EXECUÇÃO DE ENTREGA DE IMÓVEL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Sumário


I. O diferimento de desocupação de imóvel previsto no art. 864º do C.P.C. constitui um meio de tutela excepcional, por consubstanciar uma restrição ao direito de propriedade, estando reservado aos casos nele previstos (ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada), e se verificados os pressupostos nele exigidos; e, por isso, não pode ser aplicado à entrega de imóvel adquirido em processo executivo, por não permitir aplicação analógica, nem se estar perante lacuna da lei, que justificasse a sua aplicação extensiva.
II. O despacho de aperfeiçoamento não pode ser usado para além dos limites que a lei para ele traça, estando manifestamente fora do seu âmbito providenciar por alterações que radicam numa pretensão diversa ou ampliada da deduzida pela parte ativa na petição inicial (ou pela parte contrária no pedido reconvencional).

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório (seguindo o da decisão apelada).

EMP01... - Sociedade Construtora do ... S.A. instaurou contra AA Execução de Sentença para Entrega de Coisa Certa, oferecendo à execução a sentença proferida, em 27.12.2021, no processo que, sob o n.º 5910/19.9T8BRG, correu termos no Juízo Local Cível de Braga – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, confirmada por acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães e transitada em julgado em 11.01.2023.

Nessa sentença, foi o réu, aqui executado e apelante condenado nos seguintes termos:
«Pelo exposto, julgo totalmente procedente a acção declarando a caducidade do contrato de arrendamento relativo ao prédio urbano propriedade da A., composto por parcela de terreno destinada a construção, denominado «Lote ...», sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...92, da freguesia ..., concelho ..., inscrita a matriz predial sob o artigo ...03, freguesia ..., concelho ..., por morte da arrendatária BB, falecida a ../../2019, mais declarando que o mesmo não se transmitiu ao R., por não se mostrarem verificadas as circunstâncias a que alude o artº 57º nº1 da NLAU;
- condeno o R a entregar, imediatamente à A., o locado livre de pessoas e bens.».

Veio o executado AA requerer o diferimento da desocupação do locado, alegando que se encontra numa situação muito vulnerável, considerando que tem uma saúde muito débil e não dispõe de uma alternativa habitacional, encontrando-se desempregado.
A exequente opôs-se, alegando que já em ../../2019, na sequência do falecimento da arrendatária BB (mãe do executado) e antes da propositura da ação declarativa que deu origem ao título executivo que está na base da presente ação executiva, informou o executado que deveria proceder à entrega do imóvel, que, em 27.12.2021, foi proferida a sentença que condenou o executado a entregar o imóvel à exequente, tendo o 15.12.2022, o recurso interposto pelo executado sido julgado totalmente improcedente. Conclui, portanto, que durante os 5 anos de duração dos processos declarativo e executivo, o executado não cuidou de procurar uma solução para a sua habitação, ocupando o prédio ilegalmente, com inúmeros prejuízos para a exequente.
Defende ainda a exequente que não sendo nem nunca tendo sido arrendatário do imóvel, ao executado está vedado o recurso ao incidente de diferimento de desocupação do locado, privativo do arrendatário.

Foi então proferida decisão, com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, indefere-se liminarmente a pretensão do Executado.
Custas pelo Executado (cfr. artigo 527º, nºs1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do direito a protecção jurídica de que (eventualmente) beneficie

*
Notifique, dê conhecimento ao(à) Sr.(a) AE e demais diligências necessárias”.
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Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o executado, o qual a terminar as respetivas alegações, formulou as seguintes conclusões que se transcrevem:
“[…]
8. Sobre isto, a douta sentença refere o seguinte: O regime previsto foi pensado para os imóveis arrendados e não se aplica igualmente aos não arrendados. O diferimento de desocupação, previsto nos artigos 864.º e 865.º, do Código de Processo Civil, constitui um meio de tutela excecional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada. Que o Executado, não sendo arrendatário, não beneficia do regime previsto no artigo 864.º do Código de Processo Civil, o qual sendo um regime especial não é suscetível de ser aplicado, analógica ou extensivamente, à situação dos autos em que o Executado é mero ocupante do imóvel.
Acresce que, ainda que se entendesse que o sendo o imóvel arrendado (independentemente de o Executado(a)(s) não ser o arrendatário) se poderia aplicar o regime do diferimento da desocupação do locado,
Com efeito, afigura-se-nos, do ponto de vista das exigências de boa-fé que o Executado, condenado que foi, por sentença proferida em 27/12/2021 e transitada em julgado em 11/01/2023, isto é, há quase 1 ano e meio, já teve muito tempo para procurar uma solução habitacional, sendo que nem sequer alegou ter já diligenciado por obter habitação social. No caso em apreço o Executado não apresentou qualquer atestado médico a comprovar a existência de qualquer doença com as características previstas na lei. Do próprio requerimento inicial deste incidente não se lê que o exequente padeça de doença aguda (que não é o mesmo que incapacidade ou doença crónica), nem muito menos que a desocupação pusesse em risco sério a sua vida ou de algum elemento do seu agregado familiar.
9. O recorrente entende que o regime em questão é suscetível de ser aplicado, analógica ou extensivamente, à situação dos autos.
10. Assim sendo, o estado do processo não permitia, sem mais, o conhecimento do mérito da causa.
11. Com efeito, o conhecimento do mérito da causa estava prejudicado pela necessidade de produção de prova adicional, designadamente no que respeita à matéria subjacente, ou seja, ao problema de saúde que o recorrente padece.
12. O alegado nos articulados não constitui prova ou meio de produção de prova.
13. O alegado nos articulados é aquilo que as partes submetem à apreciação do Tribunal e que permitirá a este, designadamente, determinar o objeto do litígio e dos temas da prova.
14. Aqui chegados verifica-se que, no confronto do alegado pelo embargante/recorrente e pelo embargado, a gravidade da doença era um facto essencial controvertido.
15. Atenta a definição de causa de pedir constante do artigo 581.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, factos essenciais são aqueles que se reportam ao facto jurídico do qual procede a pretensão do autor.
16. Daqui resulta que competiria ao Recorrente – por ter invocado a doença – provar esse facto.
17. E ao ter decidido conforme decidiu, o Tribunal recorrido simplesmente não permitiu ao Recorrente provar que padecia de doença aguda e que procurou uma alternativa habitacional.
18. O facto doença aguda era um facto que carecia de produção de prova.
19. Perante tal alegação impunha-se ao Tribunal apurar e permitir ao Recorrente usar os meios de prova ao seu dispor – prova testemunhal ou prova documental –para concretizar a doença de que padece, assim como a sua gravidade.
[…]
Caso assim não se entenda e sem prescindir,
34. Ainda que seja defensável que o executado não alegou que padece de doença aguda, tendo apenas alegado que padece de doença, e que não alegou que a desocupação pusesse em risco sério a sua vida, sempre se dirá que o Tribunal recorrido deveria ter convidado o Recorrente a aperfeiçoar o seu articulado, por considerar o mesmo deficitário, imperfeito, incompleto ou pouco claro.
Com efeito,
35. Decorre do artigo 590.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil que, findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados.
36. Nos termos do n.º 4 do mesmo preceito, incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
37. O convite ao aperfeiçoamento de articulados, nos termos do artigo 590.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, é um dever a que o juiz está sujeito e cujo não cumprimento leva ao cometimento de nulidade processual – Ac. TRP., de 18-05-2020, no processo n.º 3376/19.2T8VNG-B.P1.
38. Estamos, pois então, perante uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, n.º1 do Código de Processo Civil, que aqui vai arguida para os legais efeitos.
39. Face a tudo quanto exposto, foram violadas as normas ínsitas nos artigos: 863.º, 864.º, 865.º, 861.º, n.º 6 e 195.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil e o artigo 11.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que vigora na ordem jurídica portuguesa desde 31/10/1978, por força do princípio do primado ínsito no artigo 8.º da CRP.
Termos em que deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, e determinada a remessa dos autos à primeira instância para que ali prossigam a sua marcha.!”
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Não houve contra-alegações.
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Por decisão sumária de 16.05.2025, a aqui relatora julgou a apelação totalmente improcedente, e em consequência confirmou a decisão recorrida.
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Esta decisão foi objeto de reclamação por parte do apelante, que requereu a submissão à conferência.
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Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objecto do recurso.             

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC - ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber se:

1. o diferimento de desocupação, previsto nos artigos 864.º e 865.º do CPC, é analogicamente aplicável na execução para entrega de casa não arrendada, quanto ao seu mero ocupante;
2. o estado dos autos não permitia o conhecimento imediato da questão;
3. deveria ter sido dirigido ao apelante convite ao aperfeiçoamento.
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III. Fundamentação de facto.

A factualidade considerada como provada na decisão apelada, foi a seguinte:
1. A EMP01... - Sociedade Construtora do ... S.A. instaurou, em 06-02-2023, contra AA a presente Execução de Sentença para Entrega de Coisa Certa, oferecendo como título executivo a sentença proferida, em 27/12/2021, no processo que, sob o n.º 5910/19.9T8BRG, correu termos no Juízo Local Cível de Braga – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães e transitada em julgado em 11/01/2023.
2. Nessa sentença, foi o Réu, aqui Executado condenado nos seguintes termos:
«Pelo exposto, julgo totalmente procedente a acção declarando a caducidade do contrato de arrendamento relativo ao prédio urbano propriedade da A., composto por parcela de terreno destinada a construção, denominado «Lote ...», sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...92, da freguesia ..., concelho ..., inscrita a matriz predial sob o artigo ...03, freguesia ..., concelho ..., por morte da arrendatária BB, falecida a ../../2019, mais declarando que o mesmo não se transmitiu ao R., por não se mostrarem verificadas as circunstâncias a que alude o artº 57º nº1 da NLAU;
- condeno o R a entregar, imediatamente à A., o locado livre de pessoas e bens.»
3. Consta dos factos provados na sentença, ao que ora interessa, o seguinte:
« 5. BB, faleceu a ../../2019 – conforme certidão de óbito de fls. 15.
6. O R. é filho da falecida BB, conforme certidão de nascimento junta a fls. 16.
7. Tendo nascido a ../../1965.
8. Vivendo desde sempre com a sua mãe naquele imóvel.
(…)
10. Através de missiva remetida ao R. no dia 15-04-2019, a A. informou-o de que, em virtude do falecimento da arrendatária, o contrato de arrendamento havia caducado e solicitou a restituição da posse do imóvel no prazo de 30 dias (conforme carta junta a fls.17).
11. Respondeu o R. pelo modo que consta de fls. 19, referindo em suma que há mais de 30 anos que pagam a renda na Banco 1..., em nome da anterior proprietária do imóvel (...) e que nasceu naquela casa, recusando-se a abandonar o locado.
12. O Réu sofre de lombociatalgia ativa, com abaulamento discal difuso de predomínio centrolateral esquerdo, que se associa hérnia discal com migração cefálica a deformar o saco dural; fenómenos de osteofitose circunferencial com abaulamento discal difuso e maciços articulares volumosos, diminuindo a amplitude canalar; abulamento discal difuso de predomínio foraminal direito, a condicionar o conflito de espaço à entrada do buraco de conjugação direito e deformado o saco dural; osteofitose marginal posterior com abaulamento discal difuso, condicionado conflitos de espaço endocanalares bilateral, conforme atestado datado de 18.2.2020 junto a fls. 38.
13. Ao R. foi atribuído subsidio social de desemprego no montante diário de 11,62€, com inicio a 6.8.2019.
14. O R. não tem outra habitação onde possa residir.
E dos factos não provados consta que: « - que o R. à data do falecimento da sua mãe ou na presente data seja portador de incapacidade igual ou superior 60%.”.
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IV. Fundamentação de direito.

Escreveu a ora relatora na decisão sumária reclamada o seguinte:
“1. Delimitadas que estão, sob o n.º IV, as questões a decidir, é o momento de as apreciar.

Quanto à primeira questão a decidir, e por se tratar de situação idêntica à dos autos, passa a citar-se o Ac. da Relação do Porto, de 18.12.2018, proferido no processo 2384/08.3TBMAI-B.P1, disponível em jurisprudência.pt:
“- da aplicação analógica do regime de diferimento da desocupação previsto no art.º 864.º do C.P.C.
Vêm os Recorrentes pretender que deve considerar-se aplicável ao caso em presença o regime do diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação previsto no art.º 864.º do C.P.C., não obstante não se estar perante um imóvel arrendado, em razão das semelhanças do caso com a situação contemplada nesta norma, o que justifica a sua aplicação analógica.
A decisão recorrida entendeu que a situação dos autos não se integra na previsão do art.º 864.º do C.P.C. que também não é aplicável analogicamente, por estar abrangida por um regime próprio previsto nos art.º 861.º e 863.º do C.P.C.
Vejamos então o regime legal do instituto que os Executados pretendem aplicável ao caso.
O incidente de diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação, tem lugar no âmbito da acção executiva, vindo o seu regime previsto no art.º 864.º ss. do C.P.C.
Estabelece este art.º 864.º com a epígrafe “Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação”, no seu n.º 1: “No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo para a oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar até ao limite de três.”
É desta forma concedida ao arrendatário a faculdade de, no âmbito do procedimento executivo de entrega do imóvel arrendado para a sua habitação, solicitar o diferimento da desocupação do arrendado, por razões sociais imperiosas.
Estas razões sociais imperiosas estão densificadas no n.º 2 do art.º 864.º e contemplam a situação de carência de meios do arrendatário, presumindo-a quanto a beneficiários do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção (al. b)) e a circunstância de se tratar de arrendatário com deficiência com grau de incapacidade comprovada igual ou superior a 60% (al.c)). Em qualquer caso, o diferimento de desocupação do imóvel arrendado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa fé, a circunstância do arrendatário não poder dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas.
Por seu turno, o art.º 865.º n.º 4 do C.P.C. estabelece que o diferimento da desocupação não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado que o concede.
Constata-se assim, que o legislador veio consagrar um apoio, que é transitório, por razões sociais imperiosas que identifica, ao Executado arrendatário que se apresenta com carência de meios económicos ou financeiros para suportar o pagamento da renda de um imóvel para habitação, estabelecendo em cinco meses, o prazo máximo para o diferimento da desocupação.
Tal como nos dizem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, in. A Acção Executiva Anotada e Comentada, pág. 581, em comentário a este art.º 864.º do C.P.C.: “Reflete aqui o legislador uma preocupação de harmonização prática dos dois direitos conflituantes em jogo: o interesse do executado em retardar a entrega do imóvel em causa e o interesse do senhorio em não ficar economicamente prejudicado com esse diferimento, tando mais que já dispõe de título que lhe concede a via para a entrega efectiva do imóvel.”
Na situação em presença é pacífico, e os Recorrentes também não o defendem, que o art.º 864.º do C.P.C. não contempla a situação em causa nos autos, uma vez que não estamos perante a entrega de um imóvel arrendado para habitação dos Executados.
A questão que se coloca é antes a de saber se este regime pode ser aplicado analogicamente à entrega de um qualquer imóvel para habitação – não arrendado, desde que se verifiquem as mesmas razões de carência económica e social previstas naquela norma.

É o art.º 10.º do C.Civil que se refere às integrações de lacunas da lei, dispondo o seguinte:
“1.Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.
2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas de regulamentação do caso previsto na lei.
3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.”

Por seu turno o art.º 11.º do C.Civil vem proibir a aplicação analógica das normas excepcionais.
O recurso à analogia como forma de integração das lacunas da lei, encontra o seu fundamento na circunstância de se considerar que o legislador não regulou um determinado caso, que ficou à margem da lei, quando regulou outros, sendo as mesmas as razões que justificam essa regulação.
Dizem-nos Pires de Lima e Antunes Varela, in. Noções Fundamentais de Direito Civil, pág. 176: “Por mais esclarecido, diligente e hábil que seja, o legislador nunca consegue regular directamente todas as relações da vida social merecedoras de tutela jurídica. Para lá das situações directamente disciplinadas, há sempre outras não regulamentadas e que todavia bem merecem protecção do direito.”
Os casos que justificam a aplicação analógica não são todos aqueles que não são regulamentadas, já que o legislador pode conscientemente optar por não regular ou regular de um modo diferente situações que não sendo iguais apresentam algumas semelhanças. Tal como nos diz o Parecer n.º 70/99 da PGR de 27/01/2000, in. DR de 18/05/2000, 2ª série. “Há casos em que a inexistência de regulamentação corresponde a um propósito deliberado do legislador ou da lei e então a mesma não constitui uma deficiência que o intérprete esteja autorizado a superar. (…) Uma lacuna de lege ferenda apenas pode motivar o poder legislativo a uma reforma do direito, mas não o intérprete ao preenchimento da dita lacuna.”
No âmbito do processo executivo, o legislador prevê nos art.º 864.º e 865.º do C.P.C., como já se viu, um regime próprio de protecção do arrendatário, consagrando as situações em que pode haver diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação.
Contudo, o legislador prevê também situações em que, excepcionalmente pode haver lugar à suspensão da entrega do imóvel que constitui a casa de habitação do executado, mesmo que este não seja arrendatário, o que vem a traduzir-se igualmente num deferimento da desocupação do imóvel, por razões de sociais, como decorre do art.º 861.º n.º 6 que também remete para a previsão do 863.º n.º 3 a 5 do C.P.C.
O art.º 861.º do C.P.C. que se refere à entrega da coisa, estabelece no seu n.º 6: “Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.”
Por seu turno, a aplicação do art.º 863.º do C.P.C. que respeita à suspensão da execução, e de acordo com o estabelecido nos mencionados nos n.º 3 e 5 vai determinar a possibilidade de suspensão da execução quando esteja em causa a entrega de imóvel que constitua a habitação principal do executado quando a diligência de entrega põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda, comprovada por atestado médico.
Estas normas consagram a protecção que o legislador optou por conceder ao executado que tenha de entregar o imóvel onde habita, que no caso de doença grave que possa pôr em risco a sua vida vê suspensas as diligências de entrega do imóvel e caso tenha sérias dificuldades no seu realojamento, designadamente por questões económicas, vê o agente de execução com antecedência comunicar o facto às entidades assistências competentes, para que possam providenciar por uma solução.
Não obstante o legislador tenha distinguido a protecção a conferir ao executado nos casos do imóvel que constitui a sua habitação ser arrendado ou não, não podemos falar de uma qualquer lacuna da lei, uma vez que em ambos os casos foi estabelecida uma regulamentação da protecção do executado que tem de entregar o imóvel onde reside, fundamentada em razões sociais, ainda que em moldes diferentes.
Sobre esta mesma questão, ainda que com referência ao anterior Código de Processo Civil que consagrava a este respeito um regime idêntico, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/03/2016 no proc. 217/09.2TBMBR-B.P1.S1 in. www.dgsi.pt que de forma clara e sintética nos diz o seguinte: “Em face do disposto no artigo 930º-A do Código de Processo Civil, verifica-se que o legislador fez uma distinção quanto uso de imóveis a entregar em execução: imóveis arrendados e imoveis não arrendados. Para os primeiros, reservou as disposições constantes dos artigos 930º/B a 930º/E do mesmo diploma, ou seja, os casos em que se prevê a suspensão da execução e o diferimento da desocupação do imóvel. Para os segundos, reservou apenas os casos de suspensão execução – cfr. nº6 do artigo 930º e, por remissão, os nºs 3 a 6 do artigo 930º/ ainda do mesmo Código de Processo Civil. Temos, pois, que não há aqui qualquer lacuna da lei que permita uma interpretação analógica no sentido de o regime pensado para os imoveis arrendados se aplicar também aos não arrendados. E não há porque, como se referiu, o legislador pensou nas duas situações e estabeleceu um regime diferente para cada uma delas. Concluímos, pois, que em relação a imóveis não arrendados - como o em causa no caso concreto em apreço - não é admissível o deferimento da desocupação, pelo que a executada recorrente nunca podia requerer esse diferimento.”
É certo que o direito à habitação vem previsto no art.º 65.º da CRP, tal como alega o Recorrente, mas o direito à propriedade privada também tem consagração constitucional no art.º 62.º da CRP e só pode ser limitado nos casos previstos na lei.
Não compete aos privados mas sim ao Estado diligenciar para a concretização do direito à habitação de cada um, daí precisamente a previsão do art.º 861.º n.º 6 do C.P.C. aplicável ao caso, que determina que o agente de execução comunique antecipadamente às entidades assistenciais competentes e à câmara municipal a situação do executado que tenha sérias dificuldades de realojamento.
Em conclusão, não estamos perante um qualquer caso omisso na lei que determine a integração de uma lacuna por analogia, faltando desde logo o primeiro pressuposto do art.º 10.º n.º 1 do C.Civil que a possibilita.
Poderia pôr-se ainda a questão de saber se é possível recorrer à interpretação extensiva das normas que regulam o instituto do diferimento da desocupação do imóvel arrendado, considerando-o aplicável mesmo quando está em causa um imóvel não arrendado. A nosso ver a resposta tem também de ser negativa, já que não é evidente considerar que o legislador neste caso disse menos do que queria dizer, na protecção que igualmente conferiu ao executado não arrendatário que tem de entregar o imóvel onde habita, antes resultando do confronto dos dois regimes que quis dizer diferente.
A este respeito e pela sua clareza, importa atentar no que refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/09/2017 no proc. 3481/10.0TBVNG-A.P1 in. www.dgsi.pt que toma posição com a qual nos identificamos: “Pode questionar-se se a situação em causa não poderá considerar-se coberta pela previsão normativa pelo recurso à interpretação extensiva, sabendo-se que nesta, ao invés da analogia, que pressupõe uma lacuna, o legislador disse menos do que aquilo que pretendia, de modo que por via interpretativa e pela extensão da letra da lei é possível colocar sob a alçada do regime uma situação não expressamente prevista mas cuja inclusão estava na mente do legislador e foi por este querida. Ou seja, será que pela via da interpretação extensiva será possível estender o regime excepcional do diferimento da ocupação do imóvel a um simples detentor? A resposta é, quanto a nós, negativa. Efectivamente, não se descortina que o texto da citada norma tenha atraiçoado o pensamento do legislador e que este, ao redigi-las, disse menos do que efectivamente pretendia dizer. Antes pelo contrário, entendemos que o legislador disse, de forma precisa, o que queria dizer, daí resultando que só o arrendatário habitacional e o insolvente poderá lançar mão do incidente de diferimento da desocupação do imóvel. Não há assim norma que, perante os poderes do proprietário, acautele a posição do possuidor ou detentor sem título, mesmo que se trate de pessoa a atravessar fase de grandes dificuldades económicas. Importa sopesar que o fundamento da tutela legal conferida e consequente limitação do direito de propriedade do senhorio ou adquirente no processo de insolvência é apenas o prolongamento (a curto prazo) de um direito anteriormente reconhecido em face da boa-fé do respectivo titular e das suas necessidades bem como das pessoas que vivem consigo, sendo pois, esse o significado da referência à boa-fé constante do n.º 2 do artigo 864.º do CPCivil. Ou seja, dada a boa-fé, a legítima confiança na produção dos efeitos desse direito anterior por parte do arrendatário ou do insolvente (alicerçada no seu direito contratual de gozo ou de propriedade, respectivamente), designadamente quanto à expectativa de ocupação e habitação no imóvel a entregar, e daí que o legislador tenha querido proteger esses anteriores titulares relativamente a uma perda súbita do seu direito, em determinadas circunstâncias. Faculta-lhes mais algum tempo para que possam suprir a perda do direito à habitação no prédio que legitimamente e de boa-fé ocupavam.”
Isto mesmo vem sendo decidido sem divergência pelos tribunais superiores, solução acolhida nos acórdãos do STJ de 17.03.2016, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.11.2011, os quais, embora prolatados ao abrigo do CPC cessante, mantêm plena atualidade, uma vez que as soluções consagradas são idênticas no velho e no novo código; e já ao abrigo do novo CPC, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.07.2018, da Relação de Évora de 11.07.2019, de 14.01.2021 e de 23.04.2024, da Relação do Porto de 18/12/2018 e de 05.02.2024 e da Relação de Guimarães de 08.02.2018 e de 21.03.2019, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Conclui-se pois que, o instituto do diferimento da desocupação do imóvel arrendado previsto nos art.º 864.º e 865.º do CPC não tem aplicação no caso concreto, por não haver lugar à aplicação analógica de tais normas, nem tão pouco à sua interpretação extensiva, improcedendo esta linha recursória.
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2. Entende também o apelante que, no confronto do por si alegado e do alegado pelo embargado, a gravidade da sua doença era um facto essencial controvertido, que deveria por si ser provado e que o Tribunal ao decidir como decidiu, não permitiu ao apelante fazer tal prova.
Dispõe o 863º n.º 3 do CPC, que:
“Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.”
Vejamos então o que o apelante alegou no seu requerimento de diferimento da desocupação:
“Diferimento da desocupação:
Caso assim não se entenda e sem prescindir,
3. O embargante vem requerer diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas.
4. Na realidade, o embargante encontra-se numa situação muito vulnerável, considerando que tem uma saúde muito débil e não dispõe de uma alternativa habitacional, encontrando-se desempregado.
5. A desocupação imediata do locado causa ao executado um prejuízo muito superior à vantagem conferida ao exequente.
6. O diferimento ora requerido, não afeta o direito fundamental à habitação da exequente, na medida em que esta não carece da habitação para sua residência e confere ao executado a oportunidade de encontrar uma nova habitação e refazer a sua vida, sem o risco máxime de cair na desgraça.
7. Deste modo, o imóvel cuja entrega é pedida na execução não pode concretizar-se enquanto não for realizada uma análise minuciosa da situação do embargado.
8. Não tendo sido feito, a embargada violou o direito fundamental à habitação do embargante,
9. E, por conseguinte, não deu cumprimento ao artigo 11.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que vigora na ordem jurídica portuguesa desde 31/10/1978, por força do princípio do primado ínsito no artigo 8.º da CRP.
Lido o que acabou de se transcrever, o que se verifica é que o ora apelante, em momento algum, alegou que sofresse de doença aguda e que a imediata evacuação pusesse em risco a sua vida.
Donde, não poder vir pretender fazer prova de factos essenciais, por si não alegados.
Improcede, também este fundamento de recurso.
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3. Finalmente, entende o apelante que ainda que seja defensável que o executado não alegou que padece de doença aguda, tendo apenas alegado que padece de doença, e que não alegou que a desocupação pusesse em risco sério a sua vida, sempre o Tribunal recorrido deveria ter convidado o recorrente a aperfeiçoar o seu articulado, por considerar o mesmo deficitário, imperfeito, incompleto ou pouco claro.
É hoje consensual que face ao que se dispõe no artigo 590.º, n.os 2, al. b), e 4 do CPC, o poder do juiz de convidar as partes a aperfeiçoar os seus articulados quando estes revelem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada não é um poder discricionário, mas antes um poder-dever e cujo não cumprimento leva ao cometimento de nulidade processual.
No entanto, o despacho de aperfeiçoamento não pode ser usado para além dos limites que a lei para ele traça, estando manifestamente fora do seu âmbito providenciar por alterações que radicam numa pretensão diversa ou ampliada da deduzida pela parte ativa na petição inicial (ou pela parte contrária no pedido reconvencional).
Ou seja, este novo articulado não pode conter «uma nova fisionomia factual» que implique uma «alteração substancial dos factos inicialmente apresentados e deficientemente expostos ou concretizados» (J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto (Pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto), Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 3409).
Ora, no caso dos autos, não está alegada a doença aguda, nem está alegado que a desocupação pusesse em risco sério a vida do apelante.
E a não alegação é uma situação processual distinta da alegação deficiente ou imprecisa, única que justifica o aperfeiçoamento.
É que, o despacho de aperfeiçoamento deve conter-se no âmbito da causa de pedir invocada, sendo inadmissível a sua utilização para induzir a parte a suscitar uma nova ou distinta causa de pedir (cfr. Ac. da Relação do Porto de 21.03.2022, in jurisprudência.pt).
Nesta medida, e sob a capa do convite ao aperfeiçoamento, não pode apelante pretender que lhe seja permitido alegar novos factos essenciais, para além daqueles que já articulou.
Em conclusão, não procede qualquer dos fundamentos do interposto recurso, razão pela qual a apelação é manifestamente improcedente”.
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No seu requerimento de submissão à conferência, não invocou o reclamante quaisquer fundamentos.
Assim, por a solução encontrada corresponder ao entendimento deste Tribunal Coletivo, mantém-se integralmente o que se afirmou na decisão sumária proferida, onde foram analisadas todas as questões suscitadas pelo apelante.
Improcede pois, a apelação.
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V. Decisão.

Perante o exposto, decide-se julgar a apelação totalmente improcedente, bem como a reclamação apresentada, e em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante, que suportará também as da respetiva reclamação (para a conferência), e cuja taxa de justiça se fixa em 1 (uma) UC (art. 7º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais e respetiva tabela II anexa), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
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Guimarães, 10 de julho de 2025

Fernanda Proença Fernandes
Margarida Pinto Gomes
Luís Miguel Martins