PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
EXAME PESQUISA ÁLCOOL
RECUSA
DESOBEDIÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

Sumário:
I - Interpreta-se o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal) como exigindo uma valoração racional, objectiva e fundamentada dos meios de prova, subordinada às regras da experiência comum e da lógica, vedando juízos arbitrários ou dissociados dos elementos produzidos.
II - Enuncia-se que o princípio in dubio pro reo apenas se aplica em caso de dúvida objectiva, séria e insanável quanto aos factos essenciais ao juízo de condenação, não resultando da mera discordância subjectiva do arguido quanto à apreciação probatória efectuada.
III - Esclarece-se que a recusa consciente e voluntária de realização do teste de pesquisa de álcool no sangue, após ordem legítima e advertência pelas autoridades, integra os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência previsto no artigo 348.º do Código Penal.
IV - Reitera-se que o ónus de impugnação da matéria de facto em recurso, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, exige a identificação concreta dos pontos de facto controvertidos e dos meios de prova relevantes, sob pena de inadmissibilidade da reapreciação fáctica.
V - Afirma-se que não se verifica violação das garantias constitucionais do arguido (artigo 32.º da CRP) quando o processo decorre com pleno respeito pelos direitos de defesa, contraditório e fundamentação das decisões, assegurando o controlo jurisdicional efectivo.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1.1. Nos presentes autos de processo sumário que correram termos no Juízo Local de Pequena Criminalidade de Sintra, Comarca de Lisboa Oeste, o arguido AA foi condenado, por sentença proferida em 10 de Fevereiro de 2025, pela prática, em ... de ... de 2024, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, condicionada ao pagamento de €1.500,00 ao ..., bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 14 meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
*
1.2. Inconformado com a decisão proferida o arguido recorreu formulando no termo da motivação as seguintes conclusões: (transcrição)
(…)
1. O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferido nos presentes autos que condenou o Arguido/Recorrente.
2. Da prova produzida não se pode concluir que o arguido tenha praticado os factos pelos quais vem acusado.
3. Inexiste prova directa e objectiva, quer testemunhal, ou documental que validem a acusação, e levem à condenação do Arguido. Pelo contrario a prova existente nos autos, o depoimento do Arguido, bem como prova junta, levam a absolvição do Arguido.
4. Consagra o Art.º 32 da Constituição da República Portuguesa que a prova é nula, uma vez que a sua aquisição tratamento e posterior utilização constitui uma evidente violação da dignidade e privacidade dos direitos liberdades e garantias da pessoa, no caso concreto do Arguido.
5. Inexiste prova directa e objectiva, quer testemunhal e documental que validem a acusação, e levem à condenação do Arguido. O Arguido apresentou a sua justificação para a não realização do teste de Alcoolimetro, porquanto o Arguido ciente de que não tinha álcool no sangue, ainda que tivesse bebido um jarro pequeno de vinho com o primo, durante a refeição, tal se retira das suas declarações;
6. Solicitou a realização das analises ao sangue para confirmação, de que não tinha álcool no sangue, sem que o tenha logrado.
7. Pois em momento algum da sua detenção, foi conduzido ao Hospital para realização das analises.
8. O Arguido não entendeu, porque não lhe foi explicado, o porque da não realização das analises ao sangue, por si pedidas, e a não condução ao Hospital para realização das analises.
9. No seu depoimento credível, isento e seguro, é notória a sua surpresa, uma vez que foi algemado, conduzido ao Posto policial e libertado, sem ter sido levado ao Hospital para realização das analises ao sangue, por si solicitadas, para atestar a verdade do seu depoimento.
10. Que essas sim, com toda a certeza e sem qualquer margem de duvida atestariam, a inocência do Arguido, que de facto não tinha qualquer quantidade de álcool no sangue, que o impossibilitasse de conduzir.
11. O Arguido tendo apresentado documento comprovativo do seu estado de saúde em relação a ter sido vitima do Covid 19, documento este que está junto aos autos, bem como se propôs a fazer o exame ao sangue, não tendo contudo logrado a sua pretensão.
12. Do documento, junto pelo Arguido, o mesmo atesta, que o Arguido deu entrada no ..., e foi diagnosticado com Problemas respiratórios e Olfacto por ter apanhado Covid, e que lhe causou falta de Ar, tal como o Arguido declarou no seu depoimento.
Motivo pelo qual, não consegue realizar o teste Alcoolimetro.
13. Persiste a duvida insanável de que o Arguido tenha praticado os factos pelos quais vem acusado, assim e na duvida, esta deverá ser a favor do Arguido e ser aplicado o Principio do In dúbio Pro Reo, o tribunal deve ponderar á luz das regras da experiencia comum e da livre convicção do julgador, de análise critica e conjugada ao conjunto da prova produzida.
14. À luz do Principio do In dúbio Pro Reo, garantia constitucional de presunção da inocência enquanto dirigido á apreciação dos factos objecto de um processo penal leva a que em caso de duvida razoável insanável sobre os factos descritos na acusação leve o tribunal a decidir a favor do Arguido.
15. A livre apreciação da prova não se confunde com a apreciação arbitrária da prova pois tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiencia comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
16. Sendo que a convicção do tribunal é formada através dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas trazidas aos autos em função das razões de ciência, das certezas e das concretizações.
17. A verdade em direito é uma convicção prática firmada em dados objectivos que directa ou directamente permitem a formulação de um juízo de facto.
18. Condição necessária mas também suficiente e que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade inculquem a certeza relativa, dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como acusação as descreve.
19. Assim perante todas as dúvidas e incertezas assinaladas, e dos depoimentos das testemunhas em modo automatico no processo, devem ser considerados por não provados.
20. Os antecedentes criminais do Arguido não provam por si só, que o Arguido tenha praticado os factos pelos quais vem acusado.
21. Não pode o Arguido ser condenado com base no seu registo criminal, que apenas tem relevância em termos de reincidência, nem o poderia ser somente com base desde logo pelas necessidades de ressocialização do Arguido.
22. Assim, tendo-se gerado uma dúvida insanável sobre se efectivamente o arguido praticou os factos constantes da acusação, tal dúvida tem de ser resolvida a favor do mesmo, em obediência ao princípio do in dubio pró reu, pelo que tem que ser dados os factos da acusação como não provados.
23. Por tudo o exposto o tribunal a quo deveria ter dado como não provado os factos que deu como provados, para efeitos de condenação do arguido, a ser assim o recorrente teria necessariamente que ser absolvido, ou caso V.Exas, assim não entendam deverá a pena de prisão em que foi condenado ser suspensa na sua execução.
24. Não buscando o tribunal todos os elementos externos que corroborassem uma, ou outra, das aludidas versões no interesse da descoberta da verdade material e da boa decisão da causa.
25. Á cautela e por mero dever de patrocínio sempre se dirá que a douta sentença padece de nulidade por falta de fundamentação, art.º 379, n.º 1 alínea a), Que aqui se arguí com as legais consequências.
26. Assim, tendo-se gerado uma dúvida insanável sobre se efectivamente o Arguido praticou os factos constantes da acusação, tal dúvida tem de ser resolvida a favor do mesmo, em obediência ao princípio do indubio pró reu, pelo que tem que ser dados os factos da acusação como não provados.
27. Por todo o exposto, o tribunal a quo deveria ter dado como não provado os factos que deu como provados, para efeitos de condenação do arguido, a ser assim o recorrente teria necessariamente que ser absolvido, ou caso V.Exas assim não o entendam deverá a sua condenação ser mais leve e abreviada.
28. Dispõe o art.º 26, do CP que “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa á prática do facto, desde que haja execução ou começo da execução”.
29. Ora nos autos, não foi invocado, muito menos demonstrado, que o arguido tenha praticado os factos pelos quais vem acusado, ou outro facto no qual assenta a sua condenação.
30. Pelo exposto é manifesto que o arguido não é autor do crime em que foi condenado, pois não teve qualquer intervenção no ilícito que deu causa ao procedimento criminal por forma a levar à sua condenação.
31. Pelo exposto o tribunal a quo interpretou erradamente o artigo 26º, do Código Penal, na medida em que considerou o arguido autor do crime em que foi condenado.
32. Por outro lado, é manifesta a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão a que alude a al. B) do n.º 2 do art.º 410º, do CPP.
33. O princípio do “in dúbio pro reo” pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como do dolo ou da negligência do seu autor” Cristina Líbano Monteiro “ Perigosidade de inimputáveis e “in dúbio pro reo”, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p.11.
34. Da lista de factos considerados provados não detectamos um único que demonstre o preenchimento dos elementos do crime em que o arguido foi condenado.
35. Aliás, toda a fundamentação da sentença ora objecto do recurso, na realidade não assenta nos factos provados.
36. É antes consequência de uma construção, aparentemente, lógica dedutiva, completamente desfasada e inclusive, contrária á factualidade apurada.
37. Assim, o tribunal a quo decidiu tendo por base factos, que para além de não provados, nem sequer foram alegados, prejudicando o silogismo judiciário. É assim, evidente a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
38. Estamos, sem dúvida, perante a violação do princípio do “in dúbio pró reo”, segundo o qual o juiz deve decidir “sobre toda a matéria que não se veja afectada pela dúvida”, de forma, “quanto aos factos duvidosos, o princípio da livre convicção não fornece, não pode fornecer qualquer critério decisório”, Cristina Líbano Monteiro “Perigosidade de inimputáveis...”, p.54.
39. É ainda, de destacar que a condenação em apreço parte, erroneamente, do pressuposto de que o arguido se recusou a realizar o teste, quando tal não sucedeu, apenas solicitou a realização de analises ao sangue, pela sua condição física de saúde, que não lhe permite a realização do teste de alcoolimetro. Ora, sem descurar o que referimos nos capítulos anteriores, sempre diremos que tal acusação não assenta em qualquer facto provado, alegado ou suscitado nos autos.
40. O invocado princípio é, duplamente, atingido, porquanto e no seguimento da sua consolidação jurídico-normativa, a doutrina entende que “O Universo fáctico-de acordo com o “pro reo”- passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: dos factos favoráveis ao arguido e o dos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige a certeza”, Cristina Líbano Monteiro “Perigosidade de inimputáveis...”, p.54.
41. Em suma, nos presentes autos não só ficou cabalmente provado que o arguido não praticou o crime em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o arguido vem acusado e quanto à culpa deste, pelo que “ a sua absolvição aparece como única atitude legítima a adoptar”.
Alexandre Varella in “Considerações acerca da presunção da inocência em direito processual penal”, Coimbra Editora, 2000, p.121.
42. Pelo exposto o tribunal a quo violou, ainda o disposto no n.º2, do artigo 32 da Constituição da república Portuguesa.
43. O artigo 127º do CPP, dispõe que “ Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. A propósito desse princípio da livre apreciação da prova, refere o Prof. Figueiredo Dias que “ o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida”. E acrescenta que tal discricionariedade tem limites inultrapassáveis: “a liberdade de apreciação da prove é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutivel a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo”. E continua: “ a “livre” ou “íntima” convicção do Juiz, não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável”.
44. Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E “se a verdade que se procura é uma verdade prático - jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros”.
45. E conclui: “Uma tal convicção existirá quando e só quando …. O tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”, isto é, “quando o tribunal … tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse” – Direito Proc. Penal, 1º Volume, pág 203/205.
46. A livre apreciação da prova comporta duas vertentes:
a)Por um lado, o juiz decide segundo a sua íntima convicção, em face do rol de provas apresentadas no processo, em especial na audiência de julgamento, quer arroladas pela acusação, quer pala defesa, quer as que o tribunal decide oficiosamente conhecer.
b)Por outro lado, essa convicção deve ser objectivamente formada com apoio em regras técnicas e de experiência, sem sujeição a cânones préestabelecidos.
47.O princípio da livre apreciação da prova significa quer a ausência de critérios legais pré-determinados do valor a atribuir às provas, quer a análise da prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração da sua convicção pessoal, recondutivel a critérios, susceptíveis de motivação e controlo.
48. As regras da experiência são juízos hipotéticos de conteúdo genérico assentes na experiência comum, independentes dos casos em que se alicerçam, mas para lá dos quais tem validade.
49. A livre convicção é um meio de descoberta da verdade, e, assim uma conclusão livre apenas subordinada à razão e à lógica.
50. Contudo, é certo que a livre apreciação de provas (principio que enforma o processo penal, salvaguardadas as excepções legais) não se pode com apreciação arbitrária de provas.
51. Do que se trata é de uma apreciação que, liberta de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, dessa forma determinando uma convicção racional, objectivável e motivável.
52.Face à prova realizada em audiência de julgamento, a total ausência de qualquer prova testemunhal no sentido vertido na acusação, a valoração deturpada dos depoimentos, é convencimento do Arguido/Recorrente que o tribunal a quo fez uma incorrecta aplicação do princípio consignado no art.º 127º do CPP, isto é, que apreciou mal a prova.
53.O Tribunal recorrido formou a sua convicção com base em presunções que violam o princípio da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum, principio este que não pode ser discricionário, pois tem limites que não podem ser tacitamente ultrapassados, constituindo apenas uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a verdade material.
54. Assim se corrigindo a matéria de facto dada como provada, numa apreciação lógica e coerente do que foi produzido em audiência e segundo as regras da livre apreciação e prova, alicerçadas nas regras da experiência, pois o princípio da livre apreciação e prova, nunca será o livre arbítrio, como ensinava o Insigne Professor Doutor Castanheira Neves.
55. Ou a prova é apreciada segundo um processo lógico, dedutivo e racional que encontra espelho conforme a realidade demonstrável, ou, assim não acontecendo, como, a nosso ver resulta do próprio texto da decisão ora posta em crise, estaremos perante um processo de procura da verdade ontológica, ilogicamente demonstrada, sem suporte com o que realmente se pode formalmente demonstrar como tendo sucedido, logo, se assim for, como sucedeu, o processo de apreciação de prova fica fatalmente inquinado pela contradição e erro na apreciação e, em fase do erro, manifesta contradição entre a fundamentação e a motivação.
56. À cautela e por mero dever de patrocínio sempre se dirá que a douta sentença padece de nulidade por falta de fundamentação, art.º 379, n.º 1 alínea a), Que aqui se arguí com as legais consequências.
57.Devendo o Recorrente ser absolvido, ou caso V.Exas, assim não entendam deverá a sua condenação ser mais leve e curta.
58. Em suma, nos presentes autos não só ficou cabalmente provado que o Arguido não praticou o crime em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o Arguido vinha acusado e quanto á culpa deste, pelo que deve ser absolvido do crime em que foi condenado, ou caso V.Exas assim não entendam deverá a sua condenação ser mais leve e curta..
(…)
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1.4. O Ministério Público respondeu ao recurso, pronunciando-se pela sua improcedência e manutenção da decisão recorrida.
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1.5. Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmº. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido, sufragando integralmente a resposta da primeira instância.
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1.6. Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal e não foi apresentada qualquer resposta.
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1.7. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir são:
a. erro de julgamento;
b. violação do princípio in dubio pro reo;
c. Violação do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP);
d. Erro na aplicação do direito penal substantivo (artigos 26.º e 348.º do Código Penal);
e. Violação dos direitos e garantias constitucionais do arguido (artigo 32.º da CRP).
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2.2. Da sentença recorrida, de acordo com o que resulta da acusação e da transcrição
1. No dia ........2024, pelas 02h40, o arguido AA conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-NP-.., na ..., em ..., e foi sujeito a uma ação de fiscalização rodoviária aleatória.
2. O arguido foi assim abordado por uma patrulha da PSP, encontrando-se os Srs. Agentes devidamente uniformizados e no exercício da sua atividade profissional, os quais solicitaram ao arguido que realizasse o teste de despistagem de álcool no sangue, de resultado qualitativo, tendo o arguido negado submeter-se a tal teste.
3. Ao ser questionado, o arguido afirmou ter consumido bebidas de teor alcoólico, pelo que os Srs. Agentes solicitaram novamente ao arguido que realizasse o teste de despistagem de álcool no sangue, de resultado qualitativo, o que este recusou novamente efetuar.
4. Em face da postura do arguido, os Srs. Agentes da PSP questionaram o mesmo sobre a existência de algum impedimento de origem orgânica ou fisiológica para a realização do teste de despistagem de álcool no sangue, ao que respondeu negativamente, afirmando ser uma pessoa saudável.
5.Nesta senda, foi o arguido informado pelos Srs. Agentes da PSP que caso não efectuasse o teste de despistagem de álcool no sangue, incorria na prática do crime de desobediência, tendo o arguido persistido na recusa, negando em submeter-se ao teste de pesquisa de álcool no sangue.
5. O arguido manteve, assim, o seu propósito em não se submeter à realização do teste de pesquisa de álcool no sangue.
6. Sabia o arguido que a ordem de submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue era legal, provinha de autoridade competente e que, tendo-lhe sido regulamente comunicada e tendo o mesmo compreendido o teor da mesma devia acatá-la, sob pena de cometer uma infracção penal.
7. Com efeito, o arguido quis, propositadamente, deixar de se submeter ao teste de pesquisa de álcool no sangue, bem sabendo que, desse modo, se furtava a que o mesmo emitisse um resultado válido, o que logrou, recusando a sua submissão ao exame de detecção de álcool no sangue, quer pelo método de ar expirado, quer pelo método de recolha de sangue, apesar de se encontrar legalmente obrigado a tal.
8. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
9. O arguido reside com três filhos, dois netos e a esposa, em habitação arrendada no valor mensal de 755 euros.
10. A esposa do arguido encontra-se frequentemente em ... por razões profissionais.
11. O arguido está casado há 35 anos.
12. Desde 2020, o arguido exerce funções na empresa ..., na área da ....
13. Concluiu o 12.º ano de escolaridade em ....
14. O arguido aufere o rendimento mensal de cerca de 2.200 dólares.
15. Em ... de ... de 2021, o arguido foi assistido no ..., em ..., com diagnóstico de distúrbios pulmonares e das vias respiratórias, relacionados com sequelas de ....
16. Foi-lhe recomendado que evitasse esforços físicos significativos.
O arguido possui antecedentes criminais, nomeadamente:
1. Processo n.º 724/07.1PFLRS – Tribunal de Loures
Crime: Condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal); Data da prática: ...-...-2007; Data da condenação:09-04-2007; Pena: 85 dias de multa à taxa diária de €5,50 (€467,50 total); pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 7 meses e 15 dias.
2. Processo n.º 1441/07.8JDLSB – Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste (...); Crimes: 53 crimes de falsificação de documentos (artigo 256.º, n.º 1 e 3 do Código Penal); 28 crimes de burla qualificada (artigo 218.º do Código Penal); 26 crimes de burla qualificada tentada (artigos 218.º, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal); 4 crimes de violação de correspondência (artigo 194.º do Código Penal); 8 crimes de falsificação de documentos de identificação (artigo 256.º do Código Penal); 1 crime de burla qualificada tentada (artigo 218.º do Código Penal); 2 crimes de burla qualificada (artigo 218.º do Código Penal); Data da prática: ...-...-2007; Data da condenação: 17-06-2010; Pena:11 anos e 6 meses de prisão efectiva.
3. Processo n.º 6533/07.0TDLSB – Tribunal de Lisboa (6.ª Vara Criminal); Crimes:1 crime de burla qualificada (artigo 218.º do Código Penal); 1 crime de falsificação de documento (artigo 256.º do Código Penal); Data da prática: ... (data exacta não especificada); Data da condenação: 25-01-2013; Pena: 5 anos de prisão, suspensa na execução, com regime de prova.
4. Processo n.º 5059/12.5T3SNT – Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco; Crime: Falsificação de documentos (artigo 256.º, n.º 1, al. b), d) e e) e n.º 3 do Código Penal); Data da prática: ...; Data da condenação: 27-01-2015; Pena: 20 meses de prisão efectiva.
5. Processo de Cúmulo Jurídico n.º 5059/12.5T3SNT – Tribunal de Castelo Branco; Crime: Falsificação de documentos (artigo 256.º do Código Penal); Data da prática: ...; Data da condenação: 10-05-2016; Pena: 12 anos de prisão efectiva (cúmulo com penas anteriores).
6. Processo n.º 458/06.4JDLSB – Tribunal de Lisboa (6.ª Vara Criminal);Crimes: 1 crime de falsificação de documentos (artigo 256.º do Código Penal); 1 crime de auxílio à imigração ilegal (artigo 183.º da Lei n.º 23/...); 1 crime de receptação (artigo 231.º do Código Penal); 1 crime de contrafacção de selos, cunhos, marcas ou chancelas (artigo 269.º do Código Penal); Data da prática: ...-...-2006;Data da condenação:26-06-2015; Pena: 4 anos e 9 meses de prisão, suspensa na execução, com regime de prova.
7. Processo n.º 724/07.1PFLRS – Tribunal de Loures; Crime: Condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal); Data da prática: ...-...-2007; Data da condenação: 09-04-2007; Pena: 85 dias de multa à taxa diária de €5,50 (€467,50 total); Pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 7 meses e 15 dias.
8. Processo n.º 23/19.6PGAMD – Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste (Amadora); Crime: Condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal); Data da prática: 13-01-2019; Data da condenação: Trânsito em julgado em 12-04-2019; Pena: Pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 8 meses.
9. Processo n.º 962/22.7SFLSB – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa; Crime: Condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal); Data da prática: ...-...-2022; Data da condenação: 30-01-2023; Pena: 120 dias de multa à taxa diária de €6,00 (total €720,00); Pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 10 meses.
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MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A fundamentação probatória exposta na sentença assenta nos seguintes elementos:
1. Depoimentos das Testemunhas da Acusação
Os agentes da PSP, designadamente os agentes BB e CC, prestaram depoimentos considerados credíveis, coerentes e compatíveis entre si.
Confirmaram que o arguido compreendia a ordem legítima que lhe foi dirigida.
Afirmaram que o arguido foi questionado sobre eventuais problemas de saúde, tendo ele respondido que não apresentava qualquer impedimento, mas recusou-se, mesmo assim, a efectuar o teste de ar expirado.
Referiram ainda que o arguido emanava cheiro a álcool, indiciando o consumo prévio de bebidas alcoólicas.
2. Declarações do Arguido
O arguido declarou ter problemas respiratórios associados a sequelas de ..., o que alegadamente o impediria de realizar o teste de ar expirado.
Alegou que solicitou a realização de análises ao sangue, o que não foi autorizado pelos agentes.
O tribunal, contudo, desvalorizou estas declarações, considerando-as contraditórias, nomeadamente face ao facto de o arguido ter realizado testes de alcoolemia em 2022, em circunstâncias idênticas, como resulta do processo n.º 962/22.7SFLSB.
O arguido declarou ter problemas respiratórios associados a sequelas de ..., o que alegadamente o impediria de realizar o teste de ar expirado.
Alegou que solicitou a realização de análises ao sangue, o que não foi autorizado pelos agentes.
O tribunal teve em consideração o extenso registo criminal do arguido, evidenciando comportamento reincidente e conhecimento prévio dos procedimentos legais associados à fiscalização rodoviária.
Valorou o documento hospitalar apresentado pelo arguido, mas considerou que o mesmo não demonstrava uma incapacidade actual e efectiva para a realização do teste de ar expirado.
O tribunal concluiu, com base nas regras da experiência comum, que:
A versão do arguido é pouco credível, nomeadamente por ser inverosímil que, tendo efectivamente limitações respiratórias impeditivas, o arguido tenha conseguido realizar testes idênticos em 2022;
Não é plausível que os agentes tenham ignorado alegações de problemas de saúde, caso estas tivessem sido efectivamente comunicadas no momento da fiscalização;
O comportamento do arguido revelou conhecimento das consequências da recusa, confirmando a sua consciência da ilicitude.
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2.3. Apreciação do recurso
2.3.1. Erro de julgamento
O erro de julgamento em matéria de facto, designadamente no contexto da apreciação e valoração da prova produzida em audiência de julgamento, constitui uma das problemáticas mais sensíveis e recorrentes no âmbito do direito processual penal português. A sua relevância emerge directamente do equilíbrio fundamental entre os princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente o princípio da verdade material, a presunção de inocência e o direito a um recurso efectivo, previstos respectivamente nos artigos 32.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 374.º, 410.º e 412.º do Código de Processo Penal.
De acordo com a configuração normativa vigente, o tribunal de recurso dispõe de competência delimitada para a reapreciação da matéria de facto, estando legalmente habilitado a sindicar erros de julgamento, entendidos como incorrecta valoração ou apreciação das provas produzidas, nomeadamente nos casos em que se demonstre, de forma objectiva, a existência de erro notório na apreciação da prova, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou contradição insanável entre os factos provados e não provados ou entre a fundamentação e a decisão, conforme decorre do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Contudo, a sindicância pelo tribunal de recurso carece de requisitos formais e materiais estritos, sendo o recurso em matéria de facto sujeito a rigorosas exigências de delimitação, fundamentação e motivação, como se infere do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
No caso sub judice, o arguido AA interpôs recurso da sentença condenatória invocando precisamente a ocorrência de erro de julgamento, traduzido na incorrecta valoração da prova testemunhal e documental, na desvalorização das suas declarações pessoais e na pretensa violação dos princípios do in dubio pro reo e da livre apreciação da prova.
No sistema jurídico-processual penal, a apreciação da prova pelo tribunal de julgamento rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, o qual estipula que "salvo disposição legal em contrário, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente". Tal normativo, longe de significar arbítrio ou discricionariedade ilimitada, implica que a convicção do julgador se deve fundar numa análise racional, objectiva e controlável das provas produzidas em audiência, subordinada aos critérios da lógica, da experiência comum e da racionalidade jurídica.
A livre convicção do juiz não pode ser confundida com uma convicção meramente subjectiva ou intuitiva, devendo antes resultar da valoração objectiva e motivada dos meios de prova legalmente admissíveis, designadamente depoimentos, documentos, perícias e outros elementos carreados para os autos.
É nesta perspectiva que o erro de julgamento em matéria de facto se deve compreender como uma disfunção entre o quadro probatório efectivamente constante dos autos e a decisão sobre a matéria de facto, decorrente de apreciação manifestamente incorrecta, ilógica ou arbitrária da prova produzida. Tal erro pode assumir diversas modalidades, entre as quais se destacam:
O erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP), que ocorre quando o tribunal retira conclusões manifestamente contrárias ou ilógicas face ao conteúdo objectivo da prova;
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP), que se verifica quando subsistem lacunas ou omissões relevantes na decisão, impeditivas da correcta subsunção jurídica;
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ou entre os factos provados e não provados (artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP).
Estes vícios, quando devidamente alegados e demonstrados pelo recorrente, impõem a intervenção do tribunal de recurso, podendo conduzir à revogação ou modificação da decisão recorrida. Contudo, importa sublinhar que o tribunal ad quem não procede, em regra, à reapreciação directa dos depoimentos e demais provas orais, salvo quando o recorrente tenha cumprido o ónus específico de impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, o que exige a indicação exacta dos concretos pontos de facto impugnados, bem como a especificação dos elementos probatórios que impõem decisão diversa.
In casu, o arguido AA invoca a ocorrência de erro de julgamento, imputando ao tribunal a quo a valoração indevida dos depoimentos dos agentes da autoridade e a desvalorização injustificada das suas próprias declarações, alegadamente ancoradas em limitações de saúde que o impediriam de cumprir a ordem legítima emanada pelas autoridades. Esta alegação, contudo, deve ser apreciada à luz dos critérios estritos estabelecidos pelo legislador.
No âmbito do processo penal português, a possibilidade de impugnar a decisão sobre a matéria de facto encontra-se regulada de forma rigorosa e restritiva pelo artigo 412.º do Código de Processo Penal, norma que estabelece os ónus formais e substanciais que vinculam o recorrente à delimitação precisa daquilo que se pretende sindicar em sede de recurso.
De acordo com o n.º 3 do citado artigo 412.º, “quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) os concretos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas.”. E, nos termos do nº 4 do mesmo artigo: “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”.
Estes ónus processuais não são meros formalismos, mas antes instrumentos essenciais para delimitar o objecto do recurso e permitir ao tribunal de segunda instância exercer um controlo eficaz e objectivo sobre a decisão recorrida. Efectivamente só a observância rigorosa dos ónus previstos no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, permite a sindicância da matéria de facto, sob pena de o tribunal de recurso se ver transformado num tribunal de reavaliação global e indiscriminada da prova, contrariamente ao modelo legalmente consagrado.
Por outro lado, a mera discordância do recorrente quanto à forma como o tribunal a quo valorou a prova não basta, por si só, para configurar um erro de julgamento. É imprescindível que o recorrente demonstre, de forma objectiva e com base nos meios de prova legalmente admissíveis, que o tribunal retirou conclusões manifestamente ilógicas, ilidindo as regras da experiência comum ou que desconsiderou elementos probatórios essenciais que impunham decisão diversa.
In casu, constata-se que o arguido AA, nas suas conclusões de recurso, alega genericamente que:
i. O tribunal deu crédito excessivo aos depoimentos dos agentes da autoridade;
ii. As suas próprias declarações, no sentido de alegada limitação física decorrente de problemas respiratórios, não foram devidamente valoradas.
Contudo, do exame da peça recursória, constata-se que o arguido:
i. Não especificou concretamente quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
ii. Não indicou com precisão os concretos meios de prova, ou passagens gravadas, que imporiam decisão diversa;
iii. Não cumpriu integralmente os ónus estabelecidos no artigo 412.º, n.º 3 e 4, do CPP.
Deste modo, formalmente inadmissível a pretendida reapreciação da matéria de facto, pelo que o tribunal ad quem deve, legitimamente, considerar prejudicada a sindicância ampla da valoração da prova, por inobservância dos requisitos previstos no artº. 412º, nºs 3 e 4 do CPP.
Não obstante, ainda que se admitisse, a título meramente subsidiário e para efeitos de exaustividade técnica, a possibilidade de apreciação do alegado erro de julgamento — pese embora o arguido não tenha cumprido integralmente os ónus legais de impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal — importa demonstrar que, mesmo nessa hipótese académica, a pretensão do recorrente seria juridicamente improcedente, por ausência de fundamento material e por conformidade da decisão recorrida com as regras de valoração da prova e os princípios constitucionais aplicáveis.
Vejamos:
O arguido sustenta, em sede recursiva, que:
A sua recusa em realizar o teste de alcoolemia se deveu a limitações físicas decorrentes de sequelas de ...;
i. Tal alegação não foi devidamente valorada pelo tribunal a quo;
ii. Os depoimentos dos agentes da autoridade foram excessivamente credibilizados.
Contudo, da análise objectiva da prova constante dos autos, nomeadamente:
i. Os depoimentos dos agentes da PSP, considerados coerentes, isentos e compatíveis entre si;
ii. As contradições das declarações do arguido, em especial face ao facto de ter realizado testes de alcoolemia em 2022, após alegadamente já sofrer das referidas limitações;
iii. O conteúdo do documento hospitalar apresentado, o qual não atesta de forma inequívoca uma incapacidade actual e impeditiva de realizar o teste;
iv. As regras da experiência comum, que indicam a plausibilidade do arguido ter procurado evitar a realização do teste por receio das consequências legais associadas a eventual estado de embriaguez;
permitem concluir, de forma segura e fundamentada, que o tribunal a quo formou a sua convicção de modo racional, objectivo e em estrita observância das exigências legais.
Nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, o tribunal aprecia livremente a prova, subordinando-se às regras da lógica e da experiência, o que, no caso em apreço, foi devidamente cumprido. Acresce que, o tribunal de julgamento encontra-se numa posição privilegiada para apreciar a prova testemunhal, por beneficiar do contacto directo e imediato com os intervenientes, podendo avaliar aspectos não reconstituíveis em registo, como a postura, a espontaneidade e a coerência global do depoimento.
In casu:
i. Não se detectam erros lógicos ou contradições insanáveis na motivação da sentença;
ii. A decisão assenta em prova testemunhal directa, corroborada por elementos documentais e circunstanciais;
iii. A rejeição da versão do arguido encontra respaldo objectivo nos antecedentes criminais, no historial de consumo de álcool e na inexistência de prova médica conclusiva sobre a alegada incapacidade.
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2.3.2. Violação do princípio in dubio pro reo
O princípio do in dubio pro reo representa uma das pedras angulares do direito processual penal, constituindo garantia fundamental do arguido num Estado de Direito e plasmando a opção constitucional pela relevância da presunção de inocência no âmbito da administração da justiça penal.
Este princípio emerge directamente do disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que consagra, de forma inequívoca, o direito de todo o arguido à presunção de inocência até ao trânsito em julgado de sentença condenatória. Tal garantia tem paralelo no artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e no artigo 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, instrumentos que integram o bloco de constitucionalidade do ordenamento jurídico português.
No plano da dogmática jurídico-processual, o princípio in dubio pro reo configura-se como corolário necessário da presunção de inocência e da exigência de prova plena e segura da culpa do arguido como pressuposto da condenação penal. Traduz-se na imposição, ao tribunal de julgamento, da obrigação de, em caso de subsistência de uma dúvida objectiva, séria e insuperável quanto à verificação dos factos essenciais ao juízo de condenação, decidir a favor do arguido, absolvendo-o ou optando pela qualificação jurídico-penal menos gravosa.
Importa realçar que este princípio não se confunde com uma obrigação de dúvida permanente ou subjectiva do julgador, mas antes com um critério material e racional de valoração da prova, aplicável em circunstâncias de incerteza objectiva e insuperável, resultante da análise crítica e ponderada da totalidade dos elementos probatórios disponíveis.
O princípio do in dubio pro reo manifesta-se em duas dimensões distintas e complementares, que devem ser devidamente diferenciadas na sua aplicação prática e na sua invocação em sede de recurso penal.
A primeira dimensão é material ou substancial, consistindo na imposição, ao tribunal de julgamento, de decidir a favor do arguido sempre que, após a produção e análise da prova, subsistir uma dúvida objectiva, séria e insanável sobre a verificação dos factos essenciais à condenação, nomeadamente quanto à autoria, ao dolo, à verificação dos elementos típicos ou às circunstâncias agravantes. Trata-se de uma vertente que actua directamente no processo de formação da convicção do julgador, funcionando como limite epistemológico à possibilidade de condenação penal.
A segunda dimensão é formal ou processual, traduzindo-se na obrigação do tribunal de, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, explicitar, de forma clara, objectiva e controlável, os elementos que conduziram à formação da sua convicção, permitindo ao tribunal de recurso aferir se subsistiram dúvidas insuperáveis e se o princípio in dubio pro reo foi devidamente respeitado.
Importa salientar que o tribunal não está obrigado a mencionar expressamente o princípio in dubio pro reo na sentença, bastando que da fundamentação se extraia, de forma inequívoca, que a convicção do julgador se formou de modo racional, seguro e em conformidade com as regras da experiência comum e os elementos de prova produzidos.
In casu, o arguido AA invoca a violação do princípio in dubio pro reo, alegando que:
i. Subsistiriam dúvidas quanto à sua capacidade física para realizar o teste de alcoolemia, em virtude de problemas respiratórios;
ii. As suas declarações, nesse sentido, não foram devidamente valorizadas;
iii. A decisão de condenação foi proferida em estado de incerteza quanto à verificação dos elementos típicos do crime de desobediência.
Contudo, como resulta da leitura da sentença recorrida, o tribunal:
i. Fundamentou de forma clara a sua convicção, com base em prova testemunhal directa, designadamente os depoimentos dos agentes da autoridade;
ii. Valorou o documento hospitalar apresentado, mas considerou-o insuficiente para demonstrar incapacidade actual impeditiva;
iii. Desvalorizou, de forma motivada, as declarações do arguido, face às contradições internas e aos antecedentes criminais, incluindo condenações anteriores por condução em estado de embriaguez, que demonstram capacidade efectiva para realizar testes idênticos após a alegada condição respiratória.
Da fundamentação da sentença não resulta qualquer dúvida insuperável ou objectiva que impusesse a aplicação do princípio in dubio pro reo, inexistindo violação formal ou material deste princípio.
Neste contexto, a invocação do princípio in dubio pro reo pelo arguido assume natureza meramente retórica, não estando suportada em elementos concretos que demonstrem a sua efectiva violação.
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2.3.3. Violação do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP)
O princípio da livre apreciação da prova, consagrado expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal, constitui um dos pilares fundamentais do modelo de processo penal de estrutura acusatória e garante do contraditório, em vigor no ordenamento jurídico. Tal princípio estabelece que, salvo disposição legal em contrário, "a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente", consagrando, assim, a prerrogativa atribuída ao tribunal de julgamento para formar a sua convicção com base numa análise racional, objectiva e global dos elementos probatórios produzidos em audiência.
A génese e a ratio deste princípio residem na necessidade de assegurar ao julgador a possibilidade de valorar a prova em conformidade com critérios de bom senso, lógica e experiência comum.
Contudo, a liberdade de apreciação da prova atribuída ao tribunal não é absoluta nem arbitrária. Antes pelo contrário, a mesma está subordinada:
i. Às regras da experiência comum e da lógica jurídica;
ii. À obrigatoriedade de motivação da decisão, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal;
iii. À sindicância pelo tribunal de recurso, designadamente quanto à existência de erro notório na apreciação da prova, insuficiência ou contradição insanável, conforme o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Deste modo, a livre apreciação da prova coexiste com a exigência de fundamentação racional, objectiva e controlável da convicção do tribunal, sendo vedadas decisões baseadas em critérios subjectivos, preconceituosos ou dissociados dos elementos probatórios concretamente produzidos.
Em termos gerais, os tribunais de julgamento gozam de um poder discricionário de valoração da prova, subordinado, contudo, a padrões de racionalidade, objectividade e respeito pelas regras da lógica e da experiência comum. Tal liberdade de apreciação não pode ser confundida com arbitrariedade ou juízo meramente subjectivo dissociado da prova concretamente produzida.
A violação do princípio da livre apreciação da prova configura-se, assim, em situações de:
i. Arbitrária rejeição ou valoração de prova produzida;
ii. Inexistência de motivação ou motivação meramente aparente;
iii. Apreciação dissociada das regras da lógica e da experiência comum;
iv. Ignorância de prova essencial, produzida legalmente e não controvertida;
v. Substituição da convicção racional do julgador por juízos intuitivos ou preconceituosos.
In casu, o arguido AA invoca a violação do princípio da livre apreciação da prova, sustentando que o tribunal a quo:
i. Valorizou de forma excessiva e acrítica os depoimentos dos agentes da autoridade;
ii. Desvalorizou injustificadamente as suas declarações, nomeadamente quanto às alegadas limitações físicas;
iii. Ignorou elementos probatórios relevantes, designadamente o documento clínico apresentado.
Contudo, a sentença recorrida demonstra que o tribunal a quo exerceu de forma conforme o poder de livre apreciação da prova, respeitando os critérios legais, pelas seguintes razões:
Em primeiro lugar, os depoimentos dos agentes da PSP foram considerados credíveis, consistentes e compatíveis entre si, tendo os mesmos:
i. Confirmado que o arguido compreendia a ordem legítima que lhe foi dirigida;
ii. Esclarecido que questionaram o arguido sobre eventuais problemas de saúde, tendo ele afirmado que não apresentava qualquer impedimento;
iii. Descrito que o arguido, de forma consciente e voluntária, recusou-se a realizar o teste de alcoolemia.
O tribunal valorou estes depoimentos com recurso às regras da lógica e da experiência comum, considerando a função de fiscalização rodoviária dos agentes e a sua isenção enquanto testemunhas.
Em segundo lugar, as declarações do arguido foram objecto de apreciação crítica e fundamentada, tendo o tribunal:
i. Concluído pela existência de contradições nas declarações do arguido, nomeadamente face ao facto, judicialmente provado, de ter realizado testes de alcoolemia em 2022 (processo n.º 962/22.7SFLSB), após a alegada limitação respiratória;
ii. Considerado o historial de condenações do arguido por crimes de condução em estado de embriaguez, designadamente os processos nºs 724/07.1PFLRS e 23/19.6PGAMD, como elementos que evidenciam o seu conhecimento das consequências legais da recusa em realizar o teste e a possibilidade de tentar evitar tal controlo;
iii. Apreciado o documento clínico apresentado, concluindo, de forma logicamente fundada, que o mesmo não atesta uma incapacidade actual e efectiva para cumprir a ordem legítima.
Em terceiro lugar, o tribunal fundamentou a sua convicção de forma clara e objectiva, explicando as razões pelas quais atribuiu credibilidade à prova testemunhal, desvalorizou as contradições do arguido e concluiu pela verificação dos elementos típicos do crime de desobediência.
Não se detectam, pois:
i. Valoração arbitrária ou ilógica da prova;
ii. Ignorância de elementos probatórios essenciais;
iii. Violação das regras da lógica e da experiência comum;
iv. Substituição da análise racional da prova por juízos subjectivos ou preconceituosos.
Neste contexto, não se verifica violação do princípio da livre apreciação da prova.
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2.3.4. Erro na aplicação do direito penal substantivo (artigos 26.º e 348.º do Código Penal)
O erro na aplicação do direito penal substantivo constitui uma das causas mais relevantes de modificação ou revogação das decisões condenatórias em sede de recurso, traduzindo-se na incorrecta subsunção dos factos dados como provados às normas jurídicas que definem os crimes, as formas de autoria e as consequências penais. Esta matéria insere-se na tradicional distinção entre erro de facto e erro de direito, sendo o primeiro respeitante à apreciação da prova e à determinação da veracidade dos factos, e o segundo relativo à qualificação jurídica desses factos à luz das normas legais aplicáveis.
O erro de direito em matéria penal substantiva abrange:
i. A incorrecta qualificação jurídica dos factos;
ii. A aplicação errónea dos elementos constitutivos do tipo legal de crime;
iii. A indevida imputação de autoria, seja na modalidade de autoria directa, co-autoria ou participação;
iv. A errada subsunção dos factos às normas incriminatórias.
In casu, o arguido AA alega, em sede de recurso, a existência de erro na aplicação do direito penal substantivo, sustentando que:
i. Não estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência, previsto no artigo 348.º do Código Penal;
ii. A sua conduta não configura um acto típico, ilícito e culposo;
iii. Não se verificam os pressupostos de imputação de autoria previstos no artigo 26.º do Código Penal.
Apreciemos:
Resulta provado que o arguido, no exercício da condução de veículo automóvel, foi sujeito a fiscalização por agentes da Polícia de Segurança Pública, aos quais recusou, de forma consciente, voluntária e sem justificação plausível, submeter-se ao teste de alcoolemia, não obstante ter sido devidamente advertido para a legalidade da ordem e para as consequências jurídicas da recusa.
Importa sublinhar que a ordem emanada pelos agentes da autoridade enquadra-se no quadro legal das suas competências, em conformidade com a legislação vigente sobre fiscalização rodoviária e prevenção da condução sob o efeito de álcool. O tribunal, ao valorar os depoimentos das testemunhas presenciais e os elementos documentais constantes dos autos, concluiu que o arguido compreendia perfeitamente a ordem que lhe foi dirigida, conhecia a sua legalidade e as consequências da recusa, tendo ainda demonstrado, pela sua atitude e declarações, que a recusa foi voluntária, consciente e deliberada.
Nesta medida, a subsunção dos factos provados ao tipo legal de crime de desobediência revela-se juridicamente correcta e tecnicamente adequada, não se verificando qualquer erro de direito. A conduta do arguido preenche integralmente os elementos objectivos e subjectivos do tipo, dado que existiu uma ordem legítima regularmente comunicada por agente competente, o arguido teve perfeita consciência dessa ordem e da sua legalidade, e, não obstante, recusou o seu cumprimento sem causa justificativa.
Por outro lado, a imputação da autoria directa do crime ao arguido respeita inteiramente os parâmetros legais do artigo 26.º do Código Penal, uma vez que o próprio executou o comportamento típico de recusa, sendo ele o destinatário da ordem e o único interveniente responsável pela decisão de incumprimento. Não existe, pois, qualquer margem para considerar que o arguido agiu sem domínio funcional sobre os factos, por intermédio de outrem, ou que a sua actuação esteja fora do âmbito da autoria directa, conforme legalmente exigido.
Neste contexto, não se vislumbra qualquer erro de subsunção jurídica por parte do tribunal a quo, sendo a qualificação jurídica da conduta do arguido perfeitamente conforme aos requisitos legais. A tentativa do arguido de afastar a sua responsabilidade, invocando uma alegada incapacidade física que o impediria de realizar o teste, foi devidamente apreciada e desvalorizada pelo tribunal, com base nas contradições internas do seu depoimento, na inexistência de prova médica conclusiva sobre uma limitação actual e impeditiva, e no confronto com o seu historial criminal, designadamente a realização de testes idênticos em contexto posterior às alegadas sequelas de saúde.
A argumentação de erro de aplicação do direito penal substantivo, apresentada pelo arguido AA, assenta numa construção argumentativa que carece de rigor jurídico e de suporte fático que lhe confira viabilidade perante o quadro normativo aplicável. O arguido sustenta que a sua conduta não integra os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência previsto no artigo 348.º do Código Penal, argumentando, nomeadamente, que não existiu recusa voluntária e consciente de cumprimento da ordem legítima, porquanto se encontraria fisicamente incapaz de realizar o teste de alcoolemia, em virtude de alegadas sequelas respiratórias decorrentes de infecção por .... Acrescenta, ainda, que a imputação da autoria criminal é juridicamente insustentável, uma vez que a sua actuação não corresponde ao domínio típico da acção, nos termos do artigo 26.º do Código Penal.
Todavia, como vimos, esta linha argumentativa revela-se inconsistente e juridicamente infundada, desde logo porque assenta numa interpretação distorcida e descontextualizada dos requisitos legais e da prova produzida nos autos. O crime de desobediência exige, como pressuposto essencial, a existência de uma ordem legítima, comunicada de forma regular e emanada de autoridade competente, o que, no caso concreto, se verificou sem qualquer margem para dúvida, uma vez que os agentes da Polícia de Segurança Pública agiram no exercício das suas funções de fiscalização rodoviária, emitindo uma ordem de realização de teste de pesquisa de álcool no sangue, ao abrigo da legislação vigente. A ordem foi, segundo resulta da sentença, claramente compreendida pelo arguido, que foi advertido para a sua legalidade e para as consequências jurídicas da recusa, o que afasta qualquer hipótese de desconhecimento ou erro quanto à natureza da mesma.
Por outro lado, a recusa do arguido foi efectuada de forma consciente, deliberada e sem justificação objectiva plausível, tendo o tribunal valorado criticamente as suas declarações e os elementos documentais juntos aos autos. O arguido invoca limitações físicas que o teriam impedido de realizar o teste, mas o tribunal fundamentou de forma suficiente e racional a rejeição desta tese, com base nas contradições das declarações do próprio arguido, no conteúdo do documento hospitalar apresentado, que não atesta de forma inequívoca uma incapacidade actual impeditiva, e na prova documental dos antecedentes criminais, que demonstra que o arguido realizou, em data posterior às alegadas limitações, testes idênticos no âmbito de processos de fiscalização rodoviária, designadamente o processo n.º 962/22.7SFLSB.
Acresce que o conceito de autoria, previsto no artigo 26.º do Código Penal, exige a execução do facto típico de forma voluntária e consciente, o que se verificou no presente caso, na medida em que o arguido, destinatário da ordem legítima, recusou o seu cumprimento de forma deliberada, assumindo a totalidade do domínio da sua acção. A tentativa de desresponsabilização do arguido, através da invocação de factores externos ou limitações de saúde não objectivamente comprovadas, não encontra respaldo na prova produzida.
Assim, a argumentação do arguido, ao invocar erro de aplicação do direito penal substantivo, não resiste à análise técnico-jurídica, devendo considerar-se totalmente improcedente.
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2.3.5. Violação dos direitos e garantias constitucionais do arguido (artigo 32.º da CRP)
A Constituição da República Portuguesa, enquanto Lei Fundamental e pilar estruturante do Estado de Direito Democrático, consagra, no artigo 32.º, o regime jurídico das garantias de defesa do arguido em processo penal, integrando-o no conjunto dos direitos fundamentais de natureza pessoal, processual e jurisdicional. Esta norma constitucional assume particular relevância no contexto do direito processual penal português, funcionando como limite material à actuação dos órgãos de polícia criminal, das autoridades judiciárias e do próprio legislador ordinário, não podendo ser restringida nem por via legislativa, nem por decisões administrativas ou jurisdicionais arbitrárias.
O artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa estatui expressamente, no n.º 1, que "o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso". Esta disposição consagra o direito do arguido a ser informado das acusações que contra si pendem, a contraditar os meios de prova, a produzir prova em sua defesa, a ser assistido por defensor, a beneficiar da presunção de inocência e a recorrer das decisões condenatórias, entre outras prerrogativas essenciais.
Importa sublinhar que as garantias constitucionais do arguido não se esgotam na letra do artigo 32.º, sendo antes interpretadas em conjugação com outros preceitos constitucionais, designadamente os princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito, da igualdade, da legalidade penal e da proporcionalidade, consagrados, entre outros, nos artigos 1.º, 2.º, 13.º, 29.º e 18.º da Constituição.
A densidade normativa do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa reflecte-se na prática processual penal, assegurando ao arguido um conjunto de direitos e garantias que abrangem, entre outros, o direito ao contraditório, à assistência de defensor, à igualdade de armas, à presunção de inocência e ao recurso efectivo de decisões condenatórias. Estes direitos, reconhecidos não apenas no plano constitucional interno, mas também no direito internacional vinculativo do Estado Português, em particular na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, visam assegurar a justiça material, a imparcialidade e a legalidade do processo penal.
A violação das garantias constitucionais do arguido apenas se verifica quando, de forma objectiva e demonstrável, se frustrem os direitos de defesa, o contraditório, o direito ao recurso ou quando se imponha ao arguido um ónus probatório ou processual desproporcionado e ilegítimo. O artigo 32.º da Constituição não consagra um direito absoluto à absolvição do arguido, nem impede a sua condenação quando estejam reunidos os pressupostos materiais e processuais para tal, mas tão somente garante que essa condenação só pode ocorrer em processo justo, equitativo e com integral respeito pelas garantias de defesa.
No caso dos autos, o arguido AA argumenta, em sede de recurso, a violação dos seus direitos e garantias constitucionais, invocando genericamente o artigo 32.º da Constituição, com especial referência à presunção de inocência, ao direito a um julgamento justo e ao princípio do in dubio pro reo. Sustenta, ainda, que o tribunal a quo terá desrespeitado o seu direito de defesa, ao valorar indevidamente a prova produzida, ao desconsiderar as suas declarações e ao condená-lo com base em elementos de prova que considera insuficientes ou contraditórios.
Contudo, a análise objectiva da tramitação processual e da decisão recorrida demonstra que o arguido beneficiou integralmente das garantias constitucionais previstas no artigo 32.º da Constituição. O arguido foi devidamente notificado da acusação e da data do julgamento, participou na audiência de julgamento, prestou declarações em sua defesa, esteve assistido por defensora oficiosa, exerceu o contraditório sobre os meios de prova apresentados pelo Ministério Público e teve oportunidade de produzir prova própria, designadamente documental, ao apresentar elementos médicos alegadamente demonstrativos de limitações de saúde.
Adicionalmente, o tribunal fundamentou a decisão de forma clara, objectiva e controlável, indicando as razões que conduziram à condenação do arguido, designadamente com base nos depoimentos dos agentes da autoridade, na análise crítica das declarações do arguido, nos antecedentes criminais constantes do certificado de registo criminal e nos elementos documentais dos autos. A sentença respeita as exigências legais de fundamentação previstas no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, permitindo ao tribunal de recurso exercer o controlo da legalidade e da constitucionalidade da decisão.
Neste contexto, não se verifica qualquer violação material ou processual das garantias constitucionais do arguido, sendo a sua condenação consequência de um processo penal que decorreu em conformidade com as normas constitucionais, legais e convencionais aplicáveis.
Assim, a alegação de violação dos direitos e garantias constitucionais do arguido, ao abrigo do artigo 32.º da Constituição, revela-se juridicamente improcedente, porquanto o processo penal, no caso concreto, decorreu em estrita observância dos parâmetros constitucionais, legais e convencionais que asseguram a defesa, a presunção de inocência e o contraditório.
Improcede, pois, o recurso in totum.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a 5 (cinco) unidades de conta (arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
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Lisboa e Tribunal da Relação, data e assinatura electrónicas
Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP).
(O relator escreve de acordo com a antiga ortografia)

10 de Julho de 2025
Alfredo Costa
Francisco Henriques
Cristina Almeida e Sousa