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VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE DA SENTENÇA
REGISTO AUTOMÓVEL
Sumário
1 - Quando há violação do princípio do contraditório, constituindo a sentença uma decisão surpresa, a nulidade processual decorrente dessa violação é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, dado que, sem a prévia audição das partes, o tribunal não podia conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão. 2 – O Tribunal de recurso pode suprir tal nulidade ao abrigo do disposto no art. 665º, nº 1 do C. P. Civil, uma vez que o Recorrente, no seu recurso, já se pronunciou sobre a matéria analisada na decisão surpresa e o Réu, ao serem-lhe notificadas as alegações do recurso interposto pelo Autor, teve igual oportunidade, estando cumprido o contraditório relativamente a tal matéria, não havendo nesta fase necessidade de fazer cumprir o preceituado nos arts. 3º, nº 3 ou no 665º, nº 3, ambos do C. P. Civil, estando o processo pronto para se conhecer do objeto da apelação.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
Relatório:
Nos presentes autos de ação declarativa com processo comum, vieram os autores AA, titular do NIF ...50, e cônjuge BB, titular do NIF ...36, casados entre si e residentes em Rua ..., ..., ... ..., pedir a condenação do réu CC, titular do NIF ...29 e residente na Rua ..., ... ..., na entrega de dois veículos automóveis, e no pagamento de €3.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Alegam para o efeito que são proprietários de dois veículos automóveis que identificam, que o autor AA emprestou ao réu, seu irmão, tendo ficado acordado que os restituiria ao fim de um ano; alegam que o réu não restituiu os veículos, apesar de insistências da parte dos autores, continuando a utilizá-los, deixando os autores preocupados e em sobressalto com as possibilidades de acidentes e pagamentos que tenham de liquidar.
Citado o réu, veio defender-se por exceção, invocando caso julgado, bem como por impugnação, alegando que os veículos automóveis em causa sempre pertenceram ao réu.
Alega que adquiriu um dos veículos por compra verbal, tendo sido registado a favor de uma sociedade comercial da qual o réu era gerente e apenas mais tarde registada a favor do autor numa venda que argui como simulada, por se tratar de mera conveniência, posto que nenhuma das partes pretendia comprar ou vender o veículo.
Quanto ao segundo veículo, invoca o conflito de presunções dirimido pelo artigo 1268.º do Código Civil.
Mais alega que sempre utilizou os veículos como se fosse seu proprietário desde 1999, de forma contínua e pacífica, circulando com os mesmos, pagando os impostos, utilizando-os e emprestando-os, submetendo-os às inspeções periódicas obrigatórias.
Invoca ainda a litigância de má fé da parte dos autores.
Notificados, os autores vieram responder à matéria de exceção arguida pelos réus, pugnando pela respetiva improcedência.
Teve lugar audiência prévia, finda a qual foi proferido despacho saneador, julgando parcialmente procedente a exceção de caso julgado relativamente a um dos veículos, e determinando o prosseguimento dos autos apenas quanto ao outro, dispensando-se a fixação do objeto do litígio e dos temas da prova e designando data para audiência final
Realizou-se o julgamento, tendo sedo proferida sentença que decidiu a ação nos seguintes termos:
“Por todo o exposto, o Tribunal julga a ação parcialmente procedente, e: 1) Ordena a alteração do registo relativo ao veículo de marca ..., matrícula ..-..-LI, devendo passar a constar como proprietário o réu CC; 2) Condena o réu no pagamento, aos autores, de €500,00 (quinhentos euros), acrescido de juros de mora vencidos desde a data de propositura da ação, e vincendos até efetivo e integral pagamento.
No mais, vai o réu absolvido do pedido. Mais se decide não condenar os autores como litigantes de má fé.
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Custas da ação por autores e réu, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 50% para cada parte.
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Registe e notifique.”
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Inconformado veio o Réu recorrer formulando as seguintes conclusões:
A. O Recorrente não se conforma com a sentença recorrida, a qual ordenou a alteração do registo relativo ao veículo automóvel de matrícula ..-..-LI, devendo passar a constar como proprietário o réu.
B. Na Petição, os autores peticionaram a condenação do réu Recorrente na entrega de dois veículos automóveis, e no pagamento de € 3.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.
C. A ação prosseguiu para a fase de julgamento apenas quanto ao veículo de matrícula ..-..-LI, já que relativamente ao veículo de matrícula ..-..-LD foi o réu absolvido da instância no despacho saneador.
D. Dos factos provados resulta que o Recorrente, desde 23/02/1999, foi quem circulou sempre com o veículo, usando-o como se fosse seu e convicto que o era, emprestando-o a quem entendia, pagando as obrigações fiscais, submetendo-o às inspeções periódicas, contratando o seguro de responsabilidade civil e pagado o prémio, ordenando e custeando reparações e efetuando a sua limpeza, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, incluindo do autor, pelo menos até ao ano de 2009.
E. O Tribunal a quo, entendeu que “Deste modo, também se conclui que, vindo o réu impugnar a propriedade dos autores, impugnando em consequência os factos sujeitos a registo, e reconhecido pelo Tribunal o seu direito de propriedade, deve também o registo ser alterado – sendo de concluir que, se o artigo 8.º permite o cancelamento do registo, também permite o minus, i.e. a alteração da titularidade a favor de quem, em processo judicial, veio impugnar o valor do registo e invocar o seu direito de propriedade sobre o bem por ali titulado.”
F. Ora, antes do mais, o réu Recorrente não deduziu pedido reconvencional, mormente o do reconhecimento do direito de propriedade adquirido por usucapião, pelo que, com todo o devido respeito e que é muito, o Tribunal não reconheceu, por decisão, o direito de propriedade do Recorrente.
G. Assim, está em causa a nulidade da sentença recorrida, por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, pelo que deverá ser revogada.
H. Sem prescindir, a questão de alteração oficiosa do registo de propriedade das viatura não foi suscitada nem discutida pelas partes no processo, pelo que o Tribunal a quo não podia ex officio invocar e decidir esta questão na sentença recorrida, sem que as partes tivessem tido a oportunidade de se pronunciar sobre o mesmo.
I. De modo que, o Tribunal Recorrido, na sentença, violou o princípio da proibição de decisões-surpresa e o princípio do contraditório (artigo 3º, nº3 do Código de Processo Civil), uma vez que o réu, ora Recorrente, não foi notificado para se pronunciar, tendo sido surpreendido com a decisão, a qual é, por isso, proibida pelo Direito.
J. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, aquando da decisão, cometeu uma nulidade processual, porque nela conheceu de questão que não devia conhecer, violando assim o princípio do contraditório, pelo que deverá ser revogada (cfr. artigos 201º, 203º, nº 1, 205º, nº 1, 666º, do Código de Processo Civil).
K. Sem conceder, salvo o devido respeito e que é muito, o Tribunal Recorrido decidiu contra o Direito, ao fazer tábua rasa do registo automóvel, pois da certidão emitida pela Conservatória do Registo Automóvel, junta a fls. 80 dos autos, resulta que o veículo ..-..-LI tem uma reserva registada com o nº ...60 em ../../2004 a favor do Banco 1..., S.A. e uma penhora registada sob o nº...20 em 04/04/2013 a favor da A.T.
L. Com efeito, não estando nos autos a titular da reserva inscrita no registo –Banco 1..., S.A. –, o Tribunal a quo não podia ordenar a alteração do registo de propriedade do veículo em causa, sob pena de se violar a garantia fundamental do contraditório.
M. Registada definitivamente a reserva de propriedade, tem de presumir-se que o direito existe e que pertence ao titular inscrito, não podendo impugnar-se os factos comprovados pelo registo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo (arts. 7.º e 8.º, n.º 1, do CRgP e 29.º do DL n.º 54/75, de 12-02). Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de fevereiro de 2006, processo n.º 3449/05 citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2008, de 14/11/2008, Processo n.º 3965/07).
N. Veja-se a situação em que se penhora um veículo automóvel sob o qual recai o registo de reserva de propriedade a favor de terceiro, relativamente à qual versa o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/11/2008 (Que sumaria o seguinte: «A acção executiva na qual se penhorou um veículo automóvel, sobre o qual incide registo de reserva de propriedade a favor do exequente, não pode prosseguir para as fases de concurso de credores e da venda, sem que este promova e comprove a inscrição, no registo automóvel, da extinção da referida reserva” - Processo n.º 3965/07 propriedade continuaria em vigor, tal qual ocorreria com o registo de penhora, sem que o Recorrente disponha de meios para cancelar tais registos.).
O. “O cancelamento da matrícula não prejudica os registos de ónus ou encargos que estiverem em vigor sobre o veículo.”, conforme o previsto no artigo 3º, nº2 do DL 54/75, de 12-02, pelo que, a manter-se a decisão recorrida, o Recorrente poderia requerer o cancelamento da matrícula mas o registo de reserva de propriedade continuaria em vigor, tal qual ocorreria com o registo de penhora, sem que o Recorrente disponha de meios para cancelar tais registos.
P. Por último, a condenação do Recorrente no pagamento de indemnização no montante de € 500,00, é desprovida de fundamentação de facto e de direito, devendo ser revogada por esta Relação.
Q. Ante o exposto, na prolação da sentença, o Tribunal a quo violou as normas ínsitas nos artigos 3º do Código de Processo Civil, artigos 7º e 8º, nº 1, do Código do Registo Predial, artigos 3º, nº2, 15º, nº1 e 29º do DL n.º 54/75, de 12-02, artigo 409º, do Código Civil, o que determina a respetiva revogação.
Termos em que, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, julgando o presente recurso totalmente procedente farão, como sempre,
JUSTIÇA.
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Os Recorridos apresentaram contra-alegações, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.
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Questões a decidir:
- Analisar se a decisão proferida foi uma decisão surpresa por violação do princípio do contraditório;
- Analisar se a decisão é nula por excesso de pronúncia;
- Analisar se o julgador de primeira instância podia determinar a alteração do registo relativo ao veículo de marca ..., matrícula ..-..-LI.
- Analisar se se justifica a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais aos Autores.
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Factos considerados provados na decisão recorrida:
1) Autor AA e réu são irmãos, encontrando-se de relações cortadas desde 2009.
2) Mostra-se registado, a favor do autor AA, um veículo automóvel, de marca ..., matrícula ..-..-LI, desde ../../2004.
3) O veículo em causa foi primeiramente registado a favor da sociedade comercial EMP01..., Lda., cujo gerente era o réu, em 23/02/1999.
4) Em 05/11/2003, foi registada a propriedade a favor de DD, cunhado de autor e réu.
5) Desde 23/02/1999, foi o réu quem circulou sempre com o veículo, usando-o como se fosse seu e convicto que o era, emprestando-o a quem entendia, pagando as obrigações fiscais, submetendo-o às inspeções periódicas, contratando o seguro de responsabilidade civil e pagado o prémio, ordenando e custeando reparações e efetuando a sua limpeza.
6) O réu sempre fez isto à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, incluindo do autor, pelo menos até ao ano de 2009, data em que foi instaurado o processo crime n.º 858/09.8GAFNF no qual o autor apresentou queixa contra o réu por apropriação do veículo.
7) Pelo menos em 18/07/2019, o autor AA remeteu ao réu uma comunicação, por via registada com aviso de receção, exigindo a restituição do referido veículo.
8) O autor paga as obrigações fiscais inerentes ao veículo, pelo menos desde o ano de 2017.
9) Pelo menos até 2010, o autor pagou o valor de um crédito constituído para aquisição do referido veículo.
10) Os autores continuam a receber todas as responsabilidades inerentes ao veículo, mormente fiscais e contraordenacionais, mostrando-se preocupados e sobressaltados com a circunstância de o veículo circular sem o seu conhecimento.
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Factos não provados:
a) Em meados de 2005, o réu pediu ao autor o empréstimo temporário, pelo período de um ano, do veículo de matrícula ..-..-LI.
b) O autor acedeu ao pedido do réu, entregando-lhe veículo e os respetivos documentos, tendo ficado combinado que o réu nada pagaria pelo uso da viatura.
c) O réu comprometeu-se a entregar o veículo, findo o prazo, em casa do autor.
d) Os registos mencionados em 3) e 4) ocorreram por razões de mera conveniência.
e) O registo referido em 4) teve por base uma venda do veículo pelo réu marido ao autor.
f) O veículo em causa foi para a sucata, há mais de três anos.
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Cumpre apreciar e decidir: Da nulidade da decisão por violação do contraditório:
Verifiquemos se, ao determinar a alteração do registo de propriedade do veículo ..-..-LI, o Sr. Juiz violou o disposto no art. 3º, nº 3 do C.P. Civil, com a prolação de uma decisão surpresa, violando o princípio do contraditório.
O princípio do contraditório, é um princípio fundamental do processo civil que reconhece às partes o direito a exporem as suas razões, o direito a serem ouvidas e a exercerem uma influência efetiva na marcha do processo, garantindo às partes uma efetiva participação no andamento do processo.
O princípio do contraditório emana de um outro princípio que se traduz na exigência constitucional do direito de ação ou direito de agir em juízo através de um processo equitativo (artigo 20.º da CRP).
Como acima se menciona, o referido princípio encontra-se legalmente consagrado, designadamente no art. 3º, nº 3 do C. P. Civil.
Diz-nos este preceito que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
A violação do contraditório consubstancia uma nulidade (v. art. 195º, nº 1 do C. P. Civil) quando a omissão do ato ou formalidade que a lei prescreve possa influenciar a decisão da causa, devendo ser invocada no prazo de 10 dias, a contar do conhecimento da mesma, perante o tribunal onde foi cometida.
No entanto, conforme se decidiu nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 11/1/11, da Relação de Coimbra de 13/11/12 e da Relação de Évora de 10/04/14 e no nosso Acórdão desta Relação, de 8/11/2018 (todos in www.dgsi.pt ), estando a nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório sancionada/coberta por uma decisão judicial, a respetiva arguição poderá ocorrer em sede de recurso interposto dessa mesma decisão.
Na verdade, conforme explica o Professor Miguel Teixeira de Sousa no blog do IPCC em comentário ao Acórdão da Relação de Évora de 30/06/2016, a nulidade processual decorrente da violação do princípio do contraditório é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.C.), dado que, sem a prévia audição das partes, o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão.
No caso em apreço, conforme se verifica da análise do processado, o Sr. Juiz não notificou as partes para se pronunciarem sobre a eventual determinação da alteração do registo do veículo acima identificado, pelo que, violou o disposto no art. 3º, nº 3 do C. P. Civil.
O Tribunal recorrido pronunciou-se, assim, sobre uma questão não arguida pelos Autores ou pelo Réu, pelo que deveria ter convidado as partes a pronunciarem-se sobre a mesma antes de emitir a sua decisão, sendo certo que, tratando-se da alteração do registo de propriedade de um veículo automóvel, não é manifestamente um caso em que tal pronúncia fosse manifestamente desnecessária.
A sentença recorrida padece pois de nulidade por excesso de pronúncia, podendo este Tribunal supri-la ao abrigo do disposto no art. 665º, nº 1 do C. P. Civil.
No caso, o Recorrente, no seu recurso, já se pronunciou sobre a questão em apreço assim como os Recorridos nas contra-alegações, estando cumprido o contraditório relativamente a tal matéria, pelo que, atualmente, não há qualquer necessidade de fazer cumprir o preceituado nos arts. 3º, nº 3 ou no 665º, nº 3, ambos do C. P. Civil, estando, pois, o presente processo pronto para se conhecer do objeto da apelação, o que se irá fazer de seguida.
Da alteração do registo de propriedade do veículo com a matrícula ..-..-LI
Relativamente ao assunto em apreço, na decisão recorrida escreveu-se o seguinte:
“(…) Sendo assim de considerar que o réu adquiriu o veículo em causa nos autos por via de aquisição originária por usucapião, mostra-se afastada a presunção registral a favor do autor AA; e, por conseguinte, não assiste ao mesmo o direito de exigir do réu a restituição do veículo que a este pertence. Mesmo que não se considerasse a aquisição por via da usucapião, importa mencionar que o artigo 1268.º, n.º 1 do Código Civil prevê que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse. Demonstrada assim a posse do veículo pelo réu desde 1999, o registo da propriedade em 2004 a favor do autor, sem que se aleguem ou demostrem quaisquer factos constitutivos da posse nos termos que já se arrazoaram, leva a considerar prioritária a presunção fundada na posse do réu, anterior ao registo – presunção esta que o autor não logrou afastar. Porém, o Tribunal reconhece a injustiça material da situação, que conduz a que o réu possa continuar a usufruir do veículo (já que não se prova que o mesmo tenha sido ou não levado para a sucata, e continuando ativo no registo e a vencer IUC), sem proceder ao pagamento de quaisquer impostos (que não faz pelo menos desde 2017) e sem que os autores possam controlar os destinos do veículo e por onde é que o mesmo circula ou quem o conduz, sendo responsabilizados por contraordenações que venham a ser imputadas ao mesmo. Dispõe o artigo 8.º do Código de Registo Predial, aplicável ex vi ao registo predial por força do já mencionado artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, que a impugnação judicial de factos sujeitos a registo faz presumir o respetivo pedido de cancelamento. Afigura-se que a ratio legis desta norma é a de aproximar a verdade registral da verdade substancial, i.e., assegurar que a publicidade conferida pelo registo corresponde à realidade das coisas, respeitando-se assim o objetivo primacial do registo que é o de dar a conhecer a terceiros – inclusive eventuais adquirentes – a situação do bem, garantindo a segurança e a genuinidade das relações jurídicas que sobre ele incidam (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/06/2018, no proc. 309/16.1T8VRL.G1).”
Vejamos:
Analisando o processo e, tal como resulta do relatório da presente decisão, os Autores pediram o reconhecimento da propriedade sobre dois veículos automóveis, sendo que nesta fase está em causa apenas um (o de matrícula ..-..-LI). O Réu, ora Recorrente, contestou a ação dizendo que a propriedade desse veículo lhe pertencia por a ter adquirido por usucapião.
Na sentença consideraram-se provados os factos que estavam na base desta alegação, concluindo-se assim que a propriedade do mencionado veículo não pertencia aos Autores, mas sim ao Réu.
Este segmento da sentença não foi impugnado, tendo assim, transitado em julgado.
Quanto ao registo:
Decorre do disposto no art. 1º, nº 1, do DL nº 54/75, de 12 de fevereiro, que aprovou o regime do Registo da Propriedade Automóvel, “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”.
Assim, tal como acontece com o registo predial, o registo automóvel não tem efeito constitutivo, sendo apenas declarativo, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.
Por outro lado, o direito de propriedade dos veículos automóveis está obrigatoriamente sujeito a registo, tal como a mudança de nome dos proprietários (v. art. 5º, nº 1 – a) e nº 2, do mencionado diploma legal).
De acordo com o preceituado no art. 8º do Código de Registo Predial, aplicável aos presentes autos por força do art. 29º do DL 54/75 de 12 de fevereiro, a impugnação judicial de factos sujeitos a registo faz presumir o respetivo pedido de cancelamento.
No caso, a questão da propriedade do veículo automóvel é discutida entre Autores e Réu, tendo este impugnado os factos alegados pelos Autores relativos à invocada propriedade destes sobre tal veículo e mais: ficaram provados os factos alegados pelo Réu relativos à aquisição da propriedade daquele veículo por usucapião.
Assim, o Tribunal podia, como fez, determinar oficiosamente a alteração do registo de propriedade do veículo ..-..-LI, não se verificando a nulidade da decisão por excesso de pronúncia, prevista no art. 615º, nº 1 – d), do C. P. Civil.
Com efeito, tal como se refere na decisão recorrida deve concluir-se que, se o art. 8º do C.R.P. “permite o cancelamento do registo, também permite o minus, i.e. a alteração da titularidade a favor de quem, em processo judicial, veio impugnar o valor do registo e invocar o seu direito de propriedade sobre o bem por ali titulado”.
A impugnação por parte do Réu de tal segmento da decisão configura até uma contradição com os seus próprios atos anteriores, pois, se por um lado, invoca a propriedade do veículo, por outro, opõem-se à formalização dessa pretensão, parecendo querer o melhor de dois mundos: utilizar o veículo como bem lhe aprover, mas não assumir as responsabilidades inerentes ao direito de propriedade sobre um veículo automóvel, como o pagamento de impostos, que ao longo dos anos tem recaído sobre os Autores.
Confirma-se, assim, nesta parte a decisão recorrida.
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O Réu impugnou ainda a parte da decisão de primeira instância que o condenou no pagamento aos Autores da quantia de 500,00€ (quinhentos euros) por danos não patrimoniais.
Como é sabido, os pressupostos da obrigação de indemnizar com base na responsabilidade civil extracontratual, são os seguintes: a existência de um facto voluntário praticado pelo agente lesante (por ação ou omissão), a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Pressupostos esses cujos ónus de alegação e prova impende ao lesado (art. 342º, nº 1, do C. Civil), a não ser que beneficie de uma presunção legal (art. 350º, nº 1, do C. Civil), o que a acontecer transfere para o lesante o ónus de elidir essa presunção (art. 350º, nº 2, do mesmo Código)..
No caso, os AA. não beneficiam de qualquer presunção legal de culpa.
Conforme bem se observa na decisão recorrida “No caso dos autos, demonstra-se que o veículo aqui em causa é propriedade do réu, adquirido assim por usucapião, mau grado o registo a favor dos autores.
Porém, este registo, cuja causa não foi concretamente apurada (não tendo sustento factual a tese da simulação invocada pelo réu, nos termos do artigo 240.º do Código Civil, posto que não se demonstra a existência de um contrato de compra e venda entre autor e réu e nem é alegada qualquer intenção de enganar terceiros, mas apenas a “mera conveniência” que não foi concretizada), leva a que sejam os autores quem se responsabiliza pela falta de pagamento de impostos, pelo pagamento de contraordenações, e até por quaisquer situações mais graves que possam ocorrer.
Ou seja, da matéria de facto denota-se que os autores não têm qualquer controlo sobre os destinos do veículo automóvel, e da conflituosidade entre as partes que dali também se retira conclui-se que o réu nunca pretendeu nem pretende proceder a qualquer alteração do registo, tendo inclusive deixado de pagar as obrigações fiscais inerentes desde 2017.
Prevê o artigo 486.º do Código Civil que as omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou de negócio jurídico, o dever de praticar o ato omitido.
A jurisprudência tem vindo a entender, no âmbito do registo automóvel, que, sendo o registo obrigatório, cabe ao proprietário/adquirente promover as diligências necessárias a concretizar tal registo; não o fazendo, pode incorrer na responsabilidade prevista no referido normativo, caso venham dali a derivar danos para o disponente – cfr. neste sentido o teor dos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 24/01/2017, no proc. 13105/15.4T8PRT.P1, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/06/2018, no proc. 12570/16.7T8LSB.L1-6.
Na mesma senda, e mutatis mutandis, o Tribunal entende que, pretendendo o réu fazer-se valer como proprietário do veículo, e assim tendo agido ao longo de mais de dez anos, competia-lhe também registar o mesmo em seu nome, a fim de assumir as despesas e encargos inerentes ao mesmo, posto que também foi o réu quem beneficiou do uso do veículo.
Deste modo, a sua negligência em proceder à regularização da situação fáctica, continuando na titularidade do veículo mas permitindo que o seu irmão autor, enquanto proprietário registado, continue a liquidar os impostos referentes ao mesmo, não pode deixar de se considerar como uma omissão culposa para efeitos dos artigos 486.º e 487.º do Código Civil – tendo agido sempre como proprietário do veículo, competia-lhe ter registado o mesmo em seu nome.
Mesmo assim não se considerando, a displicência com que o réu mostra atuar, permitindo o avolumar de dívidas derivadas de contraordenações estradais e fiscais a cargo do autor, manifesta-se como contrária à prática de um bom pai de família colocado na situação de um diligente proprietário de veículo automóvel, e como causa direta e adequada de sobressaltos e preocupações da parte dos autores (cfr. artigo 563.º do Código Civil).”
Em face desatas considerações, mostram-se verificados, no caso, os pressupostos da obrigação de indemnizar.
O Código Civil, no art. 496º, nº 1 refere que a reparação a título de danos não patrimoniais se justifica apenas se a especial natureza dos bens lesados o exigir, ou quando as circunstâncias que acompanham a violação do direito de outrem forem de molde a determinar uma grave lesão de bens ou valores não patrimoniais.
Conforme diz Galvão Telles (in Direito das Obrigações, 6ª ed., pág. 376), trata-se de uma reparação indireta, na impossibilidade de reparar diretamente os danos. Procura-se repará-los através de uma soma em dinheiro suscetível de proporcionar à vítima satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados.
No entanto, acrescenta, a fixação da reparação não pode ser inteiramente arbitrária pois tem de fixar-se uma compensação que terá que ser naturalmente proporcionada à gravidade dos prejuízos, mas também ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso (ob. cit., pág. 385).
No caso e com interesse para a apreciação destes danos, provou-se que, pelo menos desde 2017, o Réu utiliza o automóvel em causa, auferindo das suas vantagens como dono do mesmo, sem que o registe em seu nome, deixando os respetivos encargos para os Autores, em nome de quem o veículo se encontra registado, o que provoca preocupação e sobressaltos nos Autores com pagamentos que tenham de liquidar e que se encontram impotentes para impedir a cobrança de impostos e penalizações
Conforme se refere na decisão recorrida “Este dano manifesta-se como compensável, na ótica deste Tribunal, afastando-se já da noção de mera contrariedade para se traduzir antes numa fonte de preocupação constante para os autores, com inerentes consequências a nível da sua saúde mental e bem-estar”.
Entende-se, assim, adequado o montante de 500,00€ para ressarcir tais danos.
Confirma-se, pois, na totalidade, a sentença recorrida.
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Decisão:
Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Guimarães, 26 de junho de 2025
Alexandra Rolim Mendes António Figueiredo de Almeida Joaquim Boavida