PRESTAÇÃO DE CONTAS
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
Sumário


.1- O processo especial de prestação de contas abarca os casos em que, com consequências patrimoniais, alguém trata de negócios alheios, visando-se a condenação no saldo das contas dessa gestão.
.2- Neste processo o foco principal é a gestão efetuada, mais do que a sua fonte.
.3 – Assim, entendendo os Autores que a Ré, de facto, levantava o dinheiro recebido por seu pai e o geria, aplicando-o no pagamento das despesas que este tinha e que fez seu o saldo que sobrou, não podem deduzir um processo comum, sem dar a possibilidade à Ré de apresentar contas dessa administração, de cuja falta se queixam. Ocorre, pois, erro na forma do processo.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

.I Relatório

Os Autores peticionaram que fosse proferida sentença que condenasse a Ré a pagar-lhes a quantia de 14.375.72 €, acrescida de juros desde a citação e ainda que esta fosse a pagar-lhe, como litigante de má-fé, a quantia de 1.500.00 €.
Alegaram, para tanto e em síntese, que o pai dos Autores estava acolhido em casa da Ré e que:

-- falecido o seu pai, o 1.º Autor dirigiu-se àquela “para que lhe fossem prestadas contas, no sentido de saber se tinham que pagar ou receber, uma vez que, segundo o combinado, aquela administrava o dinheiro do falecido, de onde se fazia pagar das despesas inerentes aos cuidados de saúde e que lhe eram imputáveis, entregando a parte restante não gasta”;
-- o 1.º Autor chegou às seguintes conclusões:
a) No ano de 2018, a pensão da Segurança Social do pai atingiu o valor total de 4.373.49 €, sendo que a R. se cobrou do que lhe era devido no valor de 3.249,00 €, existindo assim em crédito a favor do AA no valor de 1.124.49 €.
b) No ano de 2019, recebeu de pensão 5.747,84 €, sendo que a R. se cobrou da quantia de 4.422,24 €, pelo que existe um crédito de 1.325,60 €.
c) No ano de 2020, recebeu de pensão 8.753,36 €, sendo que a R. se cobrou da quantia de 4.508,64 €, pelo que existe um crédito de 4.244,72 €.
d) Em 2021, recebeu de pensão 6.955,96 € sendo que a R. cobrou 3.381.48 €, havendo assim um crédito a favor do AA de 3.574.48 €.”
O seu pai ainda recebeu os subsídios de férias e natal em dobro, os retroativos relativos aos anos de 2018 e 2019 no valor de 2.520,00 €;
— A Ré ainda recebeu o subsídio de funeral e não entregou nenhum montante aos filhos do falecido, tendo gasto naquele ato 1.540,00 €.
Mais alegam que:
- “O combinado era que deveria adquirir o material necessário para os cuidados de saúde e, no final do ano, exibir ao BB os documentos comprovativos, leia-se faturas, a fim de acertarem as contas.
 - Nunca a R. apresentou qualquer conta, pelo que, indevidamente, se apropriou das quantias supra indicadas.”
 E terminam concluindo que a Ré entregou 361,00 € aos Autores, pelo que lhes deve a quantia de 14.375,72 €.
 A Ré contestou, em súmula, invocando o erro na forma do processo: “se objeto da presente ação, é o de  obter o apuramento e a aprovação das contas devidas pela Ré, como administrador de bens alheios”, então o processo próprio é ao processo especial de prestação de contas. Defendeu que a consequência deste erro é a absolvição da Ré da instância. Além de outras exceções dilatórias, também impugnou os factos invocados, referindo, em resumo, que nunca se cobrou de nenhuma quantia ao falecido, nem se apropriou de nenhuma quantia; propôs-se sempre prestar contas extra judicialmente; as conclusões do Autor quanto a valores não têm qualquer correspondência com a realidade.
Foi proferido despacho em 11 de outubro de 2023 que determinou a notificação dos Autores para querendo se pronunciarem “quanto à matéria de exceção” invocada pela ré.
Os Autores responderam, defendendo que não se verifica tal vício e o mesmo, a ocorrer, é sanável.
Foi proferido saneador pelo qual se decidiu julgar procedente a exceção de erro na forma de processo, anular todos os atos praticados nos autos e absolver a Ré da instância.

É desta decisão que os Apelantes interpuseram recurso, com as seguintes
conclusões:
“1. O Presente Recurso é interposto ao abrigo do disposto no artigo 644.º e 645.º do CPC.
2. Tem como fundamento duas questões de direito: violação do princípio do contraditório e violação da lei sobre a forma de processo.
3. Nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do CPC, é obrigatório, em todas as fases do processo, respeitar o princípio do contraditório, sob pena de nulidade, no caso concreto do despacho saneador/sentença – vejam-se, entre outros, o ATRL processo n.º 882/22.T8LSB1-7, de 13/07/23, in www.DGSI.pt. 
4. O douto Tribunal, sem ouvir os AA., proferiu uma decisão surpresa, pois entendemos que deveriam os AA.  ter-se pronunciado sobre a intenção de absolvição da instância com o fundamento no erro sobre a forma de processo, o que não aconteceu.
5. Entendeu o Tribunal que a forma adequada a este processo era a prestação de contas e não a ação declarativa de condenação interposta pelos AA.
6. Entendemos nós que foi mal interpretado o artigo 941.º do CPC. 7. Desde logo porque os AA. configuraram a ação, articulado e pedido, como uma ação declarativa de condenação.
8. Lendo com atenção a petição inicial, resulta que os AA. alegaram que o falecido foi acolhido numa casa de acolhimento indicada pela Segurança Social, em processo titulado por esta, sendo que, para o efeito, a Segurança Social paga ao acolhedor por tais serviços e o acolhido contribui com as despesas que a Segurança Social não suporta, processo que foi acompanhado pelo A. BB.
9. Não foi alegado a existência de qualquer contrato entre o falecido e a R. para esta gerir os bens do falecido, mas sim, por impossibilidade física daquele, levantar a sua pensão, pagar-se mensalmente do que lhe é devido e entregar o resto ao utente.
10. Até porque, analisados os documentos juntos aos Autos pela Segurança Social, no dia 8 de abril de 2024, resulta inequívoco, em documento assinado pelo falecido, Segurança Social e a própria R., que era aquele que administrava os seus bens e contas bancárias e pagava mensalmente o que deveria ser pago.
11. É isto que deve ser retirado e entendido se conjugados todos os itens da petição inicial e demais elementos do processo, não obstante se ter utilizado em 6.º da pi as expressões “prestadas contas” e “administrava”.
12. Trata-se de termos jurídicos que foram utilizados de forma corrente e com o sentido geral da pi.
 13. Os AA. pediram a condenação da R. em quantia certa, pois sabem exatamente o que indevidamente reteve e quais as despesas imputáveis ao falecido e em lado algum pedem que o Tribunal declare que a R. está obrigada a prestar contas e que essas contas se discutam no sentido de apurar as receitas e as despesas.
14. O dever geral de prestar contas resulta da obrigação a que se refere o artigo 573.º, sempre que alguém trata de negócios alheios com a consequente obrigação de dizer quais as receitas, despesas e apresentação da respetiva documentação.
15. Estamos assim perante uma nulidade não sanável, que acarreta a nulidade do despacho saneador com as legais consequências: deve o processo prosseguir sob a forma de processo comum declarativo de condenação.
 Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve ser o presente julgado procedente e, em consequência, deve o Despacho saneador sentença recorrido ser revogado e substituído por outro que decida no sentido aqui propalado, devendo o processo perseguir os seus termos até final, fazendo-se, assim, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!”

A Ré respondeu, apresentando as seguintes
conclusões:
“1. Não assiste razão ao recorrente, porquanto o despacho saneador/ sentença recorrida é, do ponto de vista técnico-jurídico, irrepreensível, não enferma de vícios ou nulidades que a invalidem, fez correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.
2. A decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo.
3. Não foi violado o principio do contraditório consagrado no artigo 3º, nº 3 do CPC.
4. Os autores pronunciaram-se acerca das exceções (erro na forma de processo) invocadas pela Ré. 
5. Logo não estamos perante nenhuma situação de nulidade insanável.
6. Tendo em conta a causa de pedir e o pedido formulado, pelos Autores, na Petição Inicial, o objecto do processo cabe no previsto para o processo especial de prestação de contas.
7. Como se alcança da Petição Inicial, os Autores dizem, sucintamente,  que a Ré cuidava do seu falecido pai e por isso esta administrava o dinheiro do falecido, de onde se fazia pagar das despesas inerentes aos cuidados de saúde que lhe eram imputáveis, entregando a parte restante não gasta, a Ré adquiria o material necessário para os cuidados de saúde e no final do ano tinha que exibir os documentos comprovativos das despesas, para acertarem contas, e a Ré nunca apresentou contas…e como tal deve-lhes dinheiro. Os próprios Autores apresentam umas contas (artigo 10º da PI) apurando um saldo a seu favor.
8. Aquilo que os autores pretendem é tão só provar que existe um saldo a favor deles, resultante da administração que a Ré fez do dinheiro falecido, por os autores não o terem feito, e a condenação da Ré a pagar o tal remanescente.
9. Dúvidas não restam de que  o objecto da presente acção é o de obter o apuramento e a aprovação das contas devidas pela Ré, como administradora do dinheiro do falecido.
10. Somos do entendimento que  a forma de processo adequada, é a acção correspondente  a forma do Processo Especial de Prestação de Contas. 
11. Em suma, por tudo quanto fica exposto, entendemos que a sentença deve ser mantida nos seus exactos termos, negando-se assim provimento ao recurso apresentado pelo recorrente.  
12. A sentença proferida não padece de qualquer nulidade, nem violou qualquer normativo, pelo que 
13. A decisão tomada deve ser mantida nos seus exactos termos.
Nestes termos, não deverá merecer provimento o recurso interposto pelo recorrente, tendo em conta os argumentos invocados em sede de contra-alegações, interpostas aqui, por parte da recorrida, mantendo-se irrevogável a decisão do Tribunal a quo,  V, Exas. , porém, e como sempre, farão JUSTIÇA ”

.II Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigo 635.º n.º 4, 639.º n.º 1, 5.º n.º 3 do Código de Processo Civil).
Assim, exceto se sejam de conhecimento oficioso, este tribunal não pode apreciar questões que não tenham sido levantadas nas alegações; do mesmo modo, também não pode decidir questões que não tenham sido levantadas anteriormente (as denominadas questões novas), exceto se se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contiverem os elementos necessários para o efeito. - artigo 665.º, n.º 2 do mesmo diploma.
Assim, face às conclusão do recurso, confrontadas com o teor da resposta, importa analisar as seguintes questões:
--- se a sentença é nula por ser uma decisão surpresa, proferida em violação do princípio do contraditório;
---  se se verifica o erro na forma do processo.

.III Fundamentação de Facto

Os factos relevantes para a decisão da causa são de natureza processual e já se encontram descritos supra.

.IV Fundamentação de Direito

a — Da violação do contraditório com fundamento na prolação de uma decisão surpresa
O artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, destaca a obrigatoriedade de observância do princípio do contraditório em todo o processo judicial. Sublinha que o juiz não deve decidir questões, mesmo que de conhecimento oficioso, sem antes dar às partes a oportunidade de se pronunciarem, salvo em casos de manifesta desnecessidade. Este princípio é fundamental no Estado de Direito Democrático, conforme previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, sendo um dos pilares do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
O artigo em questão articula uma visão mais ampla do contraditório, permitindo não só que as partes apresentem as suas alegações e provas, mas também uma intervenção contínua no processo, de modo a influenciar a decisão judicial. Assim, as partes devem ter a possibilidade de se manifestar sobre todas as questões que, apesar de serem novas ou não previstas, possam ser relevantes para o desfecho do litígio.
Embora as partes tenham o dever de diligenciar na defesa dos seus direitos, existem situações em que o juiz deve decidir sobre matérias que não foram discutidas pelas partes, seja porque estas não as previram ou porque surgiram tardiamente, após o prazo processual. Nestes casos, o Código de Processo Civil exige que o tribunal permita que as partes se pronunciem sobre essas questões antes da decisão.
 No presente caso, no entanto, é claro que não ocorreu nenhuma decisão surpresa, porquanto a Ré suscitou a questão do erro na forma do processo na sua contestação e o tribunal proferiu despacho em que convidou os Autores a pronunciar-se sobre as exceções alegadas nessa peça processual. O tribunal utilizou esta expressão, proferida em sede de audiência prévia, visando as questões invocadas na contestação  que podiam suspender ou adiar o andamento do processo, sem implicar a análise do mérito da causa. Os autores compreenderam este convite e usufruíram desta faculdade, apresentando novo articulado em que se pronunciaram, entre o mais, sobre o erro na forma do processo, como já se deu conta.
Assim, era nítido, desde a contestação, que esta questão era um dos temas do litígio. Foi dada amplamente a possibilidade a todas as partes para se pronunciaram sobre a mesma, o que fizeram.
Improcede esta nulidade invocada pelos Autores.

b — Do erro na forma do processo
O processo pode ser comum ou especial: aplica-se o processo comum a todos os casos a que não corresponda processo especial e o processo especial aos casos expressamente designados na lei (artigo 546.º do Código de Processo Civil).
Se à pretensão deduzida em juízo não corresponder um processo especial, recorre-se ao processo comum.
O critério para resolver a questão do erro na forma de processo consiste em pôr o pedido formulado na ação em confronto com o fim. O que releva para apurar se este recorreu à correta forma do processo é o tipo de pretensão que o mesmo formulou e não o que deveria ter formulado.
Se porventura a pretensão que formulou não corresponder aos fundamentos que invoca, pode dar-se uma improcedência da ação, mas não o erro na forma do processo.
É em face do pedido formulado pelo autor, interpretado, se necessário, à luz da causa de pedir, que se determina a forma do processo.
Nos termos do artigo 193.º do Código de Processo Civil, o erro na forma do processo consiste na utilização de um tipo processual diferente daquele que a lei prevê para a tramitação da causa em função da natureza do pedido, enquadrado pelos seus fundamentos.
O erro na forma do processo configura uma nulidade processual que determina a anulação dos atos que não possam ser aproveitados. Assim, só dá lugar à absolvição da instância nos casos em que a própria petição inicial não pode ser aproveitada para a forma de processo adequada.

c — Do processo especial de prestação de contas
Determina o artigo 941.º do Código de Processo Civil (à semelhança do artigo 1014.º do anterior código) que “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.”
Esta é, portanto, como que uma ação declarativa de condenação, em que se visa apurar quem deve e aquilo que deve, sendo passível de ser desdobrada em duas fases: uma primeira, em que se encontrava o processo quando foi apresentado o requerimento que ora se aprecia, em que se apura se existe a obrigação de prestar contas e uma segunda, verificada que seja essa obrigação, em que se calcula o saldo das mesmas.
Atenta a sua estrutura, salientou-se que esta tem em si a forma de concretizar uma obrigação de informação, embora se aceite também que nem todas as situações em que se verifique esta obrigação de prestar informações implicam uma obrigação de prestação de contas.
Entre muitos, no mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.02.2005 (processo n.º 04B4671), disponível, como os demais acórdãos citados, no portal dgsi.pt: “A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação de quem administra bens alheios, designadamente o cônjuge, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.”
E desta forma, já Alberto dos Reis, “Processos Especiais", vol. I, Reimpressão, Coimbra, 1982, pág.303, mencionava a existência de um princípio geral, que tem tido total acolhimento na jurisprudência, pelo qual se compreende que "quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses".
Abarca, pois, os casos em que, com consequências patrimoniais, alguém trata de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios, relevando a gestão efetuada, mais do que a sua fonte.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-04-2008, no processo 1533/2008-2 I  “I–A obrigação de prestar contas decorre de outra obrigação de carácter mais geral, a obrigação de informação; mas, nem sempre que exista obrigação de informação existe obrigação de prestação de contas, encontrando-se esta última fixada casuisticamente em várias normas das quais se poderá extrair o princípio geral de que quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses. II — O pedido judicial de prestação de contas só tem razão de ser quando o R. exerceu administração ou gerência de bens, ou interesses do Autor”.
Também neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/07/2019 no processo 119/19.4T8VLN.G1 “I — O direito de exigir a prestação de contas está diretamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem ou que não lhe pertencem em regime de exclusividade. II — A obrigação de prestar contas decorre diretamente da lei, como também pode derivar do negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa-fé, sendo que, a prestação de contas pressupõe que a pessoa a quem são pedidas as contas exerceu gerência ou administração de interesses da pessoa que as pede.”
Este processo tem em vista superar as dificuldades de que padece o titular dos bens administrados em poder calcular o montante do saldo a que terá direito, visto que será quem administrou tais bens que terá a informação do ocorrido em tal gestão (revelando este fim, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/03/2016 no processo 969/14.8T8PTM.E1).
Enfim, este dever de prestar contas centra-se, essencialmente, na prática de atos de gestão de negócios alheios (ou comuns às partes), não sendo essencial que decorra de um contrato celebrado entre estas: basta que decorra da lei ou mesmo de princípios gerais.

d — Concretização
Na petição inicial, os Autores não pedem a condenação da Ré na prestação de contas, mas a entregar-lhe as quantias que resultem desse saldo. No entanto, o pedido dos Autores pressupõe que se apure o resultado das receitas obtidas e despesas efetuadas no âmbito da administração dos bens do seu falecido pai, que, como vimos, se enquadra no processo especial de prestação de contas.
O processo especial de prestação de contas também tem ínsito uma condenação no saldo que se apurar, pelo que até o próprio pedido e mais ainda a pretensão formulada pelos Autores são típicas deste tipo de processo.
Ao invés do que os mesmos alegam no recurso, reafirmam por mais do que uma vez na petição inicial um acordo de administração de bens, visto que além do artigo 6.º, também referem que o que estava “combinado era que deveria adquirir o material necessário para os cuidados de saúde e, no final do ano, exibir ao BB os documentos comprovativos, leia-se faturas, a fim de acertarem as contas”, queixando-se ainda que esta “nunca apresentou qualquer conta, pelo que, indevidamente, se apropriou das quantias supra indicadas” (artigos 14.º e 15.º da petição inicial).
Os Autores chamam agora à colação um documento junto aos autos mediante o qual concluem que, ao invés do que invocaram, não ocorreu tal administração. No entanto, ainda não nos encontramos na fase de análise das provas, havendo tão só que apurar se a pretensão dos Autores, enquadradas com a causa de pedir em que são sustentadas, é a adequada ao tipo de processo deduzido.
E já vimos que não. Com feito, entendendo os Autores que a Ré, de facto, levantava o dinheiro recebido por seu pai e o geria, aplicando-o no pagamento das despesas que este tinha e que fez seu o saldo que sobrou, não podem deduzir um processo comum, sem dar a possibilidade à Ré de apresentar contas dessa administração, de cuja falta se queixam.
Ocorre, assim, a nulidade de erro na forma do processo, como foi decidido na sentença recorrida.
Os autores não põem em causa a consequência atribuída a esta nulidade da forma do processo, mas tão só que esta se tenha verificado, pelo que mais não há a conhecer e há que confirmar a decisão recorrida.

.V Decisão

Por todo o exposto, julga-se a apelação totalmente improcedente e em consequência confirma-se a sentença proferida.
Custas pelos Recorrentes (artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)

Guimarães, 10 de julho de 2025

Sandra Melo
Fernanda Proença Fernandes
Margarida Pinto Gomes