Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
INVENTÁRIO
LEGITIMIDADE
CÔNJUGE
REGIME DE BENS DO CASAMENTO
Sumário
Nos casos em que o casamento é celebrado sob o regime da comunhão geral de bens, deve entender-se que o cônjuge do herdeiro tem legitimidade para requerer que se proceda a inventário, e para nele intervir, como parte principal, em todos os atos e termos do processo, já que o direito à herança faz parte do património comum, conforme estabelece o artigo 1732.º do CC.
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. Relatório
No processo de Inventário (Competência Facultativa) n.º 1668/24.8T8GMR, do Juízo Local Cível de Guimarães - Juiz 4 - para partilha da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de AA, falecido em ../../2021, no estado de divorciado, no qual são interessados BB (requerente), CC, DD, EE, FF, GG (cabeça de casal), todos filhos do inventariado, veio a interessada CC interpor recurso do despacho de saneamento do processo, no segmento em que indeferiu o requerimento apresentado por esta em 03-02-2025 (ref.ª ...00), decisão com o seguinte teor:
«(…) ref.ª ...00: Indefere-se o requerido, pois que os cônjuges dos interessados, mesmo que o regime do casamento seja o da comunhão geral de bens, não são legalmente considerados interessados diretos na partilha. Notifique».
No recurso apresentado, a apelante termina as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem): «A) A Recorrente, CC, foi casada com HH sob o regime de comunhão geral de bens, conforme regime supletivo em vigor à data do casamento (../../1966), ao contrário do que inicialmente indicado no requerimento de abertura do inventário, que mencionava o regime de comunhão de adquiridos; B) Nos termos do artigo 1732.º do Código Civil, no regime de comunhão geral de bens, o patrimônio comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, não excetuados por lei, o que inclui, em princípio, os direitos hereditários do cônjuge herdeiro; C) O cônjuge da Recorrente, HH, era, por força do regime de comunhão geral, um interessado direto na partilha dos bens deixados por óbito de AA, pois tais bens integrariam o patrimônio comum do casal; D) A alínea a) do n.º 1 do artigo 1085.º do Código de Processo Civil (CPC) confere legitimidade para intervir no inventário aos interessados diretos na partilha, incluindo os cônjuges meeiros, o que abrange o cônjuge do herdeiro no regime de comunhão geral de bens; E) A doutrina, representada por autores como Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, I, 3.ª ed., p. 367) e Carlos Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª ed., 2004, p. 246), sustenta que o cônjuge do herdeiro, no regime de comunhão geral, possui interesse direto na partilha, dado que os bens adjudicados revertem para a comunhão conjugal; F) A jurisprudência maioritária, como os acórdãos da Relação de Guimarães de 03.07.2012 (Proc. 223/22.1T8NNC.G1) e da Relação de Coimbra de 03.07.2012 (Proc. 45/10.2TJCBR-B.C1), reconhece que o cônjuge do herdeiro, no regime de comunhão geral, é um interessado direto na partilha, devendo ser citado para o inventário; G) O despacho de 12.03.2025, proferido pela Mma. Juíza a quo, que indeferiu o pedido da Recorrente para que os herdeiros de HH fossem chamados ao inventário, enferma de erro na aplicação do direito, ao considerar que o cônjuge não é um interessado direto na partilha; H) O falecimento de HH, em ../../2024, não extingue o interesse na partilha, pois os seus herdeiros, representando-o, devem suceder na posição que lhe caberia no inventário, nos termos do artigo 2042.º do Código Civil; I) O único filho de HH, identificado no requerimento de 03.02.2025, tem legitimidade para intervir no inventário como representante do falecido, ocupando o lugar que caberia ao seu pai, por aplicação do princípio da representação na linha reta descendente; J) A decisão recorrida, ao indeferir a intervenção dos herdeiros de HH, viola o disposto nos artigos 1085.º, n.º 1, alínea a), e 1104.º, n.º 1, do CPC, bem como o artigo 1732.º do Código Civil, comprometendo a correta tramitação do inventário; K) A intervenção do filho de HH é necessária para garantir que a partilha reflita os direitos que integram o patrimônio comum do casal, afetando diretamente a esfera jurídica da Recorrente e dos sucessores do cônjuge falecido; L) Deve, pois, o Tribunal da Relação de Guimarães revogar o despacho recorrido e determinar que II, único filho e herdeiro do cônjuge da Recorrente, HH, seja chamado a intervir no presente inventário, assegurando a conformidade com o regime legal aplicável e os princípios da justiça material. Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas, deve ser dado provimento ao presente recurso, Com o que se fará douta e sã JUSTIÇA».
Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido para subir de imediato, em separado e com efeito suspensivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.
II. Delimitação do objeto do recurso
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - cf. artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC) -, o objeto do presente recurso circunscreve-se a aferir se o cônjuge do herdeiro, casado em regime de comunhão geral, é interessado direto na partilha; se os herdeiros do referido cônjuge, falecido em data posterior à da abertura da sucessão e da instauração do inventário, devem ser chamados a intervir neste processo.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
III. Fundamentação
1. Os factos
1.1. Os factos a considerar na decisão deste recurso são as que já constam do relatório enunciado em I supra, relevando ainda as seguintes ocorrências/incidências processuais devidamente documentadas nos autos:
1. No âmbito do processo de inventário em referência, a interessada CC, filha do inventariado, apresentou requerimento em 03-02-2025 (ref.ª ...00) com o qual juntou assento de casamento, assento de nascimento e certidão de habilitação de herdeiros, arguindo a falta de intervenção no inventário do seu falecido cônjuge, HH e requerendo a intervenção dos herdeiros deste no âmbito do inventário.
2. CC e HH casaram um com o outro em ../../1966, mediante casamento católico, sem convenção antenupcial.
3. HH faleceu em ../../2024, no estado de casado com CC, tendo-lhe sucedido, como seus únicos herdeiros, a sua viúva, CC e um filho, II.
2. Apreciação sobre o objeto do recurso
No âmbito do processo de inventário em referência, a interessada CC, filha do inventariado, apresentou requerimento em 03-02-2025 (ref.ª ...00) com o qual juntou assento de casamento, assento de nascimento e certidão de habilitação de herdeiros, arguindo a falta de intervenção no inventário do seu falecido cônjuge, HH e requerendo a intervenção dos herdeiros deste no âmbito do inventário.
O despacho recorrido indeferiu tal requerimento, entendendo que os cônjuges dos interessados, mesmo que o regime do casamento seja o da comunhão geral de bens, não são legalmente considerados interessados diretos na partilha.
A recorrente insurge-se contra o assim decidido, sustentando que o seu falecido cônjuge, HH, era, por força do regime de comunhão geral, um interessado direto na partilha dos bens deixados por óbito de AA, pois em tal regime o patrimônio comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, não excetuados por lei, nos termos previstos no artigo 1732.º do Código Civil o que inclui, em princípio, os direitos hereditários do cônjuge herdeiro.
E - desde já adiantamos - julgamos ser este último entendimento, invocado pela recorrente, o único consentâneo com os critérios legais aplicáveis analisados à luz das concretas incidências que decorrem dos autos.
O princípio aferidor do conceito de legitimidade tem também consagração no processo de inventário, prevendo o artigo 1085.º do CPC quem tem legitimidade para requerer ou intervir no inventário, nos seguintes termos:
1 - Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:
a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens;
b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a menores, maiores acompanhados ou ausentes em parte incerta.
2 - Podem intervir num processo de inventário pendente:
a) Quando haja herdeiros legitimários, os legatários e os donatários, nos atos, termos e diligências suscetíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e de implicar eventual redução das respetivas liberalidades;
b) Os credores da herança e os legatários, nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos;
c) O Ministério Público, para o exercício das competências que lhe estão atribuídas na lei.
Destinando-se o processo de inventário a pôr termo à comunhão hereditária, resulta manifesto que o interesse direto na partilha tem de ser aferido com referência à relação jurídica substancial, ponderando os factos jurídico-sucessórios relevantes para o efeito.
Ademais, nos termos que decorrem do disposto no artigo 1089.º do CPC, a citação para o inventário dos sucessores de interveniente falecido antes de concluído o inventário pressupõe que o falecido seja interessado direto na partilha.
Na presente apelação não se mostra controvertido que o regime de bens do casamento celebrado entre CC e HH a ../../1966 era o da comunhão geral pois são aplicáveis as normas constantes dos artigos 1098.º e 1108.º do Código Civil (CC) de 1867, à luz dos quais era aquele o regime de bens supletivo[1].
Ora, vigorando entre os cônjuges o regime da comunhão geral de bens, fazem parte da comunhão todos os seus bens presentes e futuros não excetuados por lei (artigo 1108.º do CC de 1867, a que corresponde o atual artigo 1732.º do CC de 1966).
Ao invés, nos casos em que o casamento é celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos, os bens adquiridos posteriormente ao casamento por qualquer dos cônjuges, a título gratuito por doação ou sucessão, são considerados próprios do cônjuge que os recebeu - artigo 1722.º, n.º 1, al. b), do CC.
Deste modo, nos casos em que o casamento é celebrado sob o regime da comunhão geral de bens, deve entender-se que o cônjuge tem interesse direto na partilha já que o direito à herança faz parte do património comum, conforme estabelece o artigo 1732.º do CC.
Tal como salientam Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, em anotação ao artigo 1085.º do CPC[2]: «A figura jurídica do interessado directo na partilha pressupõe que o legislador admitiu que outros sujeitos, que não apenas os herdeiros do de cujus, possam ter legitimidade para requerer e intervir no inventário como parte principal. Os interessados directos na partilha serão, deste modo, os sujeitos que, sendo ou não herdeiros do de cujus, vêem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário. (…) Uma das hipóteses em que se justifica a subsunção ao conceito de interessado directo é a do cônjuge do herdeiro, quando, por força do regime de bens que vigore entre os cônjuges, os bens que venham a ser adquiridos na partilha se integrem na comunhão conjugal, ou seja, no património comum de que são titulares o herdeiro e o respectivo cônjuge (…). É o que ocorre no caso de vigorar entre os cônjuges o regime da comunhão geral de bens, tendo o cônjuge meeiros manifesto interesse face ao preceituado nos arts. 1732.º e 1689.º, n.º 1, CC, no modo como se realiza e concretiza a partilha (…). (…) No amplo conceito de interessado directo na partilha, largamente acolhido na doutrina e na jurisprudência, inclui-se o cônjuge meeiro, nos casos em que, por força do regime matrimonial, os bens a partilhar devam reverter para a comunhão conjugal. É a solução que melhor se harmoniza com a norma constante do art. 2101.º, n.º 1, CC, nos termos do qual qualquer co-herdeiro ou cônjuge meeiro tem o direito de exigir a partilha. Numa interpretação actualista, que é imposta por um sistema que há várias décadas reconhece o cônjuge como sucessível (cf. art. 2133.º, n.º 1, al. a), CC), o cônjuge meeiro referido no art. 2101.º, n.º 1, CC não pode deixar de ser quer o cônjuge do inventariado, quer o cônjuge do herdeiro».
Assim, «[q]uanto ao cônjuge do herdeiro, o seu interesse na partilha só será directo se o regime de bens do casamento for o da comunhão geral. Só nesta hipótese é que o direito à herança faz parte do património comum, conforme estabelece o artigo 1732º do Código Civil.
Não sendo o regime de bens o da comunhão geral, o interesse na partilha é indirecto, pois os direitos ou os bens adquiridos pelo cônjuge que é herdeiro são considerados bens próprios dele [artigo 1722º, n.º 1, alínea b), do Código Civil]»[3].
Por conseguinte, «o cônjuge do de cujus, atenta a sua qualidade de herdeiro legitimário, seja qual for o regime de bens do casamento, terá sempre legitimidade para requerer ou intervir no inventário, o mesmo não acontecendo em relação ao cônjuge do herdeiro, salvo se o regime do casamento for o da comunhão geral de bens»[4].
Em conclusão: «[a] legitimidade para requerer processo de inventário sucessório e para nele intervir como parte principal é atribuída a quem tenha a qualidade de interessado direto, isto é, os herdeiros que são diretamente beneficiados pela partilha (art. 2101º, nº 1, do CC). Acresce, por expressa previsão legal, o cônjuge meeiro, ou seja, aquele que estiver casado algum dos herdeiros no regime de comunhão geral de bens (…) ou, porventura, num regime atípico, de acordo com o qual os bens adquiridos por algum dos cônjuges integrem o acervo comum (ar. 1698º do CC). Obviamente que a referência ao “cônjuge meeiro” não se reporta ao cônjuge do de cujus, que é seu herdeiro legítimo, antes àquele que estiver casado com algum dos demais herdeiros num regime que implique a integração do quinhão hereditário no património comum do casal»[5].
Procede assim a apelação, o que importa a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que admita a intervenção dos herdeiros de HH no âmbito do inventário, determinando-se que II, único filho e herdeiro do cônjuge da Recorrente, HH, seja chamado a intervir no processo, com as legais consequências. Síntese conclusiva:
… IV. Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, com a consequente revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que admita a intervenção dos herdeiros de HH no âmbito do inventário, determinando-se que II, único filho e herdeiro do cônjuge da Recorrente, HH, seja chamado a intervir no processo, com as legais consequências.
Custas da apelação pelos apelados/recorridos.
Guimarães, 26 de junho de 2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Paulo Reis
(Juiz Desembargador - relator)
Maria dos Anjos Melo Nogueira
(Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
José Carlos Dias Cravo
(Juiz Desembargador - 2.º adjunto)
[1] Nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 47344, de 25-11, o Código Civil de 1966 entra em vigor no continente e ilhas adjacentes no dia 1 de junho de 1967, à exceção do disposto nos artigos 1841.º a 1850.º, que começará a vigorar somente em 1 de janeiro de 1968. [2]O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, (Reimpressão), 2020, Almedina, Coimbra, pgs. 31-32. [3]Cf., por todos, o ac. TRC de 07-03-2012 (relator: Emídio Francisco Santos), p. n.º 45/10.2TJCBR-B.C1, disponível em www.dgsi.pt. [4]Cf., o Ac. do TRG de 23-10-2008 (relatora: Rosa Tching); em idêntico sentido, o Ac. do TRP de 14-02-2013 (relator: José Amaral), p. 1625/09.4TBPNF-A. P1 disponíveis em www.dgsi.pt. [5]Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra, Almedina, 2020, p. 533.