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REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
AUSÊNCIA TOTAL DA NARRAÇÃO DOS FACTOS TÍPICOS - ART.º 311.º N.º 3 AL. B) CPP
E OMISSÃO DOS FACTOS - ART.º 311.º N.º 3 AL. D) CPP
Sumário
A rejeição da acusação sustentada no art. 311º, n º 3, al. b), reporta-se à ausência total da narração dos factos e diz respeito à ausência de factos típicos (não existência de factos com relevo jurídico) que consubstanciam a relação penal, o que não é manifestamente o caso dos autos atendendo ao teor da acusação no seu todo. Por sua vez, a omissão do art. 311º, n º3 al. d), reporta-se a acusação que não contenha factos que preencham a tipicidade criminal, ou seja, trata-se de uma questão de subsunção jurídica dos factos acusados às normas penais acusadas. A irrelevância penal que justifica a rejeição ao abrigo do artigo 311.º deve ser manifesta, indiscutível e inequívoca, o que não acontece pela simples omissão do lugar. A aplicação do artigo 311.º deve ser excecional e restritiva, e a omissão do lugar, especialmente quando não foi possível apurar, não constitui um vício de tal gravidade (uma "nulidade extremada") que justifique a rejeição sumária, ao contrário das demais nulidades previstas no artigo 283.º, n.º 3 do CPP.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Texto Integral
1ª secção criminal
308/19.1GHVNG.P1
__________________
Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO:
No processo singular em epígrafe identificado do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia-J3referente aos arguidos AA e BB foi proferido despacho que rejeitou a acusação conforme ora é expresso” (…)Ao ser recebido o processo no tribunal de julgamento, o juiz deve apreciar todas as questões prévias ou incidentais que possam obstar à apreciação do mérito da causa, sejam elas de natureza substantiva ou adjectiva - art. 311.º/1 do Código de Processo Penal.
Uma acusação deverá ser rejeitada sempre que for manifestamente infundada (art. 311.º/ 2, al. a) do Código de Processo Penal), isto é, quando em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade. Nos termos da al. b) do n.º 3, do mesmo preceito legal, considera-se infundada a acusação que não contenha a narração dos factos. Este n.º 3, permite o conhecimento oficioso desse vício estrutural da acusação, rejeitando-a por manifestamente infundada, vício esse que, como vimos, também implica a nulidade da acusação nos termos do art. 283º, n.º 3, al. c).
Assim, não tendo o interessado, (Arguidos), invocado a nulidade da acusação, ainda na fase de inquérito e, transitando o processo para a fase de julgamento, cabe ao juiz de julgamento, o controlo jurisdicional dos vícios estruturais da acusação, rejeitando-a por ser manifestamente infundada, isto é, por não ter condições de viabilidade. Ou seja, in casu falta na Acusação proferida contra os Arguidos factos relativos à indicação das circunstâncias do lugar em que ocorreram tais factos, pelo que em face absoluta da falta de tais factos relativos às circunstâncias de lugar, o Tribunal não consegue aferir da atribuição da competência territorial para conhecer daqueles factos.
Na verdade, na fase de julgamento, a falta de indicação de factos relativos ao tempo e ao lugar da prática, surge, não como causa de nulidade da acusação, mas sim como motivo de rejeição da mesma, por ser manifestamente infundada, como resulta do disposto no art. 311º, n.ºs 2, al. a) e nº 3, al. b) – veja-se a estes propósito Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 21/04/2010 disponível em www.dgsi.pt e em que foi relator o Senhor Desembargador Gomes de Sousa – e no qual se decidiu que “ Se na acusação o local da prática do crime não está perfeitamente indicado, mas é claramente identificável através dos factos ali narrados, não ocorre ausência de factos para os efeitos do disposto na al. b) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, e daí que acusação não seja manifestamente infundada.” - jurisprudência à qual aderimos na integra.
Ora, nos presentes autos, a Acusação Pública não contém qualquer menção ao lugar da prática dos factos.
Pelo exposto, rejeita-se a Acusação do Ministério Público, deduzida contra AA e BB, por não conter os factos relativos ao lugar da prática dos factos – cfr. artigo 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b), sendo por isso, manifestamente infundada.
Notifique.
Devolva ao Ministério Público.”
O M.P. notificado do despacho proferido em 08/02/2024, apresentou o ora recurso sub judice.
Apresenta a seu favor as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES: I. Nos presentes autos os arguidos vêm acusados da prática, em autoria imediata, de um crime de receptação previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1 do Código Penal, nos termos da acusação pública de 01/10/2024, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. II. Em 13/01/2025 a Mm.ª Juiz proferiu despacho aqui em crise que rejeita a acusação pública deduzida “(…) por não conter os factos relativos ao lugar da prática dos factos – cfr. artigo 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b), sendo por isso, manifestamente infundada.(…)” e o Ministério Público não concorda com a decisão de rejeição da acusação pública, sendo este o objecto do presente recurso. III. A acusação pública deduzida nos presentes autos respeita integralmente o preceituado no art.º 283.º do Código de Processo Penal. IV. A alínea b) do n.º 3 deste art.º 283.º do Código de Processo Penal prevê que a acusação tem de conter “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;” – negrito e sublinhado nossos. V. Ora no libelo acusatório, com interesse para o presente propósito, diz-se: “-1.º- Em data e hora indeterminada, mas situada após as 20h00 do dia 27 de dezembro de 2019, os arguidos, desconhecendo-se se com contrapartida monetária, entraram de forma ilícita na posse dos seguintes bens: (…)”. VI. Resulta objectivo, do art.º 1.º da acusação supra citado, que não foi possível apurar em que momento temporal, nem em que local, os arguidos chegaram ilicitamente à posse dos objectos, nem tal se afigura possível, não obstante todas as diligências realizadas no inquérito para o efeito de determinar o momento e o lugar em que tal ocorreu. VII. E tal como estatui o art.º 283.º do Código de Processo Penal, na já citada alínea b) do n.º 3, contém, e sublinha-se, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática… VIII. Ainda que não seja expresso na acusação que os factos ocorreram em local indeterminado, tal resulta implícito do art.º 1.º da acusação pública, quando é dito que não foi apurado em que data, hora, forma e se com ou sem contrapartida monetária os objectos entraram de forma ilícita na posse dos arguidos, sendo nos demais artigos da acusação indicados os locais e demais circunstâncias onde ocorreram os factos lá descritos. IX. Não foi possível no inquérito determinar o local concreto onde ocorreram os factos, não sendo possível tal determinação, não pode considerar-se que é correcto dizer-se que a acusação é nula e infundada por não dizer em que local ocorreram os factos, por ser totalmente desconhecido e a lei só impõe que tal informação conste do libelo acusatório “se possível”. X. Decidiu o Tribunal a quo que não sendo – alegadamente – dado integral cumprimento ao art.º 283.º, nos termos do disposto no art.º 311.º do Código de Processo Penal, a acusação tinha de ser rejeitada e os vícios previstos do artigo 311.º, n.º 3, do Código de Processo Penal são de conhecimento oficioso. XI. Porém, como é bem referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 7 de Maio de 19978, a “acusação, à semelhança de qualquer outro texto, mesmo que não jurídico, não pode ser lida e interpretada sectorialmente e em função de frases isoladas, mas antes globalmente. (…) É licito ao tribunal explicar com pormenores os factos constantes do despacho acusatório e dar como assente matéria de facto que é mero desenvolvimento dos factos que dele constavam, desde que não saia do âmbito do seu conteúdo fáctico, nem com essa pormenorização agrave a posição processual do arguido”, extraindo tal conclusão das disposições conjugadas previstas nos artigos 358.º, 379.º, alínea a), 374.º, n.º 2, primeira parte, 368.º, n.º 1 e 1.º, alínea f), todos do Código de Processo Penal. XII. Apesar de no art.º 1.º da acusação pública não ser referida a impossibilidade de determinação do local onde ocorreram os factos, tal resulta objectivo do teor integral da acusação e poderia o Tribunal lançar mão do preceituado no art.º 358.º do Código de Processo Penal sem qualquer prejuízo para os arguidos ou qualquer outro interveniente processual. XIII. Deste modo e quanto a este aspecto enfatizado no despacho recorrido, pelos argumentos aduzidos e também nos termos dos Acórdãos e nos elementos doutrinários citados nas alegações e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, consideramos não existir fundamento de rejeição do despacho de acusação, que, não sendo perfeito, tem os elementos necessários para inviabilizarem a sua rejeição. XIV. O Tribunal, no momento em que cumpre o teor do artigo 311.º do Código de Processo Penal e procede à análise da acusação, não pode deixar de ter em consideração a função que a acusação reveste no processo criminal e tal como refere João Conde Correia9 tem três funções: a função de promoção processual, atendendo à estrutura acusatória do nosso processo penal (primeira parte do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), a função informativa já que o arguido passa a 8in BMJ, 467, pág. 419 e ss.. 9In ob. citada, anotação ao artigo 283.º, I – Considerações gerais, página 1189, § 2 saber exactamente o que lhe é imputado e do que tem que se defender (segunda parte do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa) e função delimitadora fixando, assim o objecto do processo (artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal). XV. Assim, não parece que que a noção de facto que consta do artigo 311.º, n.º 3, alínea b), seja coincidente, com a do artigo 283.º, n.º 3.º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e a ausência de indicação na acusação de “lugar desconhecido” ou de “local não concretamente apurado” não se nos afigura suficiente para a rejeição da acusação por a mesma ser manifestamente infundada, existindo diversos Acórdãos dos Tribunais superiores, citados nas alegações e que aqui se dão por integralmente reproduzidos. XVI. Face ao exposto, entendemos que o despacho recorrido, por ter violado o artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3 alínea b), do Código de Processo Penal, deverá ser revogado e substituído por outro que admita a acusação deduzida que imputa aos arguidos a prática, em autoria imediata, de um crime de receptação previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1 do Código Penal e, consequentemente determine o prosseguimento dos autos, e o subsequente julgamento dos arguidos, nos termos supra descritos, Desse modo, fazendo V.ªs Ex.ªs a costumada Justiça!”
Não foi apresentada resposta.
Nesta instância, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta acompanhando o recurso do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP foi apresentada resposta.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Outros atos pertinentes para a boa decisão da presente causa:
Acusação do M.P.:
“I – Foi aplicado aos arguidos AA e BB, o instituto da suspensão provisória do processo, ao abrigo do disposto no artigo 281.º do Código de Processo Penal, pelo período, respectivo de 8 (oito) e 6 (seis) meses, mediante o cumprimento da seguinte injunção:
1. AA:
a. Entregar a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros) ao Estado, através de DUC, juntando comprovativo nos autos em igual prazo;
2. BB:
a. Entregar a quantia de € 300,00 (trezentos euros) CC, através de DUC, juntando comprovativo nos autos em igual prazo.
Sucede que resulta dos autos que os arguidos não cumpriram a injunção que lhes foi proposta, o que ditará o prosseguimento dos presentes autos, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal.
***
II – Procedo à nomeação de defensor a cada um dos arguidos através do sistema SINOA.
III – Comunique aos arguidos e aos respectivos Advogados (as) a acusação que se segue, nos termos do artigo 277.º, n.º 3, aplicável ex vi artigo 283.º, n.º 5, 283.º e n.º 6, do Código de Processo Penal.
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IV – Cumpra o disposto no artigo 64.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
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V – O Ministério Público acusa, nos termos do artigo 283.º do Código de Processo Penal, para julgamento em Processo Comum perante Tribunal Singular: AA, filho de DD e de EE, nascido em 2 de Outubro de 194, natural do ..., Porto, residente no ..., Edifício ..., ..., em ..., Loulé e titular do Cartão do Cidadão n.º ...; e BB, filho de FF e de GG, nascido em ../../1953, natural de ..., Porto, residente na Rua ..., n.º ..., 1.º andar, no Porto e titular do Cartão do Cidadão n.º ...87.
porquanto indiciam suficientemente os autos que,
-1.º-
Em data e hora indeterminada, mas situada após as 20h00 do dia 27 de dezembro de 2019, os arguidos, desconhecendo-se se com contrapartida monetária, entraram de forma ilícita na posse dos seguintes bens:
o arguido BB, de um relógio da marca “...”, com o n.º de série ..., com bracelete partida, de cor preto, no valor de €111,00 (cento e onze euros), que havia sido subtraído ao ofendido CC, o qual viria a ser apreendido em 04-03-2020;
o arguido AA, de 65 relógios da marca “...”, de vários modelos e cores, para homem. senhora e criança e um relógio da marca “...”, que haviam sido subtraídos ao ofendido CC, os quais viriam a ser aprendidos em 09-04-2020.
-2.º-
Uma vez em poder daqueles bens, que fizeram seus, integraram-na nos seus respetivos patrimónios, bem sabendo que não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade do dono.
-3.º-
Com efeitos, no dia 10 de dezembro de 2019, o arguido BB, na posse do referido relógio, deslocou-se à ourivesaria denominada “A...”, sita na Rua ..., na cidade do Porto e ali mandou retirar elos da corrente e colocar pilhas.
-4.º-
No dia 04-03-2020 o relógio acabaria por ser encontrado na casa do arguido BB e apreendido.
-5.º-
Por sua vez, pretendendo vender tal relógio o arguido AA, em data não concretamente apurada colocou-o à venda na plataforma “B...”, pelo valor de € 10,00, apesar de também tentar vendê-lo através da exibição público a quem tivesse interesse.
-6.º-
Agiram os arguidos de forma livre voluntária e conscientemente, com intenção conseguida de adquirir os referidos bens mediante facto ilícito típico contra o património, e conservá-los em seu poder e deles usufruírem, para posterior venda, cientes de que os referidos bens que adquiriram, conservavam e usufruíam retirados ilicitamente ao seu legítimo dono.
-7.º-
Sabiam, também, que as respectivas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.
Incorreram pelo exposto, cada um dos arguidos, em autoria imediata, na prática um crime de receptação previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1 do Código Penal.
***
PROVA Testemunhal:
1) CC (id. a fls. 271); e
2) HH, Militar da G.N.R. identificado com o número ... (id. fls. 286 e 385).
Documental:
A dos autos, designadamente:
1. O auto de notícia de fls. 3 a 7;
2. Os aditamentos de fls. 9-10 e 385-389;
3. Os fotogramas de fls. 11-17, 204 a 304, 391-412 e 418;
4. A listagem de bens de fls. 18 a 49 e 55 a 86;
5. Os autos de apreensão de fls. 94, 95, 415, 417;
6. O auto de visionamento de imagens de fls. 98 a 102 (cd fls. 104);
7. O auto de busca e de apreensão e suporte fotográfico de fls. 236 a 248 e 284 a 286;
8. Os autos de reconhecimento de objetos de fls. 281 e 419;
9. Os termos de entrega de fls. 282-283 e 289 a 281; 332 a 335; 420, 421, 422; e
10. Os C.R.C.’s de fls. 604-614« e 615-615 verso.
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MEDIDA DE COACÇÃO
Nada a requerer, uma vez que se nos afigura adequado, proporcional e suficiente o termo de identidade e residência, já prestado pelo arguido a fls. 255 e 424. “
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir a seguinte questão:
A acusação inicial rejeitada por alegadamente não especificar o local onde os arguidos entraram ilicitamente na posse dos bens.
*
A acusação pública foi rejeitada por um despacho proferido em 13/01/2025 no âmbito do Processo Comum Singular n.º 308/19.1GHVNG, no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia – J3.
A razão expressa para a rejeição foi o facto de a acusação "não conter os factos relativos ao lugar da prática dos factos".
Esta omissão levou o Tribunal a considerar a acusação "manifestamente infundada", nos termos do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b) do Código de Processo Penal (CPP)
O despacho de rejeição fundamentou que a falta absoluta de factos relativos às circunstâncias de lugar impedia o Tribunal de aferir a atribuição da competência territorial para conhecer dos factos.
Entendeu-se que, na fase de julgamento, a falta de indicação do lugar da prática dos factos surge como motivo de rejeição por ser manifestamente infundada, e não como causa de nulidade sanável.
O recurso visa a revogação do despacho de rejeição e a sua substituição por outro que admita a acusação e determine o prosseguimento dos autos e o subsequente julgamento dos arguidos.
O Ministério Público argumenta, no recurso, que a omissão do lugar da prática dos factos não é suficiente para a rejeição da acusação, pois a lei (Artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP) apenas exige a indicação do lugar "se possível".
Alega que, no caso, não foi possível apurar o local exato.
Em prol da posição defendida pelo recorrente é mencionada a seguinte jurisprudência: Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/07/2018: Este acórdão é citado para sustentar que a invocação do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d) (nota: o despacho recorrido aplicou a alínea b) do n.º 3, mas a ideia geral sobre a irrelevância da omissão é aplicável) do Código de Processo Penal (CPP) carece de sustentação legal quando a causa é apenas a omissão na acusação da referência ao lugar da prática dos factos. Para que haja rejeição com base na irrelevância penal, a irrelevância deve ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06/10/2015: Este acórdão é usado para argumentar que a rejeição da acusação por ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.º 3 do CPP, é de aplicação relativamente excecional. A posição defendida no despacho recorrido, que rejeita a acusação por omitir o lugar da prática dos factos, é considerada excessiva e desproporcional. O acórdão citado compreende a dificuldade em concretizar rigorosamente o lugar da prática dos factos, especialmente em certas formas de transmissão. Sugere que, se o vício (como a falta de requisitos da acusação) é cominado com nulidade sanável (artigos 119.º a contrario e 120.º do CPP), não seria compreensível a rejeição imediata se a deficiência fosse manifestamente suprível. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015: Este acórdão é citado explicitamente para afirmar que a falta de indicação do lugar da prática do crime não pode determinar a rejeição da acusação. Argumenta que a omissão desse elemento não equivale a uma acusação que "não contém a narração dos factos", nos termos do artigo 311.º, n.º 3, alínea b). Consequentemente, a decisão que rejeitou a acusação com base nessa omissão deveria ser revogada. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 1997: Embora não aborde diretamente a omissão do lugar, este acórdão é citado para fundamentar que a acusação deve ser lida e interpretada globalmente e não de forma setorial ou por frases isoladas. Permite que o tribunal explique com pormenores factos constantes da acusação ou dê como assente matéria de facto que seja mero desenvolvimento dos factos nela contidos, desde que não se saia do âmbito do conteúdo fáctico nem se agrave a posição do arguido.
O MP argumenta que, mesmo que a impossibilidade de determinar o local não fosse expressa, resultaria do teor integral da acusação e o tribunal poderia recorrer ao disposto no artigo 358.º do CPP para desenvolver os factos, sem prejuízo para os arguidos. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/10/2006: Este acórdão é invocado para contextualizar o papel do juiz de julgamento no sistema acusatório e a função restritiva do artigo 311.º do CPP.
O MP usa este acórdão para argumentar que o artigo 311.º se destina a evitar que "casos extremos de iniquidade da acusação conduzam a julgamento um cidadão", e que a sua aplicação deve ser tendencialmente taxativa e restritiva para evitar o risco de inconstitucionalidade. As alíneas do n.º 3 do artigo 311.º consagram nulidades extremadas da acusação, em contraposição com as nulidades sanáveis previstas no artigo 283.º, n.º 3. O MP infere disto que a omissão do lugar, especialmente quando não foi possível apurar, não se enquadra nestes casos extremos que justificam a rejeição sumária.
Como argumentos doutrinários tem-se em conta: Funções da Acusação: Segundo João Conde Correia destacam-se três funções da acusação no processo penal português, em virtude da sua estrutura acusatória:
◦Função de Promoção Processual: A acusação é o ato que impulsiona o processo para a fase de julgamento, em conformidade com o princípio acusatório (artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa).
◦Função Informativa: A acusação garante que o arguido é cabalmente informado sobre os factos específicos que lhe são imputados, permitindo-lhe exercer o seu direito de defesa (segunda parte do artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa).
◦Função Delimitadora: A acusação fixa e delimita o objeto do processo que será levado a julgamento (artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal), impedindo que o tribunal julgue para além dos factos nela contidos.
•Exaustividade e Arquivamento Implícito: Citando-se João Conde Correia a indicação dos factos na acusação deve ser exaustiva, de modo a esgotar o objeto do processo. Isto implica que factos que não sejam incluídos na acusação "jamais poderão ser considerados, integrando uma espécie de arquivamento implícito".
A defesa do arguido não pode ser prejudicada por omissões do Ministério Público.
•Noção de "Facto" para Efeitos de Rejeição vs. Acusação: Com base nas funções da acusação e na distinção entre os artigos 283.º e 311.º do CPP, a noção de "facto" para efeitos de rejeição da acusação por ser manifestamente infundada (artigo 311.º, n.º 3, alínea b)) pode ser mais restritiva do que a exigida para a narração na acusação (artigo 283.º, n.º 3, alínea b)), circunscrevendo-se talvez apenas aos elementos objetivos e subjetivos do crime. A ausência da indicação de "lugar desconhecido" ou "local não concretamente apurado", por si só, não seria suficiente para considerar a acusação manifestamente infundada.
Reforça-se a ideia de que a acusação, mesmo com a omissão do local, decorrente da impossibilidade de o apurar. (situação prevista no art. 283.º, n.º 3, alínea b) que exige o local "se possível"), cumpre as suas funções essenciais de delimitação do objeto e de informação para a defesa, não configurando um vício estrutural que justifique a rejeição sumária nos termos do artigo 311.º do CPP.
Em suma, a simples omissão do lugar da prática dos factos (ainda para mais, quando não foi possível apurá-lo e a lei - art.º 283.º, n.º 3, alínea b) - só o exige "se possível") não torna a acusação manifestamente infundada nem constitui um vício de tal gravidade que justifique a sua rejeição imediata, devendo o tribunal interpretar a acusação globalmente e, se necessário, recorrer a mecanismos como o artigo 358.º do CPP.
Donde resulta que a acusação pública sub judice cumpre o disposto no artigo 283.º do CPP. O artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP exige a indicação do lugar, do tempo, etc., "se possível".
No caso concreto, o artigo 1.º da acusação indica que não foi possível apurar em que momento temporal os arguidos chegaram ilicitamente à posse dos objetos.
No conjunto do texto da acusação do M.P, não resulta qual local inicial em que os objetos chegaram ilicitamente à posse dos arguidos.
A impossibilidade de determinar o local concreto impede a sua indicação na acusação, e a lei só impõe essa informação "se possível".
Portanto, não é correto considerar a acusação nula e infundada pela omissão do local quando este é totalmente desconhecido.
Apesar de a impossibilidade de determinação do local não ser expressamente referida no artigo 1.º da acusação, ela resulta objetivamente do teor integral da acusação.
O Tribunal sempre poderá recorrer ao artigo 358.º do CPP para desenvolver factos, nomeadamente o local da prática, que são mero desenvolvimento dos constantes da acusação, sem prejuízo para os arguidos.
A falta de indicação do lugar da prática do crime não pode determinar a rejeição da acusação com base no artigo 311.º do CPP.
Conforme decorre do disposto no artigo 311º nºs 2 e 3 do Código de Processo, 2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
E, para este efeito, considera-se manifestamente infundada a acusação: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime.
Como bem frisa a Srª PGA neste tribunal:” E em abono do entendimento sustentado o Tribunal recorrido invoca Acórdão de 21/04/2010, do Tribunal da Relação de Coimbra que afirma justamente o contrário, pois nele se decidiu: «Se na acusação o local da prática do crime não está perfeitamente indicado, mas é claramente identificável através dos factos ali narrados, não ocorre ausência de factos para os efeitos do disposto na al. b) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, e daí que acusação não seja manifestamente infundada.» (Proc. nº 51/06.1TAFZZ.C1, Relator Desemb. Gomes Sousa) (…) A expressão “se possível” prevista no art.º 283°, n.°3, al. b), do Código de Processo Penal, apenas poderá ser interpretada no sentido de que poderão existir casos em que tal possibilidade de narração de factos do lugar não ocorra. Na certeza de que tal se não traduz num facto essencial por não constituir elemento essencial ao preenchimento do tipo de ilícito penal imputado aos arguidos. Na verdade, a acusação não contém, por impossibilidade, o local onde os arguidos «entraram de forma ilícita na posse dos bens», todavia tal não impede a contextualização espácio-temporal dos factos nem belisca as garantias de defesa dos arguidos, pois que no libelo acusatório se concretizou que após aqueles factos outros ocorreram nos seguintes locais: - na Rua ..., na cidade do Porto; - casa do arguido BB; - venda na plataforma “B...”. E é manifesto que se não pode afirmar, como se afirma na decisão recorrida, que «em face absoluta da falta de tais factos relativos às circunstâncias de lugar, o Tribunal não consegue aferir da atribuição da competência territorial para conhecer daqueles factos.» Na verdade, o legislador acautelou devidamente a questão da competência territorial nos casos em que é desconhecida ou duvidosa a localização do elemento relevante para determinação da competência territorial - cfr. art. 21º do CPP – situação que, de resto, é cada vez mais frequente, bastando para tanto pensar nas situações, cada vez mais frequentes, da comissão de crimes por via informática. Em suma, a questão da competência territorial resolve-se dentro do quadro normativo estabelecido nos art.ºs 19º a 23º do Código de Processo Penal e não pela via da rejeição da acusação.”
De facto, o art. 21º do CPP estabelece uma regra de competência territorial para crimes de localização duvidosa ou desconhecida, havendo dúvidas sobre a localização da consumação do crime, por o mesmo ter ocorrido em áreas territoriais limítrofes ou diversas, ou se a localização da consumação do crime for de impossível apuramento, será competente o tribunal (e o M.P. art. 264º) onde primeiro tiver havido noticia do crime e tendo por referência o que estipula o art. 7º do Código Penal (Lugar da prática do facto)
A indicação na acusação do lugar em que ocorreram os factos está sujeito a um juízo de possibilidade, pelo que sobre este tipo de omissão não incide o vício da nulidade, exceto se a omissão for indispensável para a integração dos elementos objetivos do crime acusado. Não o sendo, como é o caso dos autos, tal omissão não constitui qualquer óbice à boa defesa dos arguidos, podendo ser suprida em julgamento, não representando qualquer alteração substancial de factos.
Repare-se que a rejeição da acusação sustentada no art. 311º, n º 3, al. b), reporta-se à ausência total da narração dos factos e diz respeito à ausência de factos típicos (não existência de factos com relevo jurídico) que consubstanciam a relação penal, o que não é manifestamente o caso dos autos atendendo ao teor da acusação no seu todo.
Por sua vez, a omissão do art. 311º, n º3 al. d), reporta-se a acusação que não contenha factos que preencham a tipicidade criminal, ou seja, trata-se de uma questão de subsunção jurídica dos factos acusados às normas penais acusadas.
A irrelevância penal que justifica a rejeição ao abrigo do artigo 311.º deve ser manifesta, indiscutível e inequívoca, o que não acontece pela simples omissão do lugar.
A aplicação do artigo 311.º deve ser excecional e restritiva, e a omissão do lugar, especialmente quando não foi possível apurar, não constitui um vício de tal gravidade (uma "nulidade extremada") que justifique a rejeição sumária, ao contrário das nulidades previstas no artigo 283.º, n.º 3 do CPP.
Não existe fundamento para a rejeição da acusação, a qual, embora possa não ser "perfeita", contém os elementos necessários para inviabilizar a sua rejeição.
Concorda-se, pois, com o recurso do M.P a quo.
Pelo que se impõe a revogação do despacho recorrido, substituído por outro que admita a acusação deduzida contra os arguidos e determine o prosseguimento dos autos e o subsequente julgamento dos arguidos.
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DISPOSITIVO:
Nos termos apontados, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso revogando a decisão a quo, a qual deve ser substituída por outra que admita a acusação, determinando o prosseguimento dos autos e subsequente julgamento dos arguidos.
Sem custas.
Elaborado e revisto pelo relator.
Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 11 de junho de 2025
Paulo Costa
Madalena Caldeira
Raúl Esteves