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RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE DA SENTENÇA
AUDIÇÃO DA CRIANÇA
CONVENÇÃO DE HAIA
Sumário
I - O artigo 5º do RGPTC consagra a audição da criança em duas situações distintas: nos nºs1 e 4 a audição para que a criança possa manifestar a sua opinião, a considerar na decisão a tomar na determinação do seu superior interesse; nos n.ºs 6 e 7 a audição da criança para que lhe sejam tomadas declarações, sempre que tal o justifique, para que as mesmas possam ser consideradas como meio probatório. II – Nos casos em que a audição da criança se destina a possibilitar que a mesma possa exprimir a sua opinião não está sujeita às regras previstas nos nºs 6 e 7 do artigo 5º do RGPTC, podendo ser realizada sem a presença de qualquer mandatário, e sem a presença dos progenitores e, inclusivamente, com carácter de confidencialidade, se essa confidencialidade contribuir para a espontaneidade, tranquilidade e segurança psicológica da criança e se foi ela própria quem o solicitou ao juiz. III - A Convenção de Haia de 25 de outubro de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, aprovada, na ordem jurídica nacional, pelo Decreto n.º 33/83, de 11/05) visa proteger a mesma no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer as formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual. IV - A Convenção da Haia impõe aos tribunais que ordenem o regresso da criança ao Estado da sua residência habitual se aquela foi retida ilicitamente salvo se ocorrerem as circunstâncias ali previstas aptas a fundamentar uma decisão de recusa, designadamente a existência de um grave risco de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo, ficar numa situação intolerável (artigo 13º, alínea b) da Convenção). V - O conceito de risco grave deve ser entendido como uma verdadeira exceção, utilizada apenas em última instância e não como um mecanismo de recusa automática.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I. Relatório
O Magistrado do Ministério Público, junto do Juízo de Família e Menores de Viana do Castelo, requereu em 18/02/2025 a instauração do presente processo tutelar comum a favor da criança AA, ao abrigo da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25/10/1980, contra o progenitor BB.
Alega que os progenitores da criança se encontram divorciados desde ../../2017, por sentença proferida na Vara de família da Comarca Regional da ..., que homologou o acordo alcançado entre aqueles relativamente ao exercício das responsabilidades parentais, a qual transitou em julgado, e foi revista e confirmada pelo Tribunal da relação de Lisboa em 28/05/2029.
Que para efetivar o direito de visitas do pai, a mãe viajou com a criança para Portugal em 18/12/2024, tendo desde logo adquirido bilhete para o regresso ao Brasil, no voo com partida no dia 21/01/2025.
Que na véspera da referida data de regresso, o pai comunicou à mãe que o menor ia ficar consigo em Portugal, sendo que tal decisão de não fazer regressar a criança ao Brasil foi tomada sem autorização e contra a vontade da mãe da criança.
Mais alega que tal situação foi comunicada à Autoridade Central Brasileira, a qual solicitou à congénere portuguesa a realização de diligências com vista à reposição da criança no Brasil, tendo esta enviado oficio ao progenitor BB que respondeu manifestando a sua oposição ao regresso do filho ao Brasil.
Requereu a atribuição de caráter urgente ao processo, a designação de data para audição da criança e a prolação de decisão, a final, sobre o regresso da criança ao Brasil.
Foi proferido despacho em que se atribuiu carácter urgente aos presentes autos e designada data para audição da criança.
O progenitor BB remeteu aos autos em 24/02/2025 uma exposição contendo, em seu entender, a factualidade relevante para a decisão sobre o mérito da causa.
Em 25/02/2025 foi levada a cabo a audição da criança apenas na presença do juiz, do Magistrado do Ministério Público e da Técnica da Segurança Social.
Foi levada a cabo em 27/02/2025 a audição dos progenitores, tendo sido informado aos progenitores e Ilustres Mandatários a vontade manifestada pela criança em regressar ao Brasil.
Em 3/06/2025 o Ministério Público pronunciou-se promovendo o regresso imediato da criança ao Brasil.
Em 6/06/2025 foi proferido o seguinte despacho pelo Tribunal a quo: “Fiquem nos autos a informação escolar junta pelo SIATT, bem como o documento remetido aos autos pela mãe do AA em 28/02/25. Notifique o seu teor. Não se vislumbrando outras diligências a efetuar, com cópia da douta promoção que antecede, notifique os pais para se pronunciarem, querendo, e em 48 horas, sobre os fundamentos de facto e direito em que se baseia a questão”.
A progenitora CC pronunciou-se reiterando o pedido de entrega da criança.
O progenitor BB suscitou a questão da ocultação de prova e litigância de má-fé e invocou a nulidade processual decorrente da violação do principio do contraditório, seja decorrente de secretismo probatório quanto às declarações da criança, seja da não notificação (citação) do requerimento inicial; pronunciou-se quanto à promoção do Ministério Público e requereu fossem declaradas as nulidades e anulado todo o processado subsequente ao requerimento inicial do Ministério Público e os Requeridos citados, seguindo-se os ulteriores termos, lhe fosse reconhecido o direito de alegar e provar com vista ao preenchimento da exceção prevista no artigo 13.º, alínea b), da Convenção de Haia de 25/10/1980, devendo a instrução probatória, incluindo a audição do Menor, ser levada a cabo com base no thema probandum, que necessariamente deve incluir a factualidade alegada pelo Requerido, a notificação da progenitora para esclarecer as razões pelas quais não juntou aos autos o relatório psicológico ora junto pelo Requerido e a sua condenação por litigância de má-fé.
Juntou aos autos diversos documentos.
Pelo Tribunal a quo foi proferido despacho julgando improcedentes as invocadas nulidades, considerando inexistir litigância de má-fé e proferida sentença cujo teor decisório é o seguinte:
“Em conformidade com o exposto, e ao abrigo das citadas disposições normativas: 1. Decido ordenar o regresso ao Estado da residência habitual (Brasil) de AA, nascido em ../../2015, filho de BB e de CC, atualmente a viver com o pai na Rua ..., ..., .... 2. Imponho ao pai o pagamento de todas as despesas necessárias de viagem da mãe (feitas por si ou em seu nome) e da criança para o regresso ao Brasil. E bem assim ficam a cargo do pai todas as despesas e custas para localizar, caso necessário, a criança. 3. Vencido na pretensão deduzida, são devidas custas, a cargo do requerido (artigo 527.º, n. os 1 e 2 do Código de Processo Civil). 4. Fixo o valor da causa em trinta mil euros e um cêntimo (artigos 303.º, n.º 1 e 306.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil).
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Comunique o teor da presente decisão à Autoridade Central Portuguesa (DGAJ) e ao Instituto da Segurança Social I.P. para os devidos efeitos (entrega e transporte da criança com vista a concretizar o regresso ao Estado de origem). Devolva-se à mãe o passaporte da criança que fez juntar aos autos, que deverá ser pessoalmente recolhido por si ou sua Ilustre Mandatária.
Passe ainda mandados de entrega judicial de AA donde constem as seguintes informações: 1.ª - A execução da decisão caberá ao Instituto da Segurança Social IP (através do respetivo centro distrital da área onde se encontra a criança) (a qual deverá articular o procedimento de entrega com a Autoridade Central Portuguesa), podendo os técnicos da segurança social requisitar ou solicitar a colaboração das autoridades policiais territorialmente competentes, caso se venha a mostrar necessário; 2.ª - Aquando da execução da decisão, esta deverá ser igualmente articulada com a progenitora (remetendo-se os contactos desta que constem do processo e da respetiva mandatária) recolher o filho e, logo que as condições de viagem o permitam, regressar com o mesmo ao Brasil; 3.ª - Aquando da execução da decisão, deverão ser recolhidos e entregues à mãe todos os documentos de identificação da criança (designadamente cartão de cidadão, boletim médico e de vacinas ou outros na posse do pai), bem como a recolha e entrega das suas roupas pessoais e brinquedos (sem prejuízo destes poderem ser posteriormente remetidos pelo pai); 4.ª - Deverá ainda ficar consignada nos mandados de entrega a possibilidade de arrombamento, caso não seja franqueada a entrada pela pessoa que tenha a disponibilidade do local e não seja permitido o livre acesso à pessoa da criança, aquando da execução da entrega.
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Comunique ainda ao Gabinete Nacional SIRENE de que deverá efetuar o levantamento da restrição de saída do menor AA, decretada por decisão proferida neste processo por forma a permitir o seu regresso ao Brasil com a progenitora CC ou pessoa que esta expressamente designar (artigo 3.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 122/2021, de 30 de Dezembro e artigo 97.º da Convenção SCHENGEN).
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Registe e notifique.”
Inconformado, apelou o progenitor BB concluindo as suas alegações da seguinte forma:
1) Em 12/03/2025, o Tribunal a quo proferiu decisão que apreciou nulidades e conheceu o mérito da causa, decidindo pelo regresso imediato do Menor ao Brasil na companhia da Requerida.
2) O Tribunal a quo vedou e continua a vedar o acesso do Recorrente às declarações do Menor, impedindo-o, dessa forma, de exercer o contraditório, fazendo enfermar o processo de nulidade.
3) O Requerido nunca foi citado ou sequer notificado do requerimento inicial do Ministério Público, e tampouco dos documentos com o mesmo juntos, o que o impediu de exercer o contraditório, mormente impossibilitando-lhe a alegação de factos integradores de uma das excepções ao regresso do Menor ao Brasil, assim como impossibilitando-lhe de juntar e requerer prova, nomeadamente testemunhal.
4) Entendendo o Tribunal a quo (como parece) que as exposições do Recorrente de 24/02/2025 (exclusivamente factual) e 10/03/2025 (apenas esta última com a junção de prova documental e de imagem) materializam suficientemente a garantia de contraditório do Recorrente, não levou, porém, em consideração a factualidade alegada e não valorou a prova documental junta na decisão sobre o mérito da causa.
5) Incorre a sentença recorrida do vício de omissão de pronúncia ao não conhecer (provada ou não provada) a factualidade alegada pelo Recorrente e ao não valorar a prova documental pelo mesmo apresentada.
6) Encontram-se incorretamente julgados os factos provados constantes de 1), 7), 17), 18), 19), 20) e 21).
7) A forma como o facto provado constante de 16) se encontra redigido, como uma opinião ou entendimento do Recorrente, equivale a uma não pronúncia do Tribunal a quo sobre os mesmos.
8) Não é possível ao Recorrente sindicar a decisão da matéria de facto relativamente ao facto constante de 22), na medida em que o Tribunal a quo mantém secretas as declarações do Menor.
9) A motivação da decisão sobre a matéria de facto é opaca e insuficiente, não permitindo entender o raciocínio do Tribunal a quo, e não valorou a prova apresentada pelo Recorrente.
10) A fundamentação de Direito da sentença recorrida assenta em dois vectores, que são, por um lado, a vontade do Menor de regressar com a Requerida ao Brasil e, por outro, a ausência de risco intolerável no Brasil.
11) Relativamente ao primeiro, o Tribunal a quo desvalorizou a possibilidade de alienação parental encetada pela Requerida contra o ora Recorrente, apesar deste ter alegado factualidade disso concretizadora.
12) Quanto ao segundo, o Tribunal a quo não conheceu factualidade importante, alguma, mesmo, fundamental, consubstanciadora de um risco actual e sério para o Menor na vida que tem com a Requerida, no Brasil”.
Pugna o Recorrente pela procedência do recurso e pela revogação da sentença recorrida.
Apenas o Ministério Público apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.
Foi proferido despacho a admitir o recurso e a pronunciar-se sobre a nulidade invocada nos seguintes termos: “Por ser legalmente admissível, ter o recorrente legitimidade, ter sido tempestivamente interposto e ter sido observado o legal formalismo – artigos 627º, 631º nºs 1 e 2, do CPC ex vi do 32º nº 1 e 3 do PTC – admito o recurso interposto, o qual é de apelação – 644º nº 2 al. i) do CPC - sobe de imediato e nos próprios autos - 645º nº 1 al. a) do CPC - e com efeito meramente devolutivo, art. 32º nº 4 do PTC. Notifique.
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Ex.mos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães: O recorrente vem arguir duas nulidades, decorrentes da manutenção em secretismo das declarações do menor e da alegada não citação do Requerido. Sobre tais questões já nos pronunciámos em despacho que antecede imediatamente a sentença, datado de 12/3/2025, que aqui damos por reproduzido, reiterando-o para os devidos efeitos. Mais invoca o recorrente que incorre a sentença recorrida no vício de omissão de pronúncia ao não conhecer (provada ou não provada) a factualidade alegada pelo Recorrente e ao não valorar a prova documental pelo mesmo apresentada - (art. 615º, nº1, d) do CPC). Apreciando, ao invés do alegado, a sentença apreciou a factualidade apresentada pelo progenitor, para concluir liminarmente que não tinha relevância para a causa: Senão veja-se, e citando a sentença recorrida: “Assim, quando o pai alega, como razões para a retenção da criança, que o dinheiro da pensão de alimentos que paga à mãe não está a ser usada com o AA, devido a prodigalidade da mãe; o vestuário da criança é parco e de baixa qualidade; que no verão de 2024, a diretora da escola lhe disse que o menor estava a faltar à escola e que o menor estava insatisfeito com a vida familiar; que a escola privada do AA não foi paga pela mãe durante dois anos; que mãe e filho estão à beira de serem despejados por falta de pagamento de rendas; acusa a mãe de permissividade na gestão do quotidiano do filho (horas a mais a jogar no telemóvel, bebe muitos refrigerantes), tais questões, mesmo a serem verdade, são relativas aos cuidados a prestar à criança, (os dois desmaios da criança foram explicados e não tiveram repercussões de maior) que têm de ser apreciados nas instâncias brasileiras, em sede de procedimentos tutelares cíveis, não sendo fundamento para retenção da criança. E mais à frente, na decisão recorrida, apreciaram-se as restantes preocupações do pai, desta feita para concluir que, também nesta parte, os factos alegados pelo progenitor não sustentavam a permanência da criança em Portugal: …” remanescem a invocada a instabilidade emocional da mãe, e que o companheiro desta (DD) teve problemas com a justiça no passado e agrediu outro filho do casal (EE, já maior) há 3 anos, e perturbou a outra filha do casal (FF, também maior); por fim, contava que a mãe viesse viver para Portugal e assim, poder ajudar o filho presencialmente.” Pelas razões expostas, não vislumbramos qualquer nulidade. V. Exas. dirão, porém, como sempre, o que for de Justiça!”
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do Objeto do Recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (cfr. artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo Recorrente, são as seguintes:
1 - Da nulidade decorrente da não citação do Recorrente;
2 - Da nulidade decorrente da confidencialidade do teor das declarações prestadas pela criança;
3 - Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
4 - Da impugnação da matéria de facto:
4.1. Saber se existe erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 1), 7), 11), 16), 17), 18), 19), 20) e 21);
4.2. Saber se o Recorrente se encontra impossibilitado de sindicar a decisão do Tribunal a quo quanto ao ponto 22) da matéria de facto;
4.3. Saber se devem ser aditados novos factos;
5 - Da aplicação da providência tutelar cível de regresso da criança ao Estado da residência habitual.
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III. Fundamentação
3.1. Os factos Factos considerados provados em Primeira Instância (Transcrição):
1) AA nasceu no ..., Brasil, em ../../2015 e é filho de CC e de BB, residindo habitualmente com a sua mãe na Av. ..., ..., ..., ..., CEP ..., Brasil.
2) Os progenitores do AA estão divorciados desde ../../2017, por sentença judicial proferida na Vara de Família da Comarca Regional da ... – ..., que homologou o acordo alcançado entre aqueles relativamente ao exercício das responsabilidades parentais do menor.
3) Essa sentença transitou em julgado e foi revista e confirmada por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/05/2019 e transitou em 11/6/2019.
4) Nos termos do dito Acordo, foi atribuída à progenitora a guarda unilateral e responsabilidade sobre os filhos menores do casal, incluindo o AA, nos termos do art. 1859.º do Código Civil Brasileiro.
5) Ficou ainda estabelecido o direito de visita do progenitor, nomeadamente no período de férias escolares, estipulando-se que as crianças dividiriam esse tempo entre ambos os progenitores.
6) O menor sempre viveu no Brasil, viajando regularmente para Portugal para visitar o pai e retornando no final da visita àquele país. 7) Para efetivar, mais uma vez, o direito de visita, CC viajou com o menor AA para Portugal em 18/12/2024, com destino ao aeroporto do Porto, tendo sido adquirido, desde logo, bilhete para o regresso ao Brasil, no voo com partida do dito aeroporto no dia 21/01/2025.
8) O AA passou o dito período de tempo (desde 20/12/2024) com o pai, tendo este comunicado a CC, na véspera da referida data de regresso, que o menor ia ficar consigo em Portugal, não o entregando à mãe.
9) A decisão de não fazer regressar o AA ao Brasil foi tomada pelo progenitor, sem autorização e contra a vontade da mãe da criança. 10) O menor está a viver com o pai, a mulher deste e um filho menor do casal numa moradia onde o AA dispõe de quarto próprio.
11) O menor está matriculado no ano letivo de 2025 (que começa em fevereiro) na Escola ..., LTDA no 5º ano do Ensino Fundamental I, no ....
12) O menor, em Portugal, frequenta o 5.º ano da Escola Básica ... no AGRUPAMENTO DE ESCOLAS ... ..., em ..., tendo bom relacionamento com os colegas e a professora.
13) É um aluno tímido, introvertido, mas educado, acata bem as ordens e regras de sala de aula, vai participando nas atividades mas com pouco empenho e interesse.
14) Por vezes, em contexto de sala de aula, o aluno mostra-se pouco participativo, desmotivado e alheado no seu mundo interior, contudo quando “chamado à atenção” pelos docentes corresponde aos pedidos.
15) É uma criança sociável, que gosta de brincar e ter amigos.
16) O progenitor entende que o filho deve residir consigo uma vez que o dinheiro da pensão de alimentos que paga à mãe não está a ser usada com o AA, devido a prodigalidade da mãe; o vestuário da criança é parco e de baixa qualidade; no verão de 2024, a diretora da escola disse-lhe que o menor estava a faltar à escola e que o menor estava insatisfeito com a vida familiar; que a escola privada do AA não foi paga pela mãe durante dois anos; que mãe e filho estão à beira de serem despejados por falta de pagamento de rendas; acusa a mãe de permissividade na gestão do quotidiano do filho (horas a mais a jogar no telemóvel, bebe muitos refrigerantes); que teve desmaios; invoca a instabilidade emocional da mãe, e que o companheiro desta (DD) teve problemas com a justiça no passado, agrediu outro filho do casal (EE, já maior) há 3 anos, e perturbou a outra filha do casal (FF, também maior); por fim, contava que a mãe viesse viver para Portugal e assim, poder ajudar o filho presencialmente.
17) A mãe vive, no Brasil, num apartamento com sala, cozinha, WC e dois quartos, um dos quais partilhado pelo menor com o irmão EE, já maior de idade, dormindo em beliche.
18) A mãe teve um relacionamento amoroso com DD desde março de 2022, morando juntos em casa daquela durante 3 meses, de abril a junho desse ano; em final de junho, DD saiu de casa e a relação terminou em fevereiro de 2023.
19) DD era, à data referida em 18), treinador de ju-jitsu do AA e da mãe, desporto que praticavam em conjunto, tendo a criança bom relacionamento com o companheiro da mãe.
20) AA tem acompanhamento psicológico semanal no Brasil desde 24/5/2022 e nas primeiras sessões de avaliação, a criança AA demonstrou excessiva preocupação e medo, ansiedade importante e certa tristeza; as questões centrais apresentadas pela mãe foram dificuldades em controlar a raiva e certa ansiedade; carece ainda hoje de acompanhamento psicoterapêutico para trabalho de expressão e validação de sentimentos, aprender sobre eles e aprender a expressá-los da forma mais saudável e bem assim, continuar o trabalho de autorregulação, auxiliar o mesmo a ressignificar alguns acontecimentos, promover o autoconhecimento, excluir possibilidades de crises ansiosas e depressivas.
21) Em datas não apuradas do ano passado, AA desmaiou uma vez na escola e outra em casa, no Brasil, por desidratação, devido ao intenso calor e concomitante falta de ingestão de líquidos nessas duas ocasiões, tendo recuperado consciência logo de seguida e hidratado.
22) O AA pediu com veemência para regressar ao Brasil na companhia da mãe, não pretendendo permanecer em Portugal junto do pai.
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3.2. Da nulidade decorrente da não citação do Recorrente
Notificado o Recorrente para se pronunciar, querendo sobre os fundamentos de facto e direito em que se baseia a questão, veio invocar a nulidade da falta de citação por não ter sido citado ou meramente notificado do Requerimento inicial do Ministério Público, o qual, após distribuição, terá dado início aos presentes autos.
Pelo Tribunal a quo foi decidido inexistir qualquer nulidade por falta de citação, notificação ou contraditório, entendendo que foram realizadas as necessárias diligências, tendo ouvido a criança, o pai e a mãe, e atendido aos seus requerimentos com documentos juntos e que o Recorrente constituiu advogado, foi ouvido em declarações onde expôs todas as suas objeções ao regresso da criança ao Brasil, mais uma vez se pronunciando sobre o objeto dos autos e foi ainda ouvido em contraditório quanto aos documentos juntos e à promoção do Ministério Público.
É contra este entendimento que se insurge o Recorrente.
Vejamos se lhe assiste razão.
O presente processo foi instaurado ao abrigo da Convenção de Haia de 25 de outubro de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (aprovada na ordem jurídica nacional pelo Decreto n.º 33/83, de 11/05 e de que Portugal e o Brasil foram subscritores), e do artigo 67º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08 de setembro, de ora em diante designado por RGPTC), configurado, por isso, como ação tutelar comum.
Estamos perante a forma comum do processo tutelar cível, ao qual foi atribuída natureza urgente e que tem a natureza de jurisdição voluntária (cfr. artigo 12º do RGPTC), ou seja, estamos no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, que não é considerado verdadeiramente um processo de partes, que visa dirimir conflitos, mas antes um processo destinado a resolver interesses (concretamente o interesse da criança), que serão objeto de decisão a proferir segundo um juízo de oportunidade ou conveniência e não de estrita legalidade (cfr. artigo 987º do CPC) e em que o tribunal, não estando dependente dos factos direta ou indiretamente alegados pelas partes, pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar as diligências e recolher as informações convenientes (cfr. artigo 986º do CPC).
Está em causa um processo urgente, célere e expedito, que teve como principal motivação, como se declara na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 338/XII, “introduzir maior celeridade, agilização e eficácia na resolução desses conflitos, através da racionalização e da definição de prioridades quanto aos recursos existentes, em benefício da criança e da família. Na concretização desse objetivo são definidos novos princípios e procedimentos destinados a simplificar e a reduzir a instrução escrita dos processos, privilegiando, valorizando e potenciando o depoimento oral, quer das partes, quer da assessoria técnica aos tribunais, nos processos tutelares cíveis e, em especial, no capítulo relativo ao exercício das responsabilidades parentais e seus incidentes. Assim, aos princípios vigentes acrescentam-se os princípios da simplificação instrutória e da oralidade, o princípio da consensualização e o princípio da audição da criança”.
Conforme decorre do seu artigo 4º, os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e ainda pelos seguintes:
a) Simplificação instrutória e oralidade - a instrução do processo recorre preferencialmente a formas e a atos processuais simplificados, nomeadamente, no que concerne à audição da criança que deve decorrer de forma compreensível, ao depoimento dos pais, familiares ou outras pessoas de especial referência afetiva para a criança, e às declarações da assessoria técnica, prestados oralmente e documentados em auto;
b) Consensualização - os conflitos familiares são preferencialmente dirimidos por via do consenso, com recurso a audição técnica especializada e ou à mediação, e, excecionalmente, relatados por escrito;
c) Audição e participação da criança - a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse
Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, o juiz afere, casuisticamente e por despacho, a capacidade de compreensão dos assuntos em discussão pela criança, podendo para o efeito recorrer ao apoio da assessoria técnica (n.º 2 do artigo 4º).
Não tendo o RGPTC uma forma especial de processo tutelar cível aplicável à ação destinada ao regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida, a mesma tem enquadramento na forma residual aí prevista, e denominada de ação tutelar comum no artigo 67º (v. neste sentido António José Fialho, “Contributo para um regime processual das ações de regresso das crianças ilicitamente deslocadas ou retidas (CH 1980), em Julgar Online, maio de 2019, disponível para consulta em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/05/20190506-ARTIGO-JULGAR-Contributo-para-um-regime-processual-das-a%C3%A7%C3%B5es-de-regresso-Ant%C3%B3nio-J-Fialho.pdf).
Decorre do estabelecido no referido artigo 67º, respeitante à tramitação da ação tutelar comum, que sempre que a qualquer providência cível não corresponda nenhuma das formas de processo previstas nas secções anteriores, o tribunal pode ordenar livremente as diligências que repute necessárias antes de proferir a decisão final.
No caso concreto o Tribunal a quo procedeu à audição da criança, designando Técnica da Segurança Social para acompanhar a criança que informou que a auscultou, em intervenção prévia à diligência, e que a mesma se encontrava em condições de prestar declarações, nada tendo obstado quanto à maturidade para falar sobre a sua situação familiar, bem como à audição do pai e da mãe.
Do exposto decorre não resultar expressamente prevista nenhuma tramitação especifica para a referida ação tutelar comum, sem prejuízo do estabelecido nas disposições processuais comuns constantes do artigo 12º e seguintes do RGPTC.
Como refere Gonçalo Oliveira Magalhães (“Aspetos da ação destinada ao regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida, à luz da Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980 e do Regulamento Bruxelas II BIS”, em Julgar, n.º 37, p. 45-46, disponível para consulta em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/01/JULGAR37-02-GM.pdf) relativamente a este tipo de ações: “a lei adjetiva apenas dispõe que o juiz pode ordenar as diligências que repute necessárias antes de proferir a decisão final. Esta solução constitui, a um tempo, uma fonte de dificuldades e, a outro, um desafio para o juiz, confrontado com um terreno fértil para o exercício do seu dever de gestão processual (art. 6.º, n.º 1, do CPC), com o objetivo de dar resposta à equação processual: “uma decisão justa do processo com os menores custos, a maior celeridade e a menor complexidade que forem possíveis no caso concreto”. No cumprimento desse dever, o juiz tem de respeitar, ademais das imposições que decorrem da CH e do RBIIb, nos termos supra expostos, os princípios orientadores dos processos tutelares cíveis, enumerados no art. 4.° do RGPTC: simplificação instrutória e oralidade, consensualização e audição e participação da criança. Tem de respeitar também os princípios gerais do processo civil, designadamente os do contraditório (art. 3.°, n.° 3 e 4) e da igualdade de armas (art. 4.°).”
Segundo Gonçalo Oliveira Magalhães (ob. e p. cit.) quando confrontado com o requerimento inicial, “depois de constatar que não ocorrem exceções dilatórias, designadamente das que, por serem insupríveis, têm como consequência o indeferimento liminar (art. 590.º, n.º 1, do CPC), o juiz deve determinar a citação do requerido, que será o progenitor que deslocou ou retém a criança, para alegar e requerer as diligências instrutórias que tiver por convenientes, em dez dias (art. 14.º do RGPTC).”
Não obstante se nos afigurar que a determinação no inicio da citação do requerido para alegar, como ato processual a realizar, pode ser uma tramitação possível e até adequada à salvaguarda do principio do contraditório (principio fundamental do nosso processo civil, que deve ser observado ao longo de todo o processo e visa garantir a participação efetiva e em igualdade das partes no desenrolar do mesmo, bem como evitar decisões surpresa), a verdade é que perante a ausência de uma tramitação especifica, o dever de gestão processual (artigo 6º, n.º 1, do CPC) e os referidos princípios orientadores de intervenção não entendemos que tal tramitação se deva ter por obrigatória e nem que a falta dessa citação seja de considerar geradora de nulidade processual.
Ou seja, não entendemos que tenha necessariamente de haver lugar à citação do requerido, designadamente à semelhança do que se mostra estabelecido no processo civil, em particular para a ação de processo comum.
Veja-se que mesmo o processo especial de regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas (artigo 34º e seguintes do RGPTC) prevê apenas que os pais são citados para uma conferência (artigo 35º n.º 1) e só se os pais não chegarem a acordo é que o juiz notifica as partes para, em 15 dias, apresentarem alegações ou apresentarem prova (artigo 39º n.º 4).
O que efetiva e inquestionavelmente releva é o cumprimento de princípios fundamentais do nosso sistema legal e constitucional português, designadamente o do contraditório pois “[u]m processo equitativo e justo deve assegurar a cada uma das partes a possibilidade de expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal antes que este tome a sua decisão, ou seja, o reconhecimento do direito a que os seus interesses processuais não sejam preteridos sem que tenham tido a oportunidade de ser ouvidos” (António José Fialho, artigo cit. p. 24-25).
De facto, apesar de estarmos perante um processo de natureza urgente, que se quer célere, a celeridade não se pode impor com um valor superior ao da defesa, no sentido de a pretensão ser deferida sem que o interessado/requerido tenha tido oportunidade de ser ouvido.
Neste sentido, também o artigo 25º do RGPTC consagra como disposição processual comum o contraditório, estabelecendo no n.º 1 que as partes têm direito a conhecer as informações, as declarações da assessoria técnica e outros depoimentos, processados de forma oral e documentados em auto, relatórios, exames e pareceres constantes do processo, podendo pedir esclarecimentos, juntar outros elementos ou requerer a solicitação de informações que considerem necessárias (ainda que o juiz possa indeferir, por despacho irrecorrível, os requerimentos apresentados que se mostrem inúteis, de realização impossível ou com intuito manifestamente dilatório – n.º 2), como é garantido o contraditório relativamente às provas que forem obtidas pelos meios previstos no n.º 1 (n.º 3).
A observância do princípio do contraditório no âmbito deste processo decorre não só do princípio geral consagrado no processo civil (cfr. artigo 3º do CPC) mas também do referido artigo 25º do RGPTC.
Ora, no caso concreto o Tribunal atribuiu carácter urgente aos presentes autos e designou o dia 25 de fevereiro de 2025 para audição da criança nos termos do artigo 13º paragrafo 2 da Convenção de Haia e o Recorrente, notificado, remeteu aos autos em 24 de fevereiro de 2025 uma exposição contendo, em seu entender, a factualidade relevante para a decisão sobre o mérito da causa, onde se pode ler “Encontrando-se designado o dia de amanhã, pelas 15H15, para a audição do Menor, para efeitos do disposto no artigo 13.º, 2.º parágrafo, da Convenção de Haia de 25 de Outubro de 1980, considero importante que o Tribunal tenha conhecimento de factualidade relevante para a decisão sobre o mérito da causa (em anexo)”.
O Recorrente foi ainda ouvido, bem como a mãe da criança.
Após junção aos autos da informação escolar junta pelo SIATT, notificada aos progenitores, e promoção do Ministério Público no sentido do tribunal ordenar o regresso imediato da criança ao Brasil, foi proferido despacho determinando a notificação da promoção aos progenitores e, considerando não haver outras diligências a efetuar, a notificação dos progenitores para se pronunciarem, querendo, sobre os fundamentos de facto e direito em que se baseia a questão, ou seja para apresentarem as suas alegações em matéria de facto e de direito, a que ambos procederam.
O Recorrente veio invocar a ocultação de prova e a litigância de má-fé, a “nulidade processual - secretismo probatório - violação do princípio do contraditório”, a “nulidade processual - não notificação (citação) do requerimento inicial - violação do princípio do contraditório”, pronunciou-se sobre a promoção do Ministério Público e alegou a “factualidade relevante para a decisão da causa, acompanhada da respetiva prova”, juntando inúmeros documentos.
Assim, não só o Recorrente inicialmente foi notificado da audição do seu filho tendo apresentado para esse efeito uma exposição contendo, em seu entender, a factualidade relevante para a decisão sobre o mérito da causa, como foi ouvido pelo Tribunal a quo, à semelhança da progenitora, onde pode também prestar declarações sobre os factos, tendo ainda sido expressamente notificado para alegar de facto e de direito.
Em face do exposto e da concreta tramitação entendemos ser de concluir mostrar-se cumprido o principio do contraditório e até de igualdade de armas relativamente à progenitora, não se verificando, por isso, a invocada nulidade.
De referir ainda que a questão de o Tribunal a quo ter ou não considerado a factualidade alegada pelo Recorrente e a eventual necessidade de ampliação da matéria de facto, o que também faz parte do objeto da presente apelação, e a cuja apreciação iremos proceder adiante, em nada contende com a conclusão de se considerar cumprido o principio do contraditório.
Improcede, por isso, e nesta parte a apelação.
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3.3. Da nulidade decorrente da confidencialidade do teor das declarações prestadas pela criança
Conforme decorre da Ata de audição da criança a Sra. Técnica da Segurança Social designada para acompanhar a criança informou que a auscultou, em intervenção prévia à diligência, e entende que a mesma se encontra em condições de prestar declarações, nada tendo obstado quanto à maturidade para falar sobre a sua situação familiar, e pelo Tribunal a quo foi proferido despacho a determinar que a criança seria ouvida apenas na presença do juiz, do Digno Magistrado do Ministério Público e da técnica da Segurança Social, passando a ouvir a criança em declarações, numa sala especializada para proceder à audição de crianças.
Posteriormente, da Ata da diligência de audição dos progenitores, consta ainda que os progenitores e os Ilustres Mandatários foram informados da vontade manifestada pela criança em regressar ao Brasil, tendo sido proferido o seguinte despacho: “A fim de acautelar e proteger o superior interesse da criança, determino, que, por ora, as declarações prestadas pelo AA tenham caracter reservado”.
Notificado o Recorrente para se pronunciar, querendo sobre os fundamentos de facto e direito em que se baseia a questão, veio invocar a nulidade decorrente do não conhecimento do teor das declarações prestadas pela criança.
Pelo Tribunal a quo foi decidido inexistir qualquer nulidade uma vez que se não é permitida a presença dos pais ou seus representantes para salvaguardar a espontaneidade das suas declarações, também é útil à criança saber que não sejam divulgadas e que a Convenção de Haia apenas impõe o escrutínio da opinião da criança quando ela se opõe ao regresso, e nesse caso, terão de ser avaliadas as suas razões, para as quais tem de ter a maturidade suficiente para se exprimir quanto a tal oposição ao regresso, não sucedendo o mesmo quanto à vontade de regressar.
Mais considerou que o despacho proferido não sofreu contestação pelas partes presentes, e tal devia ter ocorrido no próprio ato, nos termos do artigo 199º n.º 1 do CPC e que só na parte das declarações da criança informadas aos pais, é que o tribunal fundou a sua convicção para fundamentar a matéria de facto.
É contra este entendimento que se insurge novamente o Recorrente sustentando que para exercer o contraditório relativamente à promoção do Ministério Público tem de ter acesso às declarações prestadas pela criança em 25/02/2025, que tem legitimidade e interesse em controlar a avaliação sobre a maturidade do menor o que somente poderá fazer se tiver acesso às declarações e que se deve distinguir entre a prestação das declarações na ausência dos requeridos do secretismo relativamente às declarações prestadas.
Vejamos se lhe assiste razão.
Importa começar por referir que, em conformidade com o estatuído no artigo 155º do CPC, as atas judiciais destinam-se a documentar os atos que são praticados na diligência judicial, e nela são recolhidas as declarações, requerimentos, promoções e atos decisórios orais que tiverem ocorrido, incumbindo a redação da ata ao funcionário judicial, sob a direção do juiz (nºs 7 e 8).
As atas judiciais constituem, dessa forma, documentos autênticos, nos termos e para os efeitos dos artigos 369º e 370º, n.º 1 do Código Civil e nos termos do disposto no artigo 371º os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora, e a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade (cfr. artigo 372º do Código Civil), devendo, para tanto, o interessado deduzir o incidente de falsidade.
Não relevam, por isso, no caso concreto, as alegações do Recorrente relativamente ao despacho proferido pelo Tribunal a quo, vertido na ata de 27/02/2025, designadamente de que “não se recorda” de ter sido ditado para a ata qualquer despacho.
Por outro lado, decorre efetivamente do artigo 199º do CPC, como regra geral sobre o prazo da arguição das outras nulidades (que não as indicadas no artigo 198) que, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar, sendo certo que o Tribunal a quo proferiu despacho a determinar que as declarações prestadas pela criança tivessem caracter reservado na diligência de audição dos progenitores, conforme consta da respetiva ata.
De todo o modo, dir-se-á que, salvo melhor opinião, não se verifica a invocada nulidade decorrente da confidencialidade das declarações prestadas pela criança.
Vejamos.
A questão remete-nos para a problemática do direito da criança a ser ouvida e a ser tida em consideração a sua opinião.
Tal direito da criança encontra expressa consagração no artigo 5º RGPTC onde se estabelece que a criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse (n.º 1), audição a ser levada a cabo nos termos dos n.ºs 2 a 5 deste preceito, e que sempre que o interesse da criança o justificar, o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, pode proceder à audição da criança, em qualquer fase do processo, a fim de que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório nos atos processuais posteriores, incluindo o julgamento (n.º 6), devendo a tomada de declarações obedecer às regras previstas no n.º 7.
Temos, por isso, como correto o entendimento, que perfilhamos, de que o artigo 5º consagra a audição da criança em duas situações distintas:
- nos nºs1 e 4 a audição para que a criança possa manifestar a sua opinião, a considerar na decisão a tomar na determinação do seu superior interesse;
- nos n.ºs 6 e 7 a audição da criança para que lhe sejam tomadas declarações, sempre que tal o justifique, para que as mesmas possam ser consideradas como meio probatório.
Nesta segunda previsão, quando a audição da criança tenha o caráter de uma diligência probatória, a sua audição deve obedecer às regras estabelecidas no artigo 5º n.º 7 do RGPTC, designadamente deverá ser levada a cabo, em regra, na presença dos mandatários dos progenitores conforme decorre da alínea b), onde se prevê que a inquirição é feita pelo juiz, podendo o Ministério Público e os advogados formular perguntas adicionais; o que se compreende uma vez que, estando em causa um meio de prova está sujeito ao princípio do contraditório, em respeito do disposto no artigo 3º do CPC e 25º do RGPTC.
Já não será assim, em nosso entender, se a audição da criança se destina apenas a possibilitar que a mesma possa exprimir a sua opinião.
Neste caso, “o direito da criança tem de ser exercido de modo livre e esclarecido, liberto de quaisquer circunstancialismos físicos, ambientais e psicológicos condicionadores que a possam inibir ou restringir de expressar a sua genuína opinião” (v. acórdão da Relação de Lisboa de 24/10/2024, Processo n.º 382/22.3T8AVV.L2-6, Relator Adeodato Brotas, disponível em www.dgsi.pt), tendo o legislador previsto expressamente a possibilidade de a diligência de audição poder ser agendada especialmente para o efeito (n.º 2 do referido artigo 5º) e da audição da criança ser precedida da prestação de informação clara sobre o significado e alcance da mesma (n.º 3), estabelecendo que devem ser garantidas condições adequadas para o efeito, designadamente a não sujeição da criança a espaço ou ambiente intimidatório, hostil ou inadequado à sua idade, maturidade e características pessoais [alínea a) do n.º 4)], privilegiando-se até a não utilização de traje profissional aquando da audição da criança (n.º 5).
Quando a audição da criança tem por finalidade permitir que a mesma possa exprimir a sua opinião, a audição já não está sujeita às regras previstas nos referidos nºs 6 e 7 do referido artigo 5º do RGPTC e, por isso, pode ser realizada sem a presença de qualquer mandatário, e sem a presença dos progenitores.
É o que se depreende, em nosso entender, do estabelecido nos referidos n.ºs 1 e 4 do artigo 5º do RGPTC, relevando essencialmente que a opinião da criança seja manifestada de forma clara e inequívoca, com espontaneidade e de forma genuína e autêntica (v. Tomé d’ Almeida Ramião, Regime Geral do Processo Tutelar Cível, Anotado e Comentado, Quid Iuris Sociedade Editora, 3ª Edição, p. 31).
Por outro lado, para além da audição da criança poder ser feita sem a presença dos progenitores e mandatários, pode-lhe ser atribuído carácter de confidencialidade, se daí resultar que a criança conseguirá manifestar a sua opinião de forma espontânea genuína, e em particular se foi ela quem o solicitou ao juiz, o qual “em tais circunstâncias, está sujeito ao dever de confidencialidade e, por isso, impedido de quebrar a confiança nele depositada e o sigilo que lhe foi pedido” (v. o citado acórdão da Relação de Lisboa de 24/10/2024, que aqui acompanhamos).
É neste sentido também a posição assumida na doutrina.
Assim, Rossana Martingo Cruz (Regime Geral do Processo Tutelar Cível anotado, coord. Cristina Araújo Dias, João Nuno Barros e Rossana Martingo Cruz, Almedina, 2024-Reimpressão, p. 110) questionando se pode existir audição da criança sem contraditório ou sem a presença de mandatários dos progenitores, afirma que “[p)arece que será de distinguir duas situações: a audição da criança como forma de dar corpo ao princípio da sua participação, conferindo-lhe uma voz no processo, permitindo que ela possa expressar, da forma mais livre e espontânea possível, a sua opinião (dando corpo ao previsto no art. 4º/1, c) e art. 5/1 a 5); e a sua tomada de declarações como meio probatório, sujeita a contraditório, nos termos do art. 5º/6 e 7.” (v. no mesmo sentido, a Dissertação de Mestrado de Carla Sofia Reis das Neves Morgado “O princípio da audição da criança Enquadramento jurídico, evolução histórica e problemáticas atuais”, sob orientação da Professora Dra. Margarida Silva Pereira Lisboa, Lisboa 2024, disponível para consulta em https://repositorio.ulisboa.pt/bitstream/10400.5/99570/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20-%20Audi%C3%A7%C3%A3o%20da%20crian%C3%A7a%20-%20Carla%20Morgado_vfinal.pdf).
Também Paulo Guerra (Regime Geral do Processo Tutelar Cível anotado, coord. Cristina Araújo Dias, João Nuno Barros e Rossana Martingo Cruz, Almedina, 2024-Reimpressão, p. 85) defende que: “…a audição da criança para ser ouvida com vista a emitir a sua opinião (artº 5º nº 1 e 2) não se confunde com a audição para tomada de declarações para efeitos probatórios (artº 5º nºs 6 e 7), podendo fazer-se duas diligências seguidas, caso se queira ouvir a criança e tomar o seu depoimento para efeitos probatórios. Do exposto flui que as declarações a que respeitam os nºs 6 e 7 do preceito em análise, constituem um meio de prova legalmente admitido, a produzir quando o superior interesse da criança o exija, devendo ser atendido nos termos do artº 413º do CPC. (…) “…como se disse, liberdade significa, também, que a criança tem direito de escolher entre falar e não falar sobre o assunto em questão. Além de que não podemos olvidar que a criança tem direito de contar, com garantia de confidencialidade, a CPCJ, o MP, o juiz e o seu advogado nos termos do artº 58º nº 1 al. g) da LPCGP…Este direito não se coaduna, realmente, com as regras do artº 5º nºs 6 e 7, pensadas para a obtenção de um depoimento probatório. Vale isto para dizer que a audição da criança para livremente exprimir a sua opinião (artº 5º nº 1) não está sujeita às regras enunciadas no mesmo artº 5º nºs 6 e 7 do RGPTC, designadamente a uma inquirição – pelo juiz, com perguntas adicionais pelo Ministério Público e pelos advogados – gravada mediante registo áudio ou audiovisual (podendo sê-lo, mas apenas para uso pessoal do julgador.” (sublinhado nosso).
No mesmo sentido, e a propósito da “Confidencialidade do depoimento”, Rui Alves Pereira (“Por uma Cultura da Criança Enquanto Sujeito de Direitos “O Princípio da Audição da Criança”, Revista Julgar, online, setembro de 2015, p. 14-15, disponível em https://julgar.pt/por-uma-cultura-da-crianca-enquanto-sujeito-de-direitos-o-principio-da-audicao-da-crianca/) afirma que “reveste especial importância quem está presente na audição da Criança, questão que está intimamente ligada à possibilidade de considerar o depoimento da Criança completamente confidencial como acontece no sistema alemão. Com efeito, perante os Tribunais Alemães, a audição é realizada pelo juiz mas todos os dados colhidos têm carácter secreto, com o intuito de não se violar a relação de confiança estabelecida com a Criança, pelo que não pode constar, de forma patente, da decisão a proferir. O princípio da confidencialidade do depoimento, que não é uso no nosso sistema jurídico, levaria igualmente a que o depoimento da Criança não fosse reduzido a escrito, evitando as habituais repercussões nas relações com os pais quando estes têm acesso ao que foi dito pela Criança”.
Acompanhamos aqui o entendimento de que a audição da criança, enquanto direito subjetivo a manifestar a sua opinião, pode ser rodeada da garantia da confidencialidade das suas declarações, em particular quando é essa a sua vontade e ela própria o solicita ao juiz, o qual “em tais circunstâncias, está sujeito ao dever de confidencialidade e, por isso, impedido de quebrar a confiança nele depositada e o sigilo que lhe foi pedido” (cfr. o citado acórdão da Relação de Lisboa de24/10/2024).
Na verdade, pese embora os direitos e interesses dos pais possam ser tidos em consideração, é sempre o superior interesse da criança que tem primazia e deve prevalecer, sobrepondo-se aos interesses dos pais.
Do exposto decorre não se mostrar verificada a invocada nulidade, improcedendo também nesta parte a apelação.
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3.4. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Sustenta o Recorrente que a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia. Vejamos.
Dispõe o n.º 1 do artigo 615º do CPC que:
1 - É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.
Como é sabido, as decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respetiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respetiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º.
No que se refere à alínea d) do n.º 1 do referido artigo 615º prende-se a mesma com a omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) ou com o excesso de pronúncia (quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento).
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronúncia) há-de resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do CPC do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Contudo, há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito; aquelas reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal, “enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/03/2021, Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, Relatora Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt).
Sustenta o Recorrente que a sentença é nula por omissão de pronúncia uma vez que o Tribunal a quo optou por não conhecer da factualidade por si alegada, que entende ser absolutamente fundamental para a decisão sobre o mérito da causa e que consta dos seus requerimentos de 24/02/2025 e 10/03/2025.
Importa referir que a decisão recorrida, não obstante não ter levado à matéria de facto provada (nem tendo julgado factos não provados, considerando inexistirem outros factos com interesse para a decisão da causa) factualidade alegada pelo Recorrente, não é absolutamente omissa relativamente à mesma.
Por um lado, no ponto 16) dos factos provados consta que o progenitor entende que o filho deve residir consigo uma vez que o dinheiro da pensão de alimentos que paga à mãe não está a ser usada com o AA, devido a prodigalidade da mãe; o vestuário da criança é parco e de baixa qualidade; no verão de 2024, a diretora da escola disse-lhe que o menor estava a faltar à escola e que o menor estava insatisfeito com a vida familiar; que a escola privada do AA não foi paga pela mãe durante dois anos; que mãe e filho estão à beira de serem despejados por falta de pagamento de rendas; acusa a mãe de permissividade na gestão do quotidiano do filho (horas a mais a jogar no telemóvel, bebe muitos refrigerantes); que teve desmaios; invoca a instabilidade emocional da mãe, e que o companheiro desta (DD) teve problemas com a justiça no passado, agrediu outro filho do casal (EE, já maior) há 3 anos, e perturbou a outra filha do casal (FF, também maior); por fim, contava que a mãe viesse viver para Portugal e assim, poder ajudar o filho presencialmente, em conformidade com as declarações que prestou, como nela ainda se pode ler que: “(…) quando o pai alega, como razões para a retenção da criança, que o dinheiro da pensão de alimentos que paga à mãe não está a ser usada com o AA, devido a prodigalidade da mãe; o vestuário da criança é parco e de baixa qualidade; que no verão de 2024, a diretora da escola lhe disse que o menor estava a faltar à escola e que o menor estava insatisfeito com a vida familiar; que a escola privada do AA não foi paga pela mãe durante dois anos; que mãe e filho estão à beira de serem despejados por falta de pagamento de rendas; acusa a mãe de permissividade na gestão do quotidiano do filho (horas a mais a jogar no telemóvel, bebe muitos refrigerantes), tais questões, mesmo a serem verdade, são relativas aos cuidados a prestar à criança, (os dois desmaios da criança foram explicados e não tiveram repercussões de maior) que têm de ser apreciados nas instâncias brasileiras, em sede de procedimentos tutelares cíveis, não sendo fundamento para retenção da criança. O presente processo tem, assim, por objeto, o regresso da criança que foi deslocada ou retida ilicitamente noutro Estado ao Estado de origem e, por conseguinte, não tem o mesmo objeto nem a mesma causa de pedir que os procedimentos judiciais destinados a regular ou alterar o exercício das responsabilidades parentais”.
Por outro lado, há pontos na matéria de facto provada que, ainda que julgados provados tendo por base as declarações da progenitora, têm a sua génese na alegação do Recorrente; é o que ocorre designadamente com o ponto 21), relativamente a desmaios da criança, que foram alegados pelo Recorrente no artigo 129) do seu requerimento de 9/03 onde refere que “O Menor tem vindo a manifestar sintomatologia preocupante, sofrendo desmaios, (…).”
De todo o modo, não estando agora em causa apreciar se a matéria de facto deve ser ampliada, o vicio de deficiência de matéria de facto, que pode até ser conhecido oficiosamente pela Relação (cfr. artigo 662º n.º 2, alínea c) do CPC), podendo implicar a anulação do julgamento quando não constam do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, não determina a nulidade da sentença.
A eventual omissão da decisão de factos que fossem relevantes para a boa decisão da causa segundo as possíveis soluções jurídicas da causa poderia implicar uma necessidade de ampliação e até uma anulação da decisão da matéria de facto, e repetição do julgamento, mas já não a nulidade da sentença, pois trata-se de circunstâncias, de vícios e de regime completamente diversos da nulidade da sentença.
O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem na nulidade da sentença, designadamente em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608º n.º 2, do CPC, mas a erros de julgamento (v. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/03/2017, Processo n.º 7095/10.7TBMTS.P1.S1, Relator Conselheiro Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, como já referimos, as nulidades da sentença não se confundem com o chamado erro de julgamento, não padecendo a sentença recorrida da apontada nulidade.
Em face do exposto importa concluir que não ocorre a invocada nulidade, improcedendo, por isso, desde já e nesta parte, a apelação.
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3.5. Da modificabilidade da decisão de facto
Decorre do n.º 1 do artigo 662º do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Sustenta o Recorrente a existência de erro de julgamento quanto aos pontos 1), 7), 11), 16), 17), 18), 19), 20) e 21) dos factos provados.
Analisemos então os motivos da sua discordância.
Do ponto 1) dos factos provados: “1) AA nasceu no ..., Brasil, em ../../2015 e é filho de CC e de BB, residindo habitualmente com a sua mãe na Av. ..., ..., ..., ..., CEP ..., Brasil”.
Alega o Recorrente que da certidão de assento de nascimento não se pode extrair a morada de residência habitual do Menor, nem com quem o mesmo habita e que a morada de residência da Requerida é na Estrada ..., ..., ..., ..., ..., CEP: ..., Brasil, sendo que efetivamente o Menor reside com a sua avó na Av. ..., ..., ..., ..., ..., CEP ..., Brasil e que o apartamento ...01, referido no ponto 1) é o apartamento em que a Requerida e o Menor residiam até meados de 2022, de onde saíram, para se mudarem para a atual morada, encontrando-se atualmente arrendado a terceiros. Vejamos.
Quanto ao ponto 1) dos factos provados o Tribunal a quo consignou na motivação da matéria de facto resultar da certidão do assento de nascimento junta aos autos.
Assiste razão ao Recorrente quando afirma que do assento de nascimento não resulta a residência habitual da criança e com nem com quem o mesmo habita.
Por outro lado, analisada a procuração junta aos autos pela progenitora, com data de 20 de janeiro de 2025, verificamos que a sua residência é na Estrada ..., ..., ..., ..., ..., CEP: ..., Brasil, conforme alega o Recorrente, o que resulta também das declarações prestadas pela progenitora (a cuja audição integral procedemos, bem como das declarações prestadas pelo Recorrente) que esclareceu ter residido num apartamento próprio na ..., ..., e ter mudado para um apartamento arrendado no ..., onde reside há cerca de 3 anos com os dois filhos EE e AA. Assim, altera-se a redação do ponto 1) dos factos provados para que passe a constar: “1) AA nasceu no ..., Brasil, em 6/01/2015 e é filho de CC e de BB, residindo habitualmente com a sua mãe na Estrada ..., ..., ..., ..., ..., CEP: ..., Brasil”.
Do ponto 7) dos factos provados: “7) Para efetivar, mais uma vez, o direito de visita, CC viajou com o menor AA para Portugal em 18/12/2024, com destino ao aeroporto do Porto, tendo sido adquirido, desde logo, bilhete para o regresso ao Brasil, no voo com partida do dito aeroporto no dia 21/01/2025”.
Alega o Recorrente que quer em termos práticos, quer a nível legal, não é necessário que a Requerida acompanhe os seus filhos em visita ao pai, ora Recorrente, em Portugal e que o Menor e os seus irmãos costumavam viajar sozinhos ou com serviço especial de assistência da companhia aérea, tendo a progenitora vindo a Portugal juntamente com o Menor e o irmão com um intuito exploratório (emprego, habitação) com a finalidade de se mudar para Portugal no decurso deste ano, conforme resulta das declarações do Recorrente.
Vejamos.
Quanto ao ponto 7) o Tribunal a quo consignou na motivação da matéria de facto resultar das declarações dos pais, assim admitidos por acordo.
Tendo em atenção que está em causa a matéria de facto, naturalmente de nada releva a questão de ser necessário, designadamente em termos legais, que a progenitora acompanhe os seus filhos em visita ao Recorrente, em Portugal e nem que estes costumavam viajar sozinhos ou com serviço especial de assistência da companhia aérea; a verdade é que em dezembro de 2024 a progenitora viajou com os filhos, AA e EE, e a viagem destinou-se a efetivar o direito de visita relativamente ao AA.
Assiste, contudo, razão ao Recorrente, ainda que diretamente nenhum relevo assuma para a sua pretensão, quando alega que a viagem por parte da progenitora se destinava também a ver, segundo a própria declarou, “como estava Portugal”, para ver se voltavam a morar cá, tendo o Recorrente pago à progenitora a viagem e a hospedagem em ..., e disponibilizado um veículo para ela se deslocar.
Da conjugação das declarações prestadas por ambos os progenitores resulta que o regresso da progenitora, e da criança, para morar em Portugal era uma possibilidade discutida entre os dois.
Assim, altera-se a redação do ponto 7) dos factos provados para que passe a constar: “7) Para efetivar, mais uma vez, o direito de visita, e ainda para se inteirar da possibilidade de morar em Portugal, Portugal CC viajou com o menor AA para Portugal em 18/12/2024, com destino ao aeroporto do Porto, tendo sido adquirido, desde logo, bilhete para o regresso ao Brasil, no voo com partida do dito aeroporto no dia 21/01/2025”.
Do ponto 11) dos factos provados: “11) O menor está matriculado no ano letivo de 2025 (que começa em fevereiro) na Escola ..., LTDA no 5º ano do Ensino Fundamental I, no ...”.
Sustenta o Recorrente que alegou (juntando documentação), que a Requerida, por regra, não paga a escola do Menor, tendo o Recorrente, para além do dinheiro que lhe envia, tido que pagar um ano de escola em atraso e que somente em virtude do pagamento feito pelo Recorrente das prestações em atraso é que a Requerida terá conseguido matricular o Menor na mesma escola. Vejamos.
Quanto ao ponto 11) o Tribunal a quo consignou na motivação da matéria de facto resultar do comprovativo de matricula junto aos autos e das declarações da mãe.
Conforme decorre do por si alegado, o Recorrente não impugna verdadeiramente a factualidade constante deste ponto, que aliás se confirma pelo comprovativo de matricula junto aos autos; o que o Recorrente pretende é que seja dada como provada outra factualidade.
Deve, pois, manter-se o ponto 11) dos factos provados.
Do ponto 16) dos factos provados: “16) O progenitor entende que o filho deve residir consigo uma vez que o dinheiro da pensão de alimentos que paga à mãe não está a ser usada com o AA, devido a prodigalidade da mãe; o vestuário da criança é parco e de baixa qualidade; no verão de 2024, a diretora da escola disse-lhe que o menor estava a faltar à escola e que o menor estava insatisfeito com a vida familiar; que a escola privada do AA não foi paga pela mãe durante dois anos; que mãe e filho estão à beira de serem despejados por falta de pagamento de rendas; acusa a mãe de permissividade na gestão do quotidiano do filho (horas a mais a jogar no telemóvel, bebe muitos refrigerantes); que teve desmaios; invoca a instabilidade emocional da mãe, e que o companheiro desta (DD) teve problemas com a justiça no passado, agrediu outro filho do casal (EE, já maior) há 3 anos, e perturbou a outra filha do casal (FF, também maior); por fim, contava que a mãe viesse viver para Portugal e assim, poder ajudar o filho presencialmente”.
Sustenta o Recorrente que ao iniciar a redação do facto constante de 16) com “O progenitor entende”, o Tribunal a quo classifica a factualidade aí inserida como mera opinião do ora Recorrente o que equivale a uma omissão de pronúncia, na medida em que esses e muitos outros factos foram expressamente alegados pelo Recorrente.
Vejamos.
Quanto ao ponto 16) o Tribunal a quo consignou na motivação da matéria de facto resultar das declarações do Recorrente.
Conforme decorre da alegação do Recorrente o mesmo não impugna o teor do ponto 16) mas invoca a circunstância de entender que a matéria de facto é omissa quanto a factos por si alegados (sendo que adiante iremos apreciar a necessidade de ampliação da matéria de facto).
Deve, pois, manter-se o ponto 16).
Do ponto 17) dos factos provados: “17) A mãe vive, no Brasil, num apartamento com sala, cozinha, WC e dois quartos, um dos quais partilhado pelo menor com o irmão EE, já maior de idade, dormindo em beliche”.
Sustenta o Recorrente que alegou nas suas exposições e referiu nas declarações que prestou que o Menor, na morada de residência da Requerida, não tem cama própria, dormindo com a mãe e que a maior parte das noites, no entanto, são passadas em casa da avó materna, na ..., dormindo o Menor na cama daquela. Vejamos.
Quanto ao ponto 17) o Tribunal a quo consignou na motivação da matéria de facto resultar das declarações da mãe.
Decorre das declarações prestadas pela mãe que o apartamento onde reside com a criança e o irmão EE, no Brasil, tem dois quartos (é um T2), que os irmãos dormem no mesmo quarto que tem beliches, e ela dorme no outro quarto, reconhecendo que por vezes de madrugada o AA foge para a cama dela.
Deve, pois, manter-se o ponto 17).
Dos pontos 18) e 19) dos factos provados: “18) A mãe teve um relacionamento amoroso com DD desde março de 2022, morando juntos em casa daquela durante 3 meses, de abril a junho desse ano; em final de junho, DD saiu de casa e a relação terminou em fevereiro de 2023”. “19) DD era, à data referida em 18), treinador de ju-jitsu do AA e da mãe, desporto que praticavam em conjunto, tendo a criança bom relacionamento com o companheiro da mãe”.
Sustenta o Recorrente que alegou que o namorado da Requerida, DD, abandonou o apartamento ...01, na ..., onde aquela e os filhos residiam, devido a gravíssimos problemas com os filhos GG e o EE, que mudando-se a Requerida, juntamente com o Menor e o EE para a atual morada, no ..., o DD, continuou a pernoitar com a mesma e que o relacionamento entre este e a Requerida se mantém atualmente, sendo este indivíduo uma pessoa muito perigosa e instável, sendo por aquela protegido em detrimento dos filhos, incluindo o Menor.
Alega ainda que não é verdade que o Menor tenha um bom relacionamento com o DD, pois este tem medo dele, conforme alegado e declarado pelo Recorrente. Vejamos.
Quanto aos pontos 18) e 19) o Tribunal a quo consignou na motivação da matéria de facto resultarem das declarações da mãe.
Ouvidas as declarações prestadas pela progenitora, a mesma confirma que casou com o Tiago em 2021 e que após a separação em 2022 conheceu o DD, professor de jiu-jitsu do AA e dela e de Surf do EE; esclareceu que começaram a namorar em março de 2022, moraram juntos durante 3 meses, em abril, maio e junho de 2022, depois o DD foi viver para casa dele, continuando o relacionamento até fevereiro de 2023.
A progenitora referiu ainda que o AA gostava dele e que quando foi a separação (ao contrario do que ocorreu aquando da separação do Tiago em que expressou tristeza) o AA não expressou tristeza pois continuava a ver o DD que era seu professor.
Ouvidas as declarações prestadas pelo Recorrente o mesmo refere efetivamente que problemas entre os filhos mais velhos, EE e a FF, com o DD e que o AA tem medo do DD, mas refere também que acha que a progenitora já não vive com ele, embora ache que mantêm um relacionamento.
Assim, considerando as declarações prestadas pela progenitora quanto ao fim do relacionamento em 2023, continuando DD a ser professor, não se nos afigura contrário às regras da experiência comum que o AA possa ter um bom relacionamento com aquele.
Por outro lado, reiteramos que a audição da criança visou que a mesma expressasse a sua opinião, a considerar na decisão a tomar e na determinação do seu superior interesse, não tendo a mesma sido ouvida em declarações como meio de prova.
Devem, pois, manter-se os pontos 18) e 19) dos factos provados.
Do ponto 20) dos factos provados: “20) AA tem acompanhamento psicológico semanal no Brasil desde 24/5/2022 e nas primeiras sessões de avaliação, a criança AA demonstrou excessiva preocupação e medo, ansiedade importante e certa tristeza; as questões centrais apresentadas pela mãe foram dificuldades em controlar a raiva e certa ansiedade; carece ainda hoje de acompanhamento psicoterapêutico para trabalho de expressão e validação de sentimentos, aprender sobre eles e aprender a expressá-los da forma mais saudável e bem assim, continuar o trabalho de autorregulação, auxiliar o mesmo a ressignificar alguns acontecimentos, promover o autoconhecimento, excluir possibilidades de crises ansiosas e depressivas”.
Sustenta o Recorrente que esta factualidade é contraditória com os dois relatórios psicológicos juntos aos autos (um dos quais pelo Recorrente), ambos datados de 03/02/2025 e encontram-se assinados pela mesma pessoa, sendo que um deles se reporta a 2022 e o outro não apresenta qualquer relatório cronológico; e é também contraditório com o teor do relatório escolar junto pelo Recorrente, que estabelece uma factualidade reportada a 2024, sem mencionar qualquer acompanhamento psicológico do Menor, sendo certo que a escola teria seguramente conhecimento, se assim fosse, que tal acompanhamento existia. Vejamos.
Quanto ao ponto 20) o Tribunal a quo consignou na motivação da matéria de facto resultar das declarações da mãe e corroboradas pelo relatório de psicologia clinica junto pela mãe em 28/02/2025 e do relatório de psicologia clinica junto a 11/03 pelo Recorrente.
Ouvidas as declarações prestadas pela progenitora constatamos que declarou apenas ter tido conhecimento do relatório da escola junto aos autos através do Recorrente e que a escola nada lhe disse; confirmou que o AA tem consultas de psicologia (resultando dos relatórios de psicologia que a entrevista inicial ocorreu em 24 de maio de 2022), sendo 4 consultas por mês com o AA e a 5ª com ela, e que a frequência das consultas teve a ver com a timidez do AA que desde pequeno é tímido e envergonhado, esclarecendo que sempre informou o Recorrente dessas consultas.
Ouvidas as declarações prestadas pelo Recorrente constata-se que o mesmo confirma ser do seu conhecimento que no Brasil o AA tinha uma psicóloga com quem, segundo relatou, tentou falar uma vez sem o conseguir.
Analisado o relatório de psicologia em causa, que foi junto pelo Recorrente, e que este transcreveu no seu requerimento de 9/03/2025, consta o seguinte: “4. ANÁLISE: AA apresentou na época certa dificuldade na regulação das emoções, principalmente o medo e a ansiedade. Fez relatos de medo, demonstrando importante ansiedade. Foi observado certo distanciamento de algumas relações afetivas. Os principais traços encontrados foram: certa tristeza, preocupação e insegurança. 5. CONCLUSÃO: Concluso que AA necessita estar em psicoterapia objetivando continuar o trabalho de autorregulação, auxiliar o mesmo a ressignificar alguns acontecimentos, promover o autoconhecimento, excluir possibilidades de crises ansiosas e depressivas. As sessões contratadas têm periodicidade de 1 (uma) vez por semana, em dia e horário fixo, conforme acordo estabelecido entre cliente e psicóloga. Os atendimentos são realizados sempre no consultório localizado na Avenida ..., ..., ..., .... Cada sessão terá 50 minutos de duração”.
Quanto ao relatório escolar, na parte respeitante ao “Parecer Equipe Pedagógica” consta que com base na orientação da mãe procuraram o pai para reportar essas situações e que seguiam com o acompanhamento necessário para garantir o bem-estar do aluno, recomendando que continue sendo acompanhado de perto com o apoio de profissionais especializados para que possam trabalhar em conjunto com a família no suporte emocional.
Não vemos, por isso, qualquer contradição entre a factualidade julgada provada no ponto 20) e a prova constante dos autos.
Deve, pois, manter-se o ponto 20) dos factos provados.
Do ponto 21) dos factos provados: “21) Em datas não apuradas do ano passado, AA desmaiou uma vez na escola e outra em casa, no Brasil, por desidratação, devido ao intenso calor e concomitante falta de ingestão de líquidos nessas duas ocasiões, tendo recuperado consciência logo de seguida e hidratado”.
Sustenta o Recorrente que a forma como ficou provado o facto constante de 21) é antagónica às regras da experiência comum, na medida em que a desidratação por falta de ingestão de líquidos somente poderia resultar de negligência materna e que não corresponde à verdade que uma das ocasiões tenha sido na escola, tendo ocorrido ambas quando o Menor estava na companhia da mãe. Vejamos.
Quanto ao ponto 21) o Tribunal a quo consignou na motivação da matéria de facto resultar das declarações da mãe e as circunstâncias e razão dos desmaios terem sido explicadas com coerência pela mãe, donde credíveis.
Ouvidas as declarações da mãe, que esclareceu de forma detalhada e coerente as circunstâncias em que os dois desmaios ocorreram, concordamos com a convicção do Tribunal a quo, sendo certo que a afirmação pretendida pelo Recorrente de que tal se deveu a negligência materna tem natureza conclusiva e, por isso, não deve constar da matéria de facto.
Contudo, assiste efetivamente razão ao Recorrente quando alega que ambas as situações de desmaio ocorreram quando o filho estava na companhia da mãe, concretamente em casa.
De facto, ouvidas as declarações prestadas pela mãe resulta de forma inequívoca que a mesma afirma que ambos os desmaios ocorreram em casa, ainda que na primeira vez quando tinha chegado da escola, por estar muito calor, ter tido educação física e não ter bebido água.
Assim, altera-se a redação do ponto 21) dos factos provados para que passe a constar: “21) Em datas não apuradas do ano passado, AA desmaiou duas vezes em casa, no Brasil, por desidratação, devido ao intenso calor e concomitante falta de ingestão de líquidos nessas duas ocasiões, tendo recuperado consciência logo de seguida e hidratado”.
Quanto ao ponto 22) dos factos provados: “22) O AA pediu com veemência para regressar ao Brasil na companhia da mãe, não pretendendo permanecer em Portugal junto do pai”.
Sustenta o Recorrente que se encontra impossibilitado de sindicar a decisão do Tribunal a quo quanto a este ponto da matéria de facto.
Reiteramos aqui o já exposto a propósito da confidencialidade das declarações da criança, salientando novamente que a mesma foi ouvida para manifestar a sua opinião quanto ao seu regresso ao Brasil ou a sua permanência em Portugal, junto do pai, ao abrigo do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 5º do RGPTC, e não para que as suas declarações fossem consideradas como meio probatório.
Veja-se que do despacho proferido em 19/02/2025 consta expressamente “Para audição da criança nos termos do artigo 13º parag. 2 da Convenção”, e nesse artigo prevê-se que a autoridade judicial pode recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
De todo o modo, não compreendemos como poderia o Recorrente pretender impugnar o ponto 22) dos factos provados, se ele próprio, de forma espontânea e sensata, afirmando conhecer bem o filho, reconheceu nas suas declarações que o filho lhe diz que quer estar com a mãe e que não foi novidade a informação prestada pelo Tribunal a quo da vontade manifestada pela criança em regressar ao Brasil. Deve, pois, manter-se o ponto 22) dos factos provados.
Por último importa indagar se devem ser aditados novos factos.
Sustenta o Recorrente que o Tribunal não conheceu a factualidade por si alegada que entende ser absolutamente fundamental.
A este propósito consta da sentença recorrida o seguinte: “(…) quando o pai alega, como razões para a retenção da criança, que o dinheiro da pensão de alimentos que paga à mãe não está a ser usada com o AA, devido a prodigalidade da mãe; o vestuário da criança é parco e de baixa qualidade; que no verão de 2024, a diretora da escola lhe disse que o menor estava a faltar à escola e que o menor estava insatisfeito com a vida familiar; que a escola privada do AA não foi paga pela mãe durante dois anos; que mãe e filho estão à beira de serem despejados por falta de pagamento de rendas; acusa a mãe de permissividade na gestão do quotidiano do filho (horas a mais a jogar no telemóvel, bebe muitos refrigerantes), tais questões, mesmo a serem verdade, são relativas aos cuidados a prestar à criança, (os dois desmaios da criança foram explicados e não tiveram repercussões de maior) que têm de ser apreciados nas instâncias brasileiras, em sede de procedimentos tutelares cíveis, não sendo fundamento para retenção da criança. O presente processo tem, assim, por objeto, o regresso da criança que foi deslocada ou retida ilicitamente noutro Estado ao Estado de origem e, por conseguinte, não tem o mesmo objeto nem a mesma causa de pedir que os procedimentos judiciais destinados a regular ou alterar o exercício das responsabilidades parentais”.
Concordamos inteiramente com este entendimento.
Os factos alegados pelo Recorrente, e que em seu entender justificariam a retenção do filho em Portugal, não relevam, na sua generalidade, para o âmbito da presente ação tutelar civil para regresso da criança ao Estado da residência habitual (Brasil), podendo relevar eventualmente para um processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais, se o Recorrente assim o entender, a correr no Brasil.
Veja-se, de todo o modo, que o Recorrente se limita a invocar de forma genérica que o Tribunal a quo não conheceu da factualidade por si alegada e a reproduzir essa factualidade, sem qualquer preocupação de especificar os factos concretos que entende essenciais, sendo certo que, conforme já referimos há factos por si alegados no requerimento de 9/03/2025 que foram considerados pelo Tribunal a quo (ainda que possam não ter sido exatamente no sentido por si pretendido).
Veja-se que o próprio Recorrente alega no seu requerimento de 9/03/2025 que: “37. Os principais fatores de risco são os seguintes: a. Ideações suicidas do Menor, relacionadas com o ambiente familiar da Requerida; b. Absentismo escolar do Menor, gravemente comprometedor da sua aprendizagem; c. Não pagamento pela Requerida das mensalidades escolares do Menor, o que tem levado a que o mesmo tenha que mudar de escola todos os anos; d. Risco iminente de despejo da Requerida do apartamento onde reside com o Menor; e. Utilização do dinheiro enviado pelo Requerido para o Menor em benefício próprio da Requerida; f. Relacionamento amoroso da Requerida com um indivíduo toxicodependente, com extenso registo criminal, inclusivamente por tentativa de homicídio de uma anterior companheira, que tem sido violento no ambiente familiar da Requerida, tendo já agredido o irmão do AA, o EE”.
Tal como referido pelo Tribunal a quo o absentismo escolar, o não pagamento pela Requerida das mensalidades escolares, o não pagamento das rendas do apartamento e a utilização do dinheiro enviado pelo Recorrente para a criança em benefício próprio da mãe, mesmo a serem verdade, são questões que não podem ser consideradas fundamento para retenção da criança em Portugal, pelo que não interessa proceder ao aditamento dos factos que se prendem com as mesmas.
Quanto ao relacionamento da progenitora com DD consta dos factos provados e o mesmo cessou em fevereiro de 2023.
Por último, e uma vez que consta dos factos provados a situação escolar do menor desde que se encontra em Portugal e a frequentar a Escola Básica ... no AGRUPAMENTO DE ESCOLAS ... ..., em ..., entendemos ser de levar a matéria de facto provada a situação escolar do menor em 2024 no Brasil, em conformidade com o relatório da Escola ... junto aos autos, aditando dois novos pontos, que serão o n.º 11-A) e e 11-B) e terão a seguinte redação: “11-A) O menor em 2024 frequentou no Brasil o 4º ano do Ensino Fundamental I, na Escola ..., no ..., constando do Relatório de Desenvolvimento do 2º Semestre, que aqui damos por integralmente reproduzido, ter sido avaliado nos vários aspetos da componente social e emocional com “Bom” e “Ótimo”; no comportamento e participação com “Bom” e “Ótimo”, no programa bilibgue com “apresenta dificuldade” (participa do Edify Play), “em desenvolvimento” e “Bom” e na parte académica com “Bom” e “Ótimo” (no interesse pelas disciplinas) e “em desenvolvimento” quanto à frequência em aula” “11-B”) Quanto ao “Parecer Equipe Pedagógica” que faz parte do Relatório referido no número anterior, dele consta que o AA apresentou comportamentos que merecem atenção e acompanhamento cuidadoso, compartilhou dificuldades familiares e expressou episódios de insatisfação, sendo identificados sinais de abalo emocional, incluindo declarações sobre intenções suicidas e insatisfação com a vida, consta também que com base na orientação da mãe procuraram o pai para reportar essas situações e que seguiam com o acompanhamento necessário para garantir o bem estar do aluno, recomendando que continue sendo acompanhado de perto com o apoio de profissionais especializados para que possam trabalhar em conjunto com a família no suporte emocional”.
*
Passará, assim a matéria de facto a ter a seguinte formulação:
3.1. Os factos 1) AA nasceu no ..., Brasil, em 6/01/2015 e é filho de CC e de BB, residindo habitualmente com a sua mãe na Estrada ..., ..., ..., ..., ..., CEP: ..., Brasil.
2) Os progenitores do AA estão divorciados desde ../../2017, por sentença judicial proferida na Vara de Família da Comarca Regional da ... – ..., que homologou o acordo alcançado entre aqueles relativamente ao exercício das responsabilidades parentais do menor.
3) Essa sentença transitou em julgado e foi revista e confirmada por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/05/2019 e transitou em 11/6/2019.
4) Nos termos do dito Acordo, foi atribuída à progenitora a guarda unilateral e responsabilidade sobre os filhos menores do casal, incluindo o AA, nos termos do art. 1859.º do Código Civil Brasileiro.
5) Ficou ainda estabelecido o direito de visita do progenitor, nomeadamente no período de férias escolares, estipulando-se que as crianças dividiriam esse tempo entre ambos os progenitores.
6) O menor sempre viveu no Brasil, viajando regularmente para Portugal para visitar o pai e retornando no final da visita àquele país. 7) Para efetivar, mais uma vez, o direito de visita, e ainda para se inteirar da possibilidade de morar em Portugal, Portugal CC viajou com o menor AA para Portugal em 18/12/2024, com destino ao aeroporto do Porto, tendo sido adquirido, desde logo, bilhete para o regresso ao Brasil, no voo com partida do dito aeroporto no dia 21/01/2025.
8) O AA passou o dito período de tempo (desde 20/12/2024) com o pai, tendo este comunicado a CC, na véspera da referida data de regresso, que o menor ia ficar consigo em Portugal, não o entregando à mãe.
9) A decisão de não fazer regressar o AA ao Brasil foi tomada pelo progenitor, sem autorização e contra a vontade da mãe da criança. 10) O menor está a viver com o pai, a mulher deste e um filho menor do casal numa moradia onde o AA dispõe de quarto próprio.
11) O menor está matriculado no ano letivo de 2025 (que começa em fevereiro) na Escola ..., LTDA no 5º ano do Ensino Fundamental I, no ....
11-A) O menor em 2024 frequentou no Brasil o 4º ano do Ensino Fundamental I, na Escola ..., no ..., constando do Relatório de Desenvolvimento do 2º Semestre, que aqui damos por integralmente reproduzido, ter sido avaliado nos vários aspetos da componente social e emocional com “Bom” e “Ótimo”; no comportamento e participação com “Bom” e “Ótimo”, no programa bilibgue com “apresenta dificuldade” (participa do Edify Play), “em desenvolvimento” e “Bom” e na parte académica com “Bom” e “Ótimo” (no interesse pelas disciplinas) e “em desenvolvimento” quanto à frequência em aula”
11-B”) Quanto ao “Parecer Equipe Pedagógica” que faz parte do Relatório referido no número anterior, dele consta que o AA apresentou comportamentos que merecem atenção e acompanhamento cuidadoso, compartilhou dificuldades familiares e expressou episódios de insatisfação, sendo identificados sinais de abalo emocional, incluindo declarações sobre intenções suicidas e insatisfação com a vida, consta também que com base na orientação da mãe procuraram o pai para reportar essas situações e que seguiam com o acompanhamento necessário para garantir o bem estar do aluno, recomendando que continue sendo acompanhado de perto com o apoio de profissionais especializados para que possam trabalhar em conjunto com a família no suporte emocional.
12) O menor, em Portugal, frequenta o 5.º ano da Escola Básica ... no AGRUPAMENTO DE ESCOLAS ... ..., em ..., tendo bom relacionamento com os colegas e a professora.
13) É um aluno tímido, introvertido, mas educado, acata bem as ordens e regras de sala de aula, vai participando nas atividades mas com pouco empenho e interesse.
14) Por vezes, em contexto de sala de aula, o aluno mostra-se pouco participativo, desmotivado e alheado no seu mundo interior, contudo quando “chamado à atenção” pelos docentes corresponde aos pedidos.
15) É uma criança sociável, que gosta de brincar e ter amigos.
16) O progenitor entende que o filho deve residir consigo uma vez que o dinheiro da pensão de alimentos que paga à mãe não está a ser usada com o AA, devido a prodigalidade da mãe; o vestuário da criança é parco e de baixa qualidade; no verão de 2024, a diretora da escola disse-lhe que o menor estava a faltar à escola e que o menor estava insatisfeito com a vida familiar; que a escola privada do AA não foi paga pela mãe durante dois anos; que mãe e filho estão à beira de serem despejados por falta de pagamento de rendas; acusa a mãe de permissividade na gestão do quotidiano do filho (horas a mais a jogar no telemóvel, bebe muitos refrigerantes); que teve desmaios; invoca a instabilidade emocional da mãe, e que o companheiro desta (DD) teve problemas com a justiça no passado, agrediu outro filho do casal (EE, já maior) há 3 anos, e perturbou a outra filha do casal (FF, também maior); por fim, contava que a mãe viesse viver para Portugal e assim, poder ajudar o filho presencialmente.
17) A mãe vive, no Brasil, num apartamento com sala, cozinha, WC e dois quartos, um dos quais partilhado pelo menor com o irmão EE, já maior de idade, dormindo em beliche.
18) A mãe teve um relacionamento amoroso com DD desde março de 2022, morando juntos em casa daquela durante 3 meses, de abril a junho desse ano; em final de junho, DD saiu de casa e a relação terminou em fevereiro de 2023.
19) DD era, à data referida em 18), treinador de ju-jitsu do AA e da mãe, desporto que praticavam em conjunto, tendo a criança bom relacionamento com o companheiro da mãe.
20) AA tem acompanhamento psicológico semanal no Brasil desde 24/5/2022 e nas primeiras sessões de avaliação, a criança AA demonstrou excessiva preocupação e medo, ansiedade importante e certa tristeza; as questões centrais apresentadas pela mãe foram dificuldades em controlar a raiva e certa ansiedade; carece ainda hoje de acompanhamento psicoterapêutico para trabalho de expressão e validação de sentimentos, aprender sobre eles e aprender a expressá-los da forma mais saudável e bem assim, continuar o trabalho de autorregulação, auxiliar o mesmo a ressignificar alguns acontecimentos, promover o autoconhecimento, excluir possibilidades de crises ansiosas e depressivas. 21) Em datas não apuradas do ano passado, AA desmaiou duas vezes em casa, no Brasil, por desidratação, devido ao intenso calor e concomitante falta de ingestão de líquidos nessas duas ocasiões, tendo recuperado consciência logo de seguida e hidratado.
22) O AA pediu com veemência para regressar ao Brasil na companhia da mãe, não pretendendo permanecer em Portugal junto do pai.
***
3.6. Da aplicação da providência tutelar cível de regresso da criança ao Estado da residência habitual
Pelo Tribunal a quo foi decidido ordenar o regresso ao Estado da residência habitual (Brasil) de AA, nascido em ../../2015, atualmente a viver com o pai em ....
É contra esta decisão que se insurge o Recorrente sustentando que a fundamentação de Direito da sentença recorrida assenta em dois vetores que são, por um lado, a vontade da criança de regressar com a mãe ao Brasil e, por outro, a ausência de risco intolerável no Brasil e que, relativamente ao primeiro, o Tribunal a quo desvalorizou a possibilidade de alienação parental encetada pela mãe contra o Recorrente e, quanto ao segundo, o Tribunal a quo não conheceu factualidade fundamental consubstanciadora de um risco atual e sério para o Menor na vida que tem com a mãe, no Brasil.
Alega que pelo menos, desde 2022 o Menor tem manifestado uma profunda tristeza, insegurança e ansiedade, estado psíquico esse que se tem vindo a agravar, culminando, em 2024, com a manifestação de ideações suicidas e que este estado psíquico e emocional está necessariamente relacionado com a vida que ele tem no Brasil e com o ambiente familiar da mãe.
Vejamos então.
Conforme já referimos o presente processo foi instaurado ao abrigo da Convenção de Haia de 25 de outubro de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
Como resulta do seu texto, a referida Convenção teve em conta que “os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua custódia” e visou, por isso, proteger a mesma “no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer as formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual.”
Decorre do seu artigo 1º que tem por objeto assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente [alínea a)] e fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante [alínea b)].
Dispõe o artigo 3º da mesma Convenção que a deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:
a) Tenha sido efetivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção;
b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efetiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido,
sendo que o referido direito de custódia pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado. “Estamos perante uma situação de rapto internacional de crianças quando há uma deslocação da criança para um país estrangeiro, ou retenção da criança num país estrangeiro, em violação de um direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo de acordo com a lei da residência habitual da criança antes da deslocação ou retenção, desde que o direito de guarda estivesse a ser efetivamente exercido, ou devesse estar a ser, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção” (Anabela Susana de Sousa Gonçalves, “Breve análise do rapto internacional de crianças na jurisprudência portuguesa”, a consultar em https://repositorium.uminho.pt/bitstream/1822/75292/1/6.%20Breve%20an%C3%A1lise%20do%20rapto%20internacional%20de%20crian%C3%A7as.pdf).
O regresso da criança pode ser recusado com base nos fundamentos previstos no artigo 13º da Convenção de Haia de 1980 onde se estabelece que a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:
a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção;
ou b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
De salientar ainda que o tribunal não tem competência para apreciar as questões de responsabilidade parental, porque para essas quem tem competência é o tribunal da residência habitual da criança (v. neste sentido, entre outros, o acórdão desta Relação de Guimarães de 06-06-2019, Processo n.º 4864/18.3T8GMR-B.G1, Relator José Amaral, disponível em www.dgsi.pr).
O que está em causa nos presentes autos não é, por isso, a definição do projeto de vida da criança, estando as responsabilidades parentais da mesma fixadas conforme acordo homologado por sentença proferida no processo que correu termos no Brasil (pontos 2, 3, 4 e 5 dos factos provados), sendo aí que poderão ser alteradas, pelo que, no caso dos autos, a justiça portuguesa apenas foi chamada a decidir o problema da retenção ilícita da criança em Portugal.
E, no caso concreto, perante a matéria de facto provada, entendemos que não há dúvida que ocorreu a retenção ilícita da criança uma vez que, tendo a criança viajado para Portugal em 18/12/2024, na concretização do direito de visita do Recorrente, nomeadamente no período de férias escolares, e tendo estado com o pai desde o dia 20/12/2024, aquele na véspera do regresso, previsto para 21/01/2025, comunicou à mãe que a criança ia ficar consigo em Portugal, não o entregando à mãe, sendo que a decisão de não fazer regressar a criança ao Brasil foi tomada pelo recorrente sem autorização e contra a vontade da mãe da criança.
Na verdade, estamos perante a retenção de uma criança, efetuada com violação do direito de custódia atribuído pela lei do Estado onde a criança tinha a sua residência habitual, estando esse direito de custódia a ser exercido de maneira efetiva e que continuaria a estar a ser exercido se não se tivesse verificado a retenção.
Ora, se uma criança tiver sido indevidamente retida num Estado Contratante que não seja o da sua residência habitual nos termos do artigo 3º, o tribunal ou a autoridade competente que aprecia o pedido de regresso tem o dever de ordenar o regresso imediato da criança (cfr. artigo 12º, n.º 1 da Convenção; v. neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2024, Processo n.º 976/24.2T8GMR-A.G1.S1, Relatora Fátima Gomes, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A Convenção da Haia impõe aos tribunais que ordenem o regresso da criança ao Estado da sua residência habitual se esta foi retida ilicitamente.
Tal só não ocorrerá se:
a) A parte que pede o regresso da criança não esteja a exercer, de maneira efetiva, o direito de guarda ou tenha consentido ou concordado com a deslocação ou retenção (cfr. artigos 3º, alínea b) e 13º, alínea a) da Convenção);
b) Exista um grave risco de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo, ficar numa situação intolerável (cfr. artigo 13º, alínea b) da Convenção);
c) A criança tenha atingido já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas objeções ao regresso (cfr. artigo 13º, alínea b) da Convenção);
d) O pedido para o regresso não tenha sido apresentado no Estado em que a criança se encontra dentro do período de um ano após a deslocação ou retenção ilícitas e a criança esteja já integrada no seu novo ambiente (cfr. artigo 12.º da Convenção);
e) O regresso da criança não seja consentâneo com os princípios fundamentais do Estado requerido relativos à proteção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (cfr. artigo 20.º da Convenção).
A questão que aqui se impõe responder é, por isso, a de saber se pode/deve ser recusado o regresso da criança ao Brasil e, concretamente, se existe um grave risco de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo, ficar numa situação intolerável.
De facto, não só a mãe exercia de forma efetiva o direito de guarda e não consentiu e nem concordou com a retenção, como a criança não opõe objeções ao regresso (pelo contrário expressou vontade de regressar ao Brasil com a mãe, não pretendendo permanecer em Portugal junto do pai), o pedido para o regresso foi apresentado muito aquém do período de um ano após a retenção ilícita e o regresso da criança não contende com os princípios fundamentais relativos à proteção dos direitos do homem e das liberdades.
Podemos então afirmar a existência de elementos objetivos que permitam considerar demonstrado qualquer risco grave para a criança, se a mesma regressar ao Brasil?
Vejamos.
O conceito de risco a que se reporta o artigo 13º, alínea b) da Convenção deve ser entendido como uma verdadeira e extrema exceção, utilizada apenas em última instância e não como um mecanismo de recusa automática, devendo ser interpretado restritivamente e ponderadamente, sendo claramente de aplicar a situações de maus tratos comprovados, incluindo abuso sexual ou de outro tipo, regresso a zonas de guerra, fome, ou que não respeitem os direitos humanos, que não está em causa na situação da França (v. o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2024; no mesmo sentido o recente acórdão desta Relação de 02/04/2025, Processo n.º 7017/24.8T8BRG.G1, Relatora Ana Cristina Duarte, também disponível para consulta em www.dgsi.pt, onde se pode ler que o “conceito de risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável, deve ser entendido como uma verdadeira exceção, utilizada apenas em última instância e não como um mecanismo de recusa automática”).
Como reconhece Maria dos Prazeres Beleza (JURISPRUDÊNCIA SOBRE RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS, JULGAR - N.º 24 - 2014 Coimbra Editora, p. 85-86, disponível para consulta em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/09/04-MP-Beleza-Jurisprud%C3%AAncia-rapto-internacional.pdf) “[n]a apreciação do risco que justifica a decisão de retenção, a jurisprudência tem observado que nem o Regulamento, nem a Convenção de Haia de 25 de Outubro de 1980 enumeram ou descrevem as situações que o podem integrar; mas que a exigência de gravidade do risco ou de intolerabilidade da situação obrigam a uma interpretação restritiva quanto ao grau de uma e de outra. No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Junho de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 1534/11.7TMLSB-A-L1-7 indicam-se situações de “maus tratos, abuso sexual, regresso a países situados em zona de conflitos, de guerra ou de fome”, ou de “nível de gravidade” semelhante”.
No caso concreto e como já referimos, as razões apontadas pelo Recorrente para a retenção da criança em Portugal, designadamente as que se prendem com o absentismo escolar, o não pagamento pela Requerida das mensalidades escolares, o risco de despejo do apartamento onde a mãe reside com a criança, a utilização do dinheiro enviado pelo Recorrente para o filho em benefício próprio da mãe, ou ainda a alegada permissividade da mãe na gestão do quotidiano do filho, não são fundamento para a retenção da criança não se enquadrando na gravidade do risco exigida pelo artigo 13º, alínea b) da Convenção.
Relativamente às duas situações de desmaio retratadas nos factos provados, que foram explicados pela Progenitora, tiveram caráter esporádico e circunscrito a uma situação de calor intenso e ausência de ingestão de líquidos nas duas ocasiões, não tendo repercussões de maior, não tendo sido dado conhecimento de qualquer outra situação idêntica anterior ou posterior.
Quanto ao relacionamento da progenitora com DD também não podemos concluir pela existência de risco grave para a criança, não só porque os problemas relatados pelo Recorrente existiram entre aquele e os demais filhos, atualmente maiores, e não com a criança, mas essencialmente porque, tendo a mãe e o referido DD morado juntos em casa daquela apenas durante os meses de abril, maio e junho de 2022, a relação terminou em fevereiro de 2023.
De salientar ainda que que os problemas com os filhos mais velhos teriam já ocorrido há cerca de 3 anos pelo que, se efetivamente o Recorrente entendesse que tal configuraria uma situação de risco grave, dificilmente se compreenderia que aguardasse até janeiro de 2025 para não permitir o seu regresso ao Brasil, tanto mais que o filho viajava regularmente para Portugal para o visitar, retornando no final da visita ao Brasil [cfr. ponto 6) dos factos provados].
Por último, relativamente ao estado emocional da criança, resulta efetivamente do “Parecer Equipe Pedagógica” do Relatório da Escola ... referente ao 4º ano, frequentado pela criança em 2024, que o AA apresentou comportamentos que merecem atenção e acompanhamento cuidadoso e compartilhou dificuldades familiares, expressando episódios de insatisfação, sendo identificados sinais de abalo emocional, incluindo declarações sobre intenções suicidas e insatisfação com a vida; mas dele consta também que com base na orientação da mãe procuraram o pai para reportar essas situações e que seguiam com o acompanhamento necessário para garantir o bem estar do aluno, recomendando que continue sendo acompanhado de perto com o apoio de profissionais especializados para que possam trabalhar em conjunto com a família no suporte emocional.
Ora, a situação descrita não foi omitida ao Recorrente e a escola no Brasil, estando alertada, tenciona seguir com o acompanhamento necessário, recomendando acompanhamento especializado com o apoio de profissionais, sendo certo que a criança vem tendo acompanhamento psicológico semanal no Brasil desde 2022, do que também foi dado conhecimento ao Recorrente, e deverá continuar a ter para trabalho de expressão e validação de sentimentos, aprender sobre eles e aprender a expressá-los da forma mais saudável e bem assim, continuar o trabalho de autorregulação, auxiliar o mesmo a ressignificar alguns acontecimentos, promover o autoconhecimento e excluir possibilidades de crises ansiosas e depressivas.
Assim, os problemas emocionais da criança têm vindo a ser objeto de acompanhamento profissional mediante consultas semanais por parte de psicóloga. Do exposto decorre que o regresso da criança ao Brasil não configura, em nosso entender, uma situação de risco grave, até porque, como se salienta no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2024, risco grave não é equivalente a inexistência de risco e o próprio conceito pressupõe que pode haver risco, e nem de poder ser colocada numa situação intolerável e contrária aos seus superiores interesses.
Como já referimos, o conceito de risco deve ser entendido como uma verdadeira exceção, utilizada apenas em última instância.
Em face do exposto, não merece reparo a decisão recorrida, que determinou o regresso da criança ao Brasil, Estado da sua residência habitual, impondo-se a improcedência do recurso.
As custas são da responsabilidade do Recorrente em face do seu decaimento (artigo 527º do CPC).
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SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil): …
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Guimarães, 26 de junho de 2025 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Raquel Baptista Tavares (Relatora) António Figueiredo de Almeida (1º Adjunto) Afonso Cabral de Andrade (2º Adjunto)