca do mesmo, um punhado de terra que apanhou do chão, ao mesmo tempo que dizia "cospe lá agora, burro, pacação”) a fundamentação dada, quer a propósito do mesmo, quer do ponto 66 do não provado, reporta-se exclusivamente à colocação de terra na boca do OO e não junto da boca.
Da fundamentação da aquisição probatória deste ponto do provado consta que «não obstante o arguido SS ter negado ter assistido à colocação de terra na boca do OO, pelo arguido CC, ou sequer ter limpo a sua cara da terra, referindo que quem deu água e assistência ao OO foi a socorrista ZZZZZ, o Tribunal formou a convicção de que isso teria ocorrido com fundamento no facto de ter havido mais de uma testemunha a confirmar esse episódio, as quais mereceram credibilidade na forma como depuseram.
Com efeito, tal situação foi relatada pela testemunha MMM que testemunhou ter visto o arguido CC aninhado, ao pé do OO, a colocar-lhe terra na zona da boca (…) e o arguido SS foi ter com o OO e limpou-o, usando água de uma garrafa.
Também RR declarou ter presenciado o arguido CC a pegar num pedaço de areia do chão com a mão e a colocá-la próximo da cara do OO, tendo ficado com a ideia de que fora colocado na boca, embora não tenha visto. (…) Mais acrescentou que viu o enfermeiro SS deitar água na cara do OO para lha limpar.
Por sua vez, JJJ contou que (…) viu o arguido CCde cócoras, junto ao OO, a dizer-lhe repetidamente "cospe lá agora. Não viu o que o 1° Sargento CC terá feito, mas passado um bocado, pareceu-lhe que o OO estava com falta de ar. Nessa altura, surgiu o enfermeiro SS (que conhecia por ter sido ele a dar-lhes instrução de primeiros socorros) e viu-o a deitar água, segundo lhe pareceu,
De facto, há testemunhos que dizem ter visto apenas o gesto em direcção à zona da boca. Mas JJJ disse que depois desse acto de CC o instruendo ficou com falta de ar, o que indicia a entrada de terra na sua boca, já seca por falta de hidratação, e MMM deixou bem esclarecido que a terra foi colocada na zona da boca do OO, motivo pelo qual o enfermeiro lha foi limpar, acto que todas as testemunhas referidas disseram ter visto. SS, o enfermeiro, negou «ter assistido à colocação de terra» o que não significa que tal não tenha sucedido, mas teve um depoimento absolutamente desconforme com o das restantes testemunhas que se referiram à situação, o que aponta para a falsidade do mesmo, neste ponto, numa evidente tentativa de proteger o arguido.
Na conformidade com a prova relatada, a redacção deste ponto 133 do provado passa a ser a seguinte: «O arguido CC aproximou-se do instruendo OO e colocou na boca do mesmo um punhado de terra, que apanhou do chão, ao mesmo tempo que dizia "cospe lá agora, burro, pacação”».
Em consequência desta alteração impõe-se a alteração do ponto 427 do provado que passará a conter-se nos seguintes termos: «o arguido CC ao colocar terra na boca de OO, quando o mesmo já apresentava desidratação, bem sabia que ofendia o corpo deste e lhe causava mal-estar, o que quis».”
Ora, constata-se que a prova pericial é irrisória neste ponto, pois não possibilita epilogar se a terra foi colocada junto ou dentro da boca, nem o Recorrente indica qualquer trecho dos relatórios periciais que o sustente.
A perícia limitou-se a relatar o que foi encontrado na autópsia, sem abordar se a terra foi colocada pelo arguido CC, ora recorrente, junto ou dentro da boca de OO, sendo irrelevante para a decisão.
Pelo que, o acórdão recorrido fundamentou a alteração ao facto provado em 133 de forma lógica e coerente, com base nos testemunhos referidos e nas conclusões plausíveis que deles retirou, conforme fundamentação supra aludida.
Da leitura da decisão recorrida conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se percebe que a alteração da matéria de facto efetuada pelo Tribunal da Relação, é adequada, está fundamentada e os juízos que são feitos são lógicos, prudentes, não arbitrários e estribam-se nas referidas regras da experiência.
Deste modo, é claro que os elementos probatórios referidos foram devidamente considerados na decisão recorrida.
Outra questão, é a eventual divergência de entendimento quanto à forma como esses elementos foram apreciados em conjunto com os demais.
A divergência quanto à apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido não configura, por si só, erro-vício, pois traduz apenas a visão do recorrente sobre os factos que, no seu entender, deveriam ter sido julgados de forma diferente. O que importa é a convicção formada pelo tribunal com base na prova produzida, não as leituras subjetivas do recorrente.
O eventual erro na avaliação da prova é erro de julgamento, distinto do erro-vício.
Ora, o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode controlar a legalidade da prova (por exemplo, prova proibida ou omissão de prova relevante), não podendo reapreciar o valor que o tribunal atribuiu à prova.
No caso, o acórdão recorrido analisou corretamente todas as questões, sem erros ou omissões que afectem a decisão.
A decisão baseou-se numa análise crítica e fundamentada da prova documental, testemunhal e pericial, avaliando todas as versões apresentadas, e explicando de forma clara o processo de formação da convicção, sem nulidades ou erros de apreciação.
Em conclusão, o acórdão respeita a lei e as regras da experiência comum, não se verificando qualquer vício ou nulidade, estando a matéria de facto definitivamente fixada.
Assim, conclui-se pela ausência de quaisquer dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
5. Alteração da qualificação jurídica
O arguido GG foi condenado pela prática de dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93.º, nºs 1 e 3, alínea a), do Código de Justiça Militar (CJM), apesar de ter sido inicialmente acusado e pronunciado pela prática de crimes da mesma natureza, previstos no artigo 93.º, nºs 1 e 2, alíneas a) e d), e n.º 3, alínea b), do mesmo diploma legal.
Perante a alteração da qualificação jurídica operada pelo acórdão recorrido, o arguido sustenta ter sido violado o disposto no artigo 424.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por não lhe ter sido dada a oportunidade de se pronunciar sobre essa nova qualificação.
O Tribunal da Relação de Lisboa, contudo, entendeu que, no caso concreto, tal exigência não se aplicaria, uma vez que a condenação do recorrente assentou numa incriminação que configuraria um minus face às imputações constantes da acusação e pronúncia, não se verificando, assim, qualquer violação de princípios ou garantias de defesa constitucionalmente consagrados.
Invoca ainda o arguido que o Tribunal da Relação ao imputar ao arguido uma incriminação nova (a do crime previsto no artigo 93.º, n.º 3, al.ª a) do CJM), sem lhe dar oportunidade para se pronunciar sobre a mesma, violou a norma do art.º 424º, n.º 3, do Código de Processo Penal, interpretando-a em sentido manifestamente inconstitucional por violação das garantias de defesa e do direito ao contraditório inscritas nos comandos normativos do art.º 32º, n.º 1 e 5, da Constituição da República.
Cumpre apreciar e decidir,
Paulo Pinto de Albuquerque, sufraga numa perspetiva histórica que “(…) a liberdade da qualificação jurídica é uma conquista da civilização moderna, depois dos excessos formal-legalistas da Revolução Francesa e outras ainda piores consequências no século XX, em que se proibiu a liberdade de qualificação jurídica no processo penal. É esta inestimável herança da liberdade de decidir-dizer o direito que reside a parte substancial do poder…”42.
Na fase de recurso, a possibilidade de alteração da qualificação jurídica foi expressamente prevista na legislação, no art. 424.º, n.º 3, do CPP43, em 200744.
Este normativo aplica-se quando o tribunal superior, por sua iniciativa, verificar que, com base nos factos provados, a qualificação jurídico-criminal da conduta deveria ser diferente, enquadrando-se noutro tipo legal de crime. Nessa hipótese, e por se tratar de uma alteração não prevista e desconhecida do arguido, será necessário dar-lhe conhecimento da possível nova qualificação, a fim de evitar uma decisão surpresa, pois visa a proteção de interesses mais relevantes e a salvaguarda das garantias de defesa consagradas constitucionalmente.
No que respeita ao dever de comunicação, estabelecido como condição para a alteração da qualificação jurídica, as principais questões residem na identificação das situações que podem ser excluídas desse dever.
A exigência de notificação ao arguido, sempre que se preveja a possibilidade de alteração não substancial dos factos ou da qualificação jurídica, assenta na necessidade de salvaguardar o seu direito de defesa. Tal notificação visa garantir que o arguido possa pronunciar-se sobre elementos novos e inesperados, quanto aos quais não teve oportunidade de se defender anteriormente. Esta exigência decorre expressamente da norma aplicável, ao referir-se à alteração “não conhecida do arguido”.
Contudo, tal exigência deixa de se justificar quando o tribunal procede apenas a uma requalificação jurídica mais favorável ao arguido – por exemplo, desagravando o tipo legal de crime de uma forma qualificada para a forma simples – ao concluir que determinada circunstância qualificativa não se verifica no caso concreto. Nessas situações, não se configura qualquer surpresa, porquanto o arguido já foi chamado a pronunciar-se sobre a circunstância agora afastada. Acresce que o bem jurídico tutelado permanece inalterado e a alteração da qualificação traduz-se numa solução mais benéfica, com eventual reflexo numa pena menos gravosa45.
Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Novembro de 2002: “se a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado, não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia).”46.
Tal como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 498/12 “(…) só pode concluir-se, que “esta alteração, não impõe o cumprimento do art. 424.º, n.º 3 do CPP, pois a mesma constitui um minus, integra uma modalidade do tipo menos grave, relativamente à qualificação jurídica da pronúncia (…)”47.
Assim, as situações em que a alteração da qualificação jurídica representa uma solução menos gravosa (minus) ou mais favorável (mellius) para o arguido são, de forma maioritariamente aceite pela doutrina e jurisprudência, consideradas exceções ao dever de notificação48.
Por outro lado, no que respeita à comunicação de alteração da qualificação jurídica em sede de recurso, nos termos do disposto no artigo 424.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, apenas a alteração 'não conhecida do arguido' impõe a notificação aí prevista. Concluiu-se, nesse sentido, que se a modificação efetuada pelo tribunal superior não for desconhecida do arguido, não se justifica o acionamento do mecanismo previsto naquele preceito.
In casu, o arguido GG apesar de ter sido inicialmente acusado e pronunciado pela prática de crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física crimes da mesma natureza, previstos no artigo 93.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e d), e n.º 3, alínea b), do Código de Justiça Militar, foi condenado no Tribunal da Relação de Lisboa pela prática de dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93.º, nºs 1 e 3, alínea a), do Código de Justiça Militar.
Também aqui ocorre um “desagravamento” dado que se altera a moldura penal do n.º 3, al. b) do artigo 93.º do CJM é mais gravosa (pena de prisão de 8 a 16 anos), que a moldura penal da al. a) do n.º 3 do mesmo artigo (pena de prisão de 5 a 12 anos), pelo que não será necessário proceder à notificação prevista no n.º 3 do artigo 424.º do CPP, motivo pelo qual improcede o requerido, inexistindo qualquer inconstitucionalidade nesta interpretação, porquanto revela-se conforme com a ratio do regime legal aplicável à alteração da qualificação jurídica, ao assegurar a comunicação ao arguido sempre que estejam em causa os seus direitos de defesa e direito ao contraditório, evitando, por outro lado, atos processuais desnecessários e desproporcionados no decurso da instância49.
6. Estrutura e funcionamento das Forças Armadas e Direito Penal Militar
Cumpre, antes de entrarmos na análise do crime pelo qual os arguidos/recorrentes foram condenados, fazer uma breve incursão na estrutura e funcionamento das forças armadas e do direito penal militar.
As Forças Armadas Portuguesas são um pilar fundamental da defesa nacional, assegurando a defesa militar da República. Diferem da restante Administração Pública porque funcionam com base numa hierarquia militar rígida. Dada a natureza das suas missões e os riscos envolvidos, “só uma forte subordinação à cadeia de comando garante a unidade de acção”50, essencial ao cumprimento das suas funções.
O Direito Penal Militar parte da chamada ordem jurídico-militar, um conjunto de regras próprias que organiza as Forças Armadas em torno de princípios fundamentais. Este sistema jurídico militar complementa a legislação comum, respeitando sempre a unidade do ordenamento jurídico do Estado. A lei penal militar aplica-se apenas aos militares e tem como principal objetivo proteger valores próprios desta realidade, como a hierarquia e a disciplina.
A disciplina militar é o que liga os vários níveis da hierarquia, exigindo o cumprimento rigoroso das leis, regulamentos e ordens legítimas, assegurando assim o bom funcionamento das Forças Armadas.
Por conseguinte, foi criado o Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22 de julho. Este regulamento define os valores fundamentais das Forças Armadas, estabelece os deveres dos militares e regula todo o processo disciplinar em caso de violação da Constituição, da lei, dos regulamentos, normas ou ordens.
O Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 18 de setembro, define os crimes estritamente militares e as respetivas penas. O Código Penal aplica-se de forma complementar, desde que não contrarie o Código de Justiça Militar, sobretudo no que diz respeito à sua Parte Geral.
A violação dos valores e deveres previstos no Regulamento de Disciplina Militar pode constituir crime militar. Contudo, o dever de obediência tem limites: cessa sempre que o cumprimento da ordem implicar a prática de um crime, pois os militares devem sempre agir de acordo com a Constituição e a lei.
As Forças Armadas organizam-se e atuam com base nos valores militares fundamentais, definidos no artigo 1.º do Regulamento de Disciplina Militar. Valores como missão, hierarquia, coesão, disciplina, segurança e obediência aos órgãos de soberania, nos termos da Constituição e da lei, sustentam a instituição e orientam a conduta dos militares no seu dia a dia.
A disciplina militar é um dos valores essenciais das Forças Armadas e está prevista nos artigos 1.º a 4.º do Regulamento de Disciplina Militar.
De acordo com o artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento de Disciplina Militar, a disciplina garante a integridade, eficiência e eficácia das Forças Armadas, tendo como objetivo principal a defesa da Pátria. Trata-se de um instrumento essencial para cumprir a missão das Forças Armadas, que é proteger a República Portuguesa, conforme dispõe o artigo 275.º, n.º 1, da CRP.
A disciplina impõe ao militar o cumprimento rigoroso das normas e o sacrifício pelo objetivo das Forças Armadas, preparando-o para reagir de forma rápida e eficaz em situações de perigo, onde o medo e a dúvida são naturais. É ela que, pelo respeito e rigor, sustenta a capacidade de resposta do militar em cenários de conflito ou treino.
Os superiores têm o dever de tutela, previsto no artigo 11.º, alínea d), e no artigo 15.º do Regulamento de Disciplina Militar. Cabe-lhes zelar pelos subordinados, identificar os seus problemas e necessidades e comunicá-los às instâncias competentes para que sejam resolvidos.
a. Código de Justiça Militar
Até 2003 vigorou o Código de Justiça Militar de 1977, aprovado pelo DL n.º 141/77, de 9 de abril. Esse código sofreu várias alterações e foi substituído em 2003 pelo novo Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro, retificado em 2004.
Segundo o artigo 1.º, o Código aplica-se aos crimes estritamente militares, que são aqueles relacionados a bens militares protegidos pelas funções atribuídas às Forças Armadas pela Constituição, no seu Título X sobre Defesa Nacional. Embora se possa pensar que esses crimes são apenas praticados por militares, eles abrangem crimes específicos e comuns que podem ser cometidos por militares, civis determinados ou qualquer pessoa, desde que preencham os requisitos legais.
O artigo 2.º prevê que o Código Penal se aplica subsidiariamente, apenas no que não contrariar o Código de Justiça Militar, ou seja, aplica-se principalmente a Parte Geral do Código Penal. Os crimes militares específicos estão listados na Parte Especial do Código, dos artigos 25.º a 106.º.
b. Dever de obediência
Encontra-se previsto na alínea a), n.º 2, do artigo 11.º, do Regulamento de Disciplina Militar, o dever de obediência, que consiste em cumprir rápida e integralmente as ordens dos superiores hierárquicos em matéria de serviço, desde que não impliquem a prática de um crime, conforme dispõe o artigo 12.º, n.º 1 do Regulamento da Disciplina Militar.
Nos termos do disposto no artigo 7.º do Regulamento de Disciplina Militar, constitui infração disciplinar violar qualquer dever militar, incluindo o de obediência. A recusa injustificada em cumprir uma ordem configura o crime de insubordinação, previsto no artigo 87.º do Código de Justiça Militar, punível com pena de prisão.
Sufraga A. M. Félix “Há que ter em conta que subordinação não significa servidão e, portanto, o dever de obediência apresenta limites.”51.
As normas do n.º 3 do artigo 271.º da CRP, do n.º 2 do artigo 4.º da Lei de Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar, e do n.º 1 do artigo 12.º do Regulamento de Disciplina Militar estabelecem que o dever especial de obediência termina sempre que cumprir uma ordem implique a prática de um crime. Como o militar presta juramento à Constituição e à lei, conforme dispõe o artigo 7.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, e estes estão acima de qualquer ordem, essas normas permitem a desobediência quando a ordem configura um crime segundo o Código de Justiça Militar.
c. Obediência hierárquica devida
O nosso ordenamento jurídico prevê regras claras sobre o dever de obediência hierárquica, que constam de normas como o artigo 271.º da Constituição, o artigo 36.º do Código Penal, os artigos 68.º e 87.º do Código de Justiça Militar, o artigo 4.º, n.º 2, da Lei de Bases do Estatuto da Condição Militar e o artigo 12.º, n.º 1, do Regulamento de Disciplina Militar.
Para que a obediência seja obrigatória, a ordem deve ser não só formalmente válida, mas também legal quanto ao seu conteúdo. Se a ordem for ilegal, formal ou materialmente, e conduzir à prática de um crime, o subordinado não está obrigado a cumpri-la, nem o ato será justificado52.
Sufraga Nuno Brandão que uma ordem é formalmente legítima quando o superior tem competência e autoridade para emiti-la, o subordinado tem competência para executá-la, e existe uma relação jurídica de subordinação reconhecida entre ambos, que obrigue o cumprimento. Além disso, devem ser respeitadas as formalidades legais exigidas, como as formas e procedimentos aplicáveis53.
Ora, a ordem precisa ser legítima para que possa justificar o seu cumprimento. Ou seja, o dever de obediência só se aplica quando a ordem está em conformidade com a lei.54
Como a legitimidade da ordem determina a licitude do acto, o subordinado deve poder questioná-la. Caso a ordem seja ilegítima, a sua execução não se justifica pela obediência.
Paulo Pinto de Albuquerque reforça que o subordinado tem sempre o dever de verificar a legitimidade da ordem recebida55.
No Direito Penal, a obediência só justifica o acto quando a ordem é material e formalmente legítima. Se a ordem for manifestamente ilegal e implicar a prática de um crime, a obediência não é devida.
No Direito Militar, aplicam-se os mesmos princípios do Direito Administrativo, sem regime especial, pelo que o dever de obediência militar segue as mesmas regras gerais.
Assim, quando a ordem for manifestamente ilegítima e envolver a prática de um crime, o subordinado não deve obedecer, e o ato não é justificado.
Invoca(m) o(s) recorrente(s) que o Guião da ... era uma ordem, que tinham de cumprir, bem como tinham de cumprir da forma como estava prevista no guião.
No entanto, afigura-se-nos não lhes assistir razão, porquanto não se encontrava previsto no Guião da ... que durante uma prova de formação de um corpo especial, não se deveriam adoptar medidas para prevenir e corrigir situações de desidratação extrema, apesar do esforço físico intenso, das temperaturas elevadas e dos sinais evidentes de colapso físico dos instruendos (desmaios, vómitos, quedas, alucinações), expondo-os desnecessariamente a riscos graves para a saúde e vida.
Nesse mesmo contexto, ordenar que os instruendos se atirassem ou saltassem sobre silvas, com o propósito de lhes causar lesões como forma de punição por não atingirem objetivos impostos, ou por motivos arbitrários, ainda que tal exercício não estivesse previsto no plano de instrução, e muito menos no Guião da ..., distinguindo-se claramente de situações normais de treino onde o contacto com obstáculos naturais pode ser inevitável.
Nos termos realçados no acórdão recorrido, a fls. 1165:
“ (…)
Os “castigos” admissíveis numa situação de formação ..., como corpo de especiais capacidades físicas e psicológicas para enfrentar as missões bélicas mais difíceis, até pelos deveres inerentes à qualidade de militar, têm que manter a contenção que é exigida de quem dá o exemplo para quem está a aprender, ou seja, têm que poder ser claramente perspectivados como reforço da formação e não como formas de pura agressão. Estas últimas transcendem claramente os objectivos dessa formação, prestada no âmbito de uma instituição que se pretende e se entende como séria, segura e respeitadora dos critérios dos mais elevados padrões socias vigentes.
Acrescente-se que não se provou que este tipo de actuação correspondessea qualquer tradição militare, mesmo que tal se tivesse provado, isso não seria apto a criar no cidadão militar a noção de que é legítima uma ofensa à saúde ou integridade física de alguém, sem qualquer finalidade para além da simples ofensa, só porque é praticada noâmbito deuma acção de instrução militar.”
7. crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física
a. Dispõe o artigo 1.º do CJM:
“Âmbito de aplicação
1 - O presente Código aplica-se aos crimes de natureza estritamente militar.
2 - Constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei.”
Sufraga a propósito do conceito de crime estritamente militar, o Conselheiro Souto Moura:
“(…) o Tribunal Constitucional foi chamado inúmeras vezes a tomar posição sobre o assunto.
Esta instância procurou determinar o núcleo ou radical impreterível do conceito (limite inultrapassável para o legislador ordinário), núcleo que situou no «âmbito estritamente castrense», devendo as infrações ser aquelas que «afetem inequivocamente interesses de carácter militar». E que «por isso mesmo, hão de ter com a instituição castrense uma qualquer conexão relevante, quer porque existe um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque esse nexo se estabelece com os interesses militares da defesa nacional». Mas, do requisito constitucional da essencialidade do crime do ponto de vista militar, resulta para o legislador também uma vinculação positiva no preenchimento do conceito, que não é de forma nenhuma indefinidamente aberto. Decisiva se torna a natureza dos valores que se pretendem proteger, (…). Neste campo interessará saber se estão em causa valores ligados à defesa nacional ou à organização militar no que tenham de próprio ou pelo menos de específico e que, consequentemente, venham a justificar a autonomização uma ordem jurisdicional”56.
“A justiça militar tutela interesses militares da defesa nacional, isto é, bens jurídicos relacionados com os objetivos constitucionalmente consagrados da defesa nacional e com valores fundamentais das Forças Armadas, para que estas consigam prosseguir a sua função de defesa militar da Pátria. Já não estamos perante um direito penal “dos militares”, mas sim “da função militar”, pelo que o crime estritamente militar só poderá violar bens jurídicos militares da defesa nacional, deixando de ser a tutela do dever militar. (…)
Os interesses militares da defesa nacional consagrados no CJM são: a independência e a integridade nacionais (de que são exemplo: a traição à Pátria; violação de segredo; espionagem; infidelidade no serviço militar); os direitos das pessoas (crimes de guerra; crimes em aboletamento); a missão das forças armadas (são exemplo: os atos de cobardia e abandono de comando); a segurança das forças armadas (de que são exemplo: o abandono de posto; ofensas a sentinela; entrada ou permanência ilegítimas em instalações militares); a capacidade militar (são exemplo: os crimes de deserção; dano, comércio ilícito; extravio, furto e roubo de material de guerra); a autoridade (são exemplo: os crimes de insubordinação e de abuso de autoridade); e o dever militar e o dever marítimo (são exemplo: o ultraje à Bandeira Nacional, perda ou abandono de navio)”57.
b. Dispõe o artigo 93.ºdo CJM:
“Abuso de autoridade por ofensa à integridade física
1 - O militar que ofender o corpo ou a saúde de algum subordinado no exercício das suas funções e por causa delas é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2 - Se a ofensa for de forma a:
a. Privar o ofendido de importante órgão ou membro ou a desfigurá-lo permanentemente;
b. b) Tirar ou afectar, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem;
c. Provocar doença particularmente dolorosa ou permanente ou anomalia psíquica grave ou incurável;
d. Provocar perigo para a vida;
e. o agente é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.
f. 3 - Se a ofensa vier a produzir a morte, o agente é punido:
g. a) Com pena de prisão de 5 a 12 anos, no caso do n.º 1;
h. b) Com pena de prisão de 8 a 16 anos, no caso do n.º 2.
i. 4 - O militar que praticar as ofensas previstas no n.º 1 e vier a produzir as ofensas previstas no n.º 2 é punido com pena de prisão de 5 a 12 anos.”
Constata-se, assim, que o tipo legal de crime previsto no Código de Justiça Militar constitui uma adaptação dos diversos tipos de ofensas à integridade física previstos no Código Penal, ajustada à especificidade do contexto castrense. Tal adaptação decorre da delimitação normativa assente na expressão “de algum subordinado no exercício das suas funções e por causa delas”, que confere ao tipo uma configuração estritamente militar.
Dessa forma, são plenamente aplicáveis ao crime militar em causa os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais consolidados relativos às várias modalidades do crime de ofensa à integridade física previstas no Código Penal, agora reunidas no artigo 93.º do CJM.
a. Bem jurídico protegido
O bem jurídico tutelado pela incriminação é, por um lado, a autoridade e a hierarquia no seio das forças armadas, e, por outro, a integridade física e psíquica do subordinado, que não pode ser colocado à mercê de eventuais abusos de autoridade por parte do seu superior hierárquico.
São, portanto, elementos típicos do crime:
i. a qualidade de militar de ambos os sujeitos (configurando o delito como próprio);
ii. a existência de uma relação hierárquica entre eles — sendo o agente passivo necessariamente subordinado ao agente ativo;
iii. o exercício de funções no momento da conduta, e a ligação funcional entre a atuação e as funções desempenhadas.;
iv. No plano objetivo, exige-se ainda a prática de atos que causem ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem, independentemente da dor ou sofrimento provocados;
v. No plano subjetivo, requer-se a existência de dolo, em qualquer das suas formas.
Entende-se por ofensa à integridade corporal ou à saúde qualquer alteração anatómica ou patológica, perturbação ilícita da integridade morfológica corporal, ou interferência no funcionamento normal do organismo ou das suas funções específicas (lesão corporal), bem como qualquer comprometimento do estado de bem-estar físico, mental ou social (saúde)58.
Por conseguinte, por ofensa à integridade corporal ou à saúde, deve compreender-se qualquer forma de maus-tratos que causem ao ofendido um prejuízo relevante no seu bem-estar físico ou psíquico.
a. Preenchimento elementos objetivos e subjetivos do tipo
O recorrente FF suscita em sede de recurso, que não se encontram preenchidos todos os elementos típicos do crime pelo qual foram condenados.
O recorrente/arguido FF foi condenado pelo Tribunal da Relação de Lisboa na pena de 2 anos e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por quatro anos, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo 93.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar.
O que está em apreciação é a conduta do ora recorrente, ao ter atuado à margem do Guião da Prova e de quaisquer princípios de proporcionalidade ou necessidade, punindo os instruendos (entre os quais OO) mediante a inadmissível ordem para rastejarem sobre silvas, com o propósito deliberado de lhes causar ferimentos — o que, de facto, ocorreu.
Tal conduta verificou-se num contexto de profunda desidratação dos instruendos, situação essa que, por si só, desaconselhava a continuação da instrução. Ainda assim, o Recorrente não providenciou qualquer hidratação nem solicitou o apoio da equipa sanitária, apesar de saber que os formandos apresentavam feridas suscetíveis de infeção (cf. factos provados em 89 a 95-B).
A pretensão do Recorrente de legitimar a sua conduta, ao impor que os instruendos rastejassem sobre silvas, como compatível com os objetivos da instrução militar já foi sobejamente analisada no ponto 7.d), remetendo-se para os argumentos aí aduzidos.
Tal conduta, além de carecer de qualquer fundamento no Guião da Prova — documento minucioso e inequívoco quanto à natureza e aos limites dos exercícios autorizados, como expressamente se verifica na ficha de instrução individual da GAM, ministrada pelo próprio Recorrente (cf. fls. 56 a 70, anexas ao referido Guião) —, representa uma violação direta e intolerável dos princípios basilares do Estado de Direito, em especial da dignidade da pessoa humana, valor absolutamente inegociável e insuscetível de ser sacrificado sob qualquer alegada finalidade disciplinar ou formativa.
Ao contrário do alegado pelo Recorrente, sua posição na hierarquia é irrelevante, pois ele era o responsável pela GAM (cf. facto provado em 48) e agiu como superior dos instruendos por decisão própria, desrespeitando o Guião da Prova e as regras estabelecidas.
Pelo que, conclui-se que a decisão recorrida justifica de forma pertinente o enquadramento típico da conduta do ora recorrente.
Outra questão, de natureza distinta, é a manifestação de uma divergência interpretativa legítima quanto à valoração de determinados elementos probatórios, especialmente quando considerados em conjunto com os demais
Assim, os factos provados enquadram-se no tipo penal que levou à condenação do ora recorrente FF, não merecendo qualquer censura o acórdão recorrido.
O recorrente GG suscita em sede de recurso que não se encontram preenchidos todos os elementos típicos do crime pelo qual foi condenado.
O recorrente/arguido GG foi condenado pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 2 penas de 6 anos de prisão, relativas a cada um dos 2 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93.º, n.º 3, al. a), do Código de Justiça Militar, cometidos nas pessoas de OO e PP e, em cúmulo jurídico, na pena 7 anos e 6 meses de prisão.
Cumpre apreciar,
Considerando a fundamentação constante de fls. 1220 a 1223 e 1226 a 1227 do acórdão recorrido, quanto à falta geral de hidratação, que tornava inadequada a continuação da prova nas condições em que decorreu, devem ser especialmente considerados:
- Para os Graduados, os factos provados em 91, 93, 95-B, 98-A, 100, 101, 101-A, 102, 103, 104, 105, 105-A, 114, 114-A, 114-B, 115, 118, 120, 123, 126, 128, 129, 130, 132, 135 e 136;
- Para o P3, os factos provados em 262, 263, 269, 270, 282, 283, 291, 292 a 295, 296, 297, 298, 301, 303, 304, 304-A, 304-B e 304-C;
- Para o P1, os factos provados em 162, 165, 168 a 180, 181-A, 185, 191, 192 a 199, 200, 200-A, 200-B, 200-C e 201;
- Para o P2, os factos provados em 233, 239-A, 239-B, 241 e 243 a 246.
De igual modo, nas instruções (especialmente no tiro de combate para os grupos P1, P2 e P3, e na ... e GAM para os graduados) foi verificada uma prática de ordenar aos instruendos que se atirassem ou rastejassem sobre silvas como castigo ou consequência de erros nos exercícios. Essa conduta causou lesões físicas e aumentou o risco de ferimentos graves e até ameaça à vida, particularmente devido à combinação de esforço físico extremo, altas temperaturas e desidratação, que pode levar a um golpe de calor, como ocorreu (cf. factos provados em 86, 87, 94, 95, 95-A e 114-A para os Graduados; factos provados em 271 a 274, 274-A, 274-B e 274-C para o P3; factos provados em 171, 172-A, 174 e 175 para o P1; e 219 a 228-A para o P2).
Finalmente, deve-se observar que a equipa sanitária que acompanhava a prova (nomeadamente na prova de tiro, conforme facto provado em 123) não podia ignorar este quadro, assim como os factos diretamente ligados ao recorrente GG (factos provados em 114-B a 115, 123-124, 200-C, 239-A e B, 304-B e C, 306-A, 312-325-A, 417-419, 430-G, e 430-L).
Acresce que o Recorrente GG contesta a existência de nexo causal entre as omissões verificadas e as lesões que resultaram nas mortes de OO e PP, alegando não se ter provado essa ligação.
Todavia, não procede a alegação do recorrente, porquanto não é exigível a demonstração de um efeito concreto e específico de cada omissão – o que configuraria, de facto, uma prova impossível. O que importa, e foi efetivamente demonstrado, é que as omissões imputadas ao arguido contribuíram de forma relevante para a ofensa à integridade física das vítimas, incrementando de modo previsível os riscos à sua saúde e colocando em perigo as suas vidas, risco esse que veio, infelizmente, a concretizar-se com o desfecho fatal.
Por outro lado, o Recorrente questiona se existe relação entre as lesões sofridas e a sua posição hierárquica relativamente a OO e PP.
Também aqui não procede o invocado pelo recorrente, pois o ora recorrente GG era o responsável pela Equipa Sanitária (facto provado em 49), integrada na estrutura hierárquica do dispositivo envolvido na ... (cf. factos provados em 38 a 49 e do ponto 3 do Guião).
Pelo que, conclui-se que o recorrente GG fracassou no cumprimento do seu dever de vigilância quanto à forma como decorreu a prova, omitindo a atuação exigida na qualidade de garante da saúde dos instruendos, tal como resulta que não deu quaisquer instruções, nem tomou medidas adequadas para prevenir a desidratação severa, agravada pela exaustão física e pelas condições climáticas adversas (cf. factos provados em 114-B, 115, 304-C, 306-A e 430-G, quanto a OO e PP), do mesmo modo não cumpriu o dever de tratamento a estes mesmos instruendos, ao não ordenar de imediato a sua transferência para a ambulância com ar condicionado (cf. facto provado em 321), nem para o HFAR ou outro hospital, ausentando-se do local sem deixar outro médico presente (cf. factos provados em 322, 323-B, 324, 325 e 326).
Igualmente estava consciente de que a tenda onde se encontravam não tinha refrigeração (cf. facto provado em 316), e de que a soroterapia foi ineficaz, mesmo assim, não adotou outras medidas, como o arrefecimento corporal ou a transferência urgente, apesar do agravamento do estado dos doentes (cf. factos provados em 316-A, 317, 318, 319 e 320).
Perante o quadro clínico, era essencial combater a desidratação (cf. factos provados em 312, 313 e 419) e garantir assistência médica urgente, o que incluía o arrefecimento rápido dos doentes, algo que o arguido, enquanto médico experiente, sabia ser necessário (cf. factos provados em factos 417, 418 e 419), o ora recorrente tinha conhecimento das condições extremas em que decorriam os exercícios físicos, sob temperaturas elevadas e com restrições no consumo de água. Previu que disso podiam resultar lesões graves (neurológicas, cardíacas, renais e hepáticas), mas não antecipou que tais danos poderiam evoluir até à falência de órgãos com risco de vida para os instruendos, nomeadamente OO e PP (cf. facto provado em 430-G).
Conclui-se, com base nos factos provados, que a conduta do recorrente/arguido GG integra os elementos objetivo e subjetivo dos crimes imputados, não merecendo qualquer censura o acórdão recorrido.
8. Conformidade constitucional do crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física
Suscita o arguido GG em sede de alegações de recurso, que o crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93.°, n.° 3, al.ª a), do CJM é inconstitucional, ao prever a moldura de 5 a 12 anos de prisão, perante o crime de ofensas à integridade física simples agravadas pelo resultado, previsto no artigo 143º, n.º 1, e 147º, n.º 1, do Código Penal, por violação do princípio da igualdade plasmado no artigo 13.°, n.° 1, da CRP, mostrando-se igualmente ferido o princípio da proporcionalidade com expressão no artigo 18.°, n.° 2, segunda parte, da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou, diversas vezes, sobre a conformidade à Constituição da qualificação de determinadas incriminações como crimes essencialmente militares, com a qual se concorda e remete. Assim, no Acórdão nº 271/97 (D.R., I Série-A, de 15 de Fevereiro de 1997), o Tribunal Constitucional considerou o seguinte:
"Certo é que nem todos os juízes que compõem este Tribunal estão de acordo com o conceito de "crimes essencialmente militares" que vai implicado no passo do Acórdão nº. 347/86, acabado de transcrever devido à sua excessiva amplitude. Há, assim, quem entenda que não podem ser "considerados crimes essencialmente militares aquelas condutas cuja única especificidade relativamente aos crimes comuns consista no facto de se conexionarem, de qualquer forma, com a segurança ou a disciplina das Forças Armadas" e considere necessária, para que uma conduta possa ser qualificada como crime essencialmente militar, e não apenas acidentalmente militar, a existência de "uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional" (cf. declarações de voto do conselheiro Luís Nunes de Almeida apostas aos citados Acórdãos nºs. 347/86 e 449/89). Ou ainda quem acentue que "só serão crimes essencialmente militares os que afectarem bens jurídicos militares - "direitos interesses" tutelados constitucionalmente conexionados com a preservação e a subsistência das Forças Armadas" (cf. declaração de voto da conselheira Maria Fernanda Palma junta ao mencionado Acórdão no. 680/94).
Seja como for, é consensual a ideia de que o punctum saliens dos "crimes essencialmente militares" se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser naturalmente, bens jurídicos militares. Como sublinha J. Figueiredo Dias, "tal como sucede com o direito penal Comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico", pelo que "o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão" (Cf. "Justiça militar", in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, pp. 25 e 26)."
Conforme sufragado no Acórdão do TC 165/2008, Processo n.º 641/07, de 05-03-2008:
“Deve começar por afirmar-se que não cabe ao Tribunal Constitucional verificar a correcção da qualificação jurídica que conduziu à subsunção dos factos indiciários que são imputados aos arguidos no tipo legal do artigo 82° do CJM, pelo que a única questão que cabe dilucidar, no âmbito do presente recurso, é apenas a de se saber se a norma em causa, na interpretação dada pelo tribunal recorrido, padece do invocado vício de inconstitucionalidade.
O mencionado artigo 18º, n.º 2, da Lei Fundamental determina que a « [A] lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
À luz deste enunciado, entende-se serem pressupostos materiais de legitimidade das restrições ao exercício de direitos, liberdades e garantias, a exigência de previsão constitucional expressa da respectiva restrição, a vinculação da restrição à necessidade de salvaguardar um outro direito, liberdade e garantia, e, bem assim, a subordinação das leis restritivas a um princípio da proporcionalidade, o que desde logo significa, num sentido estrito, que os meios legais restritivos devem situar-se numa justa medida e não poderão ser desproporcionados ou excessivos em relação aos fins que se pretende obter (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra, 4ª edição, págs. 391-393).
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente reconhecido que a Constituição acolhe, nesse artigo 18º, n.º 2, os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas e das medidas de segurança, aceitando o princípio – que constitui um afloramento do Estado de Direito democrático – de que as sanções penais, por serem as que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua necessidade (cfr. o acórdão n° 494/03 e a abundante jurisprudência nele citada)
A esse propósito, o Tribunal tem sublinhado que « [...] O direito penal, enquanto direito de protecção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos – e se não for possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos violentas do que as sanções criminais. É, assim, um direito enformado pelo princípio da fragmentariedade, pois que há-de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à protecção das condições sociais indispensáveis ao viver comunitário. E enformado, bem assim, pelo princípio da subsidiariedade, já que, dentro da panóplia de medidas legislativas para protecção e defesa dos bens jurídicos, as sanções penais hão-de constituir sempre o último recurso» (acórdão n° 108/99). Poderá assim concluir-se como se ponderou também no acórdão 99/02, que “ [...] as medidas penais só são constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse constitucionalmente protegido, e só serão constitucionalmente exigíveis quando se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e essa protecção não possa ser suficiente e adequadamente garantida de outro modo”.
Não pode perder-se de vista, em todo o caso, como também tem sido frequentemente afirmado, que o juízo de constitucionalidade se não pode confundir com um juízo sobre o mérito da lei, pelo que não cabe ao Tribunal Constitucional substituir-se ao legislador na determinação das opções políticas sobre a necessidade ou a conveniência na criminalização de certos comportamentos” (assim, designadamente, o Acórdão n.º 99/02).
Como observa Sousa e Brito (A lei penal na Constituição, Estudos sobre a Constituição, 2º volume, pág. 218), é “evidente que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também neste matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva”.
Em suma, aceitando-se que, «também em matéria de criminalização, o legislador não beneficia de uma margem de liberdade irrestrita e absoluta, devendo manter-se dentro das balizas que lhe são traçadas pela Constituição», o certo que, «no controlo do respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de conformação, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas manifestamente arbitrárias ou excessivas» (assim, o citado acórdão nº 99/02, na linha de uma firme orientação jurisprudencial).”59
A incriminação prevista no artigo 93.º, n.º 3, al. a), do CJM apenas poderia ser considerada inconstitucional se se revelasse manifestamente excessiva ou desproporcionada. Fora dessa situação-limite, prevalece a margem de conformação legislativa atribuída pelo artigo 165.º, n.º 1, al. c), da CRP. Não se demonstrando tal desproporcionalidade, não se verifica qualquer violação do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º 2, da CR
As considerações anteriormente expostas quanto à primeira questão de constitucionalidade bastam para afastar tal entendimento relativamente à inexistência de qualquer violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP, dado que o legislador configurou o tipo legal incluído no catálogo dos crimes militares, a uniformidade de tratamento penal insere-se na margem de conformação do legislador, não se mostrando constitucionalmente censurável a opção por uma coerência valorativa entre as respetivas molduras penais.
a. O crime comissivo por omissão e a posição jurídica de garante
Suscita o recorrente/arguido, GG que a definição de dever de garante do Tribunal da Relação de Lisboa, na vertente de dever de prevenção, é manifestamente ilegal, ilógica e desproporcional, devendo ser, por isso mesmo, rejeitada.
Cumpre apreciar,
i. O crime comissivo por omissão
O conceito penal de ação compreende tanto a atuação comissiva em sentido estrito — o facere (realizar um comportamento proibido) — quanto a conduta omissiva — o omittere (deixar de realizar um comportamento juridicamente exigido).
O crime por omissão traduz-se na violação de um dever jurídico de agir. Por conseguinte, apenas poderá ser cometido por quem esteja juridicamente vinculado à realização da conduta imposta e esperada60.
Distingue-se, nesse domínio, entre omissões próprias ou puras, nas quais o tipo legal se esgota na simples inação perante um dever legal específico — designando-se como comissão por omissão sem resultado lesivo relevante —, e omissões impróprias ou impuras, em que o agente, encontrando-se numa posição de garante, omite a atuação necessária para evitar a produção de um resultado típico, sendo por isso responsabilizado como se tivesse causado o resultado diretamente (comissão por omissão). Esta distinção exige, no caso das omissões impróprias, o recurso à cláusula de equiparação prevista no artigo 10.º do Código Penal, que define quem se encontra investido desse dever jurídico e em que circunstâncias ele se impõe. Não obstante, ambos os casos configuram crimes de resultado, na medida em que comprometem a tranquilidade ou proteção do bem jurídico visado.
A norma penal que visa evitar um determinado resultado não apenas impõe a abstenção de comportamentos que o possam provocar, mas também exige a adoção de condutas que impeçam a sua verificação. É por essa razão que tanto a violação da norma por meio de um facere, quanto por um omittere, possuem relevância penal — ambas atentam contra o conteúdo normativo de proteção subjacente à norma.
“[…] Da norma que quer evitar um resultado nasce, pois, para todos, não só o dever de evitar as atividades que o produzem, mas também o comando de levar a cabo as atividades que obstem à sua produção. Daí que não só importe à sua violação o facere como o omittere. Um e outro podem levar a cabo a sua violação, realizando-se no primeiro caso uma comissão por ação, no segundo uma comissão por omissão. Temos, assim, que o dever de atividade cuja não observância constitui a omissão não se pode dizer autónomo, mas é derivado do preceito que quer evitar a negação de valores contida na produção de um certo resultado. […]”61.
À luz do princípio da tipicidade — nullum crimen sine lege — que rege o nosso ordenamento jurídico e que exige do julgador a subsunção rigorosa dos factos aos tipos legais expressamente previstos, configura-se como crime de resultado, na modalidade de comissão por omissão, a conduta do agente que, estando juridicamente obrigado a evitar a produção de um determinado evento danoso, se abstém de agir, permitindo assim a sua ocorrência ou expondo a vítima ao perigo concreto da sua verificação.
A aproximação conceptual entre ação e omissão assume especial relevância, na medida em que, quando a omissão corresponde à abstenção de um comportamento juridicamente exigido, pressupõe-se que o agente se encontrava em condições de o realizar. Com efeito, a impossibilidade de concretizar a conduta devida constitui um limite implícito ao dever de agir subjacente ao tipo omissivo, afastando, nesse caso, a responsabilidade penal62.
O artigo 10.º do Código Penal estabelece que, nos crimes de resultado, a omissão de uma ação que poderia evitar esse resultado é punível, desde que o agente tivesse o dever jurídico de agir (n.ºs 1 e 2).
Trata-se de uma cláusula geral de equiparação entre ação e omissão, que define as condições em que a omissão pode ser penalmente relevante, ampliando assim o âmbito da responsabilidade criminal.
O legislador destacou a importância do dever jurídico de garante como base para responsabilizar quem omite uma ação, garantindo que a imputação do resultado seja legítima e não viole o princípio da tipicidade. É esse dever que justifica atribuir à omissão o mesmo desvalor penal que à ação63.
Por isso, o artigo 10.º, n.º 1, do CP admite que a equiparação entre ação e omissão não se aplique se essa não for a intenção da lei.
Para saber se uma omissão pode ser punida como se fosse uma ação, é preciso interpretar o objetivo da norma penal e verificar se ela admite essa equiparação.
Cabe ao juiz avaliar, caso a caso, se a omissão tem a mesma gravidade que uma ação e, por isso, pode ser punida da mesma forma. Nem todos os crimes de resultado admitem essa equiparação.
Com isso, é essencial entender o dever de garante e até onde ele obriga o agente a agir para evitar o resultado.
ii. a posição jurídica de garante
O dever jurídico de garante é outro limite à equiparação entre omissão e ação. Segundo o n.º 2 do artigo 10.º, só há punição por omissão quando o agente tinha pessoalmente o dever jurídico de evitar o resultado.
Esse dever surge de uma relação prévia juridicamente relevante, que impõe ao agente a obrigação de impedir que o resultado proibido ocorra.
Os deveres de garante têm como base, principalmente, uma relação de dependência entre quem tem o dever e quem dele depende64.
As teorias formais, acolhidas por autores como Eduardo Correia e Figueiredo Dias, indicam três principais fontes do dever de garante:
- A lei, como nas relações familiares (por exemplo, entre cônjuges – art. 1672.º CC – ou entre pais e filhos – art. 1874.º CC);
- O contrato, que gera deveres profissionais ou funcionais (ex.: ama, educadora, nadador-salvador);
- A ingerência, que decorre de uma conduta anterior, lícita ou ilícita, do agente, da qual resulta uma situação de perigo (ex.: criar risco por negligência ou por domínio de fontes de perigo, como máquinas).
Os crimes de omissão imprópria são “tipos abertos” que exigem ligar uma norma penal específica, que define a conduta típica, com a norma geral do artigo 10.º. Esta última ajuda o juiz a identificar se o agente tinha o dever de garante para completar o tipo legal do crime.
Para que haja dever de garante, o agente deve ter controle real sobre a situação, ou seja, deve poder agir para evitar o resultado prejudicial65.
Em síntese, os crimes por omissão imprópria acontecem quando há: uma situação que exige agir, um dever legal de agir, o agente é garante, tem capacidade para agir, deixa de agir, ocorre o resultado que a ação evitaria e há causalidade hipotética.
A imputação objetiva do resultado nesses crimes não depende de uma relação real entre omissão e resultado, mas sim de uma relação hipotética, baseada no julgamento de que agir teria evitado o resultado.
De facto, a omissão é considerada causal se a ação não feita poderia ter evitado o resultado. Não é preciso certeza absoluta, pois trata-se de um julgamento hipotético, que admite margem de erro. Por isso, entende-se que a omissão é causal se a ação omitida realmente teria reduzido o risco ao bem jurídico, e em caso de dúvida, deve-se favorecer o agente (in dubio pro reo).
A capacidade da ação para causar o resultado leva em conta todo o processo, não só o evento final. Mesmo que terceiros intervenham e interrompam a sequência, se o resultado era previsível para o agente, ele continua responsável.
O tempo entre a ação omitida e o resultado não importa; o nexo causal existe tanto se o resultado ocorre imediatamente quanto após longo período.
Subjetivamente, o agente deve saber que é garante e conhecer os deveres legais ligados a isso. Na omissão dolosa, ele também precisa entender os fatos típicos e querer o resultado, mesmo que não controle totalmente o processo causal.
Para configurar o dolo, é importante que o autor esteja ciente da sua omissão (que poderia evitar o resultado ou reduzir o risco) e da sua capacidade de agir para impedir o evento. Ou seja, sabendo da situação e podendo agir, escolhe deliberadamente não agir, querendo o resultado ou, no caso do dolo eventual, aceitando a possibilidade de que ele ocorra66.
No dolo de crimes de ação, o agente age sabendo que seu comportamento pode causar o resultado típico e aceita essa possibilidade. Nos crimes de resultado por omissão, o agente deixa de agir, prevendo ao menos a possibilidade do resultado e aceitando-o.
Assim como nos crimes dolosos de ação, o omitente que reconhece a possibilidade do resultado e mesmo assim não age, assume essa possibilidade, configurando dolo eventual (art. 14.º, n.º 3, Código Penal).
A culpa, seja dolosa ou negligente, é avaliada pela atitude interna do omitente diante do dever legal. Na culpa dolosa, há contrariedade ou indiferença, o que diferencia o dolo da culpa, e explica a ausência de consciência do ilícito (art. 17.º do Código Penal)67.
Volvendo ao caso dos autos.
Na sequência do exercício de funções na qualidade de médico, recaía sobre o ora recorrente GG um dever jurídico específico de proteção relativamente aos instruendos que se encontravam sob a sua responsabilidade. Tal dever decorria não apenas da sua posição hierárquica e funcional, mas também da natureza particularmente exigente e fisicamente desgastante da formação ministrada, que exigia vigilância permanente e intervenção diligente sempre que se verificassem sinais de exaustão, lesão ou risco iminente à saúde dos formandos.
O recorrente incorreu no crime pelo qual foi condenado ao violar os deveres inerentes à sua posição de garante da saúde e da vida dos formandos, em especial, no que ora importa, de OO e PP. Fê-lo ao descurar tanto o dever de vigilância durante toda a instrução como o dever de assegurar cuidados adequados aos instruendos, apesar de ter plena consciência dos riscos acrescidos que tal omissão representava para a integridade física daqueles, acabando por expô-los a um perigo concreto para a vida.
Tal conduta não pode ser desvalorizada nem enquadrada como mero erro de julgamento ou excesso pontual, uma vez que se trata de uma violação grave de deveres funcionais essenciais, cujo cumprimento visa precisamente prevenir situações de risco extremo. A omissão do recorrente GG, consciente e reiterada, demonstra um desrespeito intolerável pelos limites legais e éticos das suas funções, traduzindo-se numa atuação penalmente censurável à luz dos princípios que regem o exercício da autoridade no seio das forças armadas.
a. Consentimento do artigo 149.º do Código Penal e autocolocação em perigo
Os recorrentes CC, FF e GG invocam ainda a seu favor a exclusão da ilicitude de qualquer facto que tenham praticado por ter de se presumir o consentimento dos instruendos, designadamente OO e PP, à submissão ao quadro dos exercícios a que foram submetidos, até porque sempre poderiam ter desistido, o que seria relevante para os efeitos do art. 149.º do CP.
Cabe ao direito penal garantir as condições básicas para a convivência em sociedade. Num Estado de Direito fundado na dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP), essa proteção traduz-se na defesa de bens jurídicos essenciais, que correspondem a valores constitucionais e aos direitos e liberdades fundamentais.
A dignidade humana fundamenta bens jurídicos como a liberdade. Os bens jurídicos pessoais, quando não ligados a valores como a vida, refletem o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Nesses casos, a liberdade é parte essencial do próprio bem jurídico, que pode ser livremente disposto pelo seu titular. Por exemplo, o património, expressão do domínio da pessoa sobre bens, só faz sentido com base na liberdade de dispor desses bens.
Assim, quando o bem jurídico é pessoal e disponível, um acto realizado com o consentimento do titular não representa violação, mas sim exercício legítimo desse direito. Se alguém autoriza a destruição de bens próprios, como peças de porcelana, não há lesão patrimonial — apenas manifestação da sua vontade sobre o que lhe pertence.
Quando a pessoa consente livremente no facto, exercendo o seu direito de dispor do bem jurídico, esse bem não é lesado. Não havendo lesão ou colocação em perigo do bem jurídico, não existe ação típica, pelo que o consentimento constitui uma causa de exclusão da tipicidade.
A integridade física é considerada livremente disponível (cf. n.º 1 do art. 149.º do CP). No entanto, a lei prevê expressamente que este princípio sofra a limitação da não contrariedade aos bons costumes.
O n.º 1 do art. 38.º do CP prescreve como pressuposto de relevância do consentimento, para além da natureza disponível do bem jurídico, a não contrariedade do facto aos bons costumes. O n.º 2 do artigo 39.º do Código Penal prevê o consentimento presumido, verificando-se quando as circunstâncias permitam supor, de forma razoável, que o titular do bem jurídico teria consentido se conhecesse a situação. Nesses casos, a conduta é considerada lícita, como se houvesse consentimento real (art. 39.º, n.º 1).
A proteção da dignidade humana reflete-se não só nos limites à disponibilidade do bem jurídico, mas também na exigência de um consentimento válido — isto é, sério, livre e esclarecido. Para tal, a pessoa deve ter mais de 16 anos e capacidade para compreender o significado do consentimento. Além das regras gerais (art. 38.º do CP), a lei impõe requisitos específicos em certos crimes ou presume a falta de autonomia mesmo quando há aparente consentimento.
Nos termos do artigo 38.º, n.º 2 do Código Penal, o consentimento só é válido se resultar de uma vontade séria, livre e esclarecida. Para que essa vontade seja autêntica, a pessoa deve estar devidamente informada sobre as consequências da conduta consentida. Quanto maior a gravidade da lesão potencial, maior o dever de esclarecimento — como é o caso das lesões corporais, onde esse dever pode ser até superior ao exigido para intervenções médico-cirúrgicas.
Para que o consentimento represente uma verdadeira expressão da liberdade individual, deve refletir uma vontade séria, livre e esclarecida (art. 38.º, n.º 2, primeira parte, do Código Penal). A lei não exige forma específica para a sua manifestação, bastando que esta seja clara e adequada a revelar uma decisão consciente e autónoma.
O artigo 149º do Código Penal determina que:
- para efeitos de consentimento a integridade física considera-se livremente disponível;
- o critério de aferição sobre o requisito dos bons costumes há que considerar, nomeadamente, os motivos e os fins do agente ou do ofendido, os meios empregues e a amplitude previsível da ofensa.
Nos termos do nº 1 do artigo 38º do Código Penal as normas da parte especial que regulam o consentimento como causa de justificação em alguns crimes prevalecem sobre a regra geral aí referida.
Os Recorrentes alegam que como os formandos participaram voluntariamente na ..., sabendo que seria dura, isso excluiria a ilicitude do ato, configurando um consentimento presumido, alegando ainda que os formandos se colocaram em perigo, interrompendo o nexo causal entre sua conduta e o dano.
No entanto, tal questão já foi amplamente analisada no acórdão recorrido, nas páginas 1175 a 1183, destacando-se que os formandos sabiam que a prova seria difícil e que haveria restrição de água, porém, não sabiam que, em caso de desidratação grave, os responsáveis poderiam não tomar as medidas necessárias para protegê-los nem transferi-los para atendimento médico, sabiam que poderiam rastejar em terrenos difíceis, mas não concordaram em ser forçados a se jogar em silvas, causando ferimentos.
Logo, não houve consentimento para os maus-tratos sofridos, sendo amoral a sua aceitação, especialmente diante do sofrimento injustificado de OO e PP. Acrescido que, a alegação de que os formandos se colocaram em perigo de forma consciente e voluntária não foi comprovada, pelo que o nexo causal permanece.
b. Falta de consciência da ilicitude do artigo 17.º do Código Penal
i O recorrente GG alega que agiu sem consciência da ilicitude por entender que, enquanto médico, atuou de acordo com o que considerava ser o seu dever. A partir dessa premissa, defende que o acórdão recorrido lhe atribuiu indevidamente uma consciência necessária da ilicitude, o que considera ser uma construção irreal e contrária ao princípio da culpa, assente na dignidade da pessoa humana.
Invoca ainda este recorrente que a interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o artigo 17.º do Código Penal, aplicável por força do artigo 2º do Código de Justiça Militar, e conjugado com a norma do artigo 93.ºdo Código de Justiça Militar, violou o princípio da culpa, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Lei Constitucional, ao negar a possibilidade de erro sobre a ilicitude dos factos a situações como a dos autos, em função dos bens jurídicos protegidos, presumindo a insuprimível culpa dos arguidos, inclusive, do recorrente, fundamento da punição penal e ainda violou ainda o princípio da legalidade criminal, inscrito no artigo 7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Bem como, a interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o artigo 17.º do Código Penal, aplicado por força do artigo 2º do Código de Justiça Militar, conjugado com a norma do artigo 93.º do Código de Justiça Militar, é inconstitucional por violar o princípio da culpa, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Lei Constitucional, e no princípio da legalidade criminal, inscrito no artigo 7.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo que deve ser revogado o acórdão recorrido e absolvido o recorrente, por falta de consciência da ilicitude dos actos praticados (conclusões 120 a 131).
O recorrente CC, por seu lado, invoca a aplicação do regime do artigo 17.º do Código Penal, alegando ter atuado sem culpa, por desconhecer a ilicitude da sua conduta (conclusões XX e XXI).
Por sua vez, o recorrente FF invoca que deverá ser afastada a condenação do Recorrente pelos crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, com fundamento na falta de consciência da ilicitude, nos termos do artigo 17.º do Código Penal, uma vez que o acórdão recorrido constrói uma suposição infundada sobre a alegada 'necessária' consciência da ilicitude por parte dos arguidos (conclusões 26 a 30 e 42 a 47).
Invoca ainda o recorrente que a interpretação do artigo 17.º do Código Penal feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa é inconstitucional, por violar os princípios da culpa (art. 1.º da CRP) e da legalidade criminal (art. 7.º da CEDH), requerendo a revogação do acórdão recorrido, com a consequente absolvição do recorrente por falta de consciência da ilicitude.
ii O erro sobre a ilicitude é tema complexo da dogmática penal, com três principais teorias: teoria do dolo (Metzka, Eduardo Correia), teoria da culpa (Welzel) e teoria conciliatória de Figueiredo Dias. Nesse erro, o agente conhece os fatos, mas não percebe o caráter ilícito da conduta, praticando ato ilícito acreditando ser lícito.
No Estado de Direito, parte-se da premissa de que um agente que assimila a consciência axiológica social reconhece o caráter ilícito da conduta. O erro sobre a ilicitude reflete uma desconformidade entre a consciência do agente e a da comunidade, configurando um erro de valoração.
Segundo Eduardo Correia, a falta de consciência da ilicitude revela negligência na formação da personalidade, punida como dolo atenuado. Na teoria da culpa, o erro não exclui o dolo se o agente conhece a conduta típica. Figueiredo Dias aproxima as duas, considerando censurável o erro sobre a ilicitude, deverá ser punido a título de dolo, ainda que este dolo respeite à personalidade do agente, e não ao seu acto.
O art. 17.º do Código Penal regula o erro sobre a ilicitude: se não censurável, exclui a culpa; se censurável, punido como dolo, com possível atenuação.
No erro sobre a ilicitude estamos perante uma deficiência da própria consciência ético jurídica do agente que não lhe permite apreender correctamente os valores jurídicos penais e por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura do dolo68.
No erro sobre a ilicitude, o agente conhece os elementos típicos, mas carece de consciência da ilicitude. A censura recai sobre a sua incapacidade ético-jurídica de apreender os valores protegidos pelo Direito Penal, revelando uma desconformidade da sua personalidade com a exigida pela ordem jurídica.
O erro é censurável quando o agente, podendo e devendo, não se informou ou esclareceu adequadamente sobre a proibição legal, como exigido de alguém com uma consciência jurídico-ética adequada.
Volvendo ao caso concreto,
iii Expendendo na íntegra a argumentação do acórdão recorrido:
“A integridade física é um bem jurídico constitucionalmente protegido, enquanto direito, liberdade e garantia pessoal (título II, capítulo I) directamente aplicável, vinculando entidades públicas ou privadas, sendo que nos termos do artigo 18º/1 da CRP «os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas».
Resulta da CRP que «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana (...)» (artigo 1o); «a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado (...) no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais (...)» (artigo 2o); «todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição» (artigo 12°/1) ; «a vida humana é inviolável» (artigo 24°) e «a integridade moral e física das pessoas é inviolável» (artigo 25°).
A integridade física é, pois, um direito inalienável de qualquer cidadão, cujo valor está bem sedimentado nos critérios de ética e moral vigentes, quer numa perspectiva nacional quer transnacional, sendo inaceitável que um militar, cujas funções passam por assegurar «a protecção dos valores fundamentais da ordem constitucional» (artigo 1o da Lei da Defesa Nacional - doravante LDN) e «o respeito pelos direitos humanos» em qualquer quadrante em que se encontre, invoque o desconhecimento de um dever de respeito pela integridade física de outro militar que, enquanto tal e ainda que na situação de efectividade de serviço, goza dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstos e reconhecidos aos demais cidadãos, com as (exclusivas) «restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e a capacidade eleitoral passiva constantes da presente lei, nos termos da Constituição» que são impostas pelo artigo 26° LDM e 16° do Estatuto dos Militares das Forças Armadas - doravante EMFAR.
Os militares, além dos deveres de cidadania gerais, estão ainda sujeitos ao Regulamento de Disciplina Militar, contido na Lei Orgânica n.° 2/2009, de 22 de Julho, que lhes acomete, entre outros, o dever de lealdade (artigo 16°), que «consiste em guardar e fazer guardar a Constituição e demais leis e no desempenho de funções em subordinação aos objectivos de serviço na perspectiva da prossecução das missões das Forças Armadas»; o dever de camaradagem (artigo 18°), que «consiste na adopção de um comportamento que privilegie a coesão, a solidariedade e a coordenação de esforços individuais, de modo a consolidar o espírito de corpo e a valorizar a eficiência das Forças Armadas», em cumprimento do qual «incumbe ao militar, designadamente, manter toda a correcção e boa convivência nas relações com os camaradas, evitando rixas, contendas ou discussões prejudiciais à harmonia que deve existir nas Forças Armadas»: o dever de responsabilidade (artigo 19°), que «consiste em assumir uma conduta e uma postura éticas que respeitem integralmente o conteúdo dos deveres militares» e o dever de correcção ( artigo 20°) em cumprimento do qual incumbe ao militar «não praticar, no serviço ou fora dele, acções contrárias à moral pública, ao brio, ao decoro militar e às práticas sociais», «tratar com particular urbanidade as pessoas em casa de Recurso Penal quem estiver aboletado, não lhes fazendo exigências contrárias às normas de direito, ao decoro militar e às práticas sociais» e «não perturbar a ordem nem transgredir qualquer norma de direito em vigor no lugar em que se encontrar».
Do exposto resulta que a tutela da vida e da integridade moral e física de qualquer pessoa corresponde não só a um direito constitucional básico e inalienável, mas também a um especial dever inerente à condição militar.
O crime mais grave do direito penal é, sem sombra de dúvida, o de homicídio. O homicídio mais não é do que um crime de ofensas corporais praticado com resultado de morte.
Em face do exposto temos por assente que o erro sobre a ilicitude, por falta de consciência da mesma, não é, obviamente, aplicável a situações em que a conduta do agente atenta contravalores fundamentais da ética social e constitucional, consagrados e protegidos pela Lei Fundamental, enquanto suporte básico de uma vivência social adequada aos princípios do Estado de Direito.
O dever de respeito pela integridade psicossomática do concidadão, seja ele militar ou não, é indissociável dos normais parâmetros normativos e sociais vigentes, estabelecidos desde há seculos na sociedade ocidental e particularmente na sociedade portuguesa.
A sua violação acarreta, inevitavelmente, uma censurabilidade profundamente sedimentada na consciência ético-social, o que afasta definitivamente a aplicabilidade do regime pretendido.
É o desconhecimento destes princípios mais básicos de qualquer sociedade que os arguidos pretendem que este Tribunal aceite que desconheciam. A punibilidade deste tipo de acções é do conhecimento de qualquer ser humano, desde a mais tenra idade, pelo que a argumentação se mostra completamente desadequada, desastrada e inverosímil.” – cf. fls. 1159 a 1161.
iv Cumpre referir que os Recorrentes GG e FF incorrem em erro de interpretação quanto ao acórdão recorrido, o qual afirma de forma expressa que a ausência de culpa exclui a existência de crime, mesmo perante a verificação objetiva de ilicitude (cf. pág. 1157).
A rejeição do erro de proibição fundamenta-se na demonstração de que os arguidos atuaram de forma livre, deliberada e consciente, com plena noção da desconformidade das suas condutas com os deveres militares e disciplinares a que estavam vinculados (facto provado em 431).
Santo Tomás de Aquino afirmava que “a culpa consiste na falta de ação adequada”69. A doutrina contemporânea reforça essa exigência ao estabelecer que ao juízo sobre o fato ou sobre a ilicitude deve seguir-se o juízo de culpabilidade. Só assim se concretiza a relação entre o agente e seus atos, pela qual o indivíduo se define e atribui valor a si próprio por meio de suas ações.
In casu, considerando as circunstâncias apuradas, acrescido da qualidade profissional do ora recorrente GG, médico militar experiente, impunha-se a conclusão a que se chegou no acórdão recorrido, inexistindo quaisquer dúvidas que impusessem a aplicação do princípio in dubio pro reo, de que os mesmos agiram com consciência da ilicitude, não sendo admissível presumir desconhecimento de princípios jurídicos elementares (cf. fundamentação do acórdão recorrido a pág. 1161), inexistindo qualquer interpretação no acórdão recorrido que colida com os princípios da culpa (art. 1.º da CRP) e da legalidade criminal (art. 7.º da CEDH).
v Relativamente ao recorrente CC, tal questão já havia sido suscitada em sede de recurso para o Tribunal da Relação, tendo o Tribunal afastado a existência de erro sobre a ilicitude por entender que os arguidos atuaram de forma deliberada, livre e consciente, cientes da contrariedade das suas condutas aos deveres militares e à lei (facto provado em 431).
Concluiu o acórdão, ora recorrido, com o qual se concorda, que face às circunstâncias do caso, que o arguido CC — à semelhança dos demais coarguidos — agiu com plena consciência da violação de princípios fundamentais de convivência social, que seriam naturalmente reconhecidos por qualquer cidadão comum, especialmente por um instrutor militar experiente.
Cumpre expender a ajustada argumentação, com a qual se concorda, do acórdão recorrido:
“(…)
ii- Do recurso do arguido CC:
O recorrente CC entende que agiu com falta de consciência da ilicitude, porque «se a agressividade (...) é conhecida da hierarquia militar, em concreto nos ... e se a conclusão é no sentido um ato ilícito penalmente relevante (aliás, é promovida em especial durante aquela prova que já foi apelidada de prova de choque), outra conclusão não se poderia retirar para além de que o recorrente, a considerar-se ilícito tal facto, agiu sem a necessária consciência dessa ilicitude»; «Trata-se, aliás, como refere o Acórdão, de uma tradição militar sendo que o seu caráter anti jurídico, para além de não o ter, a concluir-se nesse sentido, agora com a prolação do Acórdão, permitiria, no limite, levar a ponderar a aplicação do disposto no artigo 17° do Código Penal. Essa ponderação não é realizada pelo Tribunal, nomeadamente atendendo aos factos dados como provados [pontos 143 a 147 do presente Recurso] - não tendo o Tribunal ponderado, face aos factos provados e não provados, tal aplicação do artigo 17°do Código Penal, remetendo-se para uma análise quanto à alegada antijuridicidade do ato e nada referindo quanto à culpa, em concreto, do recorrente ou do facto, admitido, de se tratar de uma tradição militar nunca antes censurada».
A questão está apreciada em termos genéricos, sendo que a actuação do arguido se enquadra precisamente numa ofensa no corpo, tendo presente que se tem por ofensa toda a acção que prejudique o bem-estar físico da vítima.
A agressividade de que fala é algo abstracto, conclusivo, sem determinação concreta da qual se possa aferir da aplicabilidade da pressuposta regra consuetudinária (inexistente) ao caso concreto. O exercício da violência goza de protecção legal, no âmbito militar e das forças de segurança, unicamente enquanto meio de execução das finalidades adstritas, que se podem resumir em conquistar ou manter a segurança e a liberdade nacional e, em última instância, a soberania. Não estando tais desideratos em causa, ainda que na modalidade de administrar formação adequada à sua prossecução, nada subtrai o agente ao dever jurídico de agir segundo os princípios da adequação, proporcionalidade e necessidade que regem qualquer restrição aos direitos fundamentais.
O invocado pressuposto conhecimento e o beneplácito da hierarquia militar sobre a prática de ofensas à integridade física não têm qualquer valor face às normas imperativas, aplicáveis segundo os princípios que regem o direito constitucional e penal. Quanto muito pode arrastar a referida hierarquia para a responsabilidade penal correspondente, o que está especialmente previsto no artigo 48º do CJM, de onde consta que «o superior hierárquico que, tendo, ou devendo ter, conhecimento de que um subordinado está cometendo ou se prepara para cometer qualquer dos crimes previstos no presente capítulo, não adopte as medidas necessárias e adequadas para prevenir ou reprimir a sua prática ou para a levarão conhecimento imediato das autoridades competentes é punido com a pena correspondente ao crime ou crimes que vierem efectivamente a ser cometidos».
No caso a aptidão lesiva da saúde do ofendido foi apagada pela actuação do enfermeiro, o qual impediu que a terra colocada na boca do ofendido causasse dano na sua saúde, circunstância bem provável de acontecer pelo estado de inanição em que se encontrava.
Não se prova que este tipo de actuação corresponda a qualquer tradição militar e, mesmo que tal se provasse, isso não seria apto a criar no cidadão comum a noção de que é legítima uma ofensa à saúde de alguém, sem qualquer finalidade para além da simples ofensa, só porque é praticada no âmbito de uma acção militar.
A tradição, para ser considerada direito consuetudinário, pressupõe uma absoluta compatibilidade com os princípios constitucionais e a lei penal, imperativa e aplicável. No caso, estamos precisamente nos antípodas de normas constitucionais - de eficácia plena e aplicabilidade directa e imediata - e das normas penais vigentes, pelo que ainda que a prática possa ser comum, ela não deixa de integrar um crime de ofensas corporais, o que leva à inviabilidade da subsunção da actuação do arguido ao regime do artigo 17º/CP.” (fls. 1162 a 1164).
9. Medida da pena
Os arguidos CC e GG vieram impugnar a medida das penas aplicadas que consideram excessivas.
Em relação aos demais arguidos recorrentes, inexistindo qualquer alteração ao nível da qualificação jurídica dos crimes em que foram condenados e não tendo os mesmos peticionado qualquer apreciação das penas, não podemos deixar de considerar que os mesmos se conformaram com as penas aplicadas e, nessa medida, não serão objecto de apreciação.
O Senhor Procurador-geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal de Justiça, no seu douto parecer, manifestou-se pela procedência da pretensão do arguido CC devendo a pena ser “reduzida para 4 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos.”
Em sede de audiência e em relação ao arguido GG, o Ministério Público não se pronunciou, em concreto, sobre a medida da pena a aplicar ao mesmo.
Antes de analisar a pretensão dos recorrentes, vejamos o que consta da douta decisão recorrida em matéria de penas.
Escreveu-se no acórdão recorrido: (transcrição na parte relevante em relação a estes arguidos excluídas as notas de rodapé)
a. Da atenuação especial
O crime simples, do tipo contido no nº 1 do artigo 93º/CJM, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos, e o agravado pelo resultado (do nº 3) é punido com prisão de 5 a 12 anos.
Os crimes foram cometidos em 2016, ou seja, há sete anos atrás.
O decurso do tempo funciona como circunstância atenuante especial, nos termos do artigo 72º/CP, nos casos em que se entenda que diminui, de forma acentuada, a necessidade da pena.
Há claramente uma diminuição da necessidade de pena, sete anos volvidos sobre os factos.
Contudo, não podemos considerar que se trata de uma acentuada diminuição dessa necessidade na medida em que os factos provocaram um substancial alarme social que se mantém até hoje, motivado pelo enquadramento das mortes e dos ferimentos num ambiente militar, em que se espera respeito pelos valores sólidos da sociedade portuguesa, onde pontua, à cabeça, o respeito pela vida e integridade física, sobretudo de quem se dispõe ao serviço da Pátria.
Vista jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, esta atenuação especial por simples efeito do tempo vem sendo aplicada em situações de maior amplitude temporal entre os factos e o julgamento, sendo que não se encontrou nenhuma situação paralela em termos do referido alarme social em que tenha sido decretada a atenuação especial.
O Ministério Público pediu a aplicação da atenuação especial para os arguidos AA e GG, fundamentando em que «ponderando as circunstancias em que a omissão se verificou, designadamente o facto de o arguido estar condicionada por ordens superiores, entendemos que deve o mesmo beneficiar da atenuação especial referida» e em que, nos termos do n.º 3 do art. 10 do CP, na comissão por omissão pode a pena ser especialmente atenuada.
Esta última atenuação, como o próprio normativo indica, só é aplicável nos casos em que o crime se mostra cometido por omissão, o que abrange unicamente AA e GG.
No que se refere a AA há que considerar que este arguido faz parte da estrutura militar ou seja, está integrado numa pirâmide hierárquica e sujeito à disciplina e lealdade do chefe, tal como os demais.
Durante o decurso da prova ele detinha o posto hierárquico mais elevado dentro do campo de tiro, mas isso não o eximia ao dever de obediência aos comandos determinados na Directiva e no Guião, pelo menos no que concerne à execução da prova. A directiva constitui uma ordem emanada pelo Comandante do Regimento ..., a cujo cumprimento está sujeito.
Claramente o arguido reportava ao Coronel QQ, Comandante do Regimento ..., que exercia poderes de hierarquia sobre ele (vide pontos 7, 14, 22, 27, 29, 307, 353 e 357).
A forma de execução do crime que está em causa, quanto a este arguido, é uma comissão por omissão, que não foi especialmente dirigida aos dois instruendos infelizmente falecidos, mas a todos os instruendos do grupo de formação. O cerne da vertente omissiva da sua actuação é reportada ao todo e não a cada indivíduo em si, se bem que em causa esteja apenas a punição adequada à culpa relativa ao resultado dessa omissão quanto aos dois falecidos.
Verifica-se que o arguido tomou duas atitudes no decurso da prova que diminuem substancialmente a ilicitude e a sua culpa.
A primeira, ligar ao seu superior, o Coronel QQ, na tentativa de minorar o sofrimento dos formandos, quando já era claro que não havia condições para continuar a prova e evidente que o estado de saúde de alguns apresentava uma gravidade preocupante. Evidentemente, que segundo regras de experiência comum, o que poderia ter em mente era a anuência na possibilidade de interrupção da prova ou, quanto muito, na alteração das condições de execução, no que não foi correspondido porque o que logrou foi uma autorização para mudar os horários na instrução do dia seguinte.
Em execução do dever de obediência a que estava adstrito manteve a prova em curso, o que se viria a revelar desastroso, porque tivesse o telefonema sortido efeito, pelas 14h30 minutos o arguido poderia ter dado a prova por terminada ou pelo menos interrompida, assim se evitando, muito provavelmente, o lamentável desfecho que teve.
A segunda foi tomar a iniciativa de interromper a prova, sujeitando-se a que o seu comportamento fosse entendido como infracção disciplinar, porque tomado de mote próprio, sem autorização hierárquica superior.
Esta atitude evitou o agravamento das lesões dos que estavam ainda em prova e, consequentemente, que mais graves estados de doença perigosa tivessem sido provocados.
Esta iniciativa veio a ser superiormente validade já durante a noite pelo Comandante das Forças Terrestres - o Tenente-General SSSSS, aliás superior hierárquico do Coronel QQ -que determinou o encerramento definitivo da ..., mas, infelizmente, já depois do falecimento no campo do OO.
Aos crimes militares aplica-se, subsidiariamente, o CP, ou seja, também as regras da atenuação especial.
Refere o artigo 72º/1, do CP que «o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena» e o artigo 10º/CP que nos casos de cometimento do crime por omissão a pena pode ser especialmente atenuada.
As circunstâncias enumeradas no nº 2 do preceito são meramente exemplificativas.
Por um lado, fornecem critérios mais precisos do que aqueles que se poderiam conter na cláusula genérica contida no nº 1; por outro não funcionam objectivamente. Só relevam quando determinantes de uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente, ou da necessidade da pena (82); «É na acentuada diminuição da ilicitude e/ou da culpa e/ou das exigências da prevenção que radica a autêntica ratio da atenuação especial da pena. Daí que, as circunstâncias enunciadas no nº 2 do artigo 72º do Código Penal, não sejam as únicas susceptíveis de desencadear tal efeito, nem este seja consequência necessária ou automática da presença de uma ou mais daquelas circunstâncias» (83).
A atenuação especial, prevista no artigo 72º/CP, radica não no efeito da soma de todas as circunstâncias atenuantes concorrentes na acção, mas na ocorrência de circunstância(s) modificativa(s) que, tendo um fundamento comum, autónomo das demais que se possam verificar, se revele(m) adequada (s) ao preenchimento da previsão normativa. O critério é aplicável, mutatis mutandis, à atenuação especial decorrente da comissão por omissão.
No caso, a actuação do arguido AA ele estava, manifestamente, numa situação de dependência e subordinação hierárquica que o impediu de tomar uma decisão de interrupção da prova mais cedo o que diminui muito substancialmente a ilicitude da sua actuação bem como a culpa na produção do resultado morte, quanto aos dois instruendos, em benefício dos quais o recurso foi interposto.
A imagem global do facto criminoso praticado por este arguido, considerando as circunstâncias atenuantes referidas, apresenta-se com uma gravidade diminuta relativamente à expressão da ilicitude e da culpa típicas do tipo criminal, tornando desadequada a moldura penal fixada, na medida em através dela não poderá realizar-se adequadamente a justiça do caso concreto, pela menor dimensão e expressão da ilicitude e ainda pela diminuição acentuada da culpa. Esta circunstância implica uma atenuação da necessidade da pena tendo em vista os fins que ela serve. «O verdadeiro pressuposto material da atenuação são exigências de prevenção, na forma de reprovação social do crime e restabelecimento da confiança na força da lei e dos órgãos seus aplicadores e não apenas a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
O «princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção. A atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto resultante da actuação da (s) atenuante (s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Daí - e continuamos a citar -estarmos perante um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa, com redução de um terço no limite máximo da moldura prevista para o facto e várias hipóteses na fixação do limite mínimo» (84).
Nestas condições é dever do Tribunal proceder à aplicação do instituto da atenuação especial que «funciona como instrumento de segurança do sistema nas situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo» (85).
Tendo em consideração a moldura penal aplicável e o disposto no artigo 73º/CP, a pena aplicável aos crimes será de prisão de um a oito anos.
O Ministério Público pediu também a aplicação de atenuação especial quanto ao arguido GG, com o mesmo fundamento de que «ponderando as circunstancias em que a omissão se verificou, designadamente o facto de o arguido estar condicionado por ordens superiores, entendemos que deve o mesmo beneficiar da atenuação especial referida».
Vista e revista a matéria de facto provada, considerada a hierarquia dos intervenientes no curso, não se vislumbra que o arguido estivesse condicionado por quaisquer ordens superiores na atitude clínica omissiva que desenvolveu.
A responsabilidade do arguido está bem definida no guião da ... Apenso 01. Aí se refere, com sublinhados nossos. que:
«No que à Equipa Sanitária diz respeito, e tendo em vista uma maior afetação psicológica e sensação de insegurança, o apoio deverá ser prestado da seguinte forma:
A atuação da equipa obedece às mesmas regras dos Instrutores: aparente desprezo e hostilidade, sem nunca descurar a segurança e reais necessidades dos Instruendos; (...)
Apenas os Instruendos que realmente necessitem de um maior apoio ou estabilização serão levados para a ambulância, ... de Apoio ou mesmo evacuados, sendo a avaliação destes casos da responsabilidade do Oficial Médico presente que os propõe ao Diretor da Prova. Em situações em que a evacuação seja necessária e perante uma pontual falha de ligação com o Diretor de Prova, o Oficial Médico tem autoridade para acionar a evacuação: (...)
As intervenções da Equipa Sanitária não deverão interromper as instruções em curso, salvo situações em que a mesma possa condicionar a segurança do instruendo.
O Oficial Médico transmitirá ao Diretor da Prova, a situação de cada Instruendo avaliado e dará as recomendações e cuidados a ter com os casos que entenda necessários;
Em casos urgentes ou críticos e naqueles em que seja necessária uma evacuação para fora da área da prova, mesmo não sendo de carácter urgente ou crítico, o Oficial Médico, diretamente ou através do Diretor de Prova, informa o Exmo. Cmdt, logo que possível. (...)»
Tendo em atenção as regras acima definidas, verifica-se que, muito embora o oficial médico dependa hierarquicamente do Diretor da Prova, ele tem a autoridade e responsabilidade sobre o estado de Saúde dos instruendos. A partir do momento que sejam detetados problemas de saúde nos instruendos a avaliação destes casos é da responsabilidade do Oficial Médico presente que os propõe ao Diretor da Prova.
Mas, para além disso, verifica-se que a latitude da discricionariedade de acção, no âmbito clínico, é total, podendo e devendo agir fora da sua cadeia hierárquica directa sempre que a saúde dos formandos o exija. Conforme definido no guião da prova 0 «Em situações em que a evacuação seja necessária e perante uma pontual falha de ligação com o Diretor de Prova, o Oficial Médico tem autoridade para acionar a evacuação».
O único dever que ele tem em temos hierárquicos é, portanto, o de informar as suas decisões relativas à evacuação dos instruendos para os hospitais, para tratamento, ao Diretor da Prova e ao Comandante do Regimento do sucedido, o que em nada condiciona a sua atuação em termos de prontidão e adequação de procedimentos clínicos.
A responsabilidade da avaliação dos instruendos quando chegados à tenda de posto de socorros bem como a monotorização em termos clínicos é exclusivamente sua não havendo nada nem ninguém que possa condicionar a sua atuação enquanto garante dos tratamentos médicos adequados à tutela da saúde e da vida dos instruendos, o que, naturalmente exige uma presença e atenção permanentes, durante a prova e, por maioria de razão, num momento de crise sanitária, em que a enfermaria tinha a seu cargo uma quantidade de pacientes excessiva para as possibilidades de vigilância da equipa sanitária sendo que casos havia cuja gravidade exigia a atenção de um clínico.
Era essa a função do médico na prova, que se desenvolvia segundos os parâmetros referidos.
Repare-se que no próprio procedimento disciplinar o médico foi acusado de ter abandonado a prova e os doentes e de não ter actuado de forma consentânea com as suas funções clínicas.
Nem se argumente que o arguido saiu do campo com autorização do director da prova porque a iniciativa da saída é dele próprio e não de AA. AA não tinha obrigação nem capacidade para saber das necessidades dos doentes o que equivale a dizer da adequação ou desadequação do seu pedido de autorização para abandonar o recinto ao exercício das responsabilidades inerentes à sua função de garante da saúde e vida dos formandos - sobretudo dos já internados na enfermaria.
Em face dos dados de facto com que nos deparamos relativamente à conduta do arguido GG não encontramos circunstâncias que diminuam de forma acentuada a ilicitude ou a culpa ou sequer a necessidade da pena, sendo particularmente relevante quanto a este último item a enorme gravidade da omissão decorrente de abandonar à sua sorte dois instruendos que se reconhece que careciam de apoio hospitalar, ordenando a sua preparação para a operação de transferência mas nunca determinado essa transferência.
Esta conduta acarreta uma irresponsabilidade assustadora no exercício da arte da medicina no âmbito de uma situação particularmente perigosa para a vida dos instruendos.
Repare-se que escassos minutos depois de o arguido ter saído do campo ocorre o primeiro óbito, o que significa que o estado clínico da vítima exigia uma especialíssima atenção desde momentos bem anteriores, ou seja, quando o médico ainda se encontrava em campo.
b. Critério para a fixação das medidas das penas:
Nos termos do artigo 40º/CP, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (nº 1), sendo que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (nº 2). Por força do artigo 71º/ CP, «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção», devendo o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, influam na ilicitude do facto (artigo 71º/2, a)), na culpa do agente (alíneas b) e c) do mesmo normativo) e na necessidade de pena (alíneas d), e) e f)).
Com efeito, a partir da revisão do CP de 1995 a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena. É este, aliás, o critério da lei fundamental - artigo18º/2, da CRP (86).
A função essencial da pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos. Mas num sistema constitucional em que a dignidade da pessoa humana é pré-condição da legitimação da República, como forma de domínio político, e o direito à liberdade integra o núcleo dos direitos fundamentais, (87), o seu limite máximo fixar-se-á, necessariamente, com respeito da salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que, social e normativamente, se imponham. A sensação de justiça, essencial para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só a pena correspondente à sua a culpabilidade.
Ao definir a pena, o julgador deve procurar entender a personalidade do arguido, para, adequadamente, determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformidade com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformidade a medida da censura pessoal do agente, ou seja, a medida correspondente à culpa manifestada. Há que ter em atenção, porém, que aquilo que é “merecido” não é algo preciso, resultante de uma concepção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral (88).
Limitando-se, a pena, pela medida da culpabilidade, mas visando fins de prevenção especial e geral, ela fixar-se-á abaixo do limite máximo se assim for exigido pelas necessidades especiais e, a essa diminuição, não se opuserem as exigências mínimas preventivas gerais (89). O seu limite mínimo é, portanto, dado pelo quantum da pena que, em concreto, ainda realize eficazmente a protecção dos bens jurídicos visados. Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para dar resposta às necessidades da reintegração social do agente. Ou seja, a culpa estabelece o máximo inultrapassável de pena concreta que é possível aplicar. A moldura de prevenção, por sua vez, é definida entre o limiar mínimo - abaixo do qual não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a sua função tutelar de bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias - e a medida máxima e óptima de tutela dos bens jurídicos e das mencionadas expectativas. Dentro desses limites, relevam as exigências de prevenção especial de socialização, visando atingir a desmotivação adequada para evitar a recidiva por parte do agente, bem como a sua ressocialização (90). Dito de outro modo: a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo (91).
Na sub-moldura da prevenção geral pesa a importância dos bens jurídicos a proteger, desempenhando uma função pedagógica através da qual se procura dissuadir as consequências nocivas da prática de futuros crimes e conseguir o reforço da crença colectiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva. Prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (92).
Por sua vez, a prevenção especial positiva ou de socialização responde à necessidade de readaptação social do arguido.
Resumindo: porque na fixação da pena concreta se cuida da protecção de bens jurídicos, ela deva ser determinada - dentro de uma moldura de culpa, limitada por necessidades de prevenção geral positiva - em função das exigências de prevenção especial ou de socialização do agente.
Figueiredo Dias esquematiza assim a teoria penal defendida:
«1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2. A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3. Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa» (93).
Nos termos do artigo 71º /CP «1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a. O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b. A intensidade do dolo ou da negligência;
c. Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d. As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e. A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f. A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».
Na consideração da forma de determinação da pena concreta, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º/CP «têm a função de fornecer ao Juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» (94).
Quanto aos factores a ter em conta na medida da pena, desde já temos os factores relativos à execução do facto.
Torna-se aqui a “ execução do facto” num sentido global e complexivo, capaz de abranger “o grau de ilicitude do facto, modo de execução deste e gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, “a intensidade do dolo ou da negligência”, e ainda “ os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins ou motivos que o determinaram” (artigo 72º/2 alíneas a), b) e c) do CP).
A multidão de factores aqui implicados desdobra-se assim por circunstâncias que pertencem tanto ao tipo de ilícito, como à culpa.
Assim, ao nível do tipo de ilícito e dos factores relativos à execução do facto relevam a totalidade de circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida pelo o agente, pertençam elas ao tipo de ilícito objectivo ou subjectivo: a gravidade do dano material e moral produzido pela conduta com todas as consequências típicas que ela advenham, a espécie e o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade no modo de execução do crime.
Nos factores relativos à gravidade da violação jurídica entram tanto os motivos como os fins da conduta, que devem ser investigados pelo Juiz para apurar a medida da pressão que exerceram sobre o agente e a essência do desvalor jurídico-penal, assumindo relevo decisivo determinar se o facto radica uma determinação da disposição do agente ou só numa situação momentânea.
Quanto aos factores relativos à personalidade do agente eles reportam-se não à personalidade no seu todo, mas tão só às qualidades da personalidade do agente manifestadas no facto. A personalidade em questão não é apenas de carácter, mas o carácter e sobretudo o princípio pessoal que lhe preside, nomeadamente a atitude interna donde o facto promana e que nesta acepção o fundamenta. São factores da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela relevam tanto pela via da culpa como pela sua presunção. Aqui pertencem as considerações sobre as condições pessoais do agente, a sua condição económica e sobretudo a perspectiva da sua sensibilidade à pena - isto é, a medida em que o agente será atingido pela pena que lhe for aplicada.
Por último ainda teremos que ter em consideração factores relativos à conduta do agente anterior e posterior aos factos, onde entram todas as circunstâncias que respeitam à reparação do dano pelo agente ou mesmo só aos esforços por ele desenvolvidos neste sentido ou no de uma composição com o lesado. As alíneas c) e d) do artigo 72º/2 põem em relevo, para a medida da pena a conduta anterior ao facto e a posterior a esta, ou seja, a conduta destinada a reparar as consequências do crime.
A favor do arguido deverá ter-se em conta o comportamento processual podendo este ser amplamente valorado para a medida da pena. Circunstâncias como a do agente ter confessado integralmente e sem reservas, demonstrando arrependimento, ter contribuído para a descoberta da verdade, devem sem dúvida ser levados em consideração.
Nos crimes militares impõe-se ainda que sejam observadas todas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, elencadas no artigo 22º do Código de Justiça Militar, tais como, no que ao que ao caso possa relevar:
a. O comportamento militar anterior (norma que se relaciona com o estabelecido no artigo 29º do Regulamento de Disciplina Militar, segundo o qual «os militares são considerados com comportamento exemplar quando, decorridos cinco anos de serviço efetivo, não tenham sofrido qualquer punição disciplinar e nada conste no seu registo criminal»;
b. O tempo de serviço efectivo (...). Esta alínea tem reporte para os artigos 3o e 140°/2 do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, que define a efectividade de serviço;
d. Ser o crime cometido no exercício de funções e por causa delas;
e. Ser o crime cometido em formatura ou em outro local de serviço onde se encontrem 10 ou mais militares que tenham presenciado o crime, não se compreendendo neste número os agentes do crime. Este ponto tem conexão com o artigo 6.º do Código de Justiça Militar, que define o local de serviço;
f. Ser o agente do crime comandante ou chefe, quando o facto se relacione com o exercício das suas funções;
g. Ser o crime cometido em presença de algum superior de graduação não inferior a sargento (...); As alíneas f) e g) têm que ser analisadas à luz do disposto no artigo 5.° do Código de Justiça Militar, segundo o qual «para efeitos de incriminação penal, não se consideram superiores os oficiais, sargentos e praças do mesmo posto, salvo se forem encarregados, permanentemente ou incidentalmente, de comando de qualquer serviço e durante a execução deste»;
h) A maior graduação ou antiguidade no mesmo posto, em caso de comparticipação. Esta alínea, corresponde ao artigo 12º/7 do Código de Justiça Militar de 1977, que foi considerada não inconstitucional pelo TC, que considerou haver fundamento material bastante para legitimar a diferenciação de tratamento, em matéria de circunstâncias agravantes, dada a um dos agentes do crime relativamente aos outros comparticipantes, em função de uma maior graduação (95);
j) A prestação de serviços relevantes e a prática de actos de valor;
I) O cumprimento de ordem do superior hierárquico do agente, quando não baste para excluir a responsabilidade ou a culpa.
Significa isto que a par do leque de circunstâncias agravantes ou atenuantes emergentes da lei penal comum, que são fornecidas numa perspectiva meramente exemplificativa, há que considerar as circunstâncias agravantes e atenuantes emergentes do regime militar, de natureza taxativa.
10. Das penas e das medidas das penas
Relembramos aqui que relativamente a todos os arguidos se ponderará o decurso do tempo desde a data da prática dos factos até ao momento, nos termos, aliás, acima referidos.
(…)
v - Quanto ao arguido CC:
No que concerne ao comportamento do arguido CC, temos a considerar que o crime cometido na pessoa de OO se apresenta agora revestido de características distintas daquele que foi considerado na decisão recorrida.
O crime cometido na pessoa de OO, emergente da colocação de terra na boca do mesmo, quando se encontrava em estado de desidratação profunda, babando e cuspindo com evidente comprometimento neurológico e descontrole dos movimentos temporomandibulares - e inerente impossibilidade de coordenar tais movimentos no sentido de evitar a entrada de terra dentro boca ou de expulsar a que lá tivesse entrado revela uma ilicitude e culpa especialmente graves, se considerarmos a configuração fáctica normal da actuação cabida no tipo de crime em causa.
Os sentimentos manifestados na execução do referido crime merecem elevada reprovabilidade.
A sua actuação foi praticada contra pessoa particularmente indefesa em razão de doença e visou unicamente aumentar o sofrimento da vítima, a quem devia protecção. Se tal conduta é muito censurável a nível de simples cidadania é especialmente repreensível para um militar, adstrito dos deveres de camaradagem, correcção e, sobretudo, de responsabilidade. É indigno e traiçoeiro colocar terra na boca de um ser humano exausto, sedento, delirante, que viria a falecer na sequência do estado de desidratação em que se encontrava escassas horas depois, sobretudo sendo ele seu subalterno e estando sem possibilidade de reacção.
A par disso, o arguido prevalecendo-se dos seus poderes de hierarquia, não aplicou as normas de hidratação a que estava adstrito na execução da sua missão, por puro prazer de desafio das (in)capacidades dos seus formandos, no caso de OO, privando-os de um terço da escassíssima água a que tinham direito, o que seguramente teve consequências na autêntica calamidade que se verificou ao nível de lesões sérias na saúde dos elementos desse grupo, estando necessariamente numa relação de concausalidade com o falecimento do ofendido. O grupo de graduados, a que o arguido se dedicou, teve, de longe, o mais elevado grau de doentes e de doentes graves, comparativamente aos elementos dos outros grupos. A prova era igual, os instrutores eram os mesmos - aliás, diga-se, o arguidoDD não se excedeu neste grupo como o fez com os restantes - e só os danos foram mais graves. A explicação está necessariamente no nível de desgaste provocado pela maior desidratação verificada, por obra e desmando do arguido.
A sua atitude reveste elevadíssima censurabilidade e uma culpa acima da média.
Milita, porém, a seu favor, a inexistência de antecedentes criminais.
À data dos factos tinha 31 anos.
Enquanto militar, tem uma carreira de mérito, conforme de pode ler nos pontos 331 a 335 do provado.
Ao nível do mérito, foi condecorado com a medalha de comportamento exemplar, medalha comemorativa das comissões de serviços especiais das Forças Armadas pela missão no ..., com a medalha ... e ainda louvado, em ..., pelo seu desempenho na referida missão.
Tem uma adequada inserção social, laboral e familiar, não tem antecedentes criminais e foi objecto de processo disciplinar pelos factos em apreço.
O arguido está incurso na prática de um crime cuja moldura vai de 2 a 8 anos de prisão.
Atendendo a tudo o que foi referido, relativo à gravidade da ilicitude, suas consequências, à culpa manifestada na execução do crime, aos sentimentos e motivos determinantes do crime, às suas condições pessoais e sociais, à ausência de antecedentes criminais e às características positivas da sua carreira militar entende-se adequada a pena de cinco anos e três meses de prisão.
(…)
vii- Quanto ao arguido GG:
Este arguido era o garante absoluto da saúde e da vida dos formandos no campo de treino.
Cabia-lhe, como já se referiu, tanto o tratamento como a prevenção.
Sabia das possíveis consequências fatais das doenças que os formandos foram apresentado, desde manhã, da forma silenciosa como podiam evoluir, da falta de meios humanos e de tratamento clínico que tinha para acorrer a casos graves e, no entanto, limitou-se a ver entrar instruendos na enfermaria, sem determinar sequer que lhes fosse prestados os primeiros socorros de forma adequada, ou seja, que lhes medissem a febre, os arrefecessem, tirando-lhes o vestuário e botas. Repare-se que resulta dos apensos que quando OO é encontrado em paragem respiratória estava vestido, com botas e com a arma em cima dele.
Previu, cerca das 14 horas, pelo menos, a necessidade de internamentos, colocou o HFAR em pré-aviso e depois resolveu esperar pela evolução dos doentes. Isso mesmo resulta da fundamentação da aquisição probatória. Daí se conclui que a essa hora havia já dois instruendos que inspiravam fortes cuidados (e que foram deixados no ambiente da enfermaria, que mais não era que uma tenda montada num campo, onde os doentes se foram amontoando, sob um calor desmedido).
Com o passar do tempo e o agravamento expectável da situação clínica dos formandos, pelo menos pelas condições em que se encontravam na enfermaria, de calor e desatenção dos enfermeiros que não tinham mãos a medir, a enfermaria passou a ser um depósito de pessoas onde tudo podia acontecer porque o pessoal não tinha condições de atendimento a todos eles. Refira-se que alguns dos doentes foram colocadas no exterior, por falta de espaço dentro da tenda.
Como se isso não bastasse, a certa altura, o arguido resolveu abandonar o campo de tiro, sem ter médico que o substituísse, dando antes a singela ordem para preparar os dois instruendos que vieram a falecer para serem internados - como se fosse legítimo ocupar um enfermeiro e duas socorristas em simples higiene quando havia cerca de 22 pessoas a precisar de assistência, algumas delas em estado tão grave que foram encaminhadas para o hospital, pelo médico que o veio render, conforme consta dos pontos 361 e seguintes do provado. Avisou AA e foi-se embora, sem chegar sequer a ordenar a evacuação dos dois instruendos. De nada serviu a preparação.
Curtos vinte minutos depois desse abandono, faleceu OO. Repare-se que corpo de OO só respondeu ao primeiro choque do DAE, o que significa que quando foi desferido o segundo, o coração já não tinha actividade eléctrica.
Mais: quando o médico do INEM observou o PP, pelas 21 h 50m, verificou que a frequência do pulso era de 112, a pressão arterial sistólica era de 80 e a diastólica de 53, e o Sa02 era de 91, estava hipotenso (de 80,50), com hipertermia, (temperatura de 40º a 42C), desidratação e hipoglicémia de 50.
A conclusão que se tira do conjunto de factos que se provaram, relativos à (não) actuação deste arguido médico é que descurou a função que exercia, bem sabendo que as doenças emergentes do estado de exaustão e desidratação dos formandos, aliadas ao calor que se fazia sentir, eram aptas a provocar golpe de calor, doença essa que pode levar à perda de órgãos com necessidade de transplantes e, inclusivamente, à morte. O arguido ignorou todos os sintomas de doença que viu acontecer nos formandos, dando ordem para os molhar, aplicar soros e hidratação oral - o que, diga-se, era feito pelos socorristas e enfermeiro - e deixou os doentes à sua sorte, no que concerne à sempre previsível evolução das lesões e às subsequentes consequências a nível das lesões na saúde, potencialmente permanentes e da própria vida.
Este tipo de conduta criminosa é especialmente censurável num médico que exercia funções no INEM, ou seja, tinha os precisos conhecimentos que os médicos que assistiram o PP tinham, e defende a sua postura pela distinção entre urgência e emergência, quando se sabe que qualquer emergência se pode tornar uma urgência, tudo dependendo da gravidade da situação clínica do paciente.
A conduta do arguido implica um elevado grau de ilicitude e de culpa, um sentimento de profundo desrespeito pelas vidas colocadas à sua guarda, um exercício da profissão desgarrado dos valores fundamentais que ela visa - a defesa da vida e da saúde dos doentes. O juramento de Hipócrates, na versão mais agnóstica e simplificada acolhida pela Associação Médica Mundial, em 1983 - a chamada fórmula de Genebra - abrange, entre mais, a promessa de «solenemente consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade», exercer « a minha arte com consciência e dignidade; «A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação» e guardar « respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início». Estes princípios foram fatalmente ofendidos pela actuação do arguido.
O arguido tinha, à data dos factos, 35 anos e é primário.
Teve o percurso profissional e militar descrito nos pontos 739 a 748.
Em janeiro de 2014 recebeu um louvor pela sua postura e pela permanente e incondicional obediência e excecional prestação enquanto oficial e enquanto médico.
Em termos profissionais, à data, para além do apoio aos cursos ..., conciliava o trabalho como médico militar, com a realização de urgências em hospital civil e prestação de serviços no INEM até ao ano de ..., momento em que cessou esta última.
Está profissional, social e familiarmente integrado.
Os factos praticados pelo arguido configuram dois crimes previstos no artigo 93º/3-a), do CJM, puníveis, cada um deles, com pena de 5 a 12 anos de prisão.
Atendendo a tudo o que foi referido, relativo à gravidade da ilicitude, suas consequências, à culpa manifestada na execução dos crimes, aos sentimentos e motivos determinantes dos crimes, às suas condições pessoais e sociais, à ausência de antecedentes criminais e às características da sua carreira clínica e militar entendem-se adequadas as penas de 6 anos de prisão, quanto a cada um dos dois crimes.
11. Do cúmulo jurídico das penas
Os arguidos condenados em mais do que uma pena são sujeitos a uma pena única, ponderada a partir duma perspectiva conjunta dos factos e da personalidade do agente (artigo 77º/CP) que tem por limite mínimo a medida da pena mais elevada e por limite máximo o resultado da soma das penas aplicadas.
Estão nestas condições os arguidos (…) e GG.
(…)
O arguido (…) GG outras duas, em penas de 6 anos de prisão.
As circunstâncias relativas a todos os crimes são as mesmas: crimes cometidos no decurso de uma formação ....
(…)
Os crimes cometidos pelo arguido GG reflectem uma postura desleixada como médico e militar e irresponsável perante o bem mais sagrado de todos os seres, que é a vida.
Os crimes cometidos por AA traduzem em apego desmedido à obrigação militar de obediência hierárquica, a ponto de esquecer a vertente criminal que ela possa assumir.
Os crimes cometidos pelos arguidos AA e GG resultaram de uma única omissão de acção, relativa a todos os instruendos e, por isso mesmo, abrangente das duas vítimas relativamente a quem foram interpostos os presentes recursos.
Considerando a globalidade dos factos e das diferentes personalidade reveladas, quer por esses factos quer pelo que se prova quanto à história de vida de cada arguido considera este Tribunal adequadas as penas únicas de quatro anos de prisão quanto ao arguidoDD, dois anos de prisão quanto ao arguido AA e sete anos e seis meses de prisão quanto ao arguido GG. (fim de transcrição)
Apreciando
Antes de entrar na análise das penas propriamente ditas, importa analisar a inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente GG.
O recorrente GG suscita, em sede de alegações de recurso, que o Tribunal da Relação de Lisboa interpreta e aplica inconstitucionalmente o artigo 428.° do CPP, conjugado com os artigos 369.°, n.° 1, e 375.°, n.° 1, do mesmo diploma, e os artigos 48.°, 50.°, n.° 1, 70.°, 71.°, n.° 1, e 72.°, n.° 1, do CP, no sentido de que o Tribunal da Relação pode aplicar pena de prisão efectiva pelo cometimento de um crime público quando o recorrente Ministério Público requer a aplicação de pena de prisão em montante inferior e suspensa na sua execução, por violação do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.°, n.° 1, da CRP, e do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6.°, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Sustenta o recorrente “Este raciocínio alicerça-se no princípio do acusatório, que está implícito no sistema de recursos português, quer no regime de delimitação objetiva e subjetiva do objeto do recurso, quer no regime da proibição da reformatio in pejus da espécie e da medida das sanções aplicadas pelo tribunal recorrido; (…) Por isso, se impõe a conclusão, fundada no dito princípio do acusatório, de que o Tribunal da Relação não pode ir além do pedido em recurso interposto pelo Ministério Público em procedimento por crime público. Encontrando-se a disponibilidade do objeto do processo dependente do recorrente público e, portanto, as necessidades punitivas dependentes da avaliação que o titular da ação penal delas faz, interpondo ou não o recurso e, decidindo-se pela interposição, delimitando objetiva e subjetivamente o âmbito de cognição do tribunal de recurso, não pode o tribunal de recurso ir além do específico objeto do recurso subjetiva e objetivamente delimitado que lhe foi submetido” (pontos 332-333).
Vejamos,
Dispõe o artigo 409.º, n.º 1 do CPP, sob a epígrafe “Proibição da reformatio in pejus”, que “interposto recurso da decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes”.
Ora, este preceito prescreve que, interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no interesse exclusivo do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.
O Assento 1/1950, de 04-05-1950 (Relator: Conselheiro Magalhães Barros), consagrou expressamente a possibilidade de agravamento, fundamentando-se, entre outros aspetos, nos seguintes argumentos:
“O carácter público do direito que através do processo penal se realiza - o direito punitivo do Estado - impõe que os tribunais superiores possam aplicar livremente as sanções que julgarem adequadas, nos casos sujeitos a sua apreciação, pois só assim aquele direito do estado alcançara plena realização.
Não obsta a este entendimento o n.º 2 do parágrafo 3 do artigo 647.º do Código de Processo Penal, visto esta disposição fixar regras de legitimidade para recorrer, e não um limite de âmbito de cognição, em recurso, das decisões judiciais: a amplitude desta cognição referem-se os artigos 663.º, 665.º e 666.º do Código citado, nos quais não se encontra qualquer limite ao amplo poder dos tribunais de exercerem a sua acção por forma a que justiça se faça e a lei se cumpra.
(…)
Na verdade, se nas condições referidas fosse vedado aos tribunais agravar a pena, estavam estes, praticamente, inibidos de apreciar a decisão recorrida, em toda a sua extensão, - pois seria irrelevante que toda a apreciação que não tivesse por fim confirmar-se ou atenuar-se a pena. Isto podia conduzir, atento o imperativo preceito do artigo 663, a este resultado absurdo: os tribunais não podiam agravar a pena do reu recorrente, mas podiam agravar as dos réus não recorrentes.
(…)
Nestas condições, e mantido o acórdão recorrido, firmando-se o seguinte assento:
Em recurso penal, embora só interposto pelo reu, pode o Tribunal agravar a pena.”70.
“Ressalta da economia argumentativa do Assento (que aqui, brevitatis causa, não se reproduz na íntegra) o sublinhar da inexistência de normas em expressa contradição com a doutrina do assento, e a necessidade de os tribunais terem amplos poderes de cognição, por forma a cumprir a lei e fazer justiça: “nos quais não se encontra qualquer limite ao amplo poder dos tribunais de exercerem a sua acção por forma a que justiça se faça e a lei se cumpra”71.
O Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 236/2007, de 30-03-2007, Proc. n.º 201/04, veio a julgar inconstitucional a norma do art. 409.º, n.º 1, do CPP, por violação do art. 32.º, n.º 1, da CRP, quando interpretada no sentido de proibir o agravamento da condenação em novo julgamento a que se procedeu por o primeiro ter sido anulado em consequência de recurso apenas interposto pelo arguido72.
No entanto, o recurso para o Tribunal da Relação foi interposto pelo Ministério Público, Assistentes HH, II, JJ, KK, e pelos arguidos pelos arguidosDD, LL e CC, não integrando o alcance da previsão da norma do artigo 409.º, n.º 1, do CPP.
A proibição da reformatio in pejus deve ser delimitada no equilíbrio entre as garantias de defesa e a realização da justiça, não se verificando, no caso, qualquer interpretação do artigo 428.° do CPP, conjugado com os artigos 369.°, n.° 1, e 375.°, n.° 1, do mesmo diploma, e os artigos 48.°, 50.°, n.° 1, 70.°, 71.°, n.° 1, e 72.°, n.° 1, do CP, que o torne inconstitucional face ao artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP e artigo 6.°, n.° 1, da CEDH, sob pena de entendimento diverso conflituar com o direito ao recurso e com a realização da justiça.
Assim, improcede a invocada inconstitucionalidade.
a. Da atenuação especial
O artigo 72º do Código Penal Artigo 72.º, sob a epígrafe de “Atenuação especial da pena” estatui:
1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.
Por sua vez o artigo 10º, nº 3 do mesmo código, em relação aos crimes omissivos, estatui que “a pena pode ser especialmente atenuada.”
O pressuposto material da atenuação da pena, em todas as situações exemplificativas do artigo 72º, nº 2 ou nas situações autónomas de atenuação, como o referido artigo 10º, nº 3, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.
Como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 2014, “O artigo 72.º, ao prever a atenuação especial da pena, criou uma válvula de segurança para situações particulares em que se verificam circunstâncias que diminuem por forma acentuada as exigências de punição do facto, por traduzirem uma imagem global especialmente atenuada, que conduz à substituição da moldura penal prevista pelo legislador para o facto por outra menos severa”.73
No mesmo sentido, no acórdão de 7 de Setembro de 2016, escreveu-se que “o princípio basilar que regula a atenuação especial é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção”.74
Este mesmo entendimento tem respaldo na doutrina.
A este propósito, Figueiredo Dias considera que “na atenuação especial tudo se passa ao nível de uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, e, portanto em último termo, ao nível do relevo da culpa, pelo que seriam irrelevantes as exigências da prevenção, o que não ocorre face a alguns dos exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuante contida na cláusula geral do n.º 1 do artigo 72.º, ou seja, das situações aí descritas só significativas sob a perspectiva da necessidade da pena (e, por consequência, das exigências da prevenção), (…) princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção.”75
Estando em causa na atenuação especial, não só a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também a necessidade da pena e associada a esta as exigências de prevenção, vejamos se, no caso concreto, tais pressupostos estão presentes.
No douto acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa equacionou devidamente a questão ao nível dos pressupostos formais e materiais do instituto da atenuação especial, mas concluiu de modo diverso no que respeita à conduta dos arguidos AA e GG. Em relação ao primeiro considerou verificados os pressupostos da aplicação do instituto, afastando-os em relação ao segundo.
Não nos parece, que as situações de facto sejam de tal modo diversas que justifiquem a distinção efectuada.
Concretizando.
Da leitura do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa anteriormente transcrito, a grande distinção, no que respeita à atenuação especial entre os dois coarguidos que cometeram crimes omissivos, assenta, basicamente, nos diferentes graus de dependência hierárquica entre ambos.
Na verdade, enquanto em relação ao arguido AA o tribunal da Relação reconhece o seu condicionamento por força dessa dependência hierárquica, em relação ao arguido GG não reconhece esse mesmo condicionamento, tendo na base o Guião da prova e, como argumento adicional, o procedimento disciplinar que lhe foi instaurado.
Para afastar o condicionamento o tribunal da Relação desvaloriza ainda o facto de o arguido GG ter saído do campo com autorização do arguido AA, porquanto o mesmo não tinha conhecimentos médicos para avaliar a saúde dos doentes. Apenas o arguido AA tinha tal conhecimento.
Não nos parece que os referidos argumentos, sejam suficientes para o tratamento diferenciado entre ambos os arguidos.
A relação hierárquica entre os arguidos é indiscutível e a própria Relação a reconhece.
Ora, estando o arguido GG na dependência hierárquica do arguido AA, a autorização para o mesmo abandonar o campo não depende dos conhecimentos deste último em matéria da medicina ou de doença dos formandos, mas, antes, do exercício dos seus poderes de autoridade. Sendo do conhecimento de ambos os arguidos a situação em que se encontravam os formandos, impunha-se ao arguido AA, no exercício desses poderes de autoridade e hierarquia, não ter autorizado o arguido GG a sair do campo. Esta autorização é, pois, uma decisão partilhada e, nessa medida, aos dois deve ser assacada.
É irrelevante, para este efeito, o conhecimento maior ou menor de medicina, porquanto havia dezenas de instruendos a receber tratamento e com problemas de saúde o que era do conhecimento de ambos, impondo-se, por isso ao Director da prova, para preservação do bem estar dos seus homens, em relação aos quais é o último responsável, não ter autorizado o médico a ausentar-se do campo.
O tribunal da Relação adiciona à argumentação anteriormente referida, o facto de “no próprio procedimento disciplinar o médico foi acusado de ter abandonado a prova e os doentes e de não ter actuado de forma consentânea com as suas funções clínicas”. (pág.1233)
Porém, este argumento não pode ser tido em consideração na decisão, em obediência ao princípio da presunção da inocência consagrado no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, a referida argumentação tem na base o ponto 754 dos factos provados do qual consta: “Na sequência da instauração do processo em causa, GG foi alvo de um processo disciplinar interno, que resultou numa sanção disciplinar, datada de 7 de Novembro de 2017, de trinta dias de suspensão de serviço, decisão com a qual não concordou, tendo recorrido da mesma para o Tribunal Administrativo de Lisboa, desconhecendo-se ainda a decisão.”(sublinhado nosso)
Não tendo sido dado como provado que a decisão proferida no processo disciplinar transitou em julgado, mesmo sem entrar na discussão do valor extra processual das provas, tal matéria não pode ser tida em consideração no processo, sob pena de violação do referido princípio da presunção da inocência.
Resta-nos, assim, como argumento para a não atenuação especial, a ausência de condicionamento hierárquico em relação ao arguido GG o que, como vimos, apenas formalmente é verdadeiro.
Assim, estando em causa crimes omissivos, nos quais o próprio legislador admite a atenuação especial da pena, a que não é alheia a própria construção dos tipos, por regra associados a um menor grau de ilicitude e culpa do agente, a circunstância de já terem decorridos nove (9) anos desde a prática dos factos, a imagem global dos mesmos, particularmente as diferentes respostas dos instruendos doentes aos tratamentos ministrados, o que pode ter contribuído para alguma lentidão na resposta médica (o arguido mandou preparar os instruendos para a evacuação, mas a mesma não se materializou), não podemos deixar de concluir que estamos em presença de uma diminuição acentuada da ilicitude do facto e culpa do agente e também da necessidade da pena associada às exigências de prevenção.
Importa, neste particular das exigências de prevenção, que volvidos 9 anos, felizmente, nunca mais se verificaram, que seja do conhecimento público, incidentes na formação dos comandos.
Por tudo o exposto, tal como o Ministério Público tinha requerido no seu recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, consideram-se verificados os pressupostos de atenuação especial da pena em relação ao arguido GG.
Tendo em consideração a moldura penal aplicável aos crimes praticados pelo arguido (5 a 12 anos) e o disposto no artigo 73º do Código Penal, a pena aplicável aos crimes será de prisão de 1 a 8 anos.
b. Da medida das penas concretas
Como ficou referido, apenas os arguidos CC e GG, vieram reclamar do excesso das penas em que foram condenados.
A pena tal como se encontra prevista no Código Penal, quer ao nível da sua moldura, quer ao nível da sua determinação, encontra fundamento no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena, constitucionalmente previsto no artigo 27º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, está, assim, subordinado ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, nas várias dimensões em que o mesmo se desdobra.
Dito isto, em sede de medida da pena, o legislador estatui como parâmetros para a sua determinação “(…) dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” visando a aplicação das penas “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e levando ainda em conta “(…) todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” considerando, nomeadamente, os factores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (artigos 71º, nº1 e nº2 e 40º, nº1 e nº2, ambos do Código Penal.
A densificação jurisprudencial destes critérios tem sido feita, por este Supremo Tribunal de Justiça, de modo a considerar e ponderar o equilíbrio entre “exigências de prevenção geral”, a “tutela dos respectivos bens jurídicos” e a “socialização do agente”.
Como se refere num acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, ponderando os referidos equilíbrios, “(...) Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente”,76 ou “(...) a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todo exigível”77.
Ao nível doutrinal, Figueiredo Dias considera que a medida da pena, "(...) há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (...) a protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida".78
No mesmo sentido, Fernanda Palma entende que, “(…) A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos – prevenção geral negativa, incentivar a convicção de que as normais penais violadas são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva. A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral”.79
Ainda, no mesmo sentido, Anabela Rodrigues considera também que a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada (…)”. Acrescenta a autora, que a prevenção especial se traduz na “(…) necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto, mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes”, sendo certo que ambas são balizadas pela culpa “ (…) a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (…) Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado”.80
Ainda neste mesmo sentido, Figueiredo Dias considera, “(…) culpa e prevenção são assim dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena ( em sentido estrito ou de determinação concreta da pena”)81, acrescentando, “ (…) comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente».82
No caso concreto, no que respeita à medida das penas e porque estão em causa crimes militares, importa ter em consideração, para além dos critérios de determinação da medida da pena estabelecidos no Código Penal, as circunstâncias elencadas no artigo 22º do Código de Justiça Militar.
Importa ainda ter em consideração que é jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, que a intervenção dos Tribunais superiores em matéria de medida da pena, tem um cariz primordial de “remédio jurídico”, impondo-se, especialmente, identificar incorreções ou erros manifestos atinentes ao processo hermenêutico-aplicativo das normas constitucionais, convencionais e legais mobilizáveis, por parte da instância recorrida. Só nessa medida é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena”83.
Dito isto, importa, agora, sindicar o decidido em relação aos referidos arguidos.
Em relação ao arguido CC, o Tribunal da Relação considera atenuativas todas as suas circunstâncias enquanto militar e pessoais e agravativas o conjunto dos factos por si praticados, dando especial relevância ao facto de o mesmo ter colocado terra na boca na pessoa do OO, quando este já estava em sofrimento, por força da desidratação profunda de que padecia.
Tem razão o tribunal da Relação no seu douto acórdão, quando afirma que esta circunstância manifesta um elevado grau de ilicitude e de culpa por parte deste arguido.
Porém, este facto não permite, por força das restantes circunstâncias atenuativas elencadas nos factos provados, nomeadamente a ausência de antecedentes criminais, carreira militar de mérito e boa inserção social, condenar o mesmo numa pena muito acima da mediana abstracta da pena aplicável.
Na verdade, sendo o crime punível com pena de 2 a 8 anos de prisão, é manifesto que a pena é desproporcionada, até por comparação com as penas em que outros coarguidos foram condenados. Outros coarguidos, com uma actuação semelhante à do arguido, no que respeita à realização da prova, excluindo, obviamente, a colocação de terra na boca, foram condenados em penas que se situam entre os 2 e 3 anos de prisão. Neste contexto, é razoável que o mesmo seja condenado numa pena superior à dos referidos arguidos, mas nunca nos moldes efectuados no acórdão recorrido.
Assim, tendo em conta os critérios de determinação da pena e todas as referidas circunstâncias, bem como o grau de culpa do arguido CC, a pena em que foi condenado é reduzida para quatro (4) anos de prisão, a qual é adequada e proporcional e satisfaz as exigências de prevenção geral e especial.
Em relação ao arguido GG, por força da atenuação especial, a moldura da pena situa-se entre 1 e 8 anos de prisão.
Esta redução da moldura abstracta, condiciona a abordagem que foi efectuada pelo tribunal da Relação no seu acórdão, a qual assentava numa moldura abstracta entre 5 e 12 anos de prisão.
Porém, importa salientar e rectificar um particular aspecto da argumentação que foi utilizada no douto acórdão recorrido, relativo à comunicação do arguido com o HFAR.
No acórdão recorrido, escreveu-se que “cerca das 14 horas, pelo menos, a necessidade de internamentos, colocou o HFAR em pré-aviso e depois resolveu esperar pela evolução dos doentes. Isso mesmo resulta da fundamentação da aquisição probatória.”
Esta afirmação e ponderação em sede de medida da pena, não encontra respaldo na factualidade provada e, por isso, inexiste, apesar de a mesma ser referida em sede de fundamentação do facto com base no depoimento de uma médica do HFAR. As circunstâncias que sustentam a valoração e determinação da medida da pena são apenas e só, as que resultam dos factos provados, sem prejuízo de ponderação de outras que sejam factos notórios e nessa medida conhecidas de todos.
Feito este esclarecimento, vejamos as penas concretas.
O arguido GG é oficial médico, tem um percurso militar relevante, não tem antecedentes criminais e está bem inserido social e familiarmente. As circunstâncias dadas como provadas, nomeadamente a sua indefinição na evacuação dos instruendos e a ausência do campo de tiro quando havia militares a necessitar de cuidados médicos, são reveladores de um elevado grau de ilicitude e culpa.
Assim, ponderando todas estas circunstâncias e as demais condenações dos coarguidos, entende-se adequado e proporcional condenar o mesmo na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, por cada um dos dois crimes cometidos.
c. Da pena única
Tendo em conta a condenação do arguido GG, em duas penas de prisão, importa proceder à elaboração do respectivo cúmulo jurídico.
O artigo 77º, nº 1 do Código Penal, sobre as regras da punição do concurso, estatui “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”
Acrescenta o n.º 2, “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
No cúmulo jurídico, como resulta do nº 1 do preceito, deverá ter-se em conta o conjunto dos factos e a gravidade dos mesmos ou, na expressão do legislador, são “considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 05 de Junho de 2012, a “ pena única deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação ente si, mas sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente. (…) Com a pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e da gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda considerar, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.”84’85
Importa, pois, saber se estamos em presença de ilícitos pluriocasionais, temporalmente circunscritos ou, pelo contrário, em presença da prática de crimes de modo recorrente.
No caso em apreço, é manifesto estarmos em presença da primeira situação atento, o percurso de vida do arguido, a sua carreira militar de mérito, a sua boa inserção social e familiar, os quais apontam para perspectivas positivas de reintegração. É esta perspectiva global (numa lógica de prevenção geral) e de personalidade do agente (numa lógica de prevenção especial) que é, em matéria de cúmulo jurídico, o elemento agregador da pena única a fixar.
A partir da pena parcelar mais grave, a pena única será mais ou menos agravada em função da perspectiva global do facto e da personalidade do agente, tendo sempre como limite a sua culpa e a preservação do princípio da proporcionalidade.
Pelo exposto, tendo em conta estes ensinamentos e as circunstâncias globais dos factos, e situando-se a moldura abstracta do cúmulo entre o mínimo de 3 anos e 6 meses e o máximo de 7 anos de prisão, entendemos adequado e proporcional condenar o arguido GG na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão a qual é conforme, adequada e proporcional à culpa do mesmo e satisfaz as demais exigências de prevenção geral e especial..
d. Penas de substituição
O artigo 50.º, n.º1, do Código Penal, estatui que: “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
A suspensão de execução da pena, como resulta do preceito, exige como pressuposto formal, a pena de prisão ser em medida não superior a 5 anos e como pressupostos materiais, a personalidade do agente, as suas condições de vida, conduta posterior e anterior ao crime e as circunstâncias deste, permitam ao Tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O preceito, verificado o pressuposto formal, exige, pois, um juízo de prognose favorável numa dupla vertente.
Por um lado, em relação ao próprio arguido, tendo em conta a sua personalidade, condições de vida, bem como das circunstâncias do crime, criam no Tribunal a expectativa fundada de que o mesmo sentirá a condenação como uma advertência e não voltará a delinquir reintegrando-se na sociedade. Por outro lado, impõe-se também que esse juízo de prognose favorável acautele as exigências das finalidades da punição, isto é, o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime e a confiança dos cidadãos no sistema de justiça.
Como refere, em relação à substância do instituto da suspensão de execução da pena, Figueiredo Dias – “estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa”.86
No mesmo sentido, Simas Santos e Leal Henriques, consideram que: “Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao arguido, ou seja, a esperança de que ele sentirá a condenação como uma advertência e que não voltará no futuro a delinquir. / O tribunal deverá correr um risco prudente – esperança não é seguramente certeza (…) / Nessa prognose deve atender-se à personalidade do arguido, às suas condições de vida, à conduta anterior e posterior ao facto punível e às circunstâncias deste, ou seja, devem ser valoradas todas as circunstâncias que tornem possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, atendendo somente às razões da prevenção especial, não sendo de excluir liminarmente do benefício da suspensão da execução da pena determinados grupos de crimes”.87
A dupla vertente da prognose não pode colidir com os fins das penas, seja na perspectiva da prevenção especial “prevenção especial de socialização” - reinserção social do condenado - seja na perspectiva de prevenção geral - “(…) aqui sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção integração, indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização”.88
Para que se possa suspender a execução da pena, “é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do ilícito, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena será bastante para que não volte a delinquir.”89 Esta prognose favorável ao comportamento futuro do arguido tem de assentar numa “expectativa razoável”90 e esta tem que resultar da factualidade dada por provada.
Sedimentados os pressupostos e exigências do instituto da suspensão de execução da pena, enquanto pena de substituição, importa ponderar a sua aplicação aos arguidos CC e GG.
O tribunal da Relação no seu douto acórdão, suspendeu na sua execução, todas as penas dos demais coarguidos, condenados em penas inferiores a cinco anos de prisão.
Ora, estando em causa nos pressupostos do instituto razões de prevenção geral e especial e tendo em conta os factos dados como provados, nomeadamente a ausência de antecedentes criminais e a boa inserção social dos arguidos, é possível fazer o exigido juízo de prognose favorável, o qual acautela também as exigências das finalidades da punição, isto é, o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime e a confiança dos cidadãos no sistema de justiça.
Na verdade, decorridos nove anos desde a prática dos factos e a inexistência de novos incidentes na formação dos comandos, as exigências, ao nível das finalidades da punição, mostram-se esbatidas/atenuadas e são compatíveis com a suspensão de execução das penas dos arguidos.
Por tudo o que fica dito, suspendem-se na sua execução as penas em que os arguidos CC e GG pelos períodos de quatro (4) e cinco (5) anos, respectivamente.
10. Dispositivo
Em resumo, procedem parcialmente os recursos dos arguidos:
CC, cuja pena é reduzida para 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período;
GG, cujas penas são especialmente atenuadas e reduzidas para 3 anos e 6 meses por cada um dos dois crimes e condenado na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 5 anos;
Improcedem os recursos dos arguidos AA, BB e FF.
Rejeita-se o recurso do arguido DD.
III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em audiência, na 3ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça em:
a. Rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso do arguido DD;
b. Ao abrigo do disposto no artigo 380.º do Código de Processo Penal, determina-se a correcção de erro no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06-03-2024, passando a constar na Decisão, ponto 10), a fls. 1258:
- “10 - Condenar o arguido CC na pena de cinco anos e três meses de prisão, pela prática de um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no artigo 93.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar; (…)”;
c. Ao abrigo do artigo 380.º do Código de Processo Penal, determina-se a correção do referido erro no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06-03-2024, onde consta socos e bofetadas deverá constar “um soco na pessoa de EE” e “uma bofetada na pessoa de TT”.
Registem-se, na 1ª instância, as correções no local próprio;
d. Julgar improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos, AA, BB e FF e em consequência confirmar o acórdão recorrido quanto aos mesmos;
e. Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido CC e em consequência, reduzir a pena em que foi condenado para quatro (4) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período;
f. Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido GG e em consequência condenar o mesmo, em duas penas especialmente atenuadas, de três (3) anos e seis (6) meses de prisão, por cada um dos dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93º, nº 3, alínea a), do Código de Justiça Militar e em cúmulo jurídico na pena única de quatro (4) e seis (6) meses de prisão, suspensa na sua execução por cinco (5) anos.
Custas pelos recorrentes, AA, BB e FF, fixando-se a taxa de justiça, por cada um deles, em 5 (cinco) UC - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).
Condena-se o recorrente DD na importância de 4 UC, nos termos do n.º 3 do artigo 420.º do Código de Processo Penal.
Lisboa, 16 de Julho de 2025.
Antero Luís (Relator)
Horácio Correia Pinto (1º Adjunto)
Francisco Xavier Ferreira de Sousa – Juiz Militar (2º Adjunto)
Nuno Gonçalves (Presidente)
_______________
1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
4. Cf. Acs. STJ de 01.06.00, proc. 76/2000, e de 31-05-2006, Proc. 04P2246, Relator SORETO DE BARROS, in https://jurisprudencia.pt/acordao/137574/
5. Ac. do TC nº 31/2020, de 16 de Janeiro 2020 o qual a inconstitucionalidade (embora sem força obrigatória geral) da “norma resultante da conjugação dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea e), ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que condenem os arguidos em pena de multa, ainda que as decisões recorridas da 1ª Instância sejam absolutórias, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.” in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200031.html
6. Neste sentido, v.g., Acs. do STJ de 12-01-2022, Proc. 89/14.5T9LOU.P1.S1 e de 30-11-2022, Proc. 1052/15.4PWPRT.P1.S1, ambos in www-dgsi.pt.
7. Neste sentido, vide Ac. STJ, de 15-02-2023, Proc. n.º 7528/13.0TDLSB.L3.S1, Relatora Conselheira Ana Barata Brito, in https://juris.stj.pt/7528%2F13.0TDLSB.L3.S1/rwMJqRhAF7VEUHhFpCXXGAEpOCI
8. Veja-se, por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-09-2021, 1, Proc. n.º 90/16.4JBLSB.C1.S1, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5e83affe6a4e65cf8025875a00324cce?OpenDocument
9. Vide Ac. TC n.º 159/2002, Proc. nº 507/00, de 17-04-2002, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020159.html
10. Como se refere no Acórdão do TC 1165/96, Processo: n.º 142/96, de 19-11-1996, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19961165.html
“(…) O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras da experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo.”.
11. “Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz”, Revista da Escola Pauklista, São Paulo, Julho-Dez. 2001, pp. 171-2024, in https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=20535
12. Neste sentido, Paulo Saragoça da Mata, ob. cit., pág. 253, “(..) é em face dessa mesma prova que, em sede de recurso se vai aferir da observância de juízos de racionalidade, de lógica e de experiência e se estes confirmam, ou não, o raciocínio e a avaliação feita primeira instância sobre o material probatório constante dos autos, uja veracidade cumpria demonstrar. Caso esteja demonstrado que o juízo constante da decisão recorrida é compatível com aqueles critérios não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não estiver, então a decisão recorrida merce alteração. Cm o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual foi produzida em primeira instância”.
13. Vaz Serra, citando Nikisch, in “Provas, Direito Probatório Material”, BMJ n.º 110, p. 97).
14. Neste sentido Acórdão do STJ, de 09-02-2005, Proc. n.º 04P4721, Relator Conselheiro Henriques Gaspar, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3f197cbe94195e10802570a60028c7ab?OpenDocument
15. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, anotação art. 431º.
16. Acórdão do STJ, de 30-11-2006, Proc. n.º 06P4044, Relator Conselheiro Pereira Madeira, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b5e8b35af9d91eb880257243004c56dd?OpenDocument
17. “A Livre Apreciação da Prova e o dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direto Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 252 e ss.
18. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra, Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-89, p. 139.
19. Proc. n.º 08P2864, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4031ed9a4c4400aa802574f1003659ef?OpenDocument
20. Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, p. 111.
21. Proc. nº 154/15.1GDSNT.L1-3, disponível em www.dgsi.pt.
24. “Código Civil Anotado”, Coimbra Editora, 1950, III, 245.
25. “Notas ao Código de Processo Civil”, Lisboa, 1972, III, 221
26. Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, Paixão Moreira Sá Fernandes c. Portugal, n.º 78108/14, 25-01-2020.
27. Disponível em www.tribunalconstitucional.pt
28. Acórdão nº 172/92, 6 de Maio de 1992, disponível em www.tribunalconstitucional.pt
29. Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, pág. 516).
30. In Diário da República”, I Série-A, de 28 de dezembro de 1995 https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/7-1995-645282
31. Neste sentido, veja-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 16-02-2023, Proc. n.º 80/17.0JALRA.E2.S1 – 5.ª Secção, Relatora Helena Moniz, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/dfccd6fde4e9c80080258959002fbabd?OpenDocument
32. Pereira Madeira, anotação ao artigo 410.º, in “Código de Processo Penal Comentado”, 2014, Almedina, pp. 1357-1358.
33. Neste sentido, Acórdão do STJ, de 21-01-2021, Proc. n.º 537/17.2PLLRS.L2.S1, Relatora Margarida Blasco, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/abfebb6065d6465b802586640039c8de?OpenDocument
34. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 28 de janeiro de 2021, processo n.º 727/17.8PASNT.L1.S1, relatado pela Conselheira Margarida Blasco, disponível em https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3a0c6311e2b783b88025866b0030cf69?OpenDocument.
35. Ob. cit. supra, p. 1358.
36. Neste sentido, Acórdãos do STJ de 17-12-2024, Proc. n.º 68/21.6GHSTC.S1 - 3.ª Secção, Relator António Augusto Manso, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/54511a515891b2c580258bf7005e62cc?OpenDocument e de 26-10-2023, Proc. n.º 10/21.4PJAMD.L1.S1, Relator Orlando Gonçalves, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cf3fcd5c3bfdc96780258a55002e3b5e?OpenDocument
37. Madeira, António Pereira, “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, anotação ao art. 410.º, página 1359.
38. Ibidem.
39. Ibidem.
40. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de junho de 2007, processo n.º 2057/07, cujo sumário se encontra disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/06/sumarios-criminal-2007.pdf.
41. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de fevereiro de 2021, Processo n.º 87/11.0GBSXL.L2.S2, relatado pela Conselheira Margarida Blasco, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/878404519e86c982802586800041bd4d?OpenDocument.
42. In “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pp. 928 e 929.
43. Art. 424.º, n.º 3 do CPP “3 - Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.”.
44. Lei n.º 48/2007, de 29/08, o legislador veio determinar especificamente a possibilidade de alteração da qualificação jurídica em sede de recurso, pelo aditamento do n.º 3 ao art. 424º do CPP.
45. Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, vol. II, anotação ao artigo 358.º.
46. Ac. do STJ, Proc. n.º 02P3158, Relator Conselheiro Simas Santos, de 07-11-2002, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bd0417be50aa187d80256c6f005e7484?OpenDocument
47. Ac. do TC n.º 498/12, Proc. n.º 514/12, Relator Conselheiro Vítor Gomes, de 24-10-2012, https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120498.html
48. Neste sentido, Acórdão do STJ, de 10-09-2014, Proc. 714/12.2JABRG.S1- 5.ª Secção, Relatora Conselheira Helena Moniz, https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/fe9ed15327b7a27880257d510030027d?OpenDocument
“Atendendo a que não foi dado conhecimento prévio desta qualificação jurídica dos factos aos recorrentes, poderá questionar-se da necessidade (ou não) de cumprimento do disposto no art. 424.º, n.º 3, do CPP.
Tem entendido este Supremo Tribunal que:
“III - Dispõe o n.º 3 do art. 424.º do CPP, introduzido pela Lei 49/07, de 29-08, que «sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.
IV - O sentido da notificação dos interessados quando se vislumbra a possibilidade de serem alterados não substancialmente os factos ou a qualificação jurídica efectuada, decorre da necessidade de não pôr em causa o seu direito de defesa, o direito de se pronunciarem quanto a elementos surpresa de que não puderam oportunamente defender-se. E isso resulta claramente do preceito transcrito, quando se refere à alteração «não conhecida do arguido».
V - Ora, tal não sucede quando o Tribunal se limita a alterar a qualificação jurídica, “desagravando” um crime de qualificado para simples, por entender que determinada circunstância qualificativa acaba por não ter no caso em apreciação o valor agravativo suposto pela norma; então, não só não se verifica surpresa, pois o interessado já fora chamado a pronunciar-se sobre a circunstância qualificativa que agora se tem por não verificada, como o bem jurídico protegido é o mesmo e se trata de uma reforma para melhoria da qualificação e consequente condenação – cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II, anotação ao art. 358.º.» (acórdão de 31.10.2007, processo n.º 07P3271, relator Cons. Costa Mortágua, sumário em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9c6fd4d2d3809b25802573da0055c3c8?OpenDocument ).
Também aqui ocorre um “desagravamento” dado que se altera a qualificação jurídica de crime consumado para crime tentado, pelo que entendemos não ser necessário proceder àquela notificação.”
49. Neste sentido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 394/2022, de 26-05-2022, “a contrario”, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220394.html
50. Vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 33/2002, Proc. n.º 1141/98, in Diário da República – II Série, n.º 55, de 6 de março, pp. 4407, in https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/33-2002-2311462.
51. “O Sistema de Justiça Militar Penal”. Tese de mestrado em Direito Criminal, Porto: Escola de Direito - Universidade Católica do Porto, p. 19.
52. SILVA, G. M. da (2015). Direito Penal Português: Teoria do crime, 2ª ed, Lisboa: Universidade Católica
Editora, p. 211.
53. “Justificação e Desculpa por Obediência em Direito Penal”, Coimbra: Coimbra Editora p. 37.
54. Neste sentido Nuno Brandão, Justificação e Desculpa por Obediência em Direito Penal, Coimbra: Coimbra Editora p. 38, e Germano Marques da Silva, Direito Penal Português: Teoria do crime, 2ª ed, Lisboa: Universidade Católica Editora, p. 209.
55. “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3.ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora, artigo 37.º, anotação 2.
56. In https://www.ium.pt/s/images/noticias/docs/Cons_Souto_Moura.pdf.
57. Coronel Vítor Prata, in https://www.revistamilitar.pt/artigo/1272.
58. Simas Santos e Leal Henriques (Código Penal Anotado, 1996, vol. II, p. 134-135, anotação ao artigo 143.º.
59. In https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080165.html.
60. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais - A Doutrina Geral do Crime, 2ª edição, Coimbra editora, pp. 913-914, 916.
61. Eduardo Correia, ? Direito Criminal, Vol. I, Reimpressão, 1971, Almedina, p. 271.
62. Maria Paula Ribeiro de Faria, “Formas Especiais de Crime”, 1ª edição, 2017, Porto, Universidade Católica editora, p. 147.
63. Neste sentido, Faria Costa, “Omissão – Reflexões em Redor da Omissão Imprópria”, Boletim da Faculdade de Direito Vol. LXXII, Coimbra, 1996, Universidade de Coimbra, pp. 391-392:
“[,,,] A irrepreensibilidade desta equiparação manifesta-se na clareza com que se exige o elemento nuclear para que uma tal equiparação possa ter lugar, mas também não deixa, de certa maneira, de se expressar na possibilidade que se abre, por mor do n.° 3 do art. 10.°, de a pena poder ser especialmente atenuada. […]”.
64. Conforme sufraga Jescheck/Weigend «ou existe uma relação de dependência entre os implicados ou que o titular do bem jurídico (ou qualquer outra pessoa a qualquer título responsável pela sua protecção) tenha suportado um risco maior por confiar na disponibilidade do garante ou que, finalmente, haja renunciado a quaisquer outras cautelas destinadas à sua protecção» - apud Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, “Código Penal Anotado e Comentado, Legislação Conexa e Complementar”, 2008, Quid Juris Sociedade Editora, p. 84.
65. Neste sentido, Faria Costa, ob. cit., p. 400.
66. Neste sentido, Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 955-960.
67. Figueiredo Dias, Direito Penal, ob. cit., pp. 961 e 965.
68. Figueiredo Dias, “Pressupostos da punição” pág. 73, apud Simas Santos Leal Henriques, in Código Penal, 2.ª ed., pág. 204.
69. In “Suma Teológica”, I, q. 48 a. 6.
71. Paulo Ferreira da Cunha e Andreia Valadares Ferra, “Em torno do princípio da proibição da reformatio in pejus. Entre Justiça e Segurança”, Revista do Ministério Público, 169, Janeiro-Março 2022, Ano 43, p. 207.
72. In https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070236.html?impressao=1
73. Proc. nº 595/12.6TASLV.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt
74. Proc. nº 232/14.4JABRG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
75. Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 302/307
76. Sumário do acórdão de 31-01-2012, Proc. Nº 8/11.0PBRGR.L1.S
77. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2004, Proc. n.º 1636/04 - 3.ª ambos in www.dgsi.pt
No mesmo sentido, Prof. Figueiredo Dias (“O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187).
78. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime - Noticias Editorial, pág. 227).
79. As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” in “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, 1998, AAFDL, pág. 25-51 e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, 2000, Almedina, pág. 31-51.
80. A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade", Coimbra Editora, pág. 570 e seguintes).
81. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 214.
82. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2.º a 4.º, Abril-Dezembro de 1993, pág. 186 e 187,
83. Por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Fevereiro de 2024, Proc. nº 122/20.1PAVPV.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt
84. Proc. nº 202/05.3GBSXL.L1.S1, disponível em: www.dgsi.pt
85. Neste sentido também, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 421e segs.
86. In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 520 p. 344, no mesmo sentido acórdão do STJ de 16/01/08, proc. n.º 3485/07, in www.dgsi.pt
87. Noções de Direito Penal, 4ª edição, Rei dos Livros, 2011, pág. 200.
88. Prof. Figueiredo Dias, obra citada.
89. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Maio de 1995, Proc. nº 047577, in www.dgsi.pt
90. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 1997, Proc. n.º 97P423 in www.dgsi.pt