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MÉTODO PROIBIDO DE PROVA
GRAVAÇÃO DE SOM E IMAGEM
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ESTADO DE NECESSIDADE
EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Sumário
I. Por regra, a captação e conservação em registos áudio ou audiovisuais, indevida e não autorizada de imagens ou palavras corresponde objetivamente ao crime de gravações e fotografias ilícitas, previsto e punido pelo artigo 199.º do Código Penal, o que impede que o respetivo registo sirva de meio de prova. II. Porém, o preenchimento, em abstrato, dos elementos constitutivos do mencionado ilícito criminal, pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou de exclusão da ilicitude ou da culpa, e, em consequência, pode ser considerada válida a gravação de palavras efetuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio. III. No caso concreto, em que a assistente/recorrente procedeu à gravação [som e imagem], dentro do domicílio comum, de um dos alegados momentos integradores do crime de violência doméstica - pelo qual propugna, no seu requerimento de abertura de instrução, que o arguido/recorrido venha a ser pronunciado - com o intuito de demonstrar o alegado comportamento do arguido/recorrido a si dirigido, mostram-se, nesse contexto, preenchidos os requisitos do estado de necessidade. IV. A gravação [vídeo] em causa, efetuada pela assistente/recorrente, não se encontra ferida de nulidade e é admissível como meio de prova legítima em processo penal e, como tal, deverá ser atendida pelo tribunal a quo, à luz do princípio da livre apreciação de prova, ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Texto Integral
Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I- RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo n.º 95/24.1GCVNF, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal de Guimarães - Juiz 1, durante a diligência instrutória ocorrida a 14-11-2024, foi proferido o seguinte despacho [transcrição]: “(…) DESPACHO Tendo o Tribunal oportunidade de visualizar o vídeo constante dos presentes autos, constata-se no mesmo, que foi a assistente ao encontro do arguido e da testemunha AA, filha do casal que se encontravam num outro comodo da casa a conversar, tentando dessa forma, e sem o consentimento de ambos, gravar imagem e som da conversa que estava a ser encetada pelos dois em local privado. Nesse seguimento, o Tribunal não irá considerar o referido vídeo como meio de prova, a partir do momento em que surge o arguido noutro cómodo, uma vez que tais imagens não configuram, qualquer tipo de crime que estivesse a suceder nesse momento, e que dessa forma pudesse justificar a obtenção dessas imagens, pelo que constitui a mesma, método proibido de prova, nos termos do n.º 3, artigo 126º do CPP, e, nessa senda, não se irá confrontar a testemunha com o referido som e imagem. Notifique. (…)”.
Prosseguindo a fase de instrução os seus termos, veio a mesma a culminar com a prolação de decisão de não pronúncia, datada de 28-11-2024, que, no que ora releva, aqui se passa a transcrever: “(…) I - Relatório Foi proferido despacho de arquivamento pelo MP (ref.ª ...69) quanto a factos susceptíveis de integrar a prática pelo arguido BB de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal. Não conformada com este arquivamento, veio a assistente CC, requerer a abertura de instrução (ref.ª ...23) por, no seu entender, não terem sido correctamente valoradas as provas recolhidas em sede de inquérito, existindo meios de prova que deviam ter sido valorados e não foram, bem como meios de prova que deviam ter sido valorados em sentido diverso, os quais os descreve no seu requerimento de abertura de instrução e que se dão aqui por reproduzidos para todos os efeitos legais. Requer, assim que o arguido seja pronunciado pela prática de um crime de violência doméstica, p. p. pelo art.º 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) e 4 e 5 do Código Penal. (…) Reportando-nos ao caso dos autos e procedendo a uma articulação dos elementos probatórios carreados para os mesmos e respetivo enquadramento legal, constata-se o seguinte: A- Em sede de inquérito foi produzida a seguinte prova: - procederam à inquirição das testemunhas AA e DD, filhas do casal; - procederam à constituição como arguidos e interrogatório, nessa qualidade, dos denunciados BB e CC;
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B- Fase de Instrução
Em sede de instrução Prestou declarações a assistente CC, confirmando a factualidade que vem alegada no requerimento de abertura de instrução, sendo certo que a mesma admitiu que foi atrás do arguido e da filha no episódio do vídeo com a intenção de gravar o que estavam a conversar entre eles, sendo certo que os mesmos, a partir de certa altura estavam dentro de um cómodo da casa com a porta fechada e foi a assistente que seguiu no encalço dos mesmos procurando obter gravações de forma ilícita uma vez que, não tinha o consentimento dos intervenientes para proceder a gravações e, quer o arguido, quer a filha do casal, tinham recolhido a um compartimento da casa a fim de ficarem sozinhos e ter privacidade. Algo que lhes foi negado pela assistente CC. Foi determinada a re-inqurição das testemunhas filhas do casal pois, as declarações que as mesmas prestaram em sede de inquérito eram contraditórias, necessitando o Tribunal de aclarar certos aspectos. Na verdade, a testemunha EE, e sede de instrução, fez uso da sua prerrogativa e não quis prestar quaisquer declarações. Já a testemunha AA, filha mais velha do casal declarou que foi a mãe, a aqui assistente, que a tentou agredir e o pai é que impediu. Mais declarou que foi a testemunha quem tentou tirar o telemóvel à mãe e nunca o arguido, sendo que fisicamente seria impossível o pai tê-lo feito, pois, estava a segurá-la a fim de impedir a confrontação física entre a assistente e a aqui testemunha. Desta forma, a versão da assistente surgiu completamente descredibilizada e desacreditada. Nenhuma das testemunhas, que estavam presentes neste dia confirmaram a versão da suposta agressão do arguido à assistente. Ademais, a testemunha declarou que, na sua presença, e que se recordasse, o arguido nunca apelidou a mãe de nenhum dos nomes que vêm descritos no requerimento de abertura de instrução. No que respeita ao cd junto aos autos, e tendo o Tribunal pelo menos por uma ocasião tido oportunidade de o visualizar, devemos dizer o seguinte: Por regra, a captação e conservação em registos áudio ou audiovisuais, indevida e não autorizada de imagens ou palavras corresponde objectivamente ao crime de gravações e fotografias ilícitas. O objectivo de reunir provas, por si mesmo, não afasta a natureza criminosa do acto, a não ser que a captação corresponda à defesa de um interesse protegido, numa situação de direito de necessidade, o que acontecerá sempre que a gravação constitua o único meio prático e eficaz de garantir ao ofendido o seu direito de protecção contra a vitimização pela prática de crimes que, não fora essa captação da voz e/ou da imagem, ficariam impunes, caso em que nem as gravações, nem as fotografias ou filmes serão meios proibidos de prova e antes deverão ser valorados à luz do princípio da livre apreciação previsto no art.º 127º do CPP, conforme se escreveu no recente Acórdão da Relação de Lisboa de 24.01.2024, P. 449/20.2PBSCR.L1-3, disponível em www.dgsi.pt. . Ora, visando a assistente apenas e só, como a própria referiu, saber se o arguido e a filha estavam a falar mal de si, tendo ido ela própria ao seu encontro, o seu direito à prova não é, in casu, preponderante, nem sobreleva sobre o direito à palavra do arguido, de modo a justificar a junção ao processo e a valoração da mencionada gravação de imagem e som, obtida sem o consentimento e contra a vontade dos intervenientes, conforme foi referido pela filha do casal, a testemunha AA em sede de instrução, não constituindo este meio de prova indispensável para a demonstração de qualquer factualidade, pelo que, entendemos que o mesmo não pode ser valorado, de todo. A dita gravação constitui prova ilícita, que não deve ser admitida por faltar o consentimento dos visados, estando em causa o seu direito à imagem, sendo que seria sempre possível apresentar outros meios de prova como o foram, nomeadamente a prova testemunhal o que afasta a conclusão no sentido da ocorrência de um “estado de necessidade probatório”. – vide neste preciso sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 13.09.2022 proferido no âmbito do P. 84/12.9TBVZL-U.C1, disponível em www.dgsi.pt. Não se pode admitir esta prova à luz do disposto no n.º 3 do art.º 126º do CPP.
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Foi realizado o debate instrutório que decorreu com as formalidades legais, por imperativo legal.
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II – Apreciando e decidindo.
Como é consabido, na fase de instrução, o Tribunal tem que se pronunciar quanto à suficiência dos indícios, não tem que ser uma certeza absoluta, tem que ser uma certeza de que a probabilidade de o arguido ser condenado em julgamento será superior aquela probabilidade de ser absolvido. Pois bem. Resulta do disposto no artigo 152º, n.º 1, do Código Penal, que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) a progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Dispõe o n.º2 que “No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”. Prevê ainda o n.º4 “Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”. Acresce ainda o n.º 5 “A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”. (…) A questão que ora se coloca é: - resulta suficientemente indiciado dos autos que o arguido praticou um crime de violência doméstica contra a assistente? Entendemos que não. Quer a prova recolhida em sede de inquérito, quer aquela que foi produzida em sede de instrução não são suficientes para afirmar a autoria pelo arguido de um crime de violência doméstica na pessoa de CC. O que resultou sem sombra para qualquer dúvida foi uma clara animosidade entre o casal após o anúncio de divórcio feito pela assistente. Nenhuma testemunha, nomeadamente as filhas do casal, observaram actos maltratantes do arguido para com a assistente, sendo assim a palavra desta contra todos os restantes intervenientes que foram ouvidos nos autos. Admitimos também como altamente provável que as lesões que a assistente tenha sofrido tenham sido infligidas por uma das suas filhas, uma enquanto lhe tentava tirar o telemóvel, outra quando tentava que a mãe não fosse atrás do pai e da irmã. Um dado é certo, nenhuma prova corroborou a versão da assistente, e, portanto, na dúvida esta terá sempre que funcionar a favor do arguido, em ordem ao princípio do in dubio pro reo. Termos em que, teremos que concluir pela não pronúncia do arguido, uma vez que os factos alegados em 62) do RAI não se mostram minimamente indiciados pelos motivos que supra se apontaram. Pelo exposto, sem necessidade de mais considerações, conclui-se que os autos não contêm indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido FF de uma pena, razão pela qual os não pronuncio e determino o arquivamento oportuno dos autos (art. 308.º, nº1, do Cód. de Proc. Penal). Factos não indiciados: os constantes do Rai do assistente (concretamente os alegados em 62º da referida peça processual). Notifique. (…)
I.2 Recurso da decisão
Inconformada com o referido despacho proferido em ata a 14-11-2024 e com a decisão instrutória de não pronúncia acabados de transcrever, deles interpôs recurso, para este Tribunal da Relação, a assistente GG, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões, apresentadas, atempadamente, após a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento proferido a 18-03-2025 [transcrição]:
Quanto ao recurso interlocutório: “(…) A. O presente recurso incide sobre o despacho de fls..., proferido pela Exma. Sra. Juiz de Instrução Criminal no dia 14 de novembro de 2024, no âmbito da 2.ª Sessão do Debate Instrutório realizada na referida data, que apenas admitiu a junção aos autos do vídeo apresentado pela assistente até ao momento em surge o arguido noutro cómodo, entendendo a assistente que o mesmo devia ter sido aceite na totalidade. B. A assistente dá como reproduzida e renova a totalidade das motivações do presente recurso. C. Entende a assistente que a totalidade do vídeo não constitui método de prova proibido, nos termos do artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. D. Em primeiro lugar, porque “É jurisprudência dominante que a gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, já que efectuada ao abrigo de causa de exclusão da ilicitude, particularmente quanto a condutas que decorrem por regra no domicílio conjugal, em contexto intrafamiliar e fora da esfera de observação alheia, caso em que a prova dos factos pode ser particularmente difícil e, regra geral, só o arguido e vítima têm conhecimento daqueles, ocorridos no recato de uma impunidade não presenciada” (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 06 de fevereiro de 2024, no âmbito do Processo n.º 1280/19.PBBRR.L1-5). E. Atento o sentido do depoimento da testemunha AA e a falta de depoimento da testemunha DD, a assistente está numa situação em que carece do vídeo que gravou para demonstrar factos com relevância criminal, tendo tal gravação sido efetuada de forma lícita, na medida em que se trata de uma gravação referente a um de muitos episódios que ocorriam no seio do domicílio conjugal, em contexto intrafamiliar, não raras vezes fora da esfera de observação alheia, inclusive à das filhas do casal (sendo que uma não depôs e a outra refere, de forma pouco coerente, não se recordar que o arguido tenha proferido as expressões que se ouvem que o mesmo dirige à assistente no vídeo, entrando, assim, em contradição com o próprio vídeo e com o depoimento da vítima). F. Salvo o devido respeito, não admitir a junção da totalidade do vídeo que está em causa nos presentes autos é contribuir para uma impunidade das condutas do arguido, sendo certo que as mesmas não se cingiram ao episódio do vídeo. G. Como bem esclarece a Jurisprudência dominante supra transcrita, o objetivo de reunir provas das condutas reiteradas de que era alvo – que moveu a assistente a efetuar a gravação do vídeo e a juntá-la aos autos após o arquivamento do inquérito –, afasta a eventual natureza criminosa desse ato, na medida em que tal gravação, in casu, corresponde à defesa de um interesse protegido. H. Encontrando-se a assistente numa situação de direito de necessidade, na medida em que, como facilmente se constata pelo supra exposto, perante os depoimentos ou falta de depoimentos das testemunhas filhas do casal, a gravação configura “o único meio prático e eficaz de garantir ao ofendido o seu direito de proteção contra a vitimização pela prática de crimes que, não fora essa captação da voz e/ou da imagem, ficariam impunes”. I. Pelo que, neste caso, o vídeo em análise não constitui meio proibido de prova, devendo ser valorado à luz do princípio da livre apreciação de prova, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal. J. Sendo pressupostos da invalidade da valoração probatória das reproduções mecânicas – e a que se refere o número 1 do artigo 167.º, n.º 1, do Código de Processo Penal –, que as mesmas sejam ilícitas nos termos da lei penal, mas também que a reprodução mecânica seja ilícita. K. Desde logo, se percebe claramente que não é a assistente quem abre a porta do outro cómodo onde o arguido e a filha AA se encontravam. L. Acresce que há que ter em conta que a factualidade em causa ocorreu no seio da habitação comum do casal e das filhas, pelo que qualquer um dos membros do agregado familiar é livre de aceder a qualquer cómodo da habitação, isto é, ainda que tivesse sido a assistente a abrir a porta, certo é que a mesma não estava a abrir ou a entrar num cómodo onde não tem permissão para entrar. M. Claro está que, no caso, a gravação não foi obtida de forma oculta e, no momento da filmagem, o arguido não se encontrava em situação de privacidade ou de intimidade que não pudesse ser acedida pelos demais habitantes da casa, sendo certo que, sem prejuízo do exposto, até é o próprio arguido quem se precipita para o exterior do cómodo onde se encontrava, ao passo que a assistente se manteve no mesmo local, não tendo aberto a porta do cómodo onde o arguido se encontrava, não tendo entrado no mesmo, não se tendo dirigido a ele, para o interior de tal divisão. N. Mais, não andou bem o Tribunal Recorrido quando afirmou que “tais imagens não configuram qualquer crime que estivesse a suceder nesse momento, e que dessa forma pudesse justificar a obtenção dessas imagens”, na medida em que, nos minutos 01:37 a 01:45, se ouve claramente o arguido a dirigir à assistente as seguintes expressões: “Puta”; “Ela é uma puta” e “Tu não sabes que ela é uma puta?”. O. Ou seja, é evidente que estava a ocorrer a prática de um crime, independentemente da forma como o mesmo fosse classificado. P. Mais ainda, aquilo que surge gravado no vídeo não é uma conversa privada entre o arguido e a filha em local privado, contrariamente ao que refere o Tribunal Recorrido. O que se ouve no vídeo com particular relevância para o caso são expressões que o arguido dirige à assistente e não uma troca de palavras entre o arguido e a testemunha AA, completamente alheia à assistente, pelo que nem sequer estamos perante uma conversa privada a ser encetada entre duas pessoas em local privado. Q. E, mais, se as duas testemunhas que claramente estavam presentes quando o arguido proferiu tais expressões ora não prestaram depoimento, ora não confirmaram o que foi dito, tal impõe a valoração do vídeo. R. E, portanto, sem mais delongas, a nenhuma outra conclusão se pode chegar senão a de que o vídeo tem de ser admitido e valorado como meio de prova na sua totalidade, na medida em que a sua elaboração e junção aos autos se destina a demonstrar factos com relevância criminal, atuando o respetivo autor, neste caso a assistente, ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude. S. Sendo este um daqueles casos em que a necessidade de proteção da vida privada dos intervenientes, ainda que seja posta em causa, se mostra mitigada, já que contende com circunstâncias em que, no seio do domicílio comum, foram praticados ilícitos criminais cuja prova é de mais difícil obtenção, ainda mais atenta a posição das testemunhas arroladas. T. Ou seja, ainda que possa entender-se como suscetível de conflituar com os direitos fundamentais à privacidade, à palavra ou à imagem dos visados, o que se concebe por cautela de patrocínio, o vídeo obtido assume-se como uma prova especialmente relevante em processo penal. U. E, portanto, no caso dos autos, no contexto de um crime de violência doméstica, a gravação da palavra falada ou de parte da imagem do arguido, ainda que por este não consentida, constitui meio de prova essencial, necessário para que a assistente se proteja e demonstre, em termos probatórios, aquilo a que foi sujeita. Na verdade, nem sequer se pode afirmar que o vídeo não foi consentido pelo arguido, na medida em que o mesmo não prestou declarações. V. Pelo que as expressões que foram gravadas pela assistente não são expressões que estivessem a ser trocadas entre o arguido e a testemunha AA, já que as expressões que se ouvem, e que assumem relevância criminal, foram dirigidas pelo arguido à assistente, num momento em que o mesmo se aproxima desta última e da testemunha DD, como facilmente se vê e ouve no vídeo em apreço. W. Dito isto, ainda que tenha sido a assistente a dirigir-se a outro local da casa, certo é que a mesma ficou colocada no exterior do cómodo onde o arguido e a testemunha AA se encontravam, na companhia da testemunha DD, não tendo sido a assistente quem abriu a porta, como se percebe pela posição e distância da mesma em relação a tal porta. X. Mais, no vídeo também se perceciona que é o arguido que abre a porta do cómodo onde se encontrava e sai do mesmo. Y. Fica, portanto, absolutamente claro e inequívoco, pela visualização do vídeo, que as expressões “Ela é uma puta” e “Tu não sabes que ela é uma puta?” (minutos 00:01:37 a 00:01:40) são ditas pelo arguido após o mesmo abrir a porta do cómodo onde se encontrava, quando se precipitou para o exterior do mesmo, não tendo sido a assistente a dirigir-se a ele, mas sim este último a dirigir-se à assistente. Z. Pelo que não corresponde à verdade que a assistente “tenha gravado imagem e som da conversa que estava a ser encetada pelos dois (arguido e testemunha AA, filha do casal) em local privado”, nem sequer que o arguido surja noutro cómodo, pois o mesmo é que se precipitou para a porta e, portanto, exterior do mesmo. AA. Em face do exposto, ainda que as demais considerações conduzissem a que a parte final do vídeo não fosse considerada – o que não se aceita mas se admite por mera hipótese académica – sempre a mesma deveria ser considerada com base nestas últimas considerações. BB. A necessidade de valoração da totalidade do vídeo torna-se ainda mais imperiosa e legítima quando tido em conta o depoimento da testemunha AA, a qual, pese embora assuma que se encontrava no mesmo cómodo que o arguido e, portanto, se encontrava colocada no local, data e horário da prática do episódio a que nos reportamos, refere não estar presente no local (Cfr. Depoimento da testemunha AA, Ata de Debate Instrutório de 14 de novembro de 2024, minutos 00:06:44 a 00:06:53). CC. As incongruências e incoerências dos depoimentos tornam ainda mais imperiosa a valoração da totalidade do vídeo que está em causa, legitimando-a ainda em maior medida, ao abrigo dos arestos supra citados e de todo o exposto. DD. Note-se, ainda, que, apesar de o Tribunal Recorrido ter tido oportunidade de se pronunciar quanto à validade do vídeo desde que o mesmo foi junto aos autos em anexo ao Requerimento de Abertura de Instrução, e o ter visualizado mesmo antes do início do Debate Instrutório (pelo menos assim assumimos), nunca indeferiu a respetiva junção, ou entendeu que o mesmo constituía meio proibido de prova, tendo-o feito neste momento processual, apesar de ter considerado a diligência de visualização do vídeo como relevante para a descoberta da verdade material, conforme despacho proferido em 14 de novembro de 2024. EE. Em face de todo o exposto, deve o despacho recorrido ser revogado, sendo substituído por outro por força do qual seja considerada como meio de prova e admitida a totalidade do vídeo como meio de prova, em conformidade com tudo o que foi supra alegado e em consonância com a Jurisprudência dominante defendida pelos nossos Tribunais. NESTES TERMOS, requer-se a Vossas Exas. que se dignem a julgar o presente recurso totalmente procedente por provado e, consequentemente, a determinar a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que considere como meio de prova e admita, na íntegra, a totalidade do vídeo junto aos autos em anexo ao Requerimento de Abertura de Instrução, em face da factualidade supra exposta que aqui se dá como integralmente reproduzida para os devidos efeitos, bem como em conformidade com a Jurisprudência dominante e unânime dos nossos Tribunais, aqui se dando igualmente como reproduzidos todos os acórdãos oportunamente transcritos. (…)”. Quanto ao recurso da decisão instrutória de não pronúncia: “(…) A. O presente recurso incide sobre a decisão instrutória de fls…, proferida no dia 28 de novembro de 2024, com a Ref.ª ...02, cuja parte final se transcreve de seguida: “Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que os autos não contêm indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido FF de uma pena, razão pela qual os não pronuncio e determino o arquivamento oportuno dos autos (art- 308.º. nº1, do Cód. De Proc. Penal). Factos não indiciados: os contantes do Rai do assistente (concretamente os alegados em 62º da referida peça processual)”. B. Acontece que a assistente discorda do teor e sentido da decisão ora transcrita, razão pela qual vem interpor o presente recurso. C. Atendendo às motivações vertidas no Ponto I que aqui renovamos, a decisão instrutória padece de irregularidade por falta de enunciação dos factos alegadamente não indiciados e por falta de fundamentação. D. Na nossa visão, acompanhando a Doutrina e Jurisprudência, a falta de enunciação dos factos suficientemente indiciados e não indiciados na decisão de não pronúncia constitui mera irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente. E. Os mesmos fundamentos de facto e de direito a que recorreu a assistente para sustentar a sua posição de que deveria ser proferido despacho de pronúncia não pode servir de base a uma decisão instrutória de não pronúncia. F. Ou seja, não cremos que as expressões “os factos alegados em 62) do RAI não se mostram minimamente indiciados” ou “factos não indiciados: os contantes do Rai do assistente (concretamente os alegados em 62º da referida peça processual” cumpram minimamente o ónus que é imposto ao Tribunal de Instrução, conforme amplamente explicado supra. G. Mais, a Sra. Juiz de Instrução Criminal, além de se reportar expressamente ao elenco de factos que entendia não estarem indiciados (o que, na nossa ótica, não aconteceu), tinha de justificar suficientemente tal opção, isto é, em relação a cada um de tais factos, esclarecer porque é que entende que os mesmos não estão indiciados. H. Repare-se que a passagem supra transcrita, nas nossas considerações iniciais após descermos ao caso subjudice, é, pasme-se, a única em que a Sra. Juiz de Instrução se reporta à indiciação/não indicação da factualidade em análise (e, ainda assim, salvo o devido respeito, de forma errónea, mas disso ocupar-nos-emos mais à frente). I. Ora, como facilmente se depreende, ressalvando sempre o devido respeito, a decisão em causa não inclui a descrição expressa e concreta dos factos não indiciados de forma automatizada e destacada da discussão dos indícios e, por isso, não cumpre minimamente, muito menos estritamente, a exigência de fundamentação que lhe é exigida por força da lei. J. É que, devidamente analisada a decisão instrutória, facilmente se perceciona que o Tribunal Recorrido, depois de apenas analisar e interpretar a prova produzida quanto à factualidade constante dos factos 9.º a 11.º do artigo 62.º do RAI, nada referindo em concreto quanto aos demais factos, veio a concluir que nem esses, nem os restantes factos constantes do referido artigo, se consideravam indiciados. K. Ficamos sem perceber em que motivos de facto e de direito é que o Tribunal a quo se baseou para chegar à conclusão de que os restantes factos do artigo 62.º do RAI não estão suficientemente indiciados. L. Enfim, tudo isto para concluir que o despacho de não pronúncia sobre o qual incide o presente recurso está, clara e inequivocamente, ferido de irregularidade pelas diversas razões supra aprofundadas, quer por falta de enunciação clara e expressa dos factos não indiciados, quer por falta de fundamentação da não indiciação de grande parte de tais factos, já que, além de se limitar a remeter para o artigo 62.º do RAI, nem sequer se pronuncia sobre as razões de facto e de Direito da não indiciação de grande parte dos factos dele constantes. M. Devendo, assim, o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro por força do qual a Exma. Sra. Juiz de Instrução enuncie expressamente os factos indiciados/não indiciados e clarifique, de forma clara e inequívoca, quais as razões de facto e de direito pelas quais não se consideram indiciados TODOS os factos constantes do artigo 62.º do RAI, não olvidando que o caso subjudice não se cinge ao episódio reportado nos factos 9.º a 11.º daquele artigo, como parece ter feito, inclusive aquando da produção de prova em sede de debate instrutório. N. Atendendo às motivações vertidas no Ponto II que aqui renovamos, a decisão instrutória padece de errada interpretação da prova constante dos autos e da produzida em sede de instrução, devendo, consequentemente, ser proferido despacho de pronúncia contra o arguido FF pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea b), e n.ºs 4 e 5, do Código Penal, na pessoa da assistente GG. O. Em primeiro lugar, o relato da vítima é profundamente coerente e credível, tendo-se mantido estável e descomprometido ao longo de todo o processo até ao momento. P. Repare-se, aliás, que a credibilidade e espontaneidade das declarações prestadas pela assistente, por si só, em momento algum são postas em causa pelo Tribunal Recorrido. Q.Em segundo lugar, existe um vídeo junto aos autos que deve ser valorado na sua totalidade, que prova inequivocamente que o arguido praticou o crime de violência doméstica. R. Devendo o vídeo ser valorado na sua totalidade porque se percebe claramente que não é a assistente quem abre a porta do outro cómodo onde o arguido se encontrava e é evidente que a assistente se viu na necessidade de filmar o episodio para comprovar as ofensas de que estava a ser alvo. S. Acresce que há que ter em conta que a factualidade em causa ocorreu no seio da habitação comum do casal e das filhas, pelo que qualquer um dos membros do casal era livre de aceder a qualquer cómodo da habitação, isto é, ainda que tivesse sido a assistente a abrir a porta – o que não se aceita mas se admite por mera hipótese académica – certo é que a mesma não estava a abrir ou a entrar num cómodo onde não tivesse permissão para entrar. T. Claro está que, no caso, contrariamente à errada interpretação da Juiz de Instrução, a gravação não foi obtida de forma oculta e, no momento da filmagem, o arguido não se encontra sequer em situação de privacidade ou de intimidade que não pudesse ser acedida pelos demais habitantes da casa, sendo certo que, sem prejuízo do exposto, até é o próprio quem se precipita para o exterior do cómodo onde se encontrava, ao passo que a assistente se manteve no mesmo local, não tendo aberto a porta do cómodo onde o arguido se encontrava, não tendo entrado no mesmo, não se tendo dirigido a ele, para o interior de tal divisão. U. Como já deixamos antever, não andou bem o Tribunal Recorrido também na interpretação que fez do vídeo junto aos autos pela assistente. V. Desde logo, não se compreende como é que o Tribunal Recorrido toma tantas posições distintas em relação ao mesmo vídeo. Senão vejamos: W. Primeiro o Tribunal não indeferiu a junção aos autos do vídeo em questão, apesar de ter tido oportunidade de o fazer quando indeferiu outras provas requeridas pela assistente (despacho de abertura de instrução de fls…, de 27 de setembro de 2024, com a Ref.ª ...34), apesar de, assumimos nós ou pelo menos seria expectável que assim fosse, ter visualizado o vídeo antes da segunda sessão do Debate Instrutório. X. Desconhecemos se assim foi, uma vez que o Tribunal assume que teve oportunidade de visualizar o vídeo pelo menos uma vez, aquando da referida sessão, ou seja, possivelmente foi a primeira e única vez que o visualizou. Além da segunda vez que foi visualizado, na mesma diligência, a pedido da assistente. Y. Depois, na sessão de Debate Instrutório em causa, realizada no dia 14 de novembro de 2024, o Tribunal já proferiu o seguinte despacho: “Tendo o Tribunal oportunidade de visualizar o vídeo constante dos presentes autos, constata-se que no mesmo, que foi a assistente ao encontro do arguido e da testemunha AA, filha do casal que se encontravam noutro comodo da casa a conversar, tentando dessa forma, e sem o consentimento de ambos, gravar imagem e som da conversa que estava a ser encetada pelos dois em local privado. Nesse seguimento, o Tribunal não irá considerar o referido vídeo como meio de prova, a partir do momento em que surge o arguido noutro cómodo, uma vez que tais imagens não configuram, qualquer tipo de crime que estivesse a suceder nesse momento, e que dessa forma pudesse justificar a obtenção dessas imagens, pelo que constitui a mesma, método proibido de prova, nos termos do n.º 3, artigo 126º do CPP, e, nessa senda, não se irá confrontar a testemunha com o referido som e imagem”. Z. Agora, num terceiro momento, defende que o vídeo não pode ser valorado, de todo. AA. Afinal em que é que ficamos? Pode o Tribunal aceitar a junção aos autos de um vídeo, rejeitá-lo parcialmente como meio de prova logo de seguida e, a final, não o valorar como meio de prova na sua totalidade? BB. Em terceiro lugar, a prova testemunhal produzida cingiu-se ao depoimento da filha AA, já que a filha DD se recusou a prestar depoimento, fazendo uso de prerrogativa legal. CC. O depoimento da filha AA não é de todo credível já que é contraditado pelo vídeo junto aos autos. DD. No vídeo em apreço, nos minutos 01:37 a 01:45, ouve-se claramente o arguido a dirigir à assistente as seguintes expressões: “Puta”; “Ela é uma puta” e “Tu não sabes que ela é uma puta?”. EE. A testemunha AA está presente no vídeo, mas não confirma as afirmações em apreço. FF. Tal é evidentemente indicativo da forma enviesada e tendenciosa com que a testemunha em apreço prestou depoimento e, consequentemente, o mesmo depoimento não pode ser considerado. GG. Mais ainda, tal depoimento, como se refere amplamente em sede de motivações, tem inúmeras incongruências e imprecisões, sendo que a testemunha se recorda de alguns pormenores com grande precisão e outros não se lembra de todo. HH. O depoimento desta testemunha sempre foi inequívoca e profundamente incoerente e desmerecedor de qualquer tipo de credibilidade. II. Se o Tribunal Recorrido tivesse interpretado corretamente toda a prova produzida, teria afirmado precisamente o contrário: que as declarações da assistente são corroboradas por todas as provas válidas e credíveis que se encontram nos autos, relatório pericial, fotografias e vídeo, só sendo contraditado pelo depoimento da testemunha AA, profundamente incoerente, subjetivo, tendencioso e contraditório, inclusivamente contraditado pelo próprio vídeo referente a um momento em que a mesma assume ter estado presente, assumindo que uma das vozes que se ouve é a sua, negando, no entanto, o óbvio, o que tinha necessariamente de ter visto e ouvido. JJ. Chegados aqui, não é demais reiterar que, pese embora a decisão de não pronúncia se tenha cingido ao episódio a que nos reportamos até aqui, foram denunciados muitos outros, constantes do artigo 62.º do RAI. KK. Todos esses episódios também deviam ter sido dados como pronunciados com base nas declarações da assistente, tendo em conta todas as considerações feitas relativamente à prova baseada unicamente no depoimento da vítima em contexto de violência doméstica. LL. É o próprio Tribunal de Instrução que acaba por assumir a existência de violência doméstica, como resulta das seguintes passagens transcritas nas motivações, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido para os devidos efeitos (Cfr. Declarações da assistente GG, Ata de Debate Instrutório de 14 de novembro de 2024 com a Ref.ª ...79, início às 14:20:50 horas e termo às 15:39:16 horas, minutos 00:58:59 a 01:02:59 e 00:25:55 a 00:32:08). MM. Por outras palavras, o Tribunal de Instrução admite a existência de violência doméstica, embora a considere, no caso, “um grão de areia”, e a existência de atos irrefletidos, assumindo ainda que esta situação é má para a assistente, mas que não devia ser traumatizante, fraturante. NN. Deve assim o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro, por despacho de pronúncia que pronuncie o arguido FF pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea b), e n.ºs 4 e 5, do Código Penal, na pessoa da assistente GG. Caso Vossa Exa. assim não entenda – o que não se aceita mas se admite por mera hipótese académica –, OO. Atendendo às motivações vertidas no Ponto III que aqui renovamos, a decisão instrutória padece de errada interpretação da prova constante dos autos e da produzida em sede de instrução, com a consequente prolação de despacho de pronúncia contra o referido arguido pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa da assistente GG. PP. Se as provas forem devidamente valoradas, designadamente o vídeo junto aos autos, tal como defendido no ponto precedente do recurso que aqui se reproduz com as necessárias adaptações, pelo menos sempre estamos perante a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal. QQ. Foi precisamente isso que, perante a prova produzida, defendeu a Magistrada do Ministério Público nas suas alegações. RR. Ou seja, mesmo no caso hipotético de se entender que o arguido não deva ser pronunciado pela prática de um crime de violência doméstica, deve o mesmo, pelo menos, ser pronunciado pela prática de um crime de injúria. SS. Neste sentido, veja-se, a título meramente exemplificativo e com as necessárias adaptações: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de Fixação de Jurisprudência) e Acórdão da Relação do Porto relatado por Pedro Vaz Pato, referidos nas motivações. TT. Em face do exposto, considerada a prova produzida nesse sentido, designadamente as declarações da assistente e o vídeo junto aos autos, que deve ser integralmente valorado conforme supra exposto e, por outro lado, tendo em conta o entendimento Jurisprudencial, já uniformizado, deve o arguido ser pronunciado pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa da assistente. UU. Devendo, assim, o despacho recorrido ser revogado e substituído por despacho de pronúncia que pronuncie o arguido FF pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa da assistente GG. NESTES TERMOS, requer-se a Vossas Exas. que se dignem a julgar o presente recurso totalmente procedente por provado e, consequentemente: a) A determinar que o despacho de não pronúncia está ferido de irregularidade, sendo substituído por outro por força da qual a Exma. Sra. Juiz de Instrução enuncie expressamente os factos indiciados/não indiciados e clarifique, de forma clara e inequívoca, quais as razões de facto e de direito pelas quais não se consideram indiciados todos os factos constantes do artigo 62.º do RAI, não olvidando que o caso subjudice não se cinge ao episódio reportado nos factos 9.º a 11.º daquele artigo; b) Sem prejuízo do exposto, a revogar o despacho recorrido, sendo proferido despacho de pronúncia por força do qual o arguido FF pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea b), e n.ºs 4 e 5, do Código Penal, na pessoa da assistente GG; c) Caso Vossa Exa. assim não entenda – o que não se aceita mas se admite por mera hipótese académica –, a revogar o despacho recorrido, sendo proferido despacho de pronúncia por força do qual o arguido seja pronunciado pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa da assistente GG. (…)”.
I.3 Resposta ao recurso
Admitidos os recursos e efetuada a legal notificação, vieram o Ministério Público e o arguido responder aos mesmos, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]: Quanto ao recurso interlocutório: Resposta do Ministério Público: “(…) Nestes termos, Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, deverá dar-se provimento ao recurso interposto pela assistente a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que considere o vídeo junto meio de prova válido. (…)”.
Resposta do arguido: “(…) I As conclusões do recurso da Recorrente não traduzem de forma sintética os fundamentos do recurso, mas uma reprodução de grande parte das alegações. II Atenta a extensão das conclusões apresentadas, deve ser recusado o conhecimento do recurso III Nenhuma prova se fez nos presentes autos que permitissem referir existir algum indício da prática de qualquer crime por parte do Recorrido. IV Toda a prova produzida, nomeadamente os depoimentos das duas suas filhas, contradiz o que a Recorrente alega no seu Requerimento de Abertura de Instrução. V O despacho recorrido está perfeitamente fundamentado e, salvo o devido respeito, faz a melhor aplicação do direito. VI A utilização como meio de prova em processo penal de gravação em vídeo de conversas entre particulares, no âmbito da sua vida provada, no interior das suas residências, coloca questões delicadas no domínio dos direitos fundamentais: intimidade da vida privada e inviolabilidade das comunicações, bem como o direito do arguido a não se auto-incriminar (nemo tenetur se ipsum acusare) e de evitar que esta manifestação consubstancie uma forma dissimulada de confissão. VII As provas obtidas mediante intromissão na vida privada, domicílio, correspondência ou telecomunicações sem o consentimento do titular constituem, em princípio, métodos proibidos de prova – art.º 126º n.º 3 do CPP. VIII O Tribunal fez uma correcta interpretação das normas aplicáveis e sustentou devidamente o seu despacho. Termos em que deve ser conformada na íntegra a decisão recorrida (…)”.
Quanto ao recurso da decisão instrutória de não pronúncia:
Resposta do Ministério Público: “(…) Nestes termos e pelo mais que, Vossos Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, deverá: - Considerar que a decisão recorrida não padece de irregularidade; - Os autos não contêm indícios do crime de violência doméstica por parte do arguido. - Os autos contêm indícios do facto relatado no art. 10.º do RAI e, nesta parte deve ser proferido despacho de pronúncia pelo crime de injúria relativamente ao arguido. (…)”. Resposta do arguido: “(…) I Nenhuma prova se fez nos presentes autos que permitissem referir existir algum indício da prática de qualquer crime por parte do Recorrido. II Toda a prova produzida, nomeadamente os depoimentos das duas suas filhas e o próprio vídeo que juntou, contradiz o que a Recorrente alega no seu Requerimento de Abertura de Instrução. III Assim, andou bem o Tribunal ao considerar que nenhum facto resultou indicado de todo o acervo de prova apreciado. IV A decisão aqui impugnada está devidamente fundamentada, quer na apreciação da prova e dos factos que apurou e não apurou, quer na aplicação do direito. V Quem esteve presente nas sessões do debate instrutório não pode ter ficado com qualquer dúvida sobre o rigor, o empenho e o denodo com que o Tribunal recorrido apreciou o requerimento de abertura de instrução da Recorrente. VI O “problema” destes autos é que não só a Recorrente não demonstrou os factos que imputa ao Recorrido, como até resultou o completo inverso do que a mesma refere. VII Daí não existir qualquer facto provado ou indiciado. VIII A impugnação por via da reapreciação da prova não se destina a discutir a livre convicção do julgador e a simples circunstância deste dar prevalência a determinada versão [diferente daquela que a assistente sustenta] não constitui qualquer violação das regras de experiência, desde que a sua preferência esteja devidamente explicitada, seja convincente e não inquine as regras razoabilidade e de normalidade de acontecer, como à evidência sucedeu no caso em apreço. IX A decisão instrutória não enferma de qualquer vício e deve, por conseguinte, ser mantida na integra Termos em que deve ser conformada na íntegra a decisão recorrida (…).
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer, concluindo nos seguintes termos [transcrição]:
“(…) 1. O recurso interlocutório deverá ser rejeitado - art.º 420, n.º 1, al. b) do CPPenal, pois que o concreto meio de prova que não foi admitido na instrução - “não se irá confrontar a testemunha com o referido som e imagem.” – não foi atacado pela assistente, agora recorrente, através do meio processual apropriado, a reclamação, como previsto no art.º 291, n.º 1 do CPPenal; 2. O recurso que recai sobre o despacho de não pronúncia deverá ser julgado improcedente por não verificação de qualquer nulidade ou irregularidade que o invalide, já que, por remissão, identificou todos os factos que considerou como não suficientemente indiciados, e por, efectivamente, não existirem provas indiciárias da prática pelo arguido do crime de violência doméstica, ou de qualquer outro, até porque, e em especial, a prova que a recorrente releva – uma gravação vídeo, se apresenta como prova não utilizável, sendo prova nula, por ter sido obtida mediante intromissão na vida privada, nos termos previstos no art.º 126, n.º3 do CPPenal. (…)”. [sublinhados e negritos nossos].
I.5. Resposta
Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, veio a assistente/recorrente apresentar resposta ao sobredito parecer, pronunciando-se no sentido da admissibilidade do recurso interlocutório, reiterando, quanto ao demais, a posição por si vertida nos mencionados recursos que apresentou.
I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento dos recursos em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
II.1- II- FUNDAMENTAÇÃO o tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].
Assim, face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação dos recursos interpostos nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes: Quanto ao recurso interlocutório:
® Saber se o vídeo junto com o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente/recorrente reporta-se, ou não, a método proibido de prova e, consequentemente, se o seu conteúdo não devia, ou devia, ter sido atendido, no seu todo, pela Mm.ª Juíza de Instrução Criminal, com vista à prolação da decisão final da fase instrutória. Quanto ao recurso da decisão instrutória de não pronúncia:
® Saber se a decisão recorrida padece de irregularidade por falta de enunciação expressa dos factos indiciados/não indiciados.
® Saber se a decisão recorrida padece de irregularidade por falta de fundamentação.
® Saber se o tribunal a quo errou na análise da prova constante dos autos e da produzida em sede de instrução ao considerar não indiciada a matéria vertida no artigo 62.º do RAI.
Consequentemente, caso se conclua pela existência do mencionado erro na apreciação da prova:
® Saber se o arguido/recorrido deve ser pronunciado pela prática do crime de violência doméstica p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea b), e n.ºs 4 e 5, do Código Penal ou, subsidiariamente, pela prática do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa da assistente/recorrente.
II.2- Apreciação dos recursos
Do recurso interlocutório:
Com vista à tomada de decisão sobre a admissibilidade e análise dorecurso interlocutório, que teremos de abordar em primeiro lugar, até porque a sua eventual procedência prejudica o conhecimento do recurso da decisão instrutória de não pronúncia, importa chamar à colação a seguinte tramitação processual:
® Na sequência do despacho de arquivamento proferido nos presentes autos, a 08-07-2024, pelo Ministério Público, veio a recorrente, mediante requerimento apresentado nos autos a 06-08-2024, requerer, além da sua constituição como assistente, a abertura de instrução peticionando a prolação, a final, de despacho de pronúncia do arguido FF, pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea b), e n.ºs 4 e 5, do Código Penal na pessoa da assistente, ora recorrente, CC, apresentando/indicando meios de prova documental, por declarações, testemunhal e pericial.
® Dessa prova documental apresentada com o requerimento de abertura de instrução consta um vídeo, em formato de CD.
® Remetidos os autos à Mm.ª Juíza de Instrução Criminal, veio esta, a 27-09-2024, a proferir o seguinte despacho:
“ Ref.ª ...96: Notifique os documentos juntos com o Rai ao arguido, sanando-se qualquer eventual vício, sendo certo que ainda não foi sequer proferido despacho de abertura de instrução.
Notifique.
***
Requerimento de abertura de instrução deduzido pela assistente (ref.ª ...23):
Por não se verificar nenhum dos circunstancialismos previstos no nº 3 do artº 287º do Código do Processo Penal, sendo que o Tribunal é o competente (cfr. artº 19º do Código do Processo Penal), a requerente tem legitimidade (cfr. artº 287º, nº 1. al. b), do Código do Processo Penal e o despacho de arquivamento proferido, está em tempo (cfr artºs 287º, nº 1 e 113, admito o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente e, em consequência, declaro aberta a fase de instrução criminal.
Autue como instrução.
Notifique nos termos legais (artºs 287º, nº 5, do Código do Processo Penal).
***
Diligências instrutórias:
- indefere-se a re-inqurição das testemunhas, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 290º do CPP;
- admito as declarações da assistente;
*
Para o debate instrutório, designo o próximo dia 24 de Outubro, pelas 14:00 horas, neste Juízo de Instrução.
*
Notifique.”
® Na sequência das declarações prestadas, a 24-10-1024, pela assistente/recorrente, veio a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal a determinar a reinquirição das testemunhas AA e DD [filhas do casal], agendando tal diligência para 14-11-2024.
® Aquando da realização dessa diligência, apenas a testemunha AA desejou prestar declarações, tendo a testemunha DD usado da faculdade de se recusar a depor, nos termos do artigo 134.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.
® No decurso do depoimento prestado pela testemunha AA, e face ao teor do mesmo, a assistente/recorrente, através da sua ilustre mandatária, requereu que a mesma fosse confrontada com o mencionado vídeo, requerimento esse que, após ter sido garantido o contraditório, foi apreciado pela Mm.ª Juíza de Instrução Criminal, mediante o seguinte despacho [transcrição]:
“(…) Atendendo a que é uma diligência de provaque se pode revelar relevante para a descoberta da verdade material, incluindo para se aferir da credibilidade do depoimento da testemunha, o Tribunal defere ao requerido.
*
Neste momento, por o Tribunal dispor de meios técnicos, foi visualizado por todos os intervenientes e testemunha AA, o vídeo junto aos autos com o RAI.
*
® Após a visualização do vídeo em questão, veio, então, a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal a proferir o despacho ora recorrido, já supra transcrito e que aqui se relembra: “(…) Tendo o Tribunal oportunidade de visualizar o vídeo constante dos presentes autos, constata-se no mesmo, que foi a assistente ao encontro do arguido e da testemunha AA, filha do casal que se encontravam num outro comodo da casa a conversar, tentando dessa forma, e sem o consentimento de ambos, gravar imagem e som da conversa que estava a ser encetada pelos dois em local privado. Nesse seguimento, o Tribunal não irá considerar o referido vídeo como meio de prova, a partir do momento em que surge o arguido noutro cómodo, uma vez que tais imagens não configuram, qualquer tipo de crime que estivesse a suceder nesse momento, e que dessa forma pudesse justificar a obtenção dessas imagens, pelo que constitui a mesma, método proibido de prova, nos termos do n.º 3, artigo 126º do CPP, e, nessa senda, não se irá confrontar a testemunha com o referido som e imagem. Notifique. (…)”.
Feita esta breve resenha da tramitação processual subjacente à prolação do despacho recorrido, cumpre atentar no seguinte:
Chegados os autos de recurso a este Tribunal, em sede de parecer a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto suscitou a questão da inadmissibilidade do recurso interlocutório, porquanto, em suma, o meio de prova em questão - gravação vídeo - foi admitido aquando do recebimento do requerimento de abertura da instrução e até sujeito ao respetivo contraditório, apenas não tendo sido admitido/realizado o ato instrutório de confrontar a testemunha com o referido som e imagem, sob a expressa fundamentação de que se estava perante prova proibida, pelo que, em conformidade com o disposto no n.º 2, do artigo 291.º do Código de Processo Penal, a reação a tal indeferimento não pode ser efetuada através da interposição de recurso, como o foi, mas sim através da reclamação, sendo certo que a assistente não reclamou do referido despacho de indeferimento, nem, mediante tal despacho, o tribunal a quo decidiu o pleito, tendo apenas antecipado o juízo que fará aquando da apreciação da prova com respeito aos factos vertidos no requerimento de abertura da instrução pela assistente.
Consequentemente, conclui o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, o recurso interlocutório deverá ser rejeitado.
Vejamos:
Dispõe o artigo 291.º, do Código de Processo Penal, trazido à colação em sustento da invocada inadmissibilidade do recurso interlocutório, o seguinte: “1 - Os actos de instrução efectuam-se pela ordem que o juiz reputar mais conveniente para o apuramento da verdade. O juiz indefereos actos requeridosque entenda não interessarem à instruçãoouservirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis. 2 - Do despacho previsto no número anterior cabe apenas reclamação, sendo irrecorrível o despacho que a decidir. (…). [sublinhado e negrito nosso].
Ou seja, de facto o legislador estabeleceu a regra da irrecorribilidade do despacho de indeferimento da realização de diligências instrutórias e tal norma até tem vindo a ser sindicada pelo Tribunal Constitucional, que se tem pronunciado pela não inconstitucionalidade desta irrecorribilidade, de que são exemplos os Acórdãos do TC n.ºs 371/00 e 459/00, ambos consultáveis em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/home.html.
Acontece, porém, salvo o devido respeito por posição contrária, que tal disposição legal não é aqui aplicável.
Com efeito, a assistente/recorrente não se insurge concretamente contra o mero indeferimento do requerido confronto da testemunha AA com o vídeo em questão, mas sim contra o facto de a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal ter decidido que não iria considerar o referido vídeo como meio de prova, a partir do momento em que surge o arguido noutro cómodo, por considerar método proibido de prova, nos termos do artigo 126.º, n.º3, do Código de Processo Penal, pretendendo que se considere como meio de prova e se admita, na íntegra, a totalidade do vídeo em questão, com vista a comprovar o alegado crime de que foi vítima, o que, no nosso modesto entendimento, abarca uma realidade distinta e bem mais abrangente do que aquela que é defendida no douto parecer.
Acresce que a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal não indeferiu a requerida junção do vídeo [tendo, antes, ordenado que se desse do mesmo a conhecer ao arguido - a fim de garantir o contraditório - e determinado/efetuado a sua visualização no decurso da inquirição da testemunha AA] e também não indeferiu o seu requerido confronto com esta testemunha por ter entendido que não interessava à instrução ou porque servisse apenas para protelar o andamento do processo, mas sim porque, no seu entendimento, constituía método proibido de prova, nos termos do n.º 3, do artigo 126.º do Código de Processo Penal, razão esta, portanto, não contemplada no apontado artigo 291.º, n.º1, do Código de Processo Penal, e que, nos termos do seu n.º2, apenas permite reação pela via da reclamação.
Assim sendo, e uma vez que a irrecorribilidade do despacho em apreço não se encontra prevista em qualquer disposição legal - ante o exposto, a contrario, no artigo 400.º do Código de Processo Penal [“Decisões que não admitem recurso”] e no 399.º do mesmo diploma legal [“é permitido recorrer … dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”]- só nos resta concluir que o recurso interlocutório apresentado pela assistente é legalmente admissível e, como tal, do mesmo passaremos de imediato a conhecer.
Vejamos:
Conforme já o anunciamos supra, a única questão a apreciar e decidir no recurso interlocutório interposto pela assistente/recorrente consiste em saber se o vídeo junto com o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente/recorrente reporta-se, ou não, a método proibido de prova e, consequentemente, se o seu conteúdo não devia, ou devia, ter sido atendido, no seu todo, pela Mm.ª Juíza de Instrução Criminal com vista à prolação da decisão final da fase instrutória.
Ora, desde já adiantamos, que a resposta a tal questão não poderá deixar de ser outra que não seja a de que a gravação a que se reporta o vídeo em questão não constitui qualquer método proibido de prova e, como tal, o seu conteúdo deveria ter sido atendido, no seu todo, pela Mm.ª Juíza de Instrução Criminal com vista à prolação da decisão final da fase instrutória.
Expliquemos porquê:
Como é consabido, a lei adjetiva penal consagra o “princípio da liberdade e legalidade da prova”, dispondo que “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei” [artigo 125.º do Código de Processo Penal].
E relativamente aos “métodos proibidos de prova”, no que ao caso releva, dispõe o n.º 3, do artigo 126.º, do Código de Processo Penal que “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.”. [sublinhado e negrito nosso].
Trata-se, atenta a redação das normas, de uma nulidade relativa, na medida em que essa “intromissão” pode estar legitimada pelo consentimento do visado. [3]
O n.º 3, do artigo 126.º do Código de Processo Penal, único que aqui interessa, consagra como nulas, e, como tal, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.
Na verdade, as proibições de prova previstas no n.º 3, do artigo 126.º do Código de Processo Penal, referem-se a direitos que se enquadram na tutela da reserva da intimidade da vida privada, e, por isso, a sua violação carreia para a comunidade um sentimento de insegurança jurídica, algo que não deve suceder no processo penal.
A “vida privada compreende aqueles atos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos e afetos familiares, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até por vezes, o amor da simplicidade, a parecer desconforme com a grandeza dos cargos e a elevação das posições sociais; em suma tudo: sentimentos, ações e abstenções, que podem ser altamente meritórios do ponto de vista da pessoa a que se referem mas que, vistos do exterior, tendem a apoucar a ideia que delas faz o público em geral”.[4]
O Tribunal Constitucional formulou, pela primeira vez, uma definição do conteúdo do direito à reserva da vida privada no Acórdão n.º 128/92, como constituindo o direito de cada um a ver protegido o espaço interior ou familiar da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias, isto é, como um direito a uma esfera privada onde ninguém pode penetrar sem autorização do respetivo titular.[5]
Parece-nos incontroverso que no que diz respeito ao direito à reserva da vida privada e familiar a possibilidade de consentimento é unânime, pois trata-se de um direito disponível e, como tal, as pessoas podem consentir em limitações voluntárias do direito à proteção da vida privada e é igualmente incontroverso [perante o que decorre, desde logo, da simples reprodução do vídeo em questão], que o arguido/recorrido não prestou o seu consentimento para que a sua imagem/palavras fossem gravadas pela assistente/recorrente, nos termos em que constam do mencionado vídeo que esta juntou ao requerimento de abertura de instrução como prova documental.
Ora, a respeito do valor probatório das reproduções mecânicas dispõe o artigo 167.º do Código de Processo Penal que: “1 - As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal. 2 - Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no título iii deste livro.”..”. [sublinhado e negrito nosso].
E, sob a epígrafe, gravações e fotografias ilícitas, no que ora releva, prevê o artigo 199.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal o seguinte: “ 1 - Quem sem consentimento: a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou (…) é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. (…)”. [sublinhado e negrito nosso].
Ou seja, por regra, a captação e conservação em registos áudio ou audiovisuais, indevida e não autorizada de imagens ou palavras corresponde objetivamente ao crime de gravações e fotografias ilícitas e, in casu, tendo a assistente/recorrente procedido à gravação em causa, com som e imagem do momento em que o arguido/recorrido se encontrava noutro cómodo da habitação com a sua filha AA, sem que tivesse obtido da parte deste o necessário e prévio consentimento, mostrando-se preenchidos os elementos do tipo de ilícito penal ínsito no artigo 199.º, n.º1, alínea a) do Código Penal, impediria que tal vídeo servisse de meio de prova.
Porém, como é sabido, “o preenchimento, em abstrato, dos elementos constitutivos do ilícito criminal, pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da ilicitude ou da culpa, e, em consequência, pode ser considerada válida a gravação de palavras efetuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio”.[6] [negrito nosso].
Na verdade, “entre nós, vem sendo entendimento jurisprudencial dominante [ao qual aderimos] que a elaboração de gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, já que o autor da gravação atua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude. É o que sucederá nos casos em que a necessidade de protecção da vida privada dos intervenientes se mostra mitigada, já que contende com circunstâncias em que a coberto do foro íntimo do casal são praticados ilícitos criminais, tal como sucede, com frequência, nos crimes de violência doméstica.”[7] [sublinhado e negrito nossos].
Como se dá nota no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 02-07-2024, Processo n.º 233/24.4KRSXL-A.L1-5I., inwww.dgsi.pt, “a proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (ou da imagem que as retrata) tem de ceder perante o interesse de proteção da vítima e a eficiência da justiça penal pois a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime.”, sendo “inadmissível sancionar criminalmente a vítima de violência doméstica que através da gravação da “palavra falada” do agressor pretende demonstrar os comportamentos ilícitos deste sobretudo quando a mesma não possui quaisquer outros elementos probatórios, para além das suas próprias declarações, contrariadas pelas declarações do agressor, atuando a mesma ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.”.
O mesmo será dizer que “por regra, a captação e conservação em registos áudio ou audiovisuais, indevida e não autorizada de imagens ou palavras corresponde objectivamente ao crime de gravações e fotografias ilícitas. O objectivo de reunir provas, por si mesmo, não afasta a natureza criminosa do acto, a não ser que a captação corresponda à defesa de um interesse protegido, numa situação de direito de necessidade, o que acontecerá sempre que a gravação constitua o único meio prático e eficaz de garantir ao ofendido o seu direito de protecção contra a vitimização pela prática de crimes que, não fora essa captação da voz e/ou da imagem, ficariam impunes, caso em que nem as gravações, nem as fotografias ou filmes serão meios proibidos de prova e antes deverão ser valorados à luz do princípio da livre apreciação previsto no art.º 127º do CPP.”.[8] [sublinhado e negrito nossos]. “A não ser assim, acabaria por aceitar-se a condenação por crime contra o direito à imagem de quem se limita a documentar através de filme ou fotografia o facto ilícito de que é vítima, o que representaria uma inversão dos valores e interesses penalmente tutelados, se não mesmo a subversão, em alguma medida, do regime dos direitos fundamentais. Tanto mais que para além do interesse em proteger a esfera pessoal ou patrimonial da assistente de atentados ilícitos, estará igualmente em causa projeção do direito fundamental de acesso dos particulares ao direito e a tutela jurisdicional efetiva que a CRP reconhece no art.º 20º da CRP, pois as mais das vezes a fotografia ou filme são determinantes na prova do ilícito típico».[9]
Como bem se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 06-02-2024, Processo n.º 1280/19.3PBBRR.L1-5, in www.dgsi.pt: “A construção vítimodogmática na determinação da irrelevância penal, por exclusão da tipicidade da conduta, refere-se essencialmente ao comportamento daquele que procede à captação de um facto ilícito-típico com fins probatórios, em que a «vítima» do potencial ilícito de gravações e fotografias ilícitas está a praticar um facto com relevância jurídico-penal, sendo o seu comportamento a desencadear/precipitar a acção de que vem a ser alvo por parte da «vítima» desse mesmo facto. Pensemos no crime de violência doméstica, que integra o conceito de criminalidade violenta do artigo 1.º, al. j), do C.P.P. Em muitos casos, as condutas que integram a respectiva tipicidade decorrem de forma oculta, longe da “vista” de terceiros, pois que, reconhecidamente, os maus-tratos físicos ou psíquicos são infligidos, por via de regra, dentro do domicílio conjugal, em contexto intrafamiliar, fora da esfera de observação alheia, o que é garantido, até, pelo generalizado pudor que os mais próximos têm de se imiscuir na vida privada do casal. Em consequência, a prova da verificação dos factos, por força das circunstâncias, pode ser particularmente difícil, já que escasseia a prova directa e, regra geral, só o arguido e a vítima têm conhecimento da maioria dos factos, praticados no recato de uma “impunidade não presenciada”.
Ora, in casu, a assistente/recorrente procedeu à gravação [som e imagem], dentro do domicílio comum, de um dos alegados momentos integradores do crime de violência doméstica pelo qual propugna, no seu requerimento de abertura de instrução, que o arguido/recorrido venha a ser pronunciado, com o intuito de demonstrar o alegado comportamento do arguido/recorrido a si dirigido, mostram-se, nesse contexto, preenchidos os requisitos do estado de necessidade.
E não se defenda que esse estado de necessidade não existe porquanto seria sempre possível apresentar outros meios de prova, designadamente prova testemunhal, como foi apresentado no caso concreto. Com efeito, é preciso atentar que não estamos perante uma qualquer testemunha, mas sim perante as filhas do casal [assistente/arguido] que têm um estatuto próprio, podendo recusar-se a depor como tal, nos termos do artigo 134.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, como, efetivamente, uma delas acabou por fazer.
Em boa verdade, do que se trata é de optar entre deixar completamente impunes comportamentos notoriamente delituosos, em nome da proteção do direito à palavra, considerando-os meios proibidos de prova, ou seja, a garantia da prossecução das finalidades do Direito Penal no combate ao crime e na administração da Justiça, e um interesse privado do arguido que, por muito relevante e digno de proteção que seja, neste caso terá de ceder.
Aqui chegados só nos resta concluir, portanto, que a gravação [vídeo] em causa, efetuada pela assistente/recorrente, não se encontra ferida de nulidade e é admissível como meio de prova legítima em processo penal e, como tal, deverá ser atendida pelo tribunal a quo, no seu todo, à luz do princípio da livre apreciação de prova ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
E, como não o foi, quer o requerido confronto da testemunha AA com o mencionado vídeo [diligência já deferida pela Mm.ª Juíza de Instrução Criminal mediante despacho proferido em ata de 14-11-2024], quer o subsequente debate instrutório e inerente decisão instrutória final encontram-se afetados na sua validade. Consequentemente, deve aquela diligência de prova, já deferida pela Mm.ª Juíza de Instrução Criminal [confronto da testemunha AA com o mencionado vídeo] ser realizada [sem prejuízo de outras que, nessa sequência, a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal venha eventualmente a entender ser necessário realizar, com vista à boa decisão da causa], prosseguindo-se com o subsequente debate instrutório e nova prolação de decisão instrutória final, no âmbito da qual se ponderem todos os meios de prova produzidos, incluindo o vídeo em questão, numa análise concatenada e efetuada à luz do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Aqui chegados, só nos resta concluir, portanto, pela procedência do recurso interlocutório, ficando, consequentemente, prejudicada a apreciação do recurso da decisão final instrutória de não pronúncia. III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:
A. Julgar procedente o recurso interlocutório apresentado pela assistente e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que considere como prova válida o conteúdo do vídeo junto aos autos em anexo ao requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente/recorrente, devendo o mesmo ser atendido pelo tribunal a quono seu todo e analisado à luz do princípio da livre apreciação de prova ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Consequentemente: Deverá ser realizada a diligência de prova já deferida pela Mm.ª Juíza de Instrução Criminal [confronto da testemunha AA com o mencionado vídeo] [sem prejuízo de outras que, nessa sequência, a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal venha eventualmente a entender ser necessário realizar, com vista à boa decisão da causa], prosseguindo-se com o subsequente debate instrutórioenova prolação de decisão instrutória final, no âmbito da qual deverão ser ponderados, todos os meios de prova produzidos, incluindo o vídeo em questão, numa análise concatenada e efetuada à luz do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
B. Não apreciar o recurso da decisão instrutória de não pronúncia, porquanto o seu conhecimento ficou prejudicado face ao decidido na alínea que antecede.
Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 25 de junho de 2025
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt. [2]Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95. [3] Cfr. Acórdão do TRL, de 28-05-2013, CJ III, pág. 108. [4] Cfr. Paulo Mota Pinto, “A proteção da vida privada e a Constituição”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, nº 76, Volume LXXVI, Ano 2000, p. 164. [5]Acórdão do TC nº 403/2015, Proc. nº 773/15, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordao. [6] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 24-09-2020, Processo nº 308/16.3GAVFR.P2, inwww.dgsi.pt. [7] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 24-09-2020, Processo nº 308/16.3GAVFR.P2, já citado.
No mesmo sentido, entre outros:
Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-02-2016, Processo n.º 2638/12.4TALRA.C1; do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29-04-2014, Processo n.º 102/09.8GEBRG.G2; do Tribunal da Relação de Évora, de 29-03-2016, Processo n.º 558/13.4GBLLE.E1; do Tribunal da Relação do Porto, de 23-10-2013, Processo n.º 585/11.6TABGC.P1; de 27-01-2016, Processo n.º 1548/12.0TDPRT.P1 e de 06-11-2019, Processo n.º 457/17.0PAVFR.P1, todos disponíveis in http://www.dgsi.pt.
Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal: à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 4ª ed, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011, p. 463 e Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora em 1992, p. 242 e seguintes. [8] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 24-01-2024, Processo n.º 449/20.2PBSCR.L1-3, in www.dgsi.pt [9] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 29-03-2016, Processo n.º 558/13.4GBLLE.E1, in http://www.dgsi.pt.