CRIME DE PORNOGRAFIA DE MENORES
BEM JURÍDICO
PLURALIDADE DE CRIMES
Sumário

I - Nos crimes de crime de pornografia de menores p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 1, alíneas c) e d) do Código Penal tendo o bem jurídico natureza pessoal, assente no interesse pessoal da sua autodeterminação sexual, sobretudo visa evitar danos na esfera pessoal do menor, que decorrem da sua associação ao mercado pornográfico, com as sequelas físicas, emotivas, de reputação e honra que daí advêm, proteção que vai muito além de uma matriz supraindividual ou difusa.
II - A publicação e divulgação incrementa a ressonância da agressão sexual de um concreto menor, expondo-o quase indefinidamente, uma e outra vez, renovando a sua esfera de dano, pelo que, o crime tutela o seu direito à imagem, honorabilidade e intimidade reportada à esfera sexual.
III - Na verificação da pluralidade destes delitos é indispensável na acusação e nos factos provados, a identificação do menor, não no sentido dos seus elementos identificativos civis (nome, filiação, naturalidade, residência etc), mas a sua individualização, diferenciação como pessoa, bastando que na acusação conste a diferenciação do número de menores, apurando-se quanto a cada um o seu género sexual, idade e o rosto visível, com suscetibilidade de identificação.

Texto Integral

Processo: 79/23.7JGLSB.P1

Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Em processo comum com intervenção de Tribunal Singular que correu termos no Juízo Local Criminal da Póvoa do Varzim do Tribunal da Comarca do Porto, procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais. Foi proferida sentença, julgando do seguinte modo:
Em face do exposto, decide-se:
a) condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 69.º-B, 69.º-C, 176.º, n.º 1, al. c), e 177.º, n.os 7 e 8 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, pela prática do crime atinente à partilha de material pornográfico;
b) condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 69.º-B, 69.º-C, 176.º, n.º 1, al. d), e 177.º, n.os 7 e 8 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos, pela prática do crime consistente na detenção de material pornográfico contra crianças do sexo masculino;
c) condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 69.º-B, 69.º-C, 176.º, n.º 1, al. d), e 177.º, n.os 7 e 8 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, pela prática do crime consistente na detenção de material pornográfico contra crianças do sexo feminino.
d) Realizar o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido AA, nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, assim determinando a aplicação de uma pena única de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão;
e) Suspender a execução da pena de prisão, por um período de 3 (três) anos e 10 (dez) meses, mediante o cumprimento de um regime de prova, assente num plano de reinserção social ajustado à intervenção clínica e terapêutica especializada (direcionada à sua compulsão sexual e procura por conteúdos pornográficos, incluindo de menores), a consolidação das suas condições atuais de inserção e à sensibilização para o fenómeno do desaparecimento e exploração sexual de crianças e jovens, nos termos do artigo 53.º do Código Penal, e no cumprimento dos seguintes deveres:
a. no pagamento de uma contribuição monetária a favor o ... à Criança (BB), no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros);
b. do dever de se sujeitar a diagnóstico médico, terapêutica e tratamento medicamente indicados, pelo período a definir pelo profissional de saúde, referentes à sua perversão, ao abrigo do disposto no artigo 52.º, n.º 3 do Código Penal.

f) Aplicar ao arguido AA as seguintes penas acessórias, cada uma por um período de 5 (cinco) anos:
a. proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, ao abrigo do disposto no artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal, e
b. proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, ao abrigo do disposto no artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal.

g) Declarar perdidos a favor do Estado os bens apreendidos nos autos, a fls. 357 a 359, ao abrigo do disposto nos artigos 109.º, n.º 1 do Código Penal e 186.º, n.º 2, do Código de Processo Penal;
h) Condenar o arguido AA nas custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3,5UC – artigos 513.º, e 514.º, do CPP, e artigo 8.º, n.º 9, e Tabela III, do RCP), reduzidas a metade – artigo 344.º, n.º 2, c), do CPP.

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A quantia a entregar pelo arguido deverá ocorrer no prazo de 60 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, devendo comprovar o pagamento nestes autos, no prazo concedido para o pagamento.
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O TIR prestado permanece em vigor até à extinção da pena – artigo 214.º, n.º 1, e), do Código de Processo Penal.
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Notifique.
Após o trânsito:
a) remeta boletins ao registo – artigo 374.º, n.º 3, d), CPP, e artigos 5.º, n.º 1, 2 e 3, 6.º, al. a) e 7.º, n.º 1, al. a) e 2, da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio.

b) comunique à DGRSP para diligenciar pelo acompanhamento do tratamento médico e pelo agendamento das consultas que se afigurem necessárias, e para proceder à elaboração do plano de reinserção social (artigos 53.º, n.º 2 do Código Penal e 494.º, n.º 3 do Código de Processo Penal) e para, posteriormente, remeter aos autos relatórios de execução do mesmo com periodicidade semestral;
c) cumpra o disposto no artigo 499.º, n.os 1, 2, e 5, do Código de Processo Penal;
d) proceda à recolha de amostra com vista à obtenção de perfil de ADN do arguido, nos termos e para os efeitos dos artigos 8.º, n.ºs 2 e 3, e 18.º da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro.”.
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Não se conformando com a sentença o arguido AA veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação:
1 - Dos depoimentos prestados pelas Sras. Inspetoras da Polícia Judiciária, CC e DD, resulta a afirmação consentânea entre ambas de que o arguido não tinha o típico perfil de consumidor de pornografia infantil, mas sim de pornografia em geral, entre a qual se encontrava aquela, trazendo as mesmas “a mais-valia de contextualizar o perfil do arguido”.
2 - Constando dos factos provados a confissão do arguido (facto 19), a inexistência de antecedentes criminais (facto 20), a sua inserção social e profissional (factos 21 a 25, 27 a 34), a cessação da prática e procura de ajuda de terceiros (factos 26 e 35), não consta da factualidade provada o facto de que o arguido era consumidor de pornografia em geral e não exclusivamente de menores, dada a relevante ponderação a favor do arguido, deve ser inserida no rol dos factos provados um facto novo do seguinte teor:
O arguido era consumidor de pornografia em geral e não exclusivamente de menores, não tendo o perfil típico de consumidor de pornografia infantil.”
3 - Impõe-se a devida valorização desse facto novo, atento o crime de que o arguido foi acusado e os crimes em que acabou por ser condenado, uma vez que tal realidade é demonstrativa de que a sua conduta antijurídica não se enquadra no tipo de perversão de consumo de pornografia exclusiva de menores.
4 - Os factos dados como provados preenchem, ao contrário do propugnado pelo Tribunal a quo, os elementos típicos de um único crime de pornografia de menores p.p. pelo art. 176º, nº 1 alíneas c) e d) do CP, com a agravante prevista no art. 177º, nºs 7 e 8 do mesmo Código, posição igualmente sufragada pelo Ministério Público como, aliás, consta da douta acusação pública.
5 - Os crimes de pornografia de menores integram um único crime, consubstanciado na prática pelo arguido da atividade criminalmente punida, na medida em que, protegendo em primeira linha a dignidade das crianças enquanto bem supra individual, o entendimento de que haverá tantos crimes como o número de vítimas não tem aplicação neste tipo de ilícito, pois o bem jurídico em causa não é exclusivamente pessoal, nos termos do artigo 30º do CP.
6 - A existência de um único crime em casos como o dos autos é bem ponderada pela doutrina e jurisprudência citadas no corpo desta motivação e proficientemente justificada por Maria João Antunes, no Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª Edição, que, a respeito do crime do artigo 176º, refere de forma muito lúcida que “No que se refere aos n.ºs 1-c) e d) e 3 do que se trata, verdadeiramente, é da criminalização do comércio de material pornográfico, entendido este numa acepção ampla, havendo uma tutela demasiado longínqua e indeterminada do livre desenvolvimento sexual do menor “de carne e osso”… para se poder afirmar que este é o bem jurídico individual protegido pela incriminação…»
7 - Atendendo, por um lado, à factualidade dada como provada nos pontos 3., 8., 9. e 12. da douta sentença sob recurso e, por outro lado, na senda da vasta Doutrina supra citada, impõe-se concluir pela existência de um único crime praticado pelo arguido, ora recorrente.
8 - Não se justifica o critério e entendimento da Meritíssima Juiz a quo, que decidiu autonomizar os crimes imputados ao arguido/recorrente por referência ao género (masculino e feminino) das vítimas, já que o teor do art. 176º do Código Penal tem como epígrafe “Pornografia de menores”, não fazendo a Lei qualquer referência ao sexo das crianças, pelo que não cabe ao intérprete distinguir onde a Lei não distingue, em conformidade com o princípio da hermenêutica jurídica “ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus”.
9 - A alteração da qualificação jurídica dos factos constante da douta sentença sob recurso carece de fundamento legal, uma vez que nos presentes autos não está em causa uma pluralidade de condutas subsumíveis ao crime imputado ao arguido, nem tal resultou da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
10 - A assim se não entender, sempre haverá de se recorrer à figura do crime de trato sucessivo no caso em apreço, tal como sufragado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo nº 72/15.3JASTB.E1, em que é Relator o Sr. Desembargador António Condesso, de 16-03-2017.
11 - Relativamente aos elementos do tipo legal dos crimes previstos no artº 176º, nº 1, alíneas c) e d) do Cód. Penal, quanto ao crime da alínea c) referida, existe na matéria de facto provada apenas um ato material praticado pelo arguido que é subsumível a essa previsão legal, qual seja o facto constante do Ponto 3 dessa matéria, que levou à condenação do arguido nos termos constantes da alínea a) do segmento decisório da douta sentença recorrida.
12 - Quanto ao crime tipificado sob a alínea d) do artº 176º do Código Penal, o mesmo só é passível de ser cometido se houver elementos de facto provados que, para além do mais, se subsumam ao propósito de divulgação ou distribuição, por este ser elemento essencial do tipo legal em causa, sendo que, no caso dos autos, não se descortina nenhum facto que possa enquadrar-se na previsão constante da alínea d) do citado artº 176º, ou seja, no propósito de distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder o material detido pelo arguido.
13 - A mera detenção ou alojamento dos vídeos no seu equipamento, sem prova do referido propósito de os fazer chegar a terceiros, com a devida vénia, não faz o arguido incorrer na comissão do crime previsto no artº 176º, nº 1, alínea d) do Cód. Penal, ao qual foi imputada a prática, em autoria material, de dois desses crimes, nos termos constantes das alíneas b) e c) do segmento decisório da douta sentença recorrida, pelo que essas condenações não têm fundamento na matéria de facto provada, por falta de prova desse elemento volitivo integrante do tipo, impondo-se, por isso, a sua revogação e a absolvição do arguido da prática desses dois crimes.
14 - Ainda que assim se não entendesse, se existisse matéria de facto que fosse suscetível de constituir prova de que o arguido tinha os vídeos no seu equipamento com o objetivo de os divulgar, distribuir ou ceder - e não de apenas os visualizar para fins pessoais - a realidade é que não existe prova de que tenha sido consumado tal propósito, pelo que sempre se imporia, em tais circunstâncias, ponderar a comissão desse crime, não em autoria material, mas na forma tentada, nos termos previstos no nº 9 do mesmo artº 176º.
15 - Punível a tentativa, sempre teria de ser aplicada a atenuação especial da pena, nos termos previstos no artº 23º, nº 2 do Código Penal, o que não sucedeu, pelo que também por essa via se torna justificada a revogação das condenações constantes das alíneas b) e c) do segmento decisório da douta sentença recorrida.
16 - Atendendo às razões invocadas que justificam a revogação da comissão dos crimes constantes das alíneas b) e c) do segmento decisório da douta sentença recorrida ou, no máximo, a condenação do arguido pela prática de um só crime previsto na alínea d) do nº 1 do artº 176º do Código Penal, mas na forma tentada, resulta daí que a aplicação ao arguido, em cúmulo jurídico, da pena única de 3 anos e 10 meses de prisão, é manifestamente incorreta, excessiva e demasiado gravosa, não só pelos fundamentos técnico-jurídicos de qualificação da sua conduta como subsumível a um único crime, mas também pelo facto de a moldura penal aplicável concreta não poder ultrapassar o limite de 5 anos de prisão, atenta a faculdade exercida pelo Ministério Público, nos termos do artº 16º, nº 3 do CPP.
17 - Em termos comparativos com outras decisões condenatórias no mesmo âmbito típico-legal, a pena em causa nestes autos ultrapassa o ponto médio da moldura penal, enquanto que, e a título meramente exemplificativo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supra citado, processo nº 194/14.8TEL.SB.S1, Relator PIRES DA GRAÇA, de 17-05-2017, estava em causa elevado número de ficheiros de conteúdo pornográfico de menores (4349) com várias partilhas, foi a pena de 6 anos e 6 meses de prisão aplicada em 1ª instância e no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/06/2022, proc. nº 482/20.4JGLSB.L1.S1, Relatora Conceição Gomes, também citado, estavam em causa 23654 ficheiros, foi aplicada a pena de 6 anos e 6 meses de prisão.
18 - Tendo por pressupostos definidores da medida concreta da pena os critérios do artº 71º do Código Penal, da culpa do agente e das exigências de prevenção, no que respeita à culpa, apenas é feita alusão ao facto de o arguido ter agido com dolo direto, de uma forma abstracta, sem ter sido atendido o facto de apenas se ter verificado um único acto de divulgação do material que detinha em sua posse, de as suas preferências não serem orientadas exclusivamente para menores e, por fim, o reduzido número de ficheiros detidos, por comparação com outros casos bem mais significativos e graves, deveria ter sido ponderado o dolo na sua forma mais leve, prevista no artº 14º, nº 3 do Cód. Penal.
19 - Relativamente às exigências de prevenção, apesar de a douta sentença recorrida referir que encontrar a pena concreta a aplicar será localizar a prevenção especial de socialização do concreto agente dentro da moldura de prevenção geral positiva referente aos factos, tendo como pressuposto e limite a culpa do agente, a realidade é que foi sopesado muito mais o elevado grau de exigência da prevenção geral, a par de uma intensidade do dolo que não foi justificada, em detrimento das reduzidas necessidades de prevenção especial do arguido, traduzidas na inexistência de antecedentes criminais, na confissão integral e sem reservas, na inserção social e profissional, na cessação do consumo desse tipo de materiais e na busca de ajuda para a sua perversão e ainda no facto de que o mesmo não orientava a sua procura por material pornográfico com referência especificamente a crianças.
20 - Em termos de ponderação da culpa em concreto do arguido na comissão do ilícito pelo qual foi condenado, apenas se faz referência ao facto de o arguido ter agido com dolo direto, o que não é mais do que uma mera conclusão jurídico-penal, nada apontando para um grau máximo, ou sequer médio, de culpabilidade do arguido
21 - Face à inexistência de ponderação qualitativa quanto ao grau de culpa do arguido e face às exigências de prevenção geral e especial, bem como às demais circunstâncias supra referidas, entende o arguido não se justificar uma adequação à opção pela medida concreta da pena que lhe foi aplicada, tendo-se como ajustada a pena de prisão na metade inferior da moldura abstrata, ou seja, dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, que se entende adequada não só às questões suscitadas a respeito do crime p.p. pelo artº 176º, nº 1, al. d) do Cód. Penal, mas também ao grau diminuto de dolo do arguido, bem como adequada a satisfazer de forma equilibrada as exigências de prevenção geral e especial no caso concreto.
22ª - O arguido deverá ser dispensado do dever de proceder ao pagamento de uma contribuição monetária a favor do ... à Criança (BB), no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), que se revela penosa face ao valor do salário mensal de cerca de € 980,00 (novecentos e oitenta euros) auferido pelo arguido.
23ª - Ao assim não ter decidido, entende-se que a douta sentença recorrida fez uma incorreta ponderação das normas constantes dos artºs 71º, nºs 1 e 2 alíneas a) a e) e 23º, nº 2, por referência ao artº 176º, nº 1, alínea d) e nº 9, todos do Código Penal, normas estas que, por tal motivo, se mostram violadas, assim como os princípios constantes dos nºs 1 e 2 do artº 40º do mesmo diploma.

- Nestes termos, nos melhores de Direito aplicáveis e sempre com o mui douto suprimento de V. Excias., deve ser julgado procedente o recurso interposto, em consequência de que deverá ser alterada a douta sentença recorrida, no sentido do arguido ser condenado a uma pena de prisão na metade inferior da moldura abstrata, ou seja, dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, bem como ser dispensado de proceder ao pagamento de uma contribuição monetária a favor do ... à Criança (BB), no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), com as demais consequências legais, por assim ser conforme ao Direito e à Justiça.
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O MP em primeira instância respondeu ao recurso, referindo em síntese:
I. Da impugnação da decisão da matéria de facto.
Pugna o Arguido pela inclusão de um facto novo na decisão da matéria de facto, que entende ser-lhe favorável, a saber:
“O arguido era consumidor de pornografia em geral e não exclusivamente de menores, não tendo o perfil típico de consumidor de pornografia infantil.”
Alega para tanto que o facto resultou dos depoimentos das sras. Inspetores da P.J. CC e DD.
Sem que o tenha expressa ou tacitamente referido, a Defesa entende que o Tribunal incorreu numa insuficiência da decisão da matéria de facto, que constitui uma nulidade prevista no artigo 410.º/2-a do Código de Processo Penal.
Sucede que este facto não constitui um elemento típico do crime de pornografia de menores nem uma sua atenuante e, portanto, não se vê por que razão o Tribunal devesse sobre ele tomar decisão.
Ademais, o facto não foi alegado na contestação nem pela defesa no julgamento e, também por isso, não se verifica uma hipotética omissão de pronúncia (art. 358.º/2 e art. 379.º/1-c do Código de Processo Penal).
Veja-se que o Recorrente não indica que solução jurídica plausível poderia o facto assim proposto contribuir, apesar de não se ignorar que o tribunal deve indagar e tomar posição sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, mas também daqueles que resultem da discussão da causa e sejam relevantes para a decisão (art. 339.º/4, 368.º /2 e 374º/2, do Código de Processo Penal).
O facto proposto encerra um juízo conclusivo (“perfil típico de consumidor…”).
Acresce que a circunstância de o arguido não ter orientado a procura por material pornográfico com referência especificamente a crianças foi efetivamente atendida pelo Tribunal como o Recorrente aliás assinalou. E foi importante para a avaliação da ilicitude e da culpa e, portanto, na dosimetria da pena.
Em suma, o Tribunal não incorreu no vício apontado nem se vê que exista fundamento legal ou benefício prático na alteração da decisão da matéria de facto requerida, que deverá, pelo exposto, improceder.
2. ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CONDUTA
O Recorrente pugna pela sua condenação por um único crime, tal qual lhe fora imputado na acusação pelo Ministério Público, reagindo contra a alteração da qualificação jurídica decidida pelo tribunal a quo.
Com efeito, o Ministério Público acusou o arguido pela prática de apenas um crime de pornografia de menores e o Tribunal condenou-o por três, na forma agravada.
A quantificação de número de crimes de pornografia de menores é uma matéria controversa, amplamente discutida na jurisprudência e na doutrina, que traz desafios desde logo à investigação, durante o inquérito, que mais à frente enformam quando não limitam a subsunção jurídica que os Tribunais são chamados a realizar na fase de julgamento.
Dispõe o artigo 30.º/ 1 do Código Penal que o número de crimes determina-se pelo número
de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
A exceção ao concurso real de crimes está prevista no n.º 2 para o crime continuado: pressupõe uma execução homogénea, no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que traduza uma diminuição da culpa. Está excluído do seu âmbito de aplicação os crimes que protejam bens eminentemente pessoais (n.º3).
O crime de pornografia de menores protege a autodeterminação sexual que é um bem jurídico eminentemente pessoal. Alguns autores e jurisprudência entendem, porém, que o bem jurídico é supraindividual.
Outros entendem que apesar de ser individual ou pessoal, o crime pode ser punido numa unicidade, por aplicação da doutrina do trato sucessivo, decorrente da homogeneidade de condutas e impossibilidade de identificar as vítimas.
Na verdade, a individualização das vítimas pressupõe um tratamento de ficheiros eletrónicos apreendidos que não está ao alcance da investigação quanto os mesmos são na ordem das dezenas, centenas ou milhares.
No sentido de que o bem jurídico é supraindividual, pronunciou-se, a título ilustrativo, a Sra. Procuradora da República Ângela Pinto, em trabalho publicado no site do CEJ:
Quanto às hipóteses de concurso, diga-se que é habitual que quando está em causa um crime de pornografia de menores ele esteja em concurso efetivo com outro crime contra a autodeterminação sexual, desde logo porque haverá sempre um concreto abuso da criança que participa na produção do material pornográfico. Todavia, atendendo a que o crime de pornografia de menores apenas indiretamente tutela a autodeterminação sexual, protegendo em primeira linha a dignidade das crianças enquanto bem supraindividual11, o entendimento de que haverá tantos crimes como o número de vítimas não tem aplicação neste tipo de ilícito, pois o bem jurídico em causa não é exclusivamente pessoal, nos termos do artigo 30.º do Código Penal.
(PINTO, Ângela, in Crimes Contra a Autodeterminação, Ebook Trabalhos Temáticos de Direito e Processo Penal, Coleção Formação, Ministério Público, p.116)
A punição do crime pelo trato sucessivo pressupõe uma unidade resolutiva e uma conexão temporal de que infira que não houve propriamente uma renovação do processo de motivação. Assenta, portanto, numa homogeneidade da conduta, que é própria do crime continuado, mas sem ter na sua base uma atenuação da culpa.
Neste sentido, decidiu por exemplo o Tribunal da Relação de Lisboa, em aresto de 15.12.2015:
Actualmente, com a entrada em vigor da norma do nº. 3 do artigo 30º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei nº. 40/2010, de 3 de Setembro, exclui-se a figura do crime continuado relativamente a crimes desta natureza.
Assim sendo, a realização plúrima do mesmo tipo de crime constituirá, em princípio, um concurso de infracções, mas pode constituir um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial. E para optar pelo crime continuado, é necessário que, além do mais, a reiteração advenha de uma mesma situação externa que diminua consideravelmente a culpa do agente. (cfr. Acórdão do S.T.J., de 25/06/1986, in BMJ, nº 358, pág. 267, Acórdão do S.T.J., de 05/05/1993, in C.J. e Acórdão do S.T.J., 1993, t. 2, pág. 222).
A doutrina e a jurisprudência – sobretudo a do Supremo Tribunal de Justiça que tem vindo a ser publicada e que cremos maioritária - têm vindo, em alguns casos a entender haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma só resolução criminosa, desde o início, assumida pelo agente, enquadrando assim as actuações reiteradas na figura do crime único de trato sucessivo.
É essa unidade de resolução, a par da homogeneidade da actuação e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos vários actos sucessivos num só crime. O dolo do agente abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando as condições da sua realização, estando-se no plano da unidade criminosa. A reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada do mesmo, existindo ainda um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, configura o trato sucessivo (vide neste sentido, designadamente: Ac. do STJ de 02/10/2003, in CJSTJ, 2003, T.3, p.194; Ac. do STJ de 14/06/2007, in CJSTJ, 2007, T. 2, p. 220; Ac. do STJ, de 07/10/2010, in CJSTJ, 2010, T. 1, p. 176; Ac. Do STJ, de 29/11/2012, de 13/06/2013, in www.dgsi.pt, entre outros).
Conforme expendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.06.2013, com o qual se concorda «A solução do crime de trato sucessivo serve também hipóteses de pluralidade de crimes mas cuja prática conforma uma “actividade”, prolongada no tempo, e em que se torna tarefa muito difícil, se não arbitrária, definir o concreto número de actos parcelares que a integram. No entanto, diferentemente do que é requerido para a afirmação da figura do crime continuado, não se verifica uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente (in www.dgsi.pt).
No caso em apreço, face à matéria de facto considerada provada e supra descrita, não ocorre qualquer circunstancialismo exterior que, de forma considerável, tenha facilitado a repetição da actividade criminosa. Pelo que, se entende que a conduta do arguido não é subsumível à figura do crime continuado.
Todavia, verifica-se a reiteração de condutas essencialmente homogéneas, unificadas por uma mesma resolução criminosa. Acresce que não é possível a identificação das vítimas.
Deste modo, atenta a factualidade apurada nos autos, existiu por parte do arguido um dolo inicial que abarcou os factos que praticou ao longo do período apurado. Ou seja, a conduta do arguido é fruto de uma unidade resolutiva, que abarcou ab inicio as circunstâncias de modo e lugar, sendo que a consumação do crime prolongou-se no tempo.
Conclui-se, assim, que no caso vertente, o arguido não praticou, em concurso real, 256 crimes de pornografia de menores, mas um único crime de pornografia de menores agravado, de trato sucessivo e, consequentemente, proceder-se-á à respectiva convolação.
(ac. TRL de 15.12.2015, processo 3147/08.1JFLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt).
Posição idêntica foi adotada em acórdão da Relação de Évora de 2017: I – Configura a prática de um crime de trato sucessivo a existência de um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal.
(ac. TRE de 16.3.2017, processo 72/15.3JASTB.E1, disponível em www.dgsi.pt).
No aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 26.9.2024, apesar de o colendo Tribunal repudiar a tese do trato sucessivo, integrou a posse de 108 ficheiros de pornografia infantil na prática de um único crime, louvando-se na posição de Mouraz Lopes, com a seguinte
fundamentação:
Já quanto aos cento e oito crimes de detenção de pornografia de menores, subsumíveis ao tipo legal do artigo 176º, nº5 do CP, apesar do número (108) de ficheiros contendo pornografia de menores que foram apreendidos na posse do arguido, entendemos que esta sua conduta configura um único crime.
Com efeito, escreve, a propósito, Mouraz Lopes “No que concerne às condutas descritas nas alíneas a) e b) do nº1 do art. 176º do CP existe uma violação directa do bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual, o que implica que por cada menor utilizado ou aliciado para efeitos de espectáculos, fotografias, filmes ou gravações pornográficas se consuma um crime. Assim, o número de crimes coincide com o número de vítimas usadas ou aliciadas. Por seu turno, as alíneas c) e d) do nº1, os nºs 4, 5 e 6 do art. 176º do CP reconduzem a atuação ilícita à produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, exibição, cedência, aquisição, detenção, acesso, obtenção e facilitação de acesso aos materiais pornográficos. A utilização no plural (materiais), aliado ao facto de que estas atividades são uma forma de tutela indireta da liberdade e autodeterminação sexual, determinam que se conclua que o número de materiais pornográficos em causa releva para a escolha e medida da pena, mas não para a individualização de crimes consumados. Assim, existirá um só crime, independentemente do número de fotografias, filmes ou gravações. Não obstante, está sempre presente no crime de pornografia de menores uma tutela da imagem do menor, que se vê gravemente afetada, atento o elevado grau de disseminação e a quase impossibilidade prática de apagar totalmente o “rasto” digital na internet e, principalmente, ....
Bem como o objectivo de reduzir o “consumo” de pornografia infantil, já que propicia uma
crescente procura de imagens e filmes de pornografia infantil, de diversa índole. Em suma, não existe uma coincidência absoluta na tutela de bem jurídico, com os crimes de abusos sexuais dos arts. 171º, e 172º, atos sexuais com adolescentes do art. 173º, recurso à prostituição do art. 174º ou lenocínio do art. 175º. Significa que estamos perante uma situação de concurso efetivo. (…).”.
Igual entendimento, quanto à detenção de diversos materiais pornográficos, encontra-se plasmado no acórdão do STJ de .../.../2017, assim sumariado: “A conduta do arguido que importou, partilhou e detinha com vista à partilha de 4349 ficheiros de conteúdo pornográfico de menores com idades inferiores a 16 e 14 anos de idade integra a prática pelo arguido de um único crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelo art. 176.º, n.º 1, als. c) e d) e art. 177.º, n.º 6 e 7, do CP, atenta a natureza do bem jurídico violado, na medida em que não é imediatamente a liberdade e autodeterminação sexual ou interesses exclusivamente pessoais que estão em causa na ilicitude em questão, mas um bem jurídico supra individual, de interesse público, de protecção e defesa da dignidade de menores, na produção de conteúdos pornográficos e divulgação ou circulação destes pela comunidade.”.
Temos, assim, que quanto aos factos relativos à detenção de material pornográfico (da previsão do artigo 176º, nº5 do CP) o aqui arguido cometeu um só crime e, quanto aos demais ilícitos imputados, cometeu tantos crimes consoante os actos praticados sobre cada uma das menores, em número que a seguir se indica por referência a cada uma das ofendidas.
(ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 26.9.2024, processo 1379/21.6JAPRT.P1.S1 A punição por um único crime pode fundar-se também na existência de uma única resolução criminosa. Neste sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-10-2024: I - Os crimes de pornografia de menores previstos no artigo 176º, nº 1, als. c) e d) e nº 5, do Código Penal não configuram uma violação direta da liberdade e autodeterminação sexual do menor.
II - O bem jurídico é de carácter supraindividual, de interesse público, relacionado com a proteção da dignidade dos menores na produção e divulgação de conteúdos pornográficos.
III - Nos casos de ações prolongadas no tempo, existirá um único crime de pornografia, independentemente da quantidade de materiais pornográficos ou do número de menores/vítimas envolvidos, desde que os atos sejam praticados no âmbito de uma única resolução criminosa.
IV - Apenas a formação de uma nova resolução criminosa pode determinar a existência de um novo crime. (ac. do TRP de 09-10-2024, processo 1207/20.0JGLSB.P1, in www.dgsi.pt).
De outra banda, encontramos arestos que condenam por uma pluralidade de crimes, assente na natureza eminentemente pessoal do crime. O número de crimes assenta no número de vítimas e de episódios por cada uma delas, ou no número de resoluções criminosas, descortinável através por exemplo das datas de descarregamento e / ou de partilhas.
Seguindo a tese do concurso real de crimes, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça por exemplo no acórdão de 20.2.2019, com o seguinte sumário, que citamos na parte que aqui releva:
I - O chamado crime de trato sucessivo mais não é do que uma tentativa de ampliar a nossa construção jurídica do crime continuado, despojando-o da marca essencial que assume no nosso ordenamento jurídico-penal, que é a realização plúrima da acção típica no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art. 30.º, n.º 2 do CP).
II - A categoria de crime de trato sucessivo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [art. 119.º, n.º 2, al. a), do CP], o crime continuado [arts.119.º, n.º 2, al. b), 30.º, n.ºs 2 e 3, e 79.º] e o crime habitual [art. 119.º, n.º 2, al. b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [art° 19°, n° 2, do CPP].
III - Dado que os crimes praticados pelo arguido [1 crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.ºs 1 e 2 do CP e de 9 crimes de pornografia de menores agravado, p. e p.pelos arts. 176.º, n.º 1, al. b) e 177.º, n.º 5, do CP (na redacção dada pela Lei 59/2007, de 04-09)], protegem bens jurídicos de natureza eminentemente pessoa e, para além disso, cada um dos crimes ofendeu uma diferente vítima, e porque a conduta do arguido não se enquadra em qualquer das designações supra mencionadas tem a mesma que ser punida de acordo com as regras do concurso efectivo constantes do art. 30.º, n.º 1 do CP.
IV - Ao tipo do crime de pornografia de menores é alheio qualquer elemento de reiteração sendo-lhe aplicável a regra geral prevista naquele n.º 1 do art. 30.º do CP, cometendo o arguido tantos crimes, repetidos, quantas as vezes que preencheu, objectiva e subjectivamente, a conduta típica ou seja, à pluralidade de actos corresponde a pluralidade de sentidos de ilicitude típica. (ac. Supremo Tribunal de Justiça processo 234/15.3JAAVR.S1, in www.dgsi.pt).
Esta é também a posição perfilhada da Sr.ª Juíza Conselheira Dra. Helena Moniz, citada no acórdão de 26.9.2024: “ainda que se possa considerar que um possível crime de abuso poderia integrar diversos atos, verificamos, todavia, que o tipo pune a conduta não de abuso, enquanto integrante de múltiplos atos, mas cada ato individualmente considerado. Na verdade, olhando, por exemplo, para o disposto no art. 171.º, do CP, é punido todo aquele que pratica ato sexual de relevo com menor, e logo que pratica cada ato, e em cada ato que pratica. É o ato ainda isolado que já constitui um caso de abuso.” Nesta senda, defende a mesma autora que “…deve afirmar-se que haverá concurso efetivo de crimes sempre que o contexto espácio-temporal seja distinto, bastando para tanto que aqueles atos sejam realizados em momentos temporais distintos…”para concluir que “Excluindo o entendimento de que os crimes como o de abuso sexual de menor ou o crime de violação sejam crimes de múltiplos atos, excluindo que sejam crimes de atentado ou empreendimento (em que há uma equiparação entre a tentativa e a consumação), excluindo que haja lugar a uma unificação das diversas resoluções numa unidade resolutiva, excluindo que possam ser subsumidos à figura do crime continuado, fica apenas a possibilidade da punição de cada ato sexual de relevo realizado, com todas as dificuldades que se possam encontrar, nomeadamente, de prova….”. (apud ac. Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo 1379/21.6JAPRT.P1.S1
Nestes autos, o Tribunal excluiu expressamente a doutrina do trato sucessivo e decidiu condenar por três crimes: O Tribunal não desconhece a doutrina do trato sucessivo, jurisprudencialmente desenvolvida, segundo a qual, mesmo perante bens jurídicos eminentemente pessoais, havendo uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga ou repete no tempo, em que o os tipos de ilícito são os mesmos ou protegem essencialmente um bem jurídico idêntico, contra a mesma vítima, haverá um só crime e não tantos quantos os factos praticados. No fundo, esta doutrina procede a uma unificação de várias condutas, considerando a existência de uma unidade de resolução, que abarca todas as resoluções parcelares, por rejeitar a existência de qualquer renovação da resolução criminosa. Os defensores de tal doutrina explicam que a reiteração ou o prolongamento da conduta no tempo agrava a sua culpa.
No entanto, este Tribunal não adere tal doutrina. Em primeiro lugar, não adere por entender que não conhece qualquer respaldo na lei, antes com ela contendendo, atenta a inserção do n.º 3 ao artigo 30.º do Código Penal, a qual é recente e visou precisamente apartar os crimes contra os bens jurídicos eminentemente pessoais da possibilidade de os englobar numa só condenação, no contexto de um concurso de crimes. Donde, ao abrigo do disposto no artigo 9.º, n.os 1 e 2 do Código Civil, o Tribunal entende não poder interpretar o artigo 30.º (ou qualquer outra norma) do Código Penal numa ótica de contemplação da figura do crime de trato sucessivo.
Nas palavras do acórdão do colendo Supremo Tribunal de Justiça de 20 de fevereiro de 2019, processo n.º 234/15.3JAAVR.S1, «O chamado crime de trato sucessivo mais não é do que uma tentativa de ampliar a nossa construção jurídica do crime continuado, despojando-o da marca essencial que assume no nosso ordenamento jurídico-penal, que é a realização plúrima da acção típica no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art. 30.º, n.º 2 do CP).».
E com isso mesmo se concorda.
(…)
E tal entendimento permanece naquele colendo Supremo Tribunal de Justiça, como evidencia o recente acórdão de 26 de setembro de 2024, processo n.º 1379/21.6JAPRT.P1.S1.
Entende, pois, o Tribunal, que haverá um crime por cada vítima e tantos crimes quantos os que se logre autonomizar, mesmo que contra a mesma vítima, à luz do critério dos «sentidos sociais de ilicitude do comportamento global», cf. FIGUEIREDO DIAS, apud HELENA MONIZ, op. Cit., p. 21.
*
Feitas estas considerações teóricas, necessárias à apreciação dos factos, passemos a esta.
O arguido utilizou um seu perfil da rede social Messenger para receber material de conteúdo pornográfico, que veio a ser apreendido em 2023, e fê-lo desde inícios de 2020, até, pelo menos setembro de 2021. Guardou tais ficheiros na sua nuvem – de forma automática – e em cartão de memória. Nesses ficheiros, contam-se, guardados na aplicação google photos, 20 referentes a crianças de ambos os sexos, com idades entre os 5 e os 17 anos, e mais 63 com crianças do sexo feminino, e 24 com crianças do sexo masculino, todos com idades entre os 3 e os 15 anos.
Acrescem 3 ficheiros, guardados em cartão de memória, com crianças do sexo feminino, um em que a idade é inferior a 14 anos, e outros dois em que a idade é inferior a 12 anos.
10 de 14 De todos estes vídeos, não se sabe se as vítimas são as mesmas – exceto por referência aos sexos –, nem se a obtenção e o guardar dos vídeos foi em momento distinto.
Pelo que não se conseguem autonomizar os 110 ficheiros em causa como tratando-se de exatamente 110 crimes. Na verdade, poderemos estar perante a mesma vítima, em que os vídeos foram segmentados, mas adquiridos num mesmo momento temporal, ou não. Ademais, os feixes de idades são parcialmente sobreponíveis, pelo que não se pode, sequer, autonomizar um crime por cada faixa etária. Isto, porque, prevalece no nosso ordenamento jurídico o princípio da presunção da inocência, que, na dúvida, demanda uma decisão no sentido mais favorável ao arguido (cf. os artigos 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional do Direitos Civis e Políticos, 48.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e 3.º, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, Jornal Oficial da União Europeia n.º L 65/1, de 11 de março de 2016, todos diretamente aplicáveis na Ordem Jurídica Portuguesa ex ui artigo 8.º, da Constituição da República Portuguesa).
Donde, o único critério que permite extrair uma conclusão segura é o da autonomização de um crime por cada género de vítima, ou seja, um pelos ficheiros atinentes a vítimas do sexo feminino e um pelos ficheiros atinentes a vítimas do sexo masculino.
Todos os atos que as crianças praticaram nesses vídeos, e descritos nos factos, compõem o conceito de pornografia, cf. supra descrito, e eram guardados com o intuito de partilhar.
Temos, pois, nos factos provados n.º 1 e 2, e 4 a 15, dois crimes praticados, com a agravação do n.º 8 do artigo 177.º do Código Penal.
Acresce que o arguido partilhou, em 11/10/2020, um vídeo contendo imagens de coito anal entre um indivíduo adulto do sexo masculino e uma criança do sexo feminino com idade inferior a 14 anos. Enviou-o para terceiro (com o perfil da rede social Messenger com o nome EE), o que configura um dos atos plasmados na al. c) do n.º 1 do artigo 176.º do Código Penal, com a agravação do n.º 8 do artigo 177.º do Código Penal.
O ato da partilha de ficheiro autonomiza-se do ato de guardar ficheiros, e, em nosso entender, encontra-se em concurso real com os crimes praticados através daqueles outros comportamentos, e que, pelos motivos supra expostos, se logra reconduzir a apenas dois crimes.
Fê-lo com dolo (vontade e consciência).
Contam-se, pois, pelo menos três crimes, pelo que é por esse número que é possível condenar o arguido.
*
Acrescenta-se, apenas, a título de consideração paralela, que, mesmo que se perfilhasse a doutrina do crime de trato sucessivo, sempre se concluiria que se verificam, pelo menos, dois crimes e não apenas um – já que as condutas estão temporalmente bastante segmentadas (primeiro a aquisição e armazenamento de imagens e vídeos para partilha, o que começou em 2020 e durou até setembro de 2021, enquanto que a partilha do ficheiro com coito anal ocorreu em 11 de outubro de 2020. Nesse sentido, uide os acórdãos do venerando Tribunal da Relação do Porto de 09 de setembro de 2024, processo n.º 1207/20.0JGLSB.P1, de 22 de novembro de 2017, processo n.º13/14.5GAVLC.P1, e de 07 de dezembro de 2018, processo n.º 437/17.6JAPRT.P1.(sublinhado nosso).
As razões do Tribunal para afastar a integração no crime de trato sucessivo afiguram-se sustentadas, mas não se nos afigura que o critério que escolheu adotar - do género das vítimas - traduza a gravidade da conduta espelhada por exemplo, na pluralidade de vítimas e de resoluções criminosas.
No limite, perguntamo-nos se seria menos grave que os ficheiros reproduzissem só meninas ou só meninos. A resposta, parece-nos, não pode deixar de ser negativa.
Com o devido respeito, embora compreendamos o esforço do tribunal, a conservação de ficheiros de ambos os géneros não pode ser menos grave que de um só, e de resto, o critério não encontra respaldo na jurisprudência ou na doutrina.
Por fim, o tribunal recorrido ao distinguir entre a resolução criminosa de detenção e de partilha de ficheiros, deveria ter integrado a primeira conduta no crime do n.º 5 do artigo 176.º do Código Penal, pois não se provou o dolo especial de “distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder”, como bem refere o Recorrente.
O crime é menos grave: punido com pena de prisão até 2 anos em vez de prisão de um a cinco anos (n.º1).
Esse seria, em coerência, o enquadramento jurídico, ao invés da imputação do crime do art.176.º/1-d na forma tentada, como alega o Recorrente.
O número 5 do artigo 176.º do Código Penal foi objeto de uma alteração legislativa para nele incluir as condutas de mera visualização e acesso, sendo que a aquisição por meio de descarregamento, em causa nestes autos, sempre foi punida (vd. PINTO, Ângela, in Crimes
Contra a Autodeterminação, Ebook Trabalhos Temáticos de Direito e Processo Penal, Coleção Formação, Ministério Público, p.114).
Antes dessa alteração legislativa, a jurisprudência já integrava o crime de detenção no anterior n.º 4:
Se não se provar intenção de partilha, fazer download de pornografia infantil constitui a prática de crime de aquisição ou detenção de pornografia de menores (Artigo 176°, n° 4, alínea d), do Código Penal). O download não constitui importação de pornografia de menores (crime previsto e punido pelo Artigo 176°, n ° 1 alínea c) do Código Penal).
(ac. TRL de 15.12.2015, processo 3147/08.1JFLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt).
Em suma, parece-nos que em face da ausência de elementos de prova atinentes ao número de episódios em que cada vítima foi reproduzida nos ficheiros apreendidos, e bem assim, em face da ausência de dados quanto às datas de descarregamentos e de partilha, deveria ter subsistido a condenação do arguido pela prática dolosa de um único crime de pornografia agravado, previsto e punido pelos artigos 176.º/1-d, 177.º/7 e 8, 69.º-B e 69.º-C do Código Penal, sem prejuízo de a quantidade aparente de vítimas ser valorado, como foi, na fixação da medida de pena.
Caso assim não se entenda, então deverá, a nosso ver, o arguido ser condenado pela prática de dois crimes:
1. um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 176.º, n.º 1, al. d), e 177.º, n.os 7 e 8, 69.º-B, 69.º-C, do Código Penal; e
2. um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 176.º, n.º 5, e 177.º, n.os 7 e 8, 69.º-B, 69.º-C, do Código Penal.
1. Deverá improceder a requerida alteração à decisão da matéria de facto uma vez o Tribunal não incorreu em insuficiência da decisão da matéria de facto (art. 410.º/2-a do Código de Processo Penal); o facto não foi alegado na contestação nem pela defesa no julgamento (art. 358.º/2 e art. 379.º/1-c do CPP); não se vê para que solução jurídica plausível poderia contribuir; acresce que, o facto encerra um juízo conclusivo e a circunstância de o arguido não ter orientado a procura por material pornográfico com referência especificamente a crianças foi atendida pelo Tribunal como o Recorrente aliás assinalou.
2. Sem prejuízo de o crime de pornografia de menores proteger a autodeterminação sexual que é um bem jurídico eminentemente pessoal (embora haja quem defenda que é supraindividual), parece-nos que a conduta imputada ao arguido deveria ser punida por um único crime, por aplicação da doutrina do trato sucessivo, decorrente da razoável unicidade de condutas e da impossibilidade de identificar o número de vítimas.
3. As razões do tribunal para afastar a integração no crime de trato sucessivo afiguram-se sustentadas (vd. acórdão do STJ de 20.2.2019processo 234/15.3JAAVR.S1, in www.dgsi.pt, Sr.ª Juíza Conselheira Dra. Helena Moniz, citada no acórdão de 26.9.2024, apud ac. STJ proferido no processo 1379/21.6JAPRT.P1.S1).
4. Porém, não nos parece que o critério escolhido - do género das vítimas – seja ajustado, porque não traduz a gravidade da ilicitude e do desvalor da conduta, e pelo contrário, introduz uma distinção onde, a nosso ver, não deveria existir.
5. Compreendemos o esforço do tribunal, mas a conservação de ficheiros de ambos os géneros não é menos grave que a de um só e o critério não encontra respaldo na jurisprudência nem na doutrina.
6. Por fim, o tribunal ao distinguir entre a resolução criminosa de detenção e de partilha de ficheiros, deveria ter integrado a mera detenção de ficheiros no crime do n.º 5 do artigo 176.º do Código Penal, em vez do n.º 1-al.d), pois não se provou o dolo especial de “distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder” para esses ficheiros e o crime não é o do art 176.º/1-d na forma tentada, como requerido pelo Recorrente (ac. Do Supremo Tribunal de Justiça de 26.9.2024, processo 1379/21.6JAPRT.P1.S1, ac. TRL de 15.12.2015, processo 3147/08.1JFLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt).
7. Em suma, parece-nos que perante a ausência de elementos de prova atinentes ao número
de episódios em que cada vítima foi reproduzida nos ficheiros apreendidos, e bem assim, em face da ausência de dados quanto às datas de descarregamentos e de partilha, deveria subsistir a condenação pela prática dolosa de um único crime de pornografia agravado, previsto e punido pelos artigos 176.º/1-d, 177.º/7 e 8, 69.º-B e 69.º-C do Código Penal, sem prejuízo de o número e diversidade de vitimas ser valorado, como foi, na fixação da medida de pena (neste sentido, vd. ac. TRE de 16.3.2017, processo 72/15.3 JASTB.E1; ac. TRL de 15.12.2015, processo 3147/08.1JFLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt).
8. Caso assim não se entenda, então deverá, a nosso ver, o arguido ser condenado pela prática de dois crimes:
a) um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 176.º/1-d), e 177.º/7 e 8, 69.º-B, 69.º-C, do Código Penal; e
b) um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 176.º/5, e 177.º/7 e 8, 69.º-B, 69.º-C, do Código Penal.

Por todo o exposto, deverá ser dado provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se a decisão recorrida, exceto quanto à subsunção da conduta em três crimes, pugnando-se, salvo melhor entendimento e sempre com o douto suprimento de V. Exas., pela condenação pela prática de um único crime ou, subsidiariamente, por dois crimes.
*
Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, secundando a posição assumida na resposta ao recurso do MP.
*
Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada mais foi acrescentado de relevante.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
*
II. Objeto do recurso e sua apreciação.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

É assim composto:
- a alteração da condenação de uma pluralidade de três crimes, para um único crime de pornografia infantil.

- a redução da pena de prisão e a eliminação do dever de de pagar uma contribuição monetária a favor do ... à Criança (BB), no valor de € 2.500,00, durante a suspensão da pena.”
- Pretende ainda o arguido que à matéria de facto provada seja aditado que “O arguido era consumidor de pornografia em geral e não exclusivamente de menores, não tendo o perfil típico de consumidor de pornografia infantil.”, por entender que se impõe “a devida valorização desse facto novo, atento o crime de que o arguido foi acusado e os crimes em que acabou por ser condenado, uma vez que tal realidade é demonstrativa de que a sua conduta antijurídica não se enquadra no tipo de perversão de consumo de pornografia exclusiva de menores.”
*
Do enquadramento dos factos.

O Ministério Público, fazendo uso da faculdade ínsita no artigo 16.º, n.º 3 do Código Penal, proferiu despacho de acusação, para julgamento em processo comum singular, do arguido:
AA, solteiro, pintor, nascido a 20-3-71, em ..., na Póvoa de Varzim, filho de FF e de GG, residente na Rua ..., nº ..., r/c Esq., Póvoa de Varzim, titular do C.C. nº ...,
Imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de pornografia de menores, p.p. pelo art. 176º/1/c/d do C.P., com a agravante prevista no art. 177/7/8 do mesmo código.
*
O arguido contestou, oferecendo o merecimento dos autos e juntou comprovativo de frequência de acompanhamento psicoterapêutico para tratamento da sua patologia de adição à pornografia.
*
Foi realizada audiência de julgamento, com a observância das formalidades legais – cf. ata que a documenta.
*
Após uma alteração da qualificação jurídica, comunicada em sede de audiência em cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, ao arguido AA passaram a estar imputados 3 (três) crimes de pornografia de menores agravados, um dos quais p. e p. pelos artigos 176.º, n.º 1, al. c), e 177.º, n.os 7 e 8, e dois dos quais p.p. pelo art. 176.º, n.º 1, al. d), e e 177.º, n.os 7 e 8, do Código Penal, e os três, ainda, com as penas acessórias p. e p. pelos artigos 69.º-B e 69.º-C do Código Penal.
Foi concedida a palavra ao Ministério Público e ao arguido para que se pronunciassem sobre a competência do Tribunal singular, em face do disposto nos artigos 14.º, n.º 2, al. b), e 16.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal, e 132.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
O Ministério Público determinou a manutenção da aplicação do artigo 16.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Foi requerido pelo arguido prazo para defesa, o que lhe foi concedido, e dentro do qual se pronunciou sobre o teor do despacho do Tribunal.
Após, foi concedida a palavra à digna Magistrada do Ministério Público, que se pronunciou.
*
A instância mantém-se válida e regular, inexistindo quaisquer nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*
II. Fundamentação de facto a. Factos Provados
Consideram-se provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. Em inícios do ano de 2020 o arguido criou uma conta Google com o nome “HH”, à qual associou o email “..........@.....” e os nºs de telemóvel ... e ..., e criou um perfil de facebook com o nome “HH” e o username “HH”, que passou a utilizar.
2. E, pelo menos até ao mês de setembro de 2021, o arguido recebeu, por correio eletrónico para aquele endereço e sobretudo nas conversações que através do Messenger da rede social facebook manteve com os titulares de outros perfis, vários ficheiros com conteúdo pornográfico em que são participantes menores e que guardou na memória dos telemóveis que usava e em cartões de armazenamento de dados.
3. No dia 11 de outubro de 2020 o arguido, numa daquelas conversações pelo Messenger da rede social Facebook, através do referido perfil “HH”, que lhe pertencia, partilhou com o titular do perfil dessa rede social com o nome EE e o username “EE”, um ficheiro informático de vídeo, com a duração de 16 segundos, retratando uma relação de coito anal entre um indivíduo adulto do sexo masculino e uma criança do sexo feminino com idade inferior a 14 anos.
4. No dia 22 de agosto de 2023, cerca das 7h15m, foi levada a cabo uma busca na habitação do arguido, sita na Rua ..., nº ..., r/c Esq., na Póvoa de Varzim, no decurso da qual foi encontrado e apreendido, no quarto do arguido, o seguinte:
5. - um telemóvel da marca XIAOMI, modelo ..., com os IMEI's ... e um cartão de telecomunicações da operadora A... com o nº ...;
6. - um telemóvel da marca NEFFOS, modelo ... com um cartão de telecomunicações da Operadora A... com o SIM CARD ....
7. Foi também apreendida na sala de estar dessa residência uma embalagem de cartão de telecomunicações da A... ... referente ao mencionado cartão SIM CARD com o MSISDN ..., e um cartão de memória MICRO SD, da marca Kinsgton, com a capacidade de 8GB.
8. No telemóvel da marca XIAOMI existiam em armazenamento, na galeria, 20 ficheiros de vídeo com conteúdo pornográfico protagonizado por menores de ambos os sexos com idades entre os 5 e os 17 anos, que se apresentavam em poses e práticas sexuais, designadamente com exibição da região mamária, genital e nadegueira, com introdução dos dedos e de objetos na vagina e no ânus e praticando cópula e sexo oral com adultos.
9. Neste telemóvel o arguido tinha também instalada a referida conta Google, que se encontrava a fazer backup automático de todos os ficheiros para a aplicação Google Photos, na qual estavam armazenados 87 ficheiros a que o arguido acedeu entre 26-8-2020 e 24-9-2021 e que estiveram guardados na memória desse telemóvel.
10. Esses 87 ficheiros continham conteúdo pornográfico protagonizado por menores de ambos os sexos com idades compreendidas entre os 3 e os 15 anos, sendo 63 com menores do sexo feminino e 24 com menores do sexo masculino.
11. Aquele conteúdo pornográfico traduzia-se em atos sexuais com penetração (56 ficheiros), atos sexuais sem penetração (27 ficheiros) e atos exibicionistas de teor sexual mas sem ato sexual (4 ficheiros), sendo que em dois deles visionava-se a interação sexual de menores com animais.
12. No cartão de memória MICRO SD, da marca Kinsgton, foi também detetada a presença de 3 ficheiros de vídeo com conteúdo pornográfico protagonizado por menores.
13. Um desses ficheiros tem a duração de 17 segundos e retrata uma criança do sexo feminino com idade inferior a 14 anos a exibir a sua região vulvar para a câmara, a acariciar o seu clitóris e a introduzir um dos seus dedos na vagina.
14. Outro ficheiro tem a duração de 1 minuto e 37 segundos com 3 partes distintas a retratar uma criança do sexo feminino com idade inferior a 12 anos a ser penetrada por um adulto do sexo masculino.
15. E o outro ficheiro tem a duração de 1 minuto e 8 segundos e retrata uma criança do sexo feminino com idade inferior a 12 anos a retirar as cuecas e a exibir a sua zona vulvar, à qual se encosta um pénis.
16. O arguido já havia partilhado alguns desses ficheiros com terceiros, designadamente em grupos do WhatsApp sobre sexo nos quais se encontrava inserido, e detinha-os para esse efeito.
17. O arguido agiu de modo livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que lhe estava legalmente vedada a aquisição, detenção, divulgação e cedência de vídeos e de imagens de crianças em atos e poses pornográficos.
18. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
19. O arguido confessou, de forma livre, esclarecida, integral e sem reservas os factos que lhe são imputados.
20. O arguido não tem averbada no seu registo criminal qualquer condenação pela prática de crimes.

Da situação pessoal e económico-financeira do arguido:
21. O arguido concluiu o 6.º ano de escolaridade e ingressou no mercado de trabalho, tendo colaborado, durante o período escolar, com os seus progenitores, na faina agrícola, em horários extraescolares e nas férias.
22. O arguido trabalha como pintor, na área da construção civil, sendo durante 20 anos na empresa B..., Lda., e desde setembro de 2020 na empresa C..., Lda., em Barcelos, auferindo cerca de € 980,00.
23. O arguido sofreu queimaduras nos membros superiores, quando tinha cerca de dois anos, o que ocasionou atrofia notória dos dedos das mãos, o que não obstou à aquisição e desenvolvimento de competências de trabalho.
24. A atrofia das mãos teve impacto na vida social do arguido, que se tornou mais inibido e discreto.
25. O arguido viveu com os seus pais até aos 33 anos, nunca tendo constituído núcleo familiar próprio.
26. O arguido encontra-se em acompanhamento quinzenal em terapia cognitivo-comportamental desde 18 de maio de 2024, para regulação do vício em pornografia, estando em consulta a trabalhar a psico educação sobre o tema, competências sociais, treino de estratégias de regulação emocional e reconstrução cognitiva.
27. O arguido vive sozinho, em apartamento próprio, tipologia T2, que lhe foi doado pelos avós maternos.
28. O arguido não tem filhos.
29. O arguido tem despesas mensais referentes a energia elétrica, gás, água e saneamento, telecomunicações e condomínio que ascendem a € 140,00, e anuais, com seguros, no valor de € 100,00, e IMI, em valor não concretamente apurado.
30. O arguido despende € 80,00 mensais nas consultas de psicologia e cerca de € 150,00 a € 160,00 mensais com as deslocações para Barcelos.
31. O arguido mantém uma relação de namoro desde 2021, com uma mulher que trabalha como empregada doméstica, a qual ficou prejudicada com a tomada de conhecimento, por esta, dos factos dos autos.
32. O arguido habitualmente faz as refeições com os seus progenitores, que residem na proximidade e, aos sábados de manhã, acompanha e coadjuva a progenitora, que comercializa produtos hortícolas, no mercado da Póvoa de Varzim.
33. O arguido é utilizador habitual de redes sociais digitais.

34. O arguido não tem empréstimos em seu nome.
35. O arguido aceita submeter-se a tratamento médico ou psiquiátrico.
b. Factos não provados
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Inexistem factos não provados, com relevo para a decisão da causa.
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Consigna-se que, na matéria de facto provada e não provada, não se incluíram factos irrelevantes para a causa, matéria conclusiva ou de Direito.

c. Convicção sobre a matéria de facto
O arguido prestou de declarações e confessou integralmente os factos, o que fez de forma que se nos afigurou espontânea. Também contribuiu com informações sobre a sua condição económico-financeira, tendo merecido o crédito do Tribunal.
Acresce o depoimento de CC, inspetora da PJ, que foi muito profissional, isenta, com conhecimento direto pela sua intervenção nas buscas domiciliárias, sendo que tem experiência na investigação deste tipo de crimes há 14 anos. A testemunha trouxe-nos a mais-valia de contextualizar o perfil do arguido.
Também DD teve essa virtualidade, que com aquela convergiu. Esta testemunha foi muito sustentada e objetiva, tendo segurança no seu depoimento e conhecimento direto dos factos por ser a inspetora responsável pela investigação. Foi isenta e objetiva.
Por fim, II, especialista de polícia científica, com intervenção na fase de investigação dos autos, em concreto nas buscas e apreensões também foi credível, embora tenha trazido um depoimento um pouco mais genérico e menos sustentado.
Por seu turno, JJ, costureira, irmã da namorada do arguido, teve pouca valia nos autos. O seu depoimento é meramente abonatório, tendo sido algo superficial no que narrou, e depôs sobre muito pouca matéria.
Acresce toda a prova documental dos autos, em especial os relatórios NCMEC de fls. 5 a 211, os discos de fls. 212, 226, 319e 415, o auto de pesquisa e análise de conteúdos de fls.213, relatório de análise e investigação dos conteúdos multimédia, listagem de ficheiros classificados e ficheiros classificados de fls. 298 a 328, a pen drive de fs. 338 e o cartão de memória de fls. 424. Mais acrescem as informações das operadoras de fls. 227 a 269; capturas de ecrã de fls. 280 e 281; auto de busca e apreensão de fls. 357 a 359; exames de fls. 382 a 384 e 387; e a embalagem de fls. 385.
Com relevo para os autos, ainda os autos de visionamento e análise de fls. 389 a 414 e 416 a 423.
Portanto, os factos provados n.º 1 a 18 emergem da confissão e da concatenação de todos estes elementos documentais e periciais, com os depoimentos das três primeiras testemunhas. Já os factos provados n.º 19 e 35 provêm das declarações do arguido, o facto provado n.º 20 do certificado do registo criminal com a ref. Citius 40704268, e os factos provados n.º 21 a 34 resultam da conciliação do relatório social com a ref. Citius 40703789 com as declarações do arguido e da testemunha abonatória.
*
I III. Fundamentação de Direito
II a) Do Crime de pornografia de menores agravado

O artigo 176.º, do Código Penal, dita, para o que ora interessa, e na redação atual (dada pela Lei n.º 40/2020, de 18 de setembro) que «1 - Quem:
a) Utilizar menor em espectáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim;
b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim;
c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir, ceder ou disponibilizar a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;
d) Adquirir, detiver ou alojar materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
[…]
8 - Para efeitos do presente artigo, considera-se pornográfico todo o material que, com fins sexuais, represente menores envolvidos em comportamentos sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou contenha qualquer representação dos seus órgãos sexuais ou de outra parte do seu corpo.».
A norma tem vindo a sofrer alterações, contando-se três relevantes para estes autos, sendo que, na data da prática dos primeiros factos, era vigente a redação dada pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, a qual previa a mesma conduta e moldura, mas não continha a definição de material pornográfico.
A redação de 2020, supracitada, manteve-se mesmo após a alteração legislativa operada pela Lei n.º 4/2024, de 15 de janeiro.
Por seu turno, o artigo 177.º, n.os 7 e 8 do Código Penal, pelo menos desde a redação de 2020, que vingava à data dos primeiros factos descritos na acusação, e até à atualidade, diz o seguinte: «7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º, no n.º 1 do artigo 176.º e no artigo 176.º-C são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos.
8 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 175.º, no n.º 1 do artigo 176.º e no 176.º-C são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.».
Este crime materializa as problemáticas anunciadas por FIGUEIREDO DIAS, Jorge, no seu Direito Penal – Parte Geral, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 126 e seguintes, assentes no conceito que o sociólogo ULRICH BECK apodou de sociedade do risco, e que são típicas da era moderna e fruto da globalização.
Trata-se da prática do crime à distância, importando um real distanciamento entre o agente e a vítima, de forma tal que desmaterializa o ato, demandando uma antecipação da tutela penal dos bens jurídicos em crise, pois o perigo que os bens jurídicos correm nesta nova era é proporcional à distância entre agente e vítima.
Esta previsão normativa configura um crime relativamente novo (contemporâneo da reforma de 2007), mas que sofreu já alguma evolução no sentido de um aumento da abrangência e de uma redução das exigências para a sua verificação, bem assim como do agravamento das consequências jurídico-penais que lhe estão associadas. É, pois, manifesta a seriedade com que o legislador tem encarado a conduta que lhe está subjacente e a vontade legal de reprimir a mesma.
Seriedade e intenção essas que advêm, também, das fontes de Direito Europeu, concretamente da transposição da Diretiva n.º 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, e que substituiu a Decisão-Quadro n.º 2004/68/JAI do Conselho, de 22 de dezembro de 2003.
Esta incriminação espelha, ainda, o compromisso português, ínsito na ratificação da Convenção do Conselho da Europa para a proteção das crianças contra a exploração sexual e os abusos sexuais, de 25 de outubro de 2007 (Convenção de Lanzarote).
De resto, e conforme se retira da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 305/XII, que transpôs a Diretiva supramencionada, o legislador está ciente dos, e pretende combater os, riscos inerentes ao uso das tecnologias da informação, em matéria de pornografia infantil.
São, pois, sobremaneira elevadas as necessidades de prevenção geral, sendo que a criminalização destas condutas visa combatê-las a montante e a jusante, sendo, hoje, jus penalmente censurada a conduta, quer do agente que coloca as crianças neste cenário, quer do agente que consome o material pornográfico infantil.
Isto porque se se fizer mingar o mercado de procura destes materiais, força-se a redução (ou até a neutralização) da oferta dos mesmos.
A lei interna não define «pornografia de menores», embora a mesma conste da Convenção de Lanzarote, concretamente do respetivo artigo 20.º, onde se pode ler que se trata de «todo o material que represente visualmente uma criança envolvida em comportamentos sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança, com fins sexuais».
Pode, pois, entender-se como tal, tanto a mera nudez das crianças, com exibição dos órgãos sexuais, como as condutas ou posturas «suscetíveis de causar estímulo, excitação ou impulso sexual» (MOURAZ LOPES, José, CAIADO MILHEIRO, Tiago, Crimes Sexuais – Análise substantiva e processual, Almedina, Coimbra, 2019, 2.ª edição, p. 220).
Tal é convergente com o conceito de material pornográfico, definido, desde 2020, no n.º 8 do artigo 176.º do Código Penal e supracitado. Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são, em nosso entender indubitavelmente, a liberdade e a autodeterminação sexuais das crianças envolvidas, daí a localização sistemática do preceito incriminador.
Mas é, no entender deste Tribunal, mais do que isso.
A incriminação penal protege, em rigor, um bem jurídico supra individual, a saber a liberdade de desenvolvimento e a dignidade da criança, «entendida tanto numa dimensão interior (psico-física ou moral) como outra exterior (social ou relacional)» (in SOARES DE ALBERGARIA, Pedro, e LIMA, Pedro, O crime de detenção de pseudopornografia infantil – evolução ou involução?, Revista Julgar n.º 12, setembro-dezembro, 2010, p. 206 e seguintes.
No mesmo sentido, MARIA JOÃO ANTUNES, in Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual dos menores, Revista Julgar n.º 12 (especial), 2010.
Por outras palavras, a criminalização em apreço protege o desenvolvimento da criança enquanto ser biopsicossocial.
Este crime pode comportar uma utilização direta ou indireta das crianças, sendo aquela expressa nas alíneas a) e b) do n.º 1, do artigo 176.º, e a utilização indireta, nas alíneas c) e d), do mesmo preceito.
Por sua vez, as circunstâncias agravantes plasmadas nos n.os 7 e 8 do artigo 177.º, do Código Penal, abarcam uma proteção de pessoa particularmente vulnerável, configurando o legislador uma verdadeira assunção de que qualquer criança com menos de 16 e de 14 anos (respetivamente) o é.
Para o que ora interessa, são elementos do tipo objetivo quaisquer condutas das descritas nas alíneas c) e d), ou seja, quaisquer comportamentos que conduzam à divulgação ou transmissão, sem compensação, do material pornográfico infantil, por um lado, e a sua detenção, aquisição e alojamento, com o fim de os divulgar/distribuir.
Têm aqui cabimento todos os meios passíveis de facilitar a divulgação, nomeadamente os meios de comunicação à distância, como sejam telemóveis, computadores, internet e redes sociais. Seja qual for o formato que o ficheiro assuma, desde que contenha imagens e/ou som.
O tipo de ilícito pressupõe, ainda, o dolo, em qualquer das suas modalidades (artigo 14.º, do Código Penal). Ora, o dolo do tipo é composto pelo elemento cognitivo, manifestado no conhecimento da ilicitude da conduta e de que os factos praticados a compõem, e pelo elemento volitivo, que corresponde à vontade de realização do ilícito típico.
O conhecimento deverá abranger todas as circunstâncias de facto e de direito que conformam a ação típica. Só munido desse conhecimento poderá o agente orientar a sua conduta ética em conformidade com o Direito ou optar por não o fazer, assim violando o bem jurídico que a norma visa proteger.
Tal como PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE esclarece, no seu Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed. Atualizada, Universidade Católica Editora, 2015, p. 150, «o conhecimento normativo do tipo não implica, em regra, uma exata subsunção dos factos na lei, bastando uma “valoração paralela na esfera do leigo”, ou, dito de outro modo, a apreensão pelo agente do significado social do elemento do tipo.».
Quer isto dizer que o agente do crime não tem de saber exatamente que a conduta é crime, tendo apenas de ter consciência de que a sua conduta é reprovável e reprovada socialmente.
Já o elemento volitivo conhece três dimensões, que determinarão o tipo de dolo em presença, cada uma das quais vertida num dos números do artigo 14.º, do Código Penal. Se o agente agir com vontade de realizar o tipo de crime, age com dolo direto (n.º 1, do artigo 14.º, do CP). Se atuar sabendo que a sua atuação implica, como consequência necessária, o preenchimento de um ilícito típico, age com dolo necessário (n.º 2, do artigo 14.º, do CP). Finalmente, se atuar sabendo da possibilidade de a sua conduta preencher um tipo de ilícito, então, atua com dolo eventual (n.º 3, do artigo 14.º, do Código Penal).
Naturalmente, à medida que a vontade do agente se distancia da prática de um ilícito típico, a intensidade do dolo diminui.
*
No que tange ao número de crimes praticados, importa referir que, desde a entrada em vigor da Lei n.º 40/2010, de 03 de setembro, que procedeu à alteração do Código Penal, suprimindo a parte final do n.º 3, do respetivo artigo 30.º («salvo tratando-se da mesma vítima»), ficou consagrado que inexiste crime continuado quando estejam em causa bens eminentemente pessoais, como é o caso do direito à autodeterminação sexual ou à dignidade e livre desenvolvimento de uma criança.
Quer isto dizer que serão praticados tantos crimes quantas as pessoas cuja autodeterminação sexual foi ferida, existindo então concurso real homogéneo, sempre que haja mais do que uma vítima. Sendo a mesma vítima, poderá ou não haver concurso de crimes, consoante haja uma separação pelo menos temporal dos factos praticados.
O Tribunal não desconhece a doutrina do trato sucessivo, jurisprudencialmente desenvolvida, segundo a qual, mesmo perante bens jurídicos eminentemente pessoais, havendo uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga ou repete no tempo, em que o os tipos de ilícito são os mesmos ou protegem essencialmente um bem jurídico idêntico, contra a mesma vítima, haverá um só crime e não tantos quantos os factos praticados. No fundo, esta doutrina procede a uma unificação de várias condutas, considerando a existência de uma unidade de resolução, que abarca todas as resoluções parcelares, por rejeitar a existência de qualquer renovação da resolução criminosa. Os defensores de tal doutrina explicam que a reiteração ou o prolongamento da conduta no tempo agrava a sua culpa.
No entanto, este Tribunal não adere tal doutrina. Em primeiro lugar, não adere por entender que não conhece qualquer respaldo na lei, antes com ela contendendo, atenta a inserção do n.º 3 ao artigo 30.º do Código Penal, a qual é recente e visou precisamente apartar os crimes contra os bens jurídicos eminentemente pessoais da possibilidade de os englobar numa só condenação, no contexto de um concurso de crimes. Donde, ao abrigo do disposto no artigo 9.º, n.os 1 e 2 do Código Civil, o Tribunal entende não poder interpretar o artigo 30.º (ou qualquer outra norma) do Código Penal numa ótica de contemplação da figura do crime de trato sucessivo.
Nas palavras do acórdão do colendo Supremo Tribunal de Justiça de 20 de fevereiro de 2019, processo n.º 234/15.3JAAVR.S1, «O chamado crime de trato sucessivo mais não é do que uma tentativa de ampliar a nossa construção jurídica do crime continuado, despojando-o da marca essencial que assume no nosso ordenamento jurídico-penal, que é a realização plúrima da acção típica no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art. 30.º, n.º 2 do CP).».
E com isso mesmo se concorda. Aliás, a figura do crime de trato sucessivo surgiu, primeiro, nos crimes de tráfico de drogas e, só mais tarde, nos crimes sexuais, não abrangendo, em princípio, mesmo na jurisprudência que a ele adere, crimes de outra natureza. Ora, em face disto, parece-nos profundamente pertinente a seguinte questão lançada por HELENA MONIZ, in “Crime de trato sucessivo”: (?), Revista Julgar Online, abril de 2018, disponível online em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://julgar.pt/wp-content/uploads/2018/04/20180411-ARTIGO-JULGAR-Crimes-de-trato-sucessivo-Helena-Moniz.pdf, consultado em 13/12/2024: «cabe perguntar porque não entende como sendo também apenas um crime de violação da integridade física aquele que agride fisicamente a vizinha todos os dias?».
Mais: os crimes sexuais assumem, no geral, maior gravidade do que aqueles outros. Ora, por que razão haveríamos de entender aplicar uma figura que, reconhecendo embora um agravamento da culpa do arguido, sempre lhe será mais benéfica, a crimes mais graves do que a outros aos quais o não fazemos? Não vemos como defender tal posição.
Acresce que, como se conclui no acórdão do colendo Supremo Tribunal de Justiça de 13 de março de 2019, processo n.º 3910/16.0T9PRT.P1.S1, «Embora as decisões das Relações ainda se mostrem divididas quanto à qualificação do trato sucessivo, a jurisprudência do STJ tem perfilhado, esmagadoramente, o entendimento que afasta, quer a continuação criminosa, quer a figura do crime exaurido, de trato sucessivo, dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, como os dos presentes autos.» (negrito nosso). No aresto daquele colendo Tribunal, de 23 de novembro de 2022, processo n.º 754/20.8JABRG.G1.S1, diz-me mesmo que «É atualmente uniforme e consolidada a jurisprudência deste tribunal que afasta o recurso à figura do denominado “crime de trato sucessivo” em relação aos crimes contra a autodeterminação sexual.» (negrito e sublinhado nossos).
E tal entendimento permanece naquele colendo Supremo Tribunal de Justiça, como evidencia o recente acórdão de 26 de setembro de 2024, processo n.º 1379/21.6JAPRT.P1.S1.
Entende, pois, o Tribunal, que haverá um crime por cada vítima e tantos crimes quantos os que se logre autonomizar, mesmo que contra a mesma vítima, à luz do critério dos «sentidos sociais de ilicitude do comportamento global», cf. FIGUEIREDO DIAS, apud HELENA MONIZ, op. Cit., p. 21.
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Feitas estas considerações teóricas, necessárias à apreciação dos factos, passemos a esta.
O arguido utilizou um seu perfil da rede social Messenger para receber material de conteúdo pornográfico, que veio a ser apreendido em 2023, e fê-lo desde inícios de 2020, até, pelo menos setembro de 2021. Guardou tais ficheiros na sua nuvem – de forma automática – e em cartão de memória. Nesses ficheiros, contam-se, guardados na aplicação google photos, 20 referentes a crianças de ambos os sexos, com idades entre os 5 e os 17 anos, e mais 63 com crianças do sexo feminino, e 24 com crianças do sexo masculino, todos com idades entre os 3 e os 15 anos. Acrescem 3 ficheiros, guardados em cartão de memória, com crianças do sexo feminino, um em que a idade é inferior a 14 anos, e outros dois em que a idade é inferior a 12 anos.
De todos estes vídeos, não se sabe se as vítimas são as mesmas – exceto por referência aos sexos –, nem se a obtenção e o guardar dos vídeos foi em momento distinto.
Pelo que não se conseguem autonomizar os 110 ficheiros em causa como tratando-se de exatamente 110 crimes. Na verdade, poderemos estar perante a mesma vítima, em que os vídeos foram segmentados, mas adquiridos num mesmo momento temporal, ou não. Ademais, os feixes de idades são parcialmente sobreponíveis, pelo que não se pode, sequer, autonomizar um crime por cada faixa etária. Isto, porque, prevalece no nosso ordenamento jurídico o princípio da presunção da inocência, que, na dúvida, demanda uma decisão no sentido mais favorável ao arguido (cf. os artigos 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional do Direitos Civis e Políticos, 48.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e 3.º, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, Jornal Oficial da União Europeia n.º L 65/1, de 11 de março de 2016, todos diretamente aplicáveis na Ordem Jurídica Portuguesa ex ui artigo 8.º, da Constituição da República Portuguesa).
Donde, o único critério que permite extrair uma conclusão segura é o da autonomização de um crime por cada género de vítima, ou seja, um pelos ficheiros atinentes a vítimas do sexo feminino e um pelos ficheiros atinentes a vítimas do sexo masculino.
Todos os atos que as crianças praticaram nesses vídeos, e descritos nos factos, compõem o conceito de pornografia, cf. supra descrito, e eram guardados com o intuito de partilhar.
Temos, pois, nos factos provados n.º 1 e 2, e 4 a 15, dois crimes praticados, com a agravação do n.º 8 do artigo 177.º do Código Penal.
Acresce que o arguido partilhou, em 11/10/2020, um vídeo contendo imagens de coito anal entre um indivíduo adulto do sexo masculino e uma criança do sexo feminino com idade inferior a 14 anos. Enviou-o para terceiro (com o perfil da rede social Messenger com o nome EE), o que configura um dos atos plasmados na al. c) do n.º 1 do artigo 176.º do Código Penal, com a agravação do n.º 8 do artigo 177.º do Código Penal.
O ato da partilha de ficheiro autonomiza-se do ato de guardar ficheiros, e, em nosso entender, encontra-se em concurso real com os crimes praticados através daqueles outros comportamentos, e que, pelos motivos supra expostos, se logra reconduzir a apenas dois crimes.
Fê-lo com dolo (vontade e consciência).
Contam-se, pois, pelo menos três crimes, pelo que é por esse número que é possível condenar o arguido.
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Acrescenta-se, apenas, a título de consideração paralela, que, mesmo que se perfilhasse a doutrina do crime de trato sucessivo, sempre se concluiria que se verificam, pelo menos, dois crimes e não apenas um – já que as condutas estão temporalmente bastante segmentadas (primeiro a aquisição e armazenamento de imagens e vídeos para partilha, o que começou em 2020 e durou até setembro de 2021, enquanto que a partilha do ficheiro com coito anal ocorreu em 11 de outubro de 2020. Nesse sentido, uide os acórdãos do venerando Tribunal da Relação do Porto de 09 de setembro de 2024, processo n.º 1207/20.0JGLSB.P1, de 22 de novembro de 2017, processo n.º 13/14.5GAVLC.P1, e de 07 de dezembro de 2018, processo n.º 437/17.6JAPRT.P1.
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Inexistem quaisquer causas de exclusão ou de justificação.
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b) Das consequências jurídico-penais dos factos

A determinação da pena concreta a aplicar pela prática de um crime realiza-se, em regra, através de três operações distintas. Num primeiro momento, procede-se à determinação da moldura penal aplicável (mediante a subsunção fáctico-jurídica a um específico tipo legal de crime), e, quando a lei comine o facto com penas alternativas, à escolha da pena. Também neste momento se atenderá – se existirem – às circunstâncias modificativas agravantes e atenuantes, gerais e especiais, em ordem a encontrar a moldura de referência.
Num segundo momento, determina-se a pena concreta a aplicar – aqui se abrangendo a ponderação da aplicação de penas acessórias, se assim a lei o previr – e, por fim, sopesa-se a sua substituição – se a lei o permitir.
*
i i. Escolha da pena – artigo 70.º, do Código Penal

Todos os crimes pelos quais o arguido vai condenado têm como vítimas crianças com idades inferiores a 14 anos, pelo que o Tribunal entende dever condenar o arguido pela agravação mais grave (n.º 8 do artigo 177.º do Código Penal, em conjugação com o artigo 177.º, n.º 1), sendo os crimes referentes às vítimas com idades superiores consumidos por aquela agravação.
O crime de pornografia de menores é punido por lei com pena de 1 (um) a 5 (cinco) anos de prisão (artigo 176.º, n.º 1, c), do Código Penal), sendo esta moldura agravada de metade nos seus limites, quando se verifique a circunstância agravante plasmada no artigo 177.º, n.º 7, do Código Penal.
Quer isto dizer que a moldura penal aplicável aos presentes autos vai de 1 (um) ano e 6 (seis) meses aos 7 anos e 6 meses, de prisão.
O Ministério Público exerceu a faculdade ínsita no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pelo que a pena máxima que pode ser aplicada nos autos é de cinco anos.
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i ii. Medida concreta da pena – artigo 71.º, do Código Penal
Atendendo à doutrina sufragada por FIGUEIREDO DIAS, no seu Direito Penal Português – Parte Geral, II, As Consequências jurídicas do crime, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 229, o julgador deverá achar, dentro da moldura legal, uma moldura de prevenção, delimitada, no seu máximo, pela culpa do agente – enquanto pressuposto e limite da das penas e legitimação da ação penal – e tendo como «limiar mínimo», aquele «abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se por irremediavelmente em causa a sua função tutelar». Isto é, o mínimo necessário à manutenção das «expectativas comunitárias na validade da norma violada» (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit, p. 231).
Ora, encontrar a pena concreta a aplicar será, pois, grosso modo, localizar a prevenção especial de socialização daquele concreto agente, dentro da moldura de prevenção geral positiva referente àqueles factos, que tem como pressuposto e limite a culpa do mesmo agente.
Na prática, há que recorrer aos critérios do artigo 71.º, do CP, fazendo atuar o princípio da carência punitiva, sem descurar princípio da proibição da dupla valoração (ou seja, não avocando elementos ou circunstâncias que já tenham sido integradas no tipo de crime).
As alíneas a) a c), bem assim como a parte final da alínea e), do n.º 2 do artigo 71.º, do CP, elencam fatores atinentes à execução do facto, as alíneas d) e f), fatores referentes à personalidade do agente e a alínea e) os fatores da conduta do agente, posterior e anterior aos factos. Todas as referidas circunstâncias poderão relevar na medida da prevenção ou na medida da culpa do agente (com exceção da conduta posterior, que apenas se prende com a questão de prevenção).
No presente caso, o Tribunal sopesou, em desfavor do arguido, as elevadas necessidades de prevenção geral (cf. supra explanado) e a elevada ilicitude da sua conduta, atendendo:
a) a que estamos perante crianças muito pequenas (desde os 3 anos de idade), no caso dos crimes de detenção de ficheiros pornográficos, fator profundamente censurável e agravante, mesmo dentro da agravação já contida no n.º 8 do artigo 177.º do Código Penal;
b) ao número de ficheiros descarregados e guardados (110 ficheiros, ao todo, sendo pelo menos 63 do sexo feminino e 24 do sexo masculino, além dos demais não especificados);
c) ao tipo de atos sexuais que as crianças praticaram nos vídeos – sendo, quanto ao crime de partilha, um coito anal, e quanto aos crimes de aquisição e detenção de ficheiros, 56 ficheiros com atos sexuais com penetração, 27 ficheiros de atos sexuais sem penetração e 4 ficheiros com atos exibicionistas de teor sexual mas sem ato sexual, e em dois deles visionava-se a interação sexual de menores com animais (o que e profundamente perverso e censurável). Acrescem 20 ficheiros de vídeo em poses e práticas sexuais, designadamente com exibição da região mamária, genital e nadegueira, com introdução dos dedos e de objetos na vagina e no ânus e praticando cópula e sexo oral com adultos. A introdução de objetos na vagina e no ânus agravam substancialmente a ilicitude da conduta e assumem particular censurabilidade.
Atendeu-se, ainda, à intensidade do dolo (direto) e ao fator inerente à frequência de utilização de redes sociais virtuais pelo arguido, as quais são propiciadoras deste tipo de condutas.
Em favor do arguido, o Tribunal atendeu às moderadas necessidades de prevenção especial do arguido, uma vez que não tem quaisquer antecedentes criminais, se encontra inserido na comunidade (social e profissionalmente), deixou de consumir este tipo de materiais e procurou ajuda para a sua perversão, e atendendo, ainda, a que não orientava a sua procura por material pornográfico com referência especificamente a crianças.
Mais atendeu à sua confissão integral dos factos, que não pode ser sobrevalorizada atendendo à prova constante dos autos (essencialmente à obtida em buscas com apreensão), mas que tem de ser, ainda assim, enaltecida, atento o pudor inerente ao reconhecimento de factos como os dos autos.
Balanceados todos os mencionados fatores, o Tribunal entende ser justa e adequada a aplicação, ao arguido, de:
a) uma pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses anos de prisão, pela prática do crime consistente na partilha de ficheiro de vídeo;
b) uma pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática do crime consistente na detenção de material pornográfico contra crianças do sexo masculino;
c) uma pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, pela prática do crime consistente na detenção de material pornográfico contra crianças do sexo feminino.
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i iii. Do cúmulo jurídico

Conforme ensina MARIA JOÃO ANTUNES, no seu Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, o Código Penal português consagrou o sistema de pena conjunta mediante um princípio de cúmulo jurídico para os casos de concurso de crimes.
A punição do concurso de crimes vem previsto no artigo 77.º, n.º 1, do CP, onde se determina que a vários crimes corresponderá uma pena única, desde que praticados antes do trânsito em julgado.
E será indiferente se o agente preencher, com uma conduta, mais do que uma vez o mesmo tipo de crime, ou vários tipos de crime, ou se cometer mais do que uma vez um tipo de crime ou tipos de crime diversos – artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal.
A condenação atenderá aos factos e à personalidade do agente, globalmente considerados – ou seja, por referência ao quadro geral dos ilícitos típicos praticados.
E tal punição achar-se-á através da moldura do concurso que conhece como mínimo a pena mais elevada das concretamente aplicadas, e como máximo, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, até ao máximo de 25 anos de prisão ou 900 dias de multa – cf. artigo 77.º, n.º 2, do CP.
Neste particular, diferem entre si SIMAS SANTOS e ARTUR RODRIGUES DA COSTA entendendo o primeiro que o máximo da moldura será a soma de todas as penas concretamente aplicadas e que o limite de 25 anos deve apenas servir como teto da pena concreta, enquanto que o segundo defende que o limite máximo da moldura do concurso é a soma das penas concretamente aplicadas até um limite de 25 anos. Ou seja, este último autor entende ser de aplicar aquele limite em abstrato – cf. Rodrigues da Costa, Artur, O Cúmulo Jurídico na doutrina e na jurisprudência do STJ, Revista do CEJ, n.º 1, 1.º Semestre de 2016, pp. 64 e ss..
Ora, conforme nos ensina MARIA JOÃO ANTUNES, in Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, em face do concurso, deverá o Juiz apurar se as condutas revelam uma carreira do Arguido, reveladora de especial propensão para o crime (agravando-se a pena dentro da moldura do concurso), ou se se trata de mera pluriocasionalidade (caso em que não se agravará a pena dentro da moldura do concurso).
Assim sendo, a operação de determinação da medida do concurso passará por quatro fases, a saber:
1) Determinação da pena a aplicar a cada um dos crimes – de acordo com os critérios habituais de determinação da medida da pena – artigo 70.º, do CP.
2) Construção da moldura do concurso – mínimo: pena mais elevada das aplicadas em 1) e máximo a soma de todas as aplicadas em 1), até um máximo de 25 anos.
3) Determinação da medida da pena conjunta do concurso, segundo os critérios gerais da culpa e da prevenção (artigo 71.º, do Código Penal) e o critério especial do quadro global dos factos e da personalidade do agente (respeitada que seja a proibição de dupla valoração) – artigo 77.º, n.º 1, do CP.
4) Substituição da pena em função dos critérios do artigo 70.º e decisão sobre a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação (artigo 43.º, do CP), se aplicável ao caso concreto.
Ora, a pena de substituição será, então, apenas ponderada em face da pena aplicada ao concurso de crimes – e não por referência a cada um deles.
O mesmo se dirá da aplicação de penas acessórias e de medidas de segurança não privativas de liberdade – ainda que sejam aplicáveis apenas a um dos crimes em concurso – já que a sua necessidade se afere em face da pena conjunta – artigo 77.º, n.º 3, do CP.
O Tribunal aprecia a globalidade dos factos, como se de uma unidade se tratasse, atendendo à gravidade do ilícito e à personalidade do agente (artigo 77.º, n.º 1, do CP. Socorrer-se-á dos critérios previstos no artigo 71.º, sem, contudo, poder valorar novamente os fatores que tenham sido individualmente considerados.
A moldura do cúmulo vai dos 1 (um) ano e 8 (oito) meses aos 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses, conhecendo, embora, o máximo de 5 anos (por força do disposto no artigo 16.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
Crê o Tribunal que o arguido não tem um perfil de perigosidade, com especial propensão para a prática do crime, antes sim que se verifica uma pluriocasionalidade, o que se manifesta, inclusive, numa inexistência de orientação da sua busca por material pornográfico especificamente com crianças.
Porém, o Tribunal não pode descurar a existência de uma perigosidade no arguido, em face da existência de uma perversão/divergência do comportamento socialmente aceitável, que, embora reconhecido pelo arguido, não deixa de configurar um sinal de alarme para o Tribunal, e de demandar as cautelas no doseamento da pena final a cumprir pelo arguido.
Tudo sopesado, ainda assim, afigura-se-nos ajustada, proporcional e adequada uma pena que acaba por aparentemente deixar de fora a punição por pelo menos um dos crimes, mas que, na prática, acomoda de forma plena as necessidades de prevenção dos autos e, concomitantemente, a perigosidade do arguido – que é, afinal, o que rege a escolha da pena única.
Donde, se nos afigura adequada uma pena única de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão.
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i iv. Da ponderação da suspensão da pena de prisão – com ou sem regime de prova e sujeição a deveres e regras de conduta

Dispõe o artigo 50.º, n.º 1, do CP, que o Tribunal suspende a pena de prisão aplicada com duração não superior a 5 anos se entender que «a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.». Para tanto, dever atender aos critérios nele elencados.
Permite ainda aquele dispositivo, no seu n.º 2, a subordinação da suspensão ao cumprimento, pelo arguido de deveres ou regras de conduta.
Atendendo à inserção profissional e social do arguido, à ausência de antecedentes criminais, e à sua conduta posterior aos crimes – de procura espontânea, e a suas expensas, de ajuda terapêutica – entende o Tribunal ser, ainda, possível a suspensão da pena de prisão, sem que tal comprometa as finalidades de prevenção especial
O Tribunal entende que o juízo de prognose favorável que preside à decisão de suspender a execução da pena de prisão aplicada se basta com um período de suspensão de 3 (três) anos e 10 (dez) meses, mas, atenta a natureza dos crimes, e o disposto no artigo 53.º, n.º 4 do Código Penal, o regime de prova é obrigatório.
Pelo que o cumprimento da pena será monitorizado, vigiado e acompanhado pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), que deverá traçar um plano de reinserção social ajustado à intervenção clínica e terapêutica especializada (direcionada à sua compulsão sexual e procura por conteúdos pornográficos, incluindo de menores), a consolidação das suas condições atuais de inserção e à sensibilização para o fenómeno do desaparecimento e exploração sexual de crianças e jovens – nos termos dos artigos 53.º e s. do Código Penal, e 494.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Esta é, de resto, a visão da própria DGRSP.
O plano deverá ser do conhecimento e merecer o acordo do arguido, se possível. Deve, ainda, a DGRSP fazer relatórios semestrais e remetê-los para o processo. Acresce que se afigura necessária a sua sujeição a deveres, concretamente:
a) ao dever de proceder ao pagamento de uma contribuição monetária a favor o ... à Criança (BB), no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros);
b) ao dever de se sujeitar a diagnóstico médico, terapêutica e tratamento medicamente indicados, referentes à sua perversão, pelo período a definir pelo profissional de saúde, ao abrigo do disposto no artigo 52.º, n.º 3 do Código Penal.

Assim, determina-se a suspensão da pena de prisão aplicada por um período de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, sujeita a regime de prova e ao dever nos termos preconizados supra.
Consigna-se que, em caso de não cumprimento do regime de prova e respetivas condutas, ou ainda, em caso de prática de novos crimes, a suspensão da pena de prisão poderá ser revogada, nos termos do artigo 56.º, do Código Penal.
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i v. Das penas acessórias

O artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, determina que «Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos», pelo que qualquer determinação de efeitos no âmbito desses direitos terá de ser sopesada em face do caso concreto e da prescrição legal em causa.
A este propósito, esclarece MARIA JOÃO ANTUNES, in Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, que a diferente redação usada pelo legislador em casos distintos de penas acessórias induz o intérprete a concluir que casos há em que parece que o legislador quis excecionar o princípio da automaticidade do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, não deixando margem de não aplicação da sanção ao Juiz.
No entender de MARIA JOÃO ANTUNES, in Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, as penas acessórias visam prevenir a perigosidade do agente e estão ligadas à culpa e às necessidades preventivas e por isso mesmo os critérios para a determinação concreta da medida destas penas deverão ser os mesmos que presidem à determinação da dosimetria da pena principal (artigo 71.º, do CP).
Deverá, no entanto, atender-se ao facto de as penas acessórias estarem previstas para uma multiplicidade de crimes, pelo que terá de ser apreciado o tipo concreto em causa e as inerentes necessidades de prevenção geral positiva.
Aos crimes em causa nos autos são aplicáveis as penas acessórias plasmadas nos artigos 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2 do Código Penal.
As penas acessórias plasmadas nos n.os 2 dos artigos 69.º-B e 69.º-C do Código Penal sofreram uma alteração na sua redação, em 2024, com a Lei n.º 15/2024, de 29 de janeiro, tendo passado a ter a redação «pode ser condenado», em lugar de «é condenado». Tal alteração evidencia que o legislador não pretende uma automaticidade na sua aplicação, pelo que deve ser feito um juízo ponderado e casuístico antes da mesma.
Tal redação é aplicável a estes autos, por força do artigo 5.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, uma vez que a norma é mais favorável ao arguido, sendo, por isso, de aplicação imediata.
No caso dos autos, não obstante o arguido esteja inserido social e profissionalmente, e esteja em tratamento voluntário à sua condição, entende o Tribunal que se justifica a aplicação das penas acessórias vertidas nos mencionados normativos. Com efeito, os factos são graves, e evidenciam perigosidade do arguido em grau que o justifica. Ademais, a terapia é ainda recente, sendo que, como é sabido, este tipo de perversões são, não raras vezes, muito difíceis de debelar e de ultrapassar em definitivo.
Por outro lado, entende o Tribunal que a interação do arguido com crianças, seja no contexto profissional, seja no contexto familiar, poderá ter um efeito nefasto no seu tratamento e na sua terapia, pelo menos numa fase inicial.
Assim, decide-se aplicar ao arguido as penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, e de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, ambas por um período de 5 (cinco) anos, o qual se julga suficiente para debelar a perigosidade do arguido.
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i vi. Custas Processuais

Por força da condenação, é ao arguido que compete o pagamento das custas e encargos processuais – cfr. os artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigos 8.º e 9.º, do Regulamento das Custas Processuais –, sendo que a taxa de justiça a fixar deverá obedecer aos limites prescritos na Tabela III do Regulamento das Custas Processuais (2 a 6 UC).
Tendo em conta as diligências de prova encetadas e que o julgamento se realizou numa única sessão, mas atendendo, também, ao demais trabalho desenvolvido pelo Tribunal nestes autos, fixa-se em 3,5 Unidades de Conta a taxa de justiça a ser suportada pelo arguido.
As custas serão reduzidas a metade, por força da confissão integral e sem reservas – artigo 344.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal.
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VI – Decisão …”
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Cumpre apreciar.
Sobre o aditamento, do facto com a redação “O arguido era consumidor de pornografia em geral e não exclusivamente de menores, não tendo o perfil típico de consumidor de pornografia infantil.”, cujo o aproveitamento o recorrente pretende, não só esse facto não constava do objeto de processo, como o fim visado pelo arguido, e sua justificação, não merece qualquer procedência. Com efeito, mesmo que esse facto constasse do elenco dos factos provados, em nada diminuiria a sua ilicitude, ou o seu foco delitual in casu, como se pretende no recurso em apreciação.
Na verdade, um consumo da pornografia em geral, para além de não ser edificante da sua personalidade e não acrescentar qualquer grandeza de caráter, em momento algum diminui a sua ilicitude dos factos em discussão nos autos, ou menoriza o apurado consumo de pornografia infantil, até porque o crime de pornografia infantil não supõe ou exige que o arguido apenas se dedique em exclusividade a este tipo de pornografia. Para além desta perversão, o arguido pode ter outras, consoante o grau, sem que isso diminua a importância da primeira. Depois, essa sua atitude de “consumo de pornografia em geral” incrementaria o risco da sua conduta, dado que o acesso indiscriminado a este tipo de conteúdos facilita o acesso à pornografia infantil, pois esta infiltra-se nos conteúdos pornográficos em geral, cujos ambientes são de descontrole total. Portanto, é manifestamente improcedente a sua pretensão.
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Mais o arguido pugna pela subsunção de um único crime de pornografia infantil, diversamente dos três crimes porque veio a ser condenado. De igual forma, o MP veio sustentar que, face à natureza do bem jurídico bem jurídico supraindividual, não seria possível enquadrar o concurso de crimes, face à impossibilidade de identificar as vítimas, embora admita o concurso de dois crimes de pornografia infantil.
O Ac.TRC de 02.04.2014, (relator Desembargador Belmiro Andrade), no processo 347/08.8JACBR, publicado na DGSI sobre a relevância da interpretação do bem jurídico veio sustentar “a interpretação do sentido do tipo apenas se satisfaz mediante uma perspectivação teleológica do âmbito de aplicação dos seus elementos típicos normativos, no respeito do “padrão de adequação social” da respectiva conduta, apurando se o facto submetido a juízo satisfaz o “limiar mínimo” de ofensa do bem jurídico tutelado pela norma, verificando se, em concreto, se mostra preenchida a ofensividade abstracta do bem jurídico suposta no tipo de crime. Num juízo de causalidade adequada sobre a ofensa, pela conduta, do quadro abstracto suposto pela norma, perspectivada no seu enquadramento histórico e na sua inserção sistemática na unidade da ordem jurídica e na confluência dos princípios superiores de natureza constitucional. A solução terá de se alcançar por uma via que aponta para a “descoberta” (hoc sensu a “criação”) de uma solução justa do caso concreto e simultaneamente adequada ao (ou comportável pelo) sistema jurídico-penal. O que supõe a “penetração axiológica” do problema jurídico-penal, a qual tem que ser feita por apelo ou com referência teleológica a finalidades valorativas e ordenadoras de natureza político-criminal, numa palavra, a valorações político-criminais imanentes ao sistema» (…). “O bem jurídico tutelado incide na protecção da sexualidade durante a infância e começo da adolescência e na preservação de um adequado desenvolvimento sexual nestas fases de crescimento. Só mediatamente se pode dizer que se protege a liberdade e autodeterminação sexual até porque naquelas idades a capacidade de avaliação e autodeterminação está ainda em fase de formação e desenvolvimento, sofrendo, em tal caso, traumas irreparáveis nesse processo.”.
A este propósito, entendemos muito pertinentes as posições do Juiz Desembargador Dr João Pedro Pereira Cardoso in “Pornografia real infantil: unidade ou pluralidade de crimes”, publicado na Revista Data Venia nº13, 2022, no qual se refere que “Os bens jurídicos iminentemente pessoais são os que constam do Título I da Parte Especial do Código Penal, composto pelos artigos 131.º a 201.º, incluindo, assim, o tipo de ilícito em causa nos presentes autos, previsto e punido pelo art.176.º. (…) A este respeito, lê-se no Ac STJ de 13.03.2019 (Vinício Ribeiro) www.dgsi.pt: «As Nações Unidas definem pornografia infantil como sendo qualquer representação por qualquer meio de uma criança em actividades sexuais explícitas, reais ou simuladas ou qualquer representação das partes sexuais, de onde resulta que o conceito de pornografia infantil é amplo (cfr. art.º 2 .º, c), do Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos da Criança sobre o Tráfico de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia, de 2002).» (…) O bem jurídico tutelado não é apenas a autodeterminação sexual, mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei. «A gravidade destas condutas para o desenvolvimento dos menores, na esfera sexual, aliada à sua frequência, muitas vezes com finalidades lucrativas (de exploração económica), assim como a sua ligação a outros crimes (como o tráfico de menores), de caráter transfronteiriço, fundamentam esta preocupação e as imposições de criminalização neste domínio» – cfr. Maria da Conceição Ferreira da Cunha, in Crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Revista Jurídica Luso Brasileira, ANO 3 (2017), Nº 3, pg.362. No entendimento de Maria João Antunes e de Cláudia Santos, in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, 2ª ed., Coimbra Editora, Tomo I, 2012, Artigo 176º, p. 880, o bem jurídico protegido pela criminalização da pornografia de menores é «o livre desenvolvimento da vida sexual do menor de 18 anos de idade face a conteúdos ou materiais pornográficos». Luciana Oliveira Costa, in “A Difusão de pornografia infantil pela internet: sentido e limites de uma incriminação”, Universidade de Lisboa, 2006, p. 45-47 e 66, defende que o bem jurídico protegido com a criminalização da pornografia de menores é o interesse pessoal da sua autodeterminação sexual e não a liberdade sexual porque conceptualmente esta pressupõe «a capacidade de atuar livremente, isto é, de consentir ou não intromissões na esfera sexual individual, o que não se verifica quanto aos menores». (…) O crime de pornografia de menores visa, como se apontou, de forma mais direta ou indireta, defender a autodeterminação sexual de crianças e jovens, ou o seu livre desenvolvimento, de outro ponto de vista, bens jurídicos, de qualquer modo, de caráter eminentemente pessoal e consequentemente não subsumível à figura do crime continuado, por força do disposto no art.30.º, n.º3. Dizer-se com Miguez Garcia e Castelo Rio, in Código Penal, Parte geral e especial, Almedina 2014, art.176º, pg.731, que as quatro variantes da ação prevista no art.176º, nº1, têm «todas em vista sobretudo a proteção da juventude e indiretamente, enquanto crimes de perigo abstrato, o facto de concorrerem para a redução do número de destinatários e do chamado turismo sexual em prejuízo de menores», em nada descaracteriza o carácter eminentemente pessoal do bem jurídico tutelado, que assim não protege, pelo menos não protege de forma dominante, um bem jurídico de matriz supraindividual ou difuso. (in op.cit.p.245-249).
Pese embora o perigo abstrato, tutelado com mais evidência na alínea d) do nº1 do art.176º do CP, cuja tutela visa desmotivar os consumidores de pornografia infantil, essa circunstância, não diminui o carácter pessoal do bem jurídico, dado que aquela modalidade de perigo respeita apenas e só à incidência/concretização da conduta face ao bem jurídico. A ampla tutela daquele bem jurídico abrange a proibição da utilização direta e indireta de menores, no reforço da proteção das crianças e adolescentes, objetivando a sua validade preventiva.
Sustenta o referido Magistrado “Estando em causa a obtenção, posse e divulgação de materiais pornográficos, por diversos meios, a infração surge relacionada com as circunstâncias e os conteúdos respetivos em relação a cada uma das vítimas.”.
Muito embora seja defendido queNas alíneas c) e d) do n.º 1 criminaliza-se a utilização indireta de menores de 18 anos, através de condutas que não comportam uma violação direta do bem jurídico liberdade e a autodeterminação sexual de um menor. (…) trata-se de “travar a proliferação da divulgação de condutas que atentam contra a liberdade e autodeterminação sexual de crianças, elas sim violadoras de bens jurídicos pessoais. Figueiredo Dias a propósito da alínea d) da versão decorrente da reforma de 2001 do artigo 172.º, fala numa «criminalização (…) que não pode deixar de ser iluminada por um bem jurídico supra individual diverso do da liberdade e autodeterminação sexual de uma pessoa». Afigura-se-nos que para além de uma tutela da liberdade e autodeterminação sexual do menor, proibindo todo o mercado de produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, cedência de material pornográfico, também se procura através da incriminação evitar danos na esfera pessoal do menor, que decorre da sua associação ao mercado pornográfico, com as sequelas físicas, emotivas, de reputação e honra que daí advêm. Existe uma tutela antecipada do interesse superior da criança, e do seu direito a ser acautelado o seu bem-estar físico e psíquico. Ora, todas as atuações ali descritas são suscetíveis de causar tais danos, pela expansão do conhecimento de tal material pornográfico». (in op.cit.p.253).
Do que se trata são conteúdos que implicam a difusão da exibição de imagens de uma violação direta do bem jurídico da liberdade e da autodeterminação sexual de um menor. E essa difusão atinge, multiplica e amplia com ressonância, concretas agressões sexuais. O que a norma visa, é quebrar e punir o mercado, o qual, que por sua vez, incentiva futuras agressões sexuais.
Consta do mencionado estudo que Diana Tomé Borrego, in «O crime de pornografia de menores: evolução, modalidades de ação típica, detenção e bem jurídico», Coimbra, 2019, pg.70, para quem a previsão das alíneas c) e d), do nº1, do art.176º, deve ser encarada como uma proteção, não do menor em concreto, cuja liberdade e autodeterminação sexual foi violada com a sua utilização (alíneas a) e b), do nº1, do art.176º), «mas sim numa lógica de proteção dos menores contra as condutas que contribuam para a difusão de materiais onde os mesmos são representados, tendo em vista salvaguardar o seu desenvolvimento físico e psíquico». Contudo, não se concorda com este entendimento, mais impressionado pela abstração da norma incriminadora na proteção avançada do bem jurídico do que no seu verdadeiro objeto (a personalidade integral do menor).” (…) “Mais uma vez a solução encontrada, ao imputar um único crime à pornografia reiterada de menores no caso das alíneas c) e d), do nº1, do art.176º, independentemente do número de vítimas, lançando mão do bem jurídico supraindividual, não se afigura correta do ponto de vista da determinação dogmática do ilícito típico. Pune-se – mais uma vez - o que se consegue provar por não se conseguir provar o que se quer punir e, assim, o bem jurídico deixa de pretender exprimir, na sua plenitude, aquilo em que o crime se mostra verdadeiramente ofensivo (a liberdade e autodeterminação sexual do menor) para valorizar aspetos acidentais da violação da norma incriminadora (infância e juventude), perdendo-se a necessária equivalência entre a realização típica (em sentido amplo) e a ofensa do bem jurídico essencial protegido (a liberdade e desenvolvimento pessoal do menor). (…) A proteção de natureza supraindividual não se sobrepõe, nem pode contender com a da autodeterminação sexual do menor em concreto. A determinação concreta do número de atos ilícitos que devem ser imputados é um tema que convoca a forma como se faz a investigação criminal e a diligência acusatória e não uma questão de dogmática penal entre a unidade e pluralidade de crimes – cfr. ac STJ 06-04-2016 (Santos Cabral) www.dgsi.pt. (…). (in op.cit.p.265-267).
Presumindo-se que a formação e desenvolvimento da personalidade global dos menores é colocada em perigo pela pornografia infantil, o legislador, através das diferentes modalidades de ação típica previstas no nº1, do art.176, estabeleceu diferentes barreiras da proteção contra essas práticas lesivas da infância ou a adolescência dos menores, perturbando um desenvolvimento harmonioso da sua personalidade (cfr. ac STJ 19.02.2020 (Nuno Gonçalves), www.dgsi.pt). Mas, essa antecipação mais alargada da tutela penal nas alíneas c) e d), do nº1, do art.176º, própria dos crimes de perigo abstrato e mera atividade, não exclui o caráter individual da proteção da pessoa ou personalidade integral dos menores enquanto destinatários, mas sobretudo sujeitos de direitos fundamentais. A perigosidade pressuposta pelo tipo legal, própria dos crimes de posse, nada nos diz sobre a natureza pessoal ou não dos bens jurídicos protegidos, por se tratar de classificações diferentes dos tipos legais de crimes.” (…) “Concedendo que as condutas tipificadas nas alíneas c) e d), do nº1, do art.176º, atenta a complexidade de interesses ofendidos, possam influir no correto processo de formação e desenvolvimento do menor na esfera ampla da sua sexualidade, onde interferem especialmente a honra, reserva, imagem e intimidade sexual, os beneficiários das barreiras de proteção adiantadas pela incriminação serão sobretudo as concretas vítimas titulares dos diversos direitos em perigo (abstrato).” (in Op.cit.p.269 a 280)
Para quem diga que o bem jurídico da liberdade sexual foi violado em momento anterior à produção e divulgação, e que não existe causalidade entre a conduta do agente nas alíneas c) e d) do art.176º do CP e essa lesão da liberdade sexual do menor em causa, o Mmº Juiz Desembargador objeta certeiramente, “Discordando, diremos que não é pelo facto de nas alíneas c) e d), do nº1, do art.176, a antecipação da tutela dos interesses ser adicional ou mais forte do limiar da proteção penal, incluindo a utilização indireta dos menores, que o bem jurídico protegido, nesta modalidade típica, deixa de abranger a liberdade/autodeterminação sexual e, portanto, os interesses pessoais que estão em causa na ilicitude. Quem utiliza os menores, independentemente dessa utilização ser direta ou indireta, viola em estádios diferentes o direito fundamental à plena capacidade de autodeterminação (livre formação da vontade 23) no domínio da sexualidade. A referida utilização indireta mais não é do que o reforço ou «a continuação da lesão ao bem da liberdade ou autodeterminação sexual que teve início na produção do material». A antecipação avançada da tutela da perigosidade associada à simples divulgação doméstica, tráfico ou mesmo posse do material pornográfico visa evitar a perpetuação e desenvolvimento do dano anterior ao mesmo bem jurídico tutelado com a sua produção” (op.cit.p.270).
A expansão da divulgação perpétua, desenvolve a esfera de dano do menor. Cremos que, se a lesão da liberdade sexual do menor é direta nas alíneas a) e b) do nº1 do art.176º do CP, já o perigo abstrato tutelado, concretamente da alínea d) do mesmo preceito, e também a alínea c), sem deixar de tutelar a promoção da quebra do mercado de pornografia, e de futuros comportamentos abusivos e de exposição de menores, continua a proteger as concretas exposições criminosas dos menores, cuja liberdade sexual está em questão. Como refere o insigne Magistado “o risco de ofensa ao desenvolvimento da personalidade da criança, em particular na formação da esfera íntima da sua sexualidade, se mantém posteriormente com a circulação daquele material. (…) Neste sentido, a afetação da autodeterminação sexual, enquanto processo de formação de vontade livre, esclarecida e autêntica até à maioridade, não se esgota na produção do material, antes persiste com a sua divulgação. (…) na incriminação da pornografia real infantil pretende-se evitar a ofensa reflexa ou indireta do mesmo menor, após o aproveitamento ou exploração direta da sua sexualidade (estamos perante condutas que pressupõem a prévia existência do material pornográfico), tratando-se em qualquer dos casos de uma antecipação adicional da tutela penal em relação aos delitos originários. (…)” “Identificando a perspetiva ofensiva da detenção e circulação de material pornográfico, quem detém ou divulga as imagens sexuais do menor, ainda que não tenha uma relação direta com o produtor, aproveita-se da produção desse material e associa-se à colocação em perigo do desenvolvimento psicofísico da criança, no desenvolvimento psicológico, relacional e esfera social, perpetuando conscientemente esse risco. em prejuízo dos direitos de terceiro, o portador da liberdade sexual, no pleno gozo da sua capacidade de autodeterminação, pode dispor livremente da sua sexualidade quando, como, aonde e com quem quiser, segundo as suas conceções particulares sobre a vida e o mundo, o que é crucial do respeito dopróprio e da autonomia sexual, independentemente do grau de consciência ou de compreensão de cada um sobre a sua dignidade. É sobretudo a integridade da capacidade de formação dessa vontade individual sobre a livre expressão da sexualidade, com forte perigo para o livre desenvolvimento da personalidade 30, que é dominantemente violada no comportamento típico das alíneas c) e d), do nº1, do art.176º. O bem jurídico protegido, o sentido de antinormatividade criminal que o comportamento encerra (o conteúdo do ilícito), é ainda fundamentalmente a liberdade de expressão sexual, aqui vista na sua vertente da plena e livre capacidade de autodeterminação e o desenvolvimento global harmonioso do concreto menor utilizado e não dos menores em geral. Interpretar a realidade a partir do interesse difuso ou supraindividual da infância ou da juventude é perder o enfoque da liberdade e autodeterminação sexual, essência dogmática dos crimes sexuais, o maior dos perigos (abstrato) que fundamentalmente este comportamento envolve.” (op.cit., pp.271-274).

A intervenção penal não deixa de tutelar o direito à própria imagem, honorabilidade e intimidade, todos reportados à esfera sexual, dados os efeitos severos decorrentes da posse e difusão da pornografia infantil. O mesmo Magistrado a este respeito sustenta “A violação da esfera de intimidade e absoluta reserva do concreto menor utilizado, bem latente e perpetuada na exposição ou partilha da sua sexualidade, atenta a visibilidade e sobretudo publicidade perante terceiros, condiciona fortemente a capacidade de autodeterminação sexual da criança ou adolescente, a justificar quantas vezes o silêncio, senão mesmo a negação da vítima perante os factos. (…) A pornografia infantil afeta, em cada caso particular, de forma direta e permanente, os direitos fundamentais à imagem e privacidade dos menores, os quais se apresentam como parte integrante da sua dignidade, constituindo vetores essenciais ao seu bem-estar psíquico e ao pleno desenvolvimento da sua personalidade. O bem jurídico tutelado é, pois, a autodeterminação sexual dos menores, entendida como desenvolvimento livre, gradual e espontâneo da personalidade do menor no plano sexual. (op.cit., pp.275-276).
Em relação aos menores, os tipos de crime sexuais visam fundamentalmente proteger as condições básicas para que no futuro possa alcançar um desenvolvimento livre da personalidade na esfera sexual, sem traumas nem interferências de terceiros. O aludido autor refere que a disponibilidade de acesso e partilha de material pedo-pornográfico “contribui diretamente para uma potencial perturbação psicológica da vítima. Do mesmo modo, contribui-se para um rebaixamento de reputação sexual do menor enquanto condição de um normal desenvolvimento de relações sociais. (…) “A circulação de pornografia infantil implica, por um lado, o risco de prejudicar dentro da comunidade a reputação sexual da criança associada ao material pornográfico, o que poderá ter graves repercussões, dada a sua especial vulnerabilidade, no desenvolvimento do seu relacionamento social; por outro lado, havendo consciência da possibilidade de difusão do material pornográfico, a consideração do menor sobre si próprio e da sua esfera sexual, bem assim a perceção do próprio sobre o seu valor social, podem ser seriamente degradadas. (op.cit., pp.277-278).
“Esta ingerência na formação da sexualidade do menor é suscetível de contribuir para potenciais perturbações psicológicas e relacionais do mesmo e, portanto, violadora da autodeterminação sexual, cujo núcleo essencial é o desenvolvimento gradual da personalidade do menor no campo sexual. (op.cit., pp.279)
Com efeito, se a tutela criminal visa punir o mercado da pornografia infantil e assim a comercialização da imagem sexual de menores, com o risco que daí advém para futuras agressões a outros menores, aí não se esgota a tutela, antes, se completa na tutela da autodeterminação sexual dos menores concretamente atingidos, e que continuam a ser atingidos com os comportamentos de divulgação e transmissão das visualizações da sua exposição sexual, previstos nas alíneas c) e d) do nº1 do art.176º do CP. O autor que temos vindo a citar refere “Nas modalidades de ação típica em causa é ainda esta dimensão interior e exterior da personalidade em desenvolvimento do menor que primeiramente é ofendida, diante de uma verdadeira assombração na sua vida resultante do perigo permanente de uma total devassa da sua imagem, honra e reserva íntima no plano sexual.
Na apreensão do “conteúdo de ilicitude material do facto”, o intérprete e aplicador da norma não podem é alhear-se primeiramente da individualidade (que não se confunde com a identidade) da concreta pessoa (criança) retratada, filmada, gravada e depois publicamente exposta para determinar o número de crimes cometidos.” (op.cit., pp.280),
Portanto, o âmbito do bem jurídico protegido respeitante à contínua ingerência na sexualidade do menor, amplia as perturbações psicológicas e relacionais do mesmo, o direito à imagem sexual.
A jurisprudência mais moderna do STJ assim tem decidido no Ac. de 20/11/2024 no processo nº 2809/20.0JAPRT.S1 relator (Conselheiro Dr Carlos Campo Lobo) “I – O crime de abuso sexual de crianças assume-se como destinado a proteger o desenvolvimento sexual das crianças preservando-as de um envolvimento prematuro / precipitado / precoce em atividades sexuais e, por essa via, impedir a existência de qualquer prejuízo no livre crescimento / amadurecimento da personalidade do menor. II – O crime de pornografia de menores, por seu lado, visa sobretudo a proteção da juventude e, consequentemente, a redução / diminuição do número de destinatários neste domínio de potencial perigo de exposição e o controle do chamado turismo sexual, pretendendo-se proteger, não só, a autodeterminação sexual do menor, mas também acautelar / salvaguardar a sua exploração sexual, quer por via da utilização do menor em fotografia ou filme, quer se trate de uma exploração do menor mediante a divulgação daquele material, em ordem à garantia de um bem jurídico coletivo de proibição de disseminação dessa informação, proteção esta antecipada pela simples utilização do menor, ainda que o material não tenha sido disseminado. IV – No domínio dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, vem exuberando da jurisprudência dominante, que se rejeita a ideia de crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, figura que não tem acalento em qualquer expressa normação legal, pois, nestes tipos, estão em causa bens eminentemente pessoais. V - Hodiernamente, o tratamento penal dos crimes sexuais registou assinalável evolução sociológica e politico-criminal, assumindo-se como inseridos dogmática e sistematicamente no palco dos crimes contra a pessoa individual, concretamente contra a sua liberdade e autodeterminação sexual, traço este que impõe que a vítima e a sua perspetiva encerrem relevância decisiva.
VI - À insistência ou persistência da resolução criminosa do agente contrapõe-se e sobrepõe-se a necessidade de, perante cada atentado ao bem jurídico pessoal tutelado, reafirmar / acentuar / sublinhar a sua validade e importância para garantir o exercício livre e autêntico da identidade e da expressão sexual da vítima. VII - Sempre, e cada vez, que o agente força ou impele uma pessoa sem o consentimento desta ou com o consentimento viciado ou legalmente inadmissível, a ter de suportar atos lascivos / sexuais, agride / invade o direito pessoal à liberdade e autenticidade da sua expressão sexual. No estar / sentir da vítima, que deve ter-se por decisivo, cada agressão sexual, independentemente de o agente ser o mesmo ou diverso, está imbuída de um sentido negativo de valor jurídico-penal.
VIII - A reiteração / repetição sucessiva e mais ou menos prolongada no tempo de agressões sexuais não é nem se pode transformar, para a vítima, num empreendimento ou numa atividade do agressor que aquela a tenha de suportar. IX - Tal tipo de prática / agir implica que sempre e a cada momento ocorre uma abordagem, uma reação, um sentir e uma consequência, o que claramente convoca a ideia de que cada ato / ação singular, repetida e sucessivamente operado, indiferentemente do tempo que entre eles medeia, preenchendo todos os elementos do mesmo tipo (objetivo e subjetivo), constitui um crime autónomo, estabelecendo entre si uma relação de concurso real ou efetivo de crimes e reclamando a respetiva punição nessa medida.(relevos nossos).

Feito este escurso, facilmente se conclui não se poder divergir da subsunção realizada pelo Tribunal “A Quo”. Com efeito, este Tribunal entendeu “Nesses ficheiros, contam-se, guardados na aplicação google photos, 20 referentes a crianças de ambos os sexos, com idades entre os 5 e os 17 anos, e mais 63 com crianças do sexo feminino, e 24 com crianças do sexo masculino, todos com idades entre os 3 e os 15 anos. Acrescem 3 ficheiros, guardados em cartão de memória, com crianças do sexo feminino, um em que a idade é inferior a 14 anos, e outros dois em que a idade é inferior a 12 anos.
De todos estes vídeos, não se sabe se as vítimas são as mesmas – exceto por referência aos sexos –, nem se a obtenção e o guardar dos vídeos foi em momento distinto.
Pelo que não se conseguem autonomizar os 110 ficheiros em causa como tratando-se de exatamente 110 crimes. Na verdade, poderemos estar perante a mesma vítima, em que os vídeos foram segmentados, mas adquiridos num mesmo momento temporal, ou não. Ademais, os feixes de idades são parcialmente sobreponíveis, pelo que não se pode, sequer, autonomizar um crime por cada faixa etária. Isto, porque, prevalece no nosso ordenamento jurídico o princípio da presunção da inocência, que, na dúvida, demanda uma decisão no sentido mais favorável ao arguido (…)
Donde, o único critério que permite extrair uma conclusão segura é o da autonomização de um crime por cada género de vítima, ou seja, um pelos ficheiros atinentes a vítimas do sexo feminino e um pelos ficheiros atinentes a vítimas do sexo masculino.
Todos os atos que as crianças praticaram nesses vídeos, e descritos nos factos, compõem o conceito de pornografia, cf. supra descrito, e eram guardados com o intuito de partilhar.
Temos, pois, nos factos provados n.º 1 e 2, e 4 a 15, dois crimes praticados, com a agravação do n.º 8 do artigo 177.º do Código Penal.
Acresce que o arguido partilhou, em 11/10/2020, um vídeo contendo imagens de coito anal entre um indivíduo adulto do sexo masculino e uma criança do sexo feminino com idade inferior a 14 anos. Enviou-o para terceiro (com o perfil da rede social Messenger com o nome EE), o que configura um dos atos plasmados na al. c) do n.º 1 do artigo 176.º do Código Penal, com a agravação do n.º 8 do artigo 177.º do Código Penal.”.
Para a autonomização de cada ilícito criminal (cfr.art.176º nº1 alíneas c) e d) do CP) na pluralidade de crimes, é indispensável na acusação e nos factos provados, a identificação do menor, não no sentido dos seus elementos identificativos civis (nome, filiação, naturalidade, residência etc), mas a sua individualização, diferenciação como pessoa, bastando para o efeito que, na acusação conste a diferenciação do número de menores, apurando-se quanto a cada um o seu género sexual, idades e os rostos visíveis, com suscetibilidade de identificação. No caso dos autos, surgindo as assinaladas dúvidas, fixadas sobre se, na mole de todos os 110 ficheiros poderia, alguns desses ficheiros, incidir sobre o mesmo/a menor, até em idades diferentes, e em que ocasiões? (aqui no campo e na problemática do número de resoluções criminosas), pelo que, o critério da diferenciação de género operada pelo Tribunal “ A Quo”, embora minimalista, é acertado.
Pois, embora, o número de ofendidos seja bem superior aos dois crimes pessoais cometidos, mas porque a “identidade”, ou mais propriamente a diferenciação e individualização de cada menor não constava, como poderia constar, da acusação, mas tão só crianças do sexo masculino e feminino, o critério definido na decisão é o acertado. A apreciação do Tribunal “A Quo” cumpre com os requisitos do standard de prova do processo penal, afigurando-se correto, devendo por isso, manter-se o decidido concurso de crimes, no caso, dois crimes previstos e punidos pelo art.176º nº1 alínea d) do CP, cada um dos quais pela prática do crime consistente na detenção de material pornográfico contra crianças do sexo masculino e feminino, respetivamente, em concurso com um crime previsto e punido pelo art.176º nº1 alínea c) do CP.
Mais sustenta o recorrente, no ponto 14 das suas conclusões que “Ainda que assim se não entendesse, se existisse matéria de facto que fosse suscetível de constituir prova de que o arguido tinha os vídeos no seu equipamento com o objetivo de os divulgar, distribuir ou ceder - e não de apenas os visualizar para fins pessoais - a realidade é que não existe prova de que tenha sido consumado tal propósito, pelo que sempre se imporia, em tais circunstâncias, ponderar a comissão desse crime, não em autoria material, mas na forma tentada, nos termos previstos no nº 9 do mesmo artº 176º.”. Ora, esta tese parece ignorar que o tipo previsto na alínea d) do nº1 do art.176º do CP é de resultado cortado, tutelando o perigo abstrato, e tal como consta da matéria de facto provada, o arguido consumou essa tipicidade, quer objetivamente, quer incluindo o propósito típico, também aqui improcedendo as conclusões do recurso.
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Pretende o arguido recorrente a reapreciação da pena com redução para dois anos, e no seu regime de suspensão, visa expurgar do mesmo, o dever de pagamento de uma contribuição monetária a favor o ... à Criança (BB), no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a cumprir no tempo da suspensão da execução da pena.
Quanto à pena que considera excessiva, A sua pretensão é infundada, dado que, constituindo a moldura de cada um dos três crimes os limites de 1 ano e 6 meses a 5 anos (este limite máximo, por força da regra de competência do art.16º nº3 do CPP), portanto, todos com uma amplitude de 3 anos e seis meses (equivalente a 7 períodos de seis meses cada); o Tribunal “A Quo” no crime p.p. pelo art.176 nº1 alínea c) do CPP, punindo o arguido com 1 ano e 8 meses, mensurou apenas 2 meses daquela amplitude, o que se afigura até excessivamente benévolo, atendendo ao conteúdo ilícito do ficheiro transmitido e onde a confissão do arguido, como aliás referido, não assume relevo; num dos crimes p.p. pelo art.176 nº1 alínea d) do CPP (contra crianças do sexo masculino), o Tribunal “A Quo” punindo o arguido com 2 anos, mensurou apenas 6 meses daquela amplitude, ou seja 1/7 da moldura, o que se afigura também excessivamente benévolo, considerando o número de ficheiros com crianças de várias idades; no outro crime p.p. pelo art.176 nº1 alínea d) do CPP (contra crianças do sexo feminino), o Tribunal “A Quo” punindo o arguido com 2 anos e 2 meses, mensurou apenas 8 meses daquela amplitude, ou seja, pouco mais de 1/7 da moldura, o que se afigura, de igual forma, excessivamente benévolo, considerando o número de ficheiros com crianças de várias idades, e em ambos o delitos com numerosos ficheiros com penetração, a forma mais grave de abuso. Portanto, as penas concretas cominadas, ficam aquém da gravidade do delito que se prolongou por alguns anos, não podendo estar em causa a sua redução, sob pena de atropelo das exigências de prevenção geral.
Quanto ao cúmulo jurídico situando-se entre os 2 anos e 2 meses (e não nos 2 anos e 8 meses, como por lapso o Tribunal “A Quo” indicou e os 5 anos, sendo a amplitude 2 anos e 10 meses, a pena única fixada em 3 anos e 10 meses, representa a medida de 1 ano daquela amplitude, situando-se abaixo do ponto médio da mesma, assim refletindo uma ponderação equilibrada, onde se pesam a ausência de antecedentes criminais do arguido. Portanto, face à mensuração dos parâmetros do limite da culpa e das exigências de prevenção geral e especial (cfr.art.71º do Cód.Penal), sem perder de vista o peso da ilicitude, especialmente a pena única que o Tribunal “A Quo” fixou, fê-lo com ponderação e equilíbrio, não merecendo por isso censura, permanecendo no seu “quantum”, no regime de execução, conforme fora determinado, assim improcedendo as conclusões do recurso.
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Quanto ao dever de pagamento de uma contribuição monetária a favor o ... à Criança (BB), no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), cuja eliminação se pretende, esta obrigação que, tem uma natureza mista entre o dever previsto no art.51º nº1 alínea c) do CP e a regra de conduta prevista no art.52º nº1 alínea c) ambos do CP, está sujeita aos critérios de razoabilidade na exigência do seu cumprimento previstos no nº2 do art.51º, “ex vi” art.52º nº4, ambos do CP. Desde já, deve asseverar-se que o Tribunal “A Quo” bem andou em dotar de substância o regime de suspensão, com vocação de integração social, porquanto, revelando o arguido da apurada perversão (na qual se usam de violências atrozes sobre a sexualidade de crianças), deve o mesmo ser condicionado no tempo de suspensão, à referida obrigação pecuniária, cujo sacrifício em prol de crianças, obrigará o arguido a descentralizar-se de si próprio (onde está centrado), fazendo bem ao outro, dinâmica essa, renovadora do seu quadro pessoal e social.
Uma suspensão dotada de deveres e obrigações, em particular o pagamento de certa quantia ao o ... à Criança, é por inerência, um regime melhorado, com aptidão para alcançar os fins da pena, sobretudo, quando comparado com uma suspensão da pena dotada apenas de algumas regras de conduta, cujo mero decurso do tempo, pode contribuir para uma má interpretação da pena.
Recorda-se que a reparação do mal cometido (com uma dimensão reflexa nos autos), não persegue apenas o cumprimento das exigências de prevenção geral, mas igualmente visa promover o apaziguamento das exigências de prevenção especial, tal como é o escopo das regras de conduta do art.52º do CP (neste sentido “Ac da RE de 12/04/2016, processo 41/12.5GASRP.E1, in www.dgsi.pt “A obrigação de reparação do mal do crime como condicionante da suspensão da prisão cumpre uma importante função adjuvante das finalidades da punição, contribuindo para a reinserção social do arguido (que se reabilita colmatando os efeitos do seu ato criminoso), facilitando a reposição da situação do lesado antes do cometimento do crime, permitindo em suma “cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima”).
O juízo de prognose favorável nos termos do art.50º nº1 do CP, aposta nesse juízo, e só surtirá o desejado efeito ressocializador com uma pena dotada de elementos necessários à recuperação, maturação e mutação da atitude do arguido, o que passará inevitavelmente, pela fixação da obrigação tal como decidiu o Tribunal “A Quo”.
A responsabilização do arguido, com um efetivo empenho, em prestar benefícios pecuniários a uma instituição de apoio à criança, promove uma atitude que será enquadrada como dever e regra de conduta, aperfeiçoando os objetivos de recuperação social do arguido, no relacionamento com os outros, e que merecem o seu respeito.
Não se devendo desviar do caminho traçado pelo Tribunal “A Quo”, que é certeiro, aqui improcedendo por completo as conclusões do recurso.

DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do arguido, confirmando a douta sentença.

Condena-se o arguido nas custas do recurso, fixando a taxa de justiça em quatro unidades de conta.
Notifique.

Porto, 28 de maio 2025.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Paula Guerreiro
Maria do Rosário Martins