LEGITIMIDADE PARA REQUERER A INSOLVÊNCIA
CRÉDITO LITIGIOSO
Sumário

A requerente credora tem legitimidade para formular pedido de declaração de insolvência do requerido devedor ainda que o seu crédito seja litigioso, não constituindo condição para o prosseguimento do processo de insolvência a certeza do crédito de que se arroga a requerente, mas somente a demonstração de um dos factos subsumíveis no nº 1 do art. 20º do CIRE, que verificado acarreta uma presunção de insolvência que competirá ao devedor ilidir, demonstrando que apesar da sua verificação, não se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.

Texto Integral

Processo n.º 9419/23.8T8VNG.P1
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia- Juiz 1

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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO
1. AA veio requerer a declaração de Insolvência de BB.
Para o efeito alegou em síntese que a suas exclusivas expensas liquidou uma dívida que era comum e solidária com o Requerido, tendo respondido unicamente o seu património (da Requerente) para pagamento da quantia de € 311.353,52 (trezentos e onze mil, trezentos e cinquenta e três euros e cinquenta e dois cêntimos), sendo que Requerente e o Requerido casaram sob o regime de separação de bens e após extinção da execução divorciaram-se, tendo sido apenas os bens da Requerente a responder pelas dívidas de ambos ao Banco 1..., pelo que, tem direito de regresso contra o Requerido em metade dos valores que, por sacrifício do seu património pessoal, foram entregues à Agente de Execução incumbida do processo executivo, metade essa que ascende a € 155.676,76, tendo instaurado ação de regresso que corre termos no Juiz 5 do Juízo Central Cível do Porto, Processo n.º 16561/23.3T8PRT com vista a ver o seu crédito declarado em sede judicial.
Mais alegou que não conhece quaisquer bens ou créditos que o Requerido possua capazes de satisfazer o seu crédito, não sendo a única credora do Requerido, existindo pelo menos mais três credores, nomeadamente, o Banco 2... – Sucursal em Portugal, na quantia de 20.690,10 €, o Condomínio ... na quantia de 6.611,90 € e ainda CC na quantia de 4.680,38 €, tendo tido conhecimento que por escritura pública de cessão de quinhão hereditário datada de 17 de dezembro de 2021 o Requerido doou ao seu irmão, por conta da quota disponível, o quinhão hereditário que lhe pertence na herança aberta por óbito de sua mãe, perdendo a expectativa sucessória quanto ao prédio que integra tal herança, o que diminui o património do Requerido e coloca em causa a expectativa creditícia dos seus credores.
Concluiu que, considerando o montante do crédito e a sua antiguidade, bem como o circunstancialismo do seu incumprimento, não restam quaisquer dúvidas de que o Requerido está completamente impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.

2. O Requerido deduziu oposição, suscitando a excepção da litispendência, defendendo que o crédito que a Requerente alega existir encontra-se devidamente impugnado no processo que aquela lhe moveu, e que existiram pagamentos efetuados com base em bens próprios seus que têm de ser levados em linha de conta nas contas a efetuar entre as partes, pelo que deverá ser efetuada a devida compensação entre os valores que, eventualmente, a Requerente tenha liquidado com recurso a bens próprios e os valores liquidados pelo Requerido com recurso a bens próprios, assim como um dos bens vendidos não pertencia à Requerente mas ao seu pai, negando ter qualquer outra dívida a qualquer outro credor, ou encontrar-se em situação de insolvência.

3. A Requerente exerceu o contraditório relativamente à matéria de excepção.

4. Sem que tenha sido realizada qualquer diligência, veio a ser proferida sentença em 6.01.2025, Ref. Citius 467085424, com o seguinte teor:
“Assim sendo e face ao exposto julgo improcedente o pedido de insolvência.
Em consequência, prejudicada fica a apreciação das demais questões.
Custas pela requerente (art. 304°, do CIRE).
Registe e notifique.”

5. Inconformada com a referida sentença, a Requerente interpôs o presente recurso de apelação, no qual formulou as seguintes
CONCLUSÕES
1. Compulsados os autos, verifica-se que a questão que cumprirá aqui sublinhar reconduz-se a aferição da causa de pedir dos presente autos: a incapacidade do Recorrido em cumprir as suas obrigações para com a Recorrente e demais credores;
2. A Recorrente, de modo a extinguir o processo executivo em que a mesma e o Recorrido eram executadas, liquidou a dívida sacrificando os seus bens próprios, não tendo aquele pago qualquer montante desse crédito, o qual corresponde ao total de 155.676.76€ (cento e cinquenta e cinco mil, seiscentos e setenta e seis euros e setenta e seis cêntimos);
3. Isto posto, na definição de insolvência do artigo 3.º do CIRE não é feita menção à necessidade de existir efetivamente um crédito violado, referindo, inclusive, que se encontra em situação de insolvente aquele que não consegue cumprir com as suas obrigações;
4. Da realização de uma interpretação extensiva da letra da lei compreende-se que devem incluir-se as situações em que o devedor está na iminência de se encontrar impossibilitado de cumprir com o que lhe é exigido, considerando-se o processo de insolvência um meio de o credor se poder prevenir em relação à situação futura do devedor;
5. Tal posição é também sufragada pelo Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 29.09.2011 (in www.dgsi.pt), onde se estabeleceu: “Se este fosse obrigado a esperar que o seu crédito fosse declarado por sentença transitada, poderia dar-se o caso de, na data do trânsito, o património do devedor já não existir”;
6. No mesmo sentido, elucida-nos o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.11.2020 (in www.dgsi.pt) onde se defendeu que “O escopo do processo de insolvência está em evitar que a crise do devedor cause danos graves ou danos maiores – a exigir-se que o crédito do requerente já estivesse declarado e fosse indiscutível, esse requerente, não poderia, perante a crise do devedor, prevenir o incumprimento ou o seu agravamento.”
7. Também a melhor Doutrina adota o mesmo entendimento, destacando-se CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA defensores de que “o que verdadeiramente caracteriza a situação de insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto no passivo do devedor, ou pelas próprias razões do incumprimento evidenciem a impotência para o obrigado de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos” – vide Luís A. Carvalho Fernandes, João Labareda in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2005. pp. 70-71;
8. De facto, concluímos que ainda que não exista efetivamente uma decisão judicial de procedência quanto ao crédito que a Requerente menciona na sua petição inicial, esta não poderá deixar de ter legitimidade ao abrigo do artigo 20.º, n.º1 do CIRE para propor a ação;
9. Considere-se, de resto, que, no preceito legal aludido o legislador fez menção expressa de que o credor pode requere a insolvência “qualquer que seja a natureza do seu crédito”.
10. Perante a redação do legislador, denota-se a sua intenção no sentido de ampliar a legitimidade e, derrubar as barreiras que podiam ser erguidas em relação a credores com créditos em litígio;
11. Aliás, seguindo a letra da lei dos art.s 23.º e 25.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE, a Requerente, em articulado próprio, fez menção quanto à origem, natureza e montante do crédito, fazendo a junção dos documentos que comprovam os factos por si alegados;
12. A jurisprudência tem também considerado que o cumprimento do previsto no artigo 25.º do CIRE é condição essencial para a Requerente apresentar fundamentadamente o seu pedido, não tendo de fazer a prova da titularidade do crédito que menciona;
13. Tal orientação é sustentada pelo Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão de 03.03.2020 (in www.dgsi.pt) com o fundamento de que “Sempre que se trate de um credor, a lei não exige que ele produza prova da qualidade que alega, mas tão só, que proceda à justificação do crédito, através da menção de origem, da natureza e do montante do crédito (artigo 25.º, n.º 1 do CIRE)”, e, no mesmo sentido, elucida-nos o Tribunal da Relação do Porto no Acórdão de 29.09.2011 (in www.dgsi.pt);
14. Ora, ao contrário da Jurisprudência invocada e da melhor Doutrina, a que infra se aludirá, o decidido pelo Tribunal a quo, salvo o devido respeito, milita numa aceção restrita do processo falimentar, considerando condição sine qua non a existência de um crédito já declarado;
15–Considerar tal precedência como verificação necessária para instauração de uma ação de insolvência seria transformar a causa de pedir da mesma na aferição da probidade de um crédito, quando, o que se pretende averiguar é da solvabilidade ou não do pretenso devedor;
16 – Ora, a decisão a quo furta-se ao escrutínio da consistência patrimonial do devedor, desconsiderando a verdadeira natureza do processo e do pedido que lhe foi colocado;
17 – Elucida, a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.11.2020 (in www.dgsi.pt) que: “Não importa pois saber se o crédito invocado está vencido ou não, se está reconhecido no processo ou até se é objeto de controvérsia” e, no mesmo sentido, veja-se o Acórdão de 02.03.2011 do Tribunal da Relação de Coimbra (in www.dgsi.pt) ao mencionar que: “parece nada impor que, para a formulação do pedido de insolvência, o crédito do requerente/credor já se apresente reconhecido por prévia decisão judicial ou, de outro qualquer modo, definido, que o mesmo é dizer, que não seja litigioso ou controvertido.”;
18 – Bem como se lê no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.11.2023 (in www.dgsi.pt), “I- A natureza litigiosa de um crédito, em sentido amplo, ou seja, enquanto sinónimo de crédito impugnado em juízo (art.579º, n.3 do CC), não significa, por si só, que esse crédito não exista e que o credor não consiga demonstrar a sua titularidade e a consequente legitimidade para requerer a insolvência.”;
19 – Jusvisão adotada pela melhor Doutrina ao defender uma legitimidade ampla que possibilite o titular de um crédito litigioso a exercer o seu direito de pedir a insolvência sobre o devedor - ROSÁRIO EPIFÁNIO - Manual de Direito da Insolvência. Coimbra, Edições Almedina, 8.º edição, 2024, pp.46-47 ou CATARINA SERRA – A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito: o problema da natureza do processo de liquidação aplicável à insolvência no direito português, Coimbra, 2009, p. 230.;
20 - Por tudo quanto resulta exposto supra, não se poderá conceder e conformar com a decisão do Tribunal a quo, porquanto afronta o predominante entendimento da Jurisprudência e Doutrina maioritária, nos termos a que aludimos anteriormente;
21–Numa palavra, a decisão em crise, considera-se, pois, que viola expressamente, de entre o mais, o disposto nos art.ºs 20.º, n.º1, 23.º e 25.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE.
Concluiu, pedindo que o presente recurso seja julgado provado e procedente, alterando-se a decisão recorrida, no sentido de julgar procedente o pedido de insolvência do Recorrido, com as demais consequências legais, seguindo o processo os seus demais trâmites.

6. O Recorrido não ofereceu contra-alegações.

7. Foram observados os vistos legais.

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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts 635º, nº 3 e 4, 639º, n.ºs 1 e 2 e 608º nº 2 do CPC- devendo o tribunal resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não estando obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, nem estando sujeito às alegações das partes no tocante á indagação, interpretação e aplicação das regras de direito- cfr. art. 5º nº 3 do CPC).
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A questão a decidir, em função das alegações de recurso, é a seguinte:
- se os autos devem prosseguir para declaração de insolvência do Requerido

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Para a decisão a proferir relevam os factos inerentes à tramitação processual e respectivas peças processuais constantes do relatório acima elaborado, tendo este Tribunal procedido à consulta integral dos autos principais para a prolação da presente Decisão.


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FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
A Apelante insurge-se contra a sentença que julgou improcedente o pedido de insolvência, e desde já antecipamos que se lhe reconhece total razão.
Apesar de ter sido afirmado na sentença recorrida que “na PI devem ser expostos os factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência – artº 23º, n.º 1 do CIRE -, e, sendo requerida por sujeito diverso do devedor, o requerente deve justificar na PI a origem, natureza e montante do seu credito – artº 25º, n.º do CIRE, acto constitutivo do direito de requerer a insolvência do devedor; só um credito que possa ser sumariamente justificados pode servir de fundamento para o pedido de insolvência do respectivo devedor”, acabou por afirmar também que, “no processo de insolvência, sendo embora uma execução universal, o credor deve munir-se de um titulo que reúna os elementos demonstrativos da certeza, exigibilidade e liquidez do credito”, exigências quanto a nós incompatíveis, porquanto ou se entende que basta uma justificação sumária pelo credor sobre a origem, natureza e montante do seu crédito perante o devedor cuja insolvência peticiona, ou se entende que tal alegação é insuficiente e se exige que seja portador de um título que demonstre um crédito certo, exigível e líquido, sendo esta última posição insustentável perante os requisitos exigidos por lei e, ao que sabemos, sem grande expressão na Doutrina e Jurisprudência.
Não podemos atribuir à questão da existência do crédito invocado pelo requerente da insolvência uma importância que não tem na apreciação liminar dos pressupostos necessários ao pedido de insolvência, pois que o aspecto primordial a ter em conta é seguramente averiguar se existe uma situação de impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, como decorre expressamente do art. 3º nº 1 do CIRE.
No presente caso a Requerente alegou ser credora do Requerido pelo montante de €155.676,76, valor esse que alegadamente corresponde à parte da qual aquele era devedor perante terceiros e que terá sido pago com bens próprios da Requerente, pagamento esse que determinou a extinção de uma execução movida contra ambos, arrogando-se a aqui Requerente credora do Requerido por ter direito de regresso sobre ele relativamente à quota parte que pagou a mais de uma dívida que era de ambos.
Cremos que a Requerente alegou de forma sumariamente justificada a sua qualidade de credora do Requerido, e para além de ter alegado ter aquele pelo menos mais três credores, a Requerente alegou de forma suficientemente concretizada que não tendo o Requerido pago a sua parte da dívida à entidade bancária, nem lhe conhecendo bens que respondam pelas dívidas, aquela obrigação pelo montante e pelas circunstâncias do incumprimento revelam a impossibilidade de o Requerido satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, o que se traduz na alegação do facto-índice da situação de insolvência previsto no art. 20º nº 1 al. b) do CIRE.
Argumentou o Tribunal a quo que tal crédito “não se encontra líquido atenta a pendencia da ação de regresso que corre termos no Juiz 5 do Juízo Central Cível do Porto, Processo n.º 16561/23.3T8PRT, invocada quer na PI, quer na oposição deduzida pelo requerido e do que resultou da audição das partes, acção em que são partes a ora requerente e requerido e onde se discute o montante do credito de que a requerente se socorreu para pedir a insolvência do requerido, e, inclusive a existência do crédito”, concluindo que, “(…) no caso em apreço, o credor é titular de uma obrigação ilíquida.”
A esse propósito colocou a “questão de saber se o pedido pode ser atendido com base no aludido credito – questão de legitimidade substantiva e não processual”, fazendo menção que “(…) relativamente ao credito, quando controvertido, subsistem duas opiniões que têm vindo a ser debatidas na jurisprudência – uma sustenta que o credito tem de estar reconhecido judicialmente para que seja reconhecida legitimidade ao credor para requerer a declaração de insolvência; a outra sustenta que o processo de insolvência é competente para verificar a existência do credito, cujo credito é litigioso, para requerer a insolvência.
A litigiosidade do credito não tolhe, por si só, a legitimidade do credor.
A prova efectiva da existência do alegado credito do requerente não é exigida, nem para aferição da legitimidade processual, nem para efeitos de legitimidade substantiva: a condição necessária e suficiente da declaração de insolvência é a situação de insolvência e esta, não se confunde com o incumprimento.
A grande maioria da jurisprudência assim o entende, é de opinião que o titular de crédito litigioso tem legitimidade para requerer a insolvência do devedor do controvertido crédito.
Qualquer credor constitui sujeito legitimado para requerer a abertura do processo de insolvência e – deixando-nos impressionar pelo estudo de catarina serra – não tem, em princípio, que se apurar previamente, na fase que antecede a declaração ou não da insolvência, se o mesmo é ou não efectivamente credor.
O legislador basta-se, em princípio, com aquela legitimidade processual, admitindo que a insolvência venha a ser declarada em função do requerimento de quem possa não ser efectivamente credor, dando primazia aos interesses indiscutivelmente públicos da insolvência. “
Porém, invertendo o sentido largamente maioritário da Doutrina e Jurisprudência, o Tribunal a quo acabou por concluir que “(…) entendemos que, relativamente a situações, como a dos autos, em que o credor requerente da insolvência é titular de um crédito litigioso, tal não deverá ser assim.”
Se bem compreendemos, o Tribunal a quo acabou por concluir que “ sendo a insolvência requerida por um credor de crédito litigioso, a insolvência, necessariamente restringida, na sua parte inicial, a um processo de partes, não poderá prosseguir afim de vir a ser ou não declarada, sem que se apure a existência desse único crédito e do seu vencimento, o que deve ser feito no processo respectivo que não este (…), afirmando ainda que “(…) o crédito na génese do pedido é controvertido no que tange à existência o que terá de ser dirimido em acção própria, neste caso, no Tribunal Civel, (…) cuja apreciação não é da competência deste Tribunal de Comércio”.
Perante tais afirmações retiramos a conclusão que o Tribunal a quo perfilha o entendimento de que se o requerente da insolvência for um credor, e o seu crédito for litigioso (sendo realidades distintas crédito ilíquido e crédito litigioso, apesar de indistintamente usados na sentença recorrida), bastando para esse efeito que seja impugnado pelo devedor, tal credor não pode peticionar a declaração de insolvência desse devedor ainda que justifique sumariamente a origem, natureza e montante do seu crédito e alegue de forma sumária estar o devedor impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, posição que não secundamos.
Se fosse como se propugna na sentença recorrida, bastaria aos devedores impugnarem o crédito invocado pelo requerente da insolvência para este ser considerado crédito litigioso e conseguirem, sem mais, que o pedido de declaração de insolvência fosse julgado manifestamente improcedente, resultado insustentável.
O facto de o crédito invocado pelo requerente da insolvência ser contestado pelo devedor, neste processo e/ou noutro de natureza cível, não contende com a apreciação do pedido de declaração de insolvência, só podendo o Tribunal abster-se de declarar a insolvência sem deixar produzir prova, se for manifesta a inexistência do crédito, não se o crédito for apenas litigioso, porque nesse caso terá de deixar produzir prova - art. 35º do CIRE- tendo total competência para o apreciar ainda que de forma sumária.
O Tribunal a quo terá ficado sugestionado com a questão da litispendência invocada pelo devedor na sua oposição, porém, não pode afirmar ser manifestamente improcedente o pedido de insolvência apenas e só porque o devedor o contestou e está a ser apreciado num processo judicial autónomo, porque a lei não exige para o conhecimento do pedido de insolvência que o credor requerente seja titular de um crédito reconhecido por sentença judicial.
Em anotação ao art. 20º do CIRE, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[1], escrevem que Catarina Serra (…) invoca a natureza diversa do processo de insolvência (face à execução), para sustentar a possibilidade do titular de crédito litigioso para requerer a insolvência (…)”, entendimento que Catarina Serra[2] defende, assim como sufraga igual entendimento Alexandre de Soveral Martins.[3]
Na jurisprudência, no mesmo sentido, entre outros, vejam-se os Ac RL de 14.1.2025, Proc. Nº 2386/17.9T8VFX-C.L1-1; Ac STJ de 2.11.2023, Proc. Nº 839/22.6T8FND-B.C1.S1; Ac RE de 25.03.2021, Proc. Nº 198/20.1T8OLH-D.E1; Ac RP de 27.04.2021, Proc. Nº 1595/20.8T8AMT.P1, e Ac RP de 24.11.2020, Proc. Nº 676/20.2T8AMT-B.P1, consultáveis in jurisprudência.pt.
A existência ou inexistência do crédito da Requerente diz respeito ao mérito da causa, a conhecer depois de realizada prova conforme previsto no art. 35º do CIRE uma vez que o devedor deduziu oposição, pelo que, estando suficientemente alegado pela Requerente na PI um dos factos-índice de insolvência do devedor, apesar de o crédito por si invocado se mostrar nesta fase litigioso, estão verificadas as condições suficientes para o prosseguimento dos autos, não estando o Tribunal a quo em condições de decidir pela manifesta improcedência do pedido sem que seja dada oportunidade à Requerente de produzir prova com vista à demonstração sumária do seu crédito e do facto índice por ela convocado na PI. [4]
Não constitui condição para a declaração de insolvência do Requerido a certeza do crédito de que se arroga a Requerente, mas a verificação de um dos factos subsumíveis no nº 1 do art. 20º do CIRE, que verificado acarreta uma presunção de insolvência que competirá ao devedor ilidir, demonstrando que apesar da sua verificação, não se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Em suma, não consubstanciando a natureza do crédito litigioso da requerente, fundamento legal bastante para se considerar nesta fase do processo manifestamente improcedente o pedido de insolvência, não poderá subsistir a sentença recorrida, devendo os autos prosseguir os seus normais termos, uma vez que não estão verificadas as condições para que possa ser julgado nesta fase o pedido de insolvência.
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DECISÃO:
Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente a presente apelação, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se o normal prosseguimento dos autos.

Custas a cargo da Apelante, que do recurso tirou proveito (art. 527º nº 1 do CPC).

Notifique.


Porto, 17.06.2025
Maria da Luz Seabra
Rui Moreira
Alberto Taveira

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] CIRE Anotado, 2013, pág. 83
[2] Lições de Direito da Insolvência, pág. 114 ss
[3] Um curso de Direito da Insolvência, 2015, pág. 51ss
[4] Neste sentido Ac RG de 28.09.2023, Proc. Nº 851/23.8T8VNF.G1; Ac RP 3.11.2010, Proc. Nº 49/09.8TYVNG.P1 e Ac RL de 2.11.2010, Proc. Nº 1498/09.7TYLSB.L1.7, consultáveis Jurisprudencia.pt