INSOLVÊNCIA
VIOLAÇÃO GRAVE DO DEVER DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
EFEITOS
Sumário

I - Na qualificação da insolvência como culposa, decorrente do incumprimento grave do dever de apresentação à insolvência, a lei exige a prova de que essa omissão agravou esse estado no período suspeito, ou seja, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
II - O comportamento prejudicial ao interesse dos credores, anterior a esse período de três anos, ainda que subsumível nas hipóteses legais demonstrativas de uma insolvência culposa, nenhuma relevância jurídica assume, devendo a insolvência ser qualificada como fortuita.
II - O vencimento de juros não é considerado factor de agravamento da insolvência.

Texto Integral

Processo n.º 2353/22.0T8VNG-A.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunto: João Diogo Rodrigues

Adjunta: Alexandra Pelayo


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO

O credor AA, em 23 de Março de 2022, requereu a qualificação da insolvência como culposa, e, nessa sequência, a afectação do gerente da devedora, BB, com as correspondentes sanções de inibições legais pelo período de 8 anos.

Alegou, para tanto, que aquele gerente incumpriu com o dever de apresentação da sociedade devedora à insolvência nos termos legalmente previstos já que terá iniciado os seus incumprimentos perante os credores em fevereiro de 2009, tendo dívidas quer perante a Fazenda Pública, quer perante a Segurança Social Portuguesa, ao que ainda acresce o facto de, desde o ano de 2014, não terem sido depositadas as contas anuais na Conservatória do Registo Comercial competente, e de o gerente ter dissipado património da insolvente, com prejuízo para os credores.


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A Sr.ª Administradora da insolvência apresentou o seu parecer no qual propôs a qualificação da presente insolvência como culposa, nos termos do disposto no art.º 186.º, n.º 3, alíneas a) e b), e n.º 2, alíneas d), h) e i), todos do CIRE, devendo ser atingido por essa qualificação o sócio gerente BB.

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Declarado formalmente aberto o presente incidente, por despacho datado de 15.12.2022, foi cumprido o disposto no art.º 188º, n.º 7, do CIRE e o Ministério Público propôs que a insolvência fosse qualificada como culposa, reputando verificadas as situações previstas no art.º 186.º, n.ºs 1, 2, alíneas d), h) e i), e n.º 3, alíneas a) e b), do CIRE, devendo ser afectado o requerido BB, já devidamente identificado nos autos.

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Citado o gerente da devedora e notificada a sociedade insolvente, deduziu oposição impugnando os factos já aduzidos aos autos, designadamente:

.alertando para o facto de a dívida inicial existente para com o credor requerente do presente incidente já ter sido liquidada, e que o valor global alegado/reclamado pelo aludido credor se encontrar a ser discutido em acção própria ainda pendente;

.negando qualquer dolo na alegada falta de colaboração imputada ao gerente por banda da Sr.ª administradora da insolvência, desde logo a sua parca escolaridade, e apresentou a versão de que nunca foi equacionada a possibilidade de os credores serem prejudicados, em face da existência de património pessoal por banda do gerente (imóveis de elevado valor), património este que sempre seria destinado, em última instância, à satisfação dos créditos reconhecidos na insolvência (designadamente ao Estado e à Segurança Social).


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A insolvência foi declarada em 04/09/2022.

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O processo principal veio a ser encerrado por insuficiência da massa insolvente, em razão do que se deixou consignado que o presente incidente assume os seus trâmites processuais como incidente limitado.

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Foi proferido despacho saneador, no qual se tomou conhecimento das excepções deduzidas quer pelo credor requerente quer na oposição junta aos autos, julgando-as improcedentes, e se delimitaram e identificaram os temas da prova, nos termos exarados no despacho datado de 28.05.2023.

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Proferiu-se sentença que decidiu:

-qualificar a insolvência de “A..., Lda”, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, como culposa;

-ser pessoa afectada pela presente qualificação o gerente da Insolvente, BB;

-decretar a inibição de BB para administrar património de terceiros, por um período de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses;

-decretar a inibição para o exercício do comércio do requerido BB durante um período de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;

-condenar BB a indemnizar os credores da devedora insolvente, reconhecidos na lista mais recente apresentada pela administradora da insolvência, no montante de 50% dos créditos não satisfeitos até à presente data (metade de € 117.642,81), acrescido do montante de € 8.245,76 (devendo contabilizar-se eventuais abatimentos que tenham vindo a ocorrer), até às forças do seu respectivo património.


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Inconformado com a decisão, o Requerido interpôs recurso finalizando com as seguintes

Conclusões

1. Desde logo deve ser conferido efeito suspensivo ao presente recurso pelos motivos acima expostos.

2. Posto isto:

3. Este processo de insolvência poderia ter tido outro curso se a sua contestação nos autos principais não tivesse sido desentranhada por falta de pagamento da taxa de justiça e consequentemente tenha sido declarada insolvente por falta de contestação.

4. O requerente deste incidente, já recebeu todo o montante que lhe era devido (facto que a Insolvente e o seu gerente tiveram que batalhar bastante para ver reconhecido nos presentes autos).

5. Também as dívidas ao Estado se encontram com acordos celebrados e em pagamento.

6. É certo que as obrigações contabilísticas nem sempre foram devidamente respeitadas, porém e conforme testemunho da própria contabilista, estas falhas não são imputáveis à sociedade ou ao seu gerente, mas antes à empresa que assumiu a contabilidade da empresa, conforme se demonstrou supra.

7. O testemunho da Contabilista certificada CC (que não foi indicada pela insolvente ou pelo seu gerente) foi fundamental para compreender o sucedido com esta sociedade e a ausência de culpa (ou pelo menos de culpa grave ou dolo) do Sr. BB.

8. O gerente da insolvente tudo fez para inverter a situação em que sociedade se encontrava, procurando honrar, dentro do possível, todos os seus compromissos – evolução que é visível nestes autos, como raramente será nos demais processos de insolvência.

9. Além das entidades públicas, que se encontram regularizadas (com acordos em cumprimento), apenas são reconhecidas duas letras vencidas em 2009, que a insolvente realmente não conseguiu juntar os comprovativos do seu pagamento (por não os encontrar), mas cuja prescrição foi alegada.

10.Se o Tribunal a quo teve a sensibilidade de compreender o esforço feito para redução tão substancial (quase 50%) do passivo societário, num período de tempo reduzido, não logramos compreender a condenação sentenciada.

11.É certo que o desconhecimento da Lei não aproveita aos seus infratores e que o Tribunal a quo não considerou provada a falta de habilitações literárias e o percurso laboral desde tenra idade do gerente da insolvente, embora faça alusões a uma perceção de “ingenuidade” não desculpante dos atos que qualifica como culposos (cfr. pág. 25 da sentença), no entanto, se ponderarmos esta factualidade e a conjugarmos com a fundamentação de Direito, verificamos que não se encontravam preenchidos os pressupostos para a condenação como culposa do presente incidente.

12.Não estão preenchidos os pressupostos do artigo 186º do CIRE porquanto não houve dolo ou culpa grave, nem é referida qualquer factualidade dos últimos 3 anos prévios à declaração de insolvência.

13.Não é apontada na sentença recorrida qualquer factualidade relativa aos anos 2019, 2020, 2021 e 2022, sendo apenas discutidas questões relativas a anos anteriores.

14.As dívidas originárias eram de expressão reduzida no computo do passivo da sociedade (estando incrivelmente inflacionadas por juros e despesas e ainda assim sendo de montante reduzido na expressão do passivo).

15.Estes títulos de crédito estão prescritos.

16.Assim como foi difícil para esta sociedade apresentar todos os elementos contabilísticos que lhe foram exigidos, também é muito complicado fazer prova do cumprimento de uma obrigação de 2009.

17.O próprio Tribunal a quo reconhece ao longo da sentença que culpa do Requerido/Gerente BB e, consequentemente, da insolvente, não é muito elevada, mencionando até por vezes que lhe percecionou alguma “ingenuidade” que não considerou no entanto como desculpante.

18.Razão pela qual a insolvência não deve ser considerada culposa mas sim fortuita.

19.Dado que não houve conduta do sócio-gerente BB que preencha os requisitos que levem à insolvência culposa.

20.Revogando-se assim a decisão anterior por outra que decida nestes termos.


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II—Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se a insolvência deve ser qualificada como culposa.[1]


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III—FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS (elencados na sentença)

1.A insolvente é uma sociedade comercial cujo objecto social se destinava a fabricação e comercialização de produtos alimentares e bebidas, nomeadamente pão, bolos, doces e produtos de pastelaria e confeitaria, bem como tabaco, jornais, revistas, brindes e lembranças; exploração de café e snack-bar, com um capital social de € 25.000,00, composto por duas quotas, a saber, uma no valor de € 5.000,00 pertencente a BB e uma outra no valor de € 20.000,00 pertencente à sociedade por quotas unipessoal B..., Unipessoal, Lda.;

2.Na estrutura societária da insolvente não ocorreram quaisquer alterações, tendo o sócio BB se mantido sempre na sua gerência, sendo que a última factura comunicada pela insolvente à Autoridade Tributária respeita a fevereiro de 2015, encontrando-se com a sua actividade cessada, em sede de IVA, com efeitos desde 31.03.2015, nos termos do art.º 34.º, n.º 1, alínea b), do CIVA;

3.À data em que foi decretada a sua insolvência – 04.09.2022 -, a insolvente já se encontrava inactiva e sem trabalhadores ao seu serviço;

4.A administradora da insolvência notificou a insolvente, na pessoa do seu ilustre mandatário, para a entrega de um conjunto de elementos tidos por necessários para a elaboração do relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, entre eles os mencionados no art.º 24.º do CIRE e os da sua contabilidade (devidamente descritos e aduzidos no parecer da administradora da insolvência, que aqui se dão por reproduzidos, por razões de brevidade processual), tendo a devedora A..., por comunicação de 30.09.2022-na pessoa do seu ilustre mandatário– solicitado prorrogação do prazo para apresentação dos elementos solicitados, até ao dia 06.10.2022, sendo que aos 13.10.2022 ainda nada havia sido disponibilizado ou entregue à Sr.ª administradora da insolvência;

5.A sociedade insolvente foi notificada pela administradora da insolvência para disponibilizar a senha de acesso ao Portal da AT, atendendo a que desta forma seria possível de forma mais expedita aceder às contas anuais da insolvente e as declarações fiscais ainda disponíveis para consulta, tendo a insolvente referido que iria solicitar junto da AT nova senha de acesso por o TOC anteriormente responsável pela contabilidade ter deixado de exercer a sua actividade;

6.Aos 13.12.2022, a insolvente foi novamente notificada para entrega à administradora da insolvência dos elementos já anteriormente solicitados, em face do que informou ser detentora de 21 capas A4 relativas à contabilidade da A..., que se disponibilizava a entregar, em face do que veio a Sr.ª administradora a deslocar-se ao escritório do ilustre mandatário da insolvente no dia 14.10.2022 com vista à recolha dos aludidos 21 dossiers;

7.Analisado o teor dos mencionados dossiers, verificou-se que nenhum continha os documentos referentes ao dossier fiscal da insolvente, nem nenhum documento complementar àquele, tais como Balancetes, Demonstrações Financeiras, Modelo 22, IES ou mapas de elementos do activo, contendo apenas documentos referentes aos diários de compras, vendas, bancos (estes sem quaisquer extratos bancários completos e sequenciais);

8.Os elementos disponibilizados referidos em 7) não permitem nem permitiram conhecer a real situação patrimonial, económica, e financeira da A..., Lda., não tendo sido entregues à administradora da insolvência nenhum dos documentos a que alude o art.º 24.º do CIRE nem prestada informação acerca da identificação do contabilista certificado, nem mesmo facultada a senha de acesso ao Portal da Autoridade Tributária;

9.Em face da relatada falta/deficiência de elementos fornecidos à administradora da insolvência, não logrou esta apurar as reais causas que levaram à situação insolvencial da sociedade devedora, não se tendo mostrado possível a avaliação da concreta posição económico-financeira da dita sociedade;

10.A insolvente exerceu a sua actividade enquadrada no regime normal trimestral de IVA, tendo apresentado contas anuais (IES) até ao exercício de 2013 inclusive, sendo que a prestação de contas individual do exercício de 2010 foi apresentada sem valores - conforme documento n.º 3 junto com o parecer da administradora da insolvência, que aqui se dá por reproduzido (fls.38 verso a fls. 151 deste apenso) – não obstante a devedora ter exercido actividade no exercício de 2010, gerando receitas e suportando despesas nesse mesmo exercício;

11.A prestação de contas individual do exercício de 2013 foi apresentada com os mesmos valores do exercício de 2012, não obstante a A... ter exercido actividade no exercício de 2013, gerando receitas e suportando despesas nesse mesmo exercício;

12.A A... não apresentou as contas anuais respeitantes aos exercícios de 2014 e 2015, pelo que não foi cumprida a obrigação legal estipulada no art.º 70.º do CSC relativamente aos exercícios desses anos, não obstante ter tido actividade comercial;

13.A A... não apresentou as declarações fiscais em sede de IRC relativamente aos últimos cinco exercícios, não tendo sido possível à administradora da insolvência percepcionar se as dos períodos subsequentes foram ou não entregues;

14.A sociedade devedora não disponibilizou à AI os relatórios de gestão, desconhecendo-se se foi ou não cumprido o preceituado nos art.ºs 65.º e 66.º do CSC;

15.A contabilidade da devedora insolvente tem como responsável técnico no cadastro da AT a Contabilista Certificada CC, tendo a administradora da insolvência notificado a sociedade que executou a elaboração da contabilidade da A... desde o exercício de 2010 para a entrega dos dossiers fiscais respeitantes aos últimos exercícios de actividade, o que não se mostrou possível por alegadas razões de transferência de ficheiros e do sistema informático para outra empresa, bem como ao alegado facto de a Contabilista que se encarregava dos dados da insolvente ter deixado de colaborar com aquela empresa em data concretamente não apurada mas sempre entre finais de 2018 e abril de 2019;

16.A partir dos (escassos) elementos contabilísticos a que a AI teve acesso, e através da análise aos valores inscritos nos exercícios de 2011 e 2012, verificou-se que o volume de negócios da A... variou de forma negativa do ano de 2011 para 2012;

17.Da análise às declarações periódicas trimestrais do IVA dos anos de 2013 e de 2014, verificou-se que a tendência decrescente do volume de negócios se manteve, pois as transmissões de bens e prestações de serviços de 2013 situaram-se nos € 105.801,47 e de 2014 nos € 94.214,56;

18.No primeiro trimestre do ano de 2015 – trimestre em que a sociedade insolvente cessou a actividade em IVA, o que ocorreu mais precisamente em 31.03.2015 – as vendas e prestações de serviços apresentam um valor de € 28.739,68;

19.Ao abrigo do disposto no art.º 129.º do CIRE, foram reconhecidos créditos sobre a insolvência no valor global de € 211.213,90 (duzentos e onze mil duzentos e treze euros e noventa cêntimos), sendo € 21.241,50 de natureza privilegiada (art.º 98.º do CIRE), € 189.928,36 de natureza comum, e € 44,05 de carácter subordinado;

20.Foram reconhecidos, pela Sr.ª administradora da insolvência, ao credor Segurança Social Portuguesa créditos no valor global de € 59.576,84, por referência à falta de pagamento das contribuições e cotizações reportadas aos meses de março de 2009 a dezembro de 2009, janeiro 2010 a junho de 2010, agosto de 2010 a novembro de 2010, janeiro de 2011 a dezembro de 2011, janeiro de 2012 a junho de 2012, agosto de 2012, outubro de 2012 a dezembro de 2012, janeiro de 2013, setembro de 2013 a dezembro de 2013, janeiro de 2014 a dezembro de 2014, janeiro de 2015 a maio de 2015, tudo como flui do apenso B, cujo processado aqui se dá por reproduzido, para os devidos e legais efeitos;

21.À Autoridade Tributária e Aduaneira foi reconhecido pela administradora da insolvência, o valor global de € 23.035,45 respeitante ao IRC dos anos de 2008 e 2015, IRS dos anos de 2009 a 2014, IVA referente aos anos de 2009, 2010 e 2012, e encargos, coimas e custas, tudo como flui do teor do processado junto ao apenso B, que aqui se dá por reproduzido;

22.Foram reclamados créditos (reconhecidos pela AI) pela Banco 1..., S.A., e pelo Banco 2..., S.A., respeitante a duas letras em que é sacada a A... vencidas em 22.06.2009 e 22.07.2009 no valor de, respectivamente, € 14.866,06 e € 13.214,28;

23.Nas IES do exercício de 2012, a A... apresentava um activo dividido em corrente e não corrente (consoante o que é exigível a curto ou médio/longo prazo, sendo que a rubrica de ativos fixos tangíveis – em 2012 – apresentava um valor contabilístico de € 45.333,68, desconhecendo-se qual o valor da rúbrica de activos fixos tangíveis por reporte aos anos seguintes, atenta a ausência de elementos contabilísticos;

24.Aos 31.03.2015, a sociedade “A..., Lda.” vendeu à sociedade “C..., Lda.”, NIPC ..., vários equipamentos (activo fixo tangível), pelo preço de € 8.245,76 acrescido de IVA, designadamente, vestiários, mesas e cadeiras, forno e estufa, armário mural, frigorífico, utensílios de cozinha, máquina de tabaco, equipamento administrativo, mobiliário de escritório, equipamento informático, arca congeladora, LCD 42 com suporte, equipamento ..., entre outros, tudo conforme cópia da factura n.º ... de 31.03.2015 junta como documento 23 no parecer da Sr.ª Administradora da insolvência (fls. 218 verso deste apenso), e que aqui se dá por reproduzida;

25.A sociedade insolvente foi notificada pela administradora da insolvência para entregar a relação de bens consagrada na norma constante do art.º 24.º, n.º 1, alínea e), do CIRE, sendo que nada veio dizer ou requerer a esse título, nem entregou qualquer activo para efeitos de arrolamento e apreensão a favor da massa insolvente;

26.Desde 20.12.2017, a insolvente constava na Lista Pública de Execuções por inexistência de bens penhoráveis;

27.As últimas facturas comunicadas pela A... à AT foram emitidas em fevereiro de 2015, num total de € 3.725,00, conforme documento junto com o parecer da AI sob o n.º 24, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

28.A sociedade “C..., Lda.” mencionada em 24), foi constituída em 02.02.2015, com o objecto societário de “fabricação e comercialização de produtos alimentares e bebidas, nomeadamente, pão, bolos, doces e produtos de pastelaria e confeitaria, bem como tabaco, jornais, revistas, brindes e lembranças; exploração de café e snack-bar”, tendo fixado a sua sede social na Rua ..., ... (vide certidão junta com o parecer da AI como documento 25, que aqui se dá por reproduzido);

29.O capital social da «C..., Lda.» é constituído, desde o início da sociedade, por duas quotas, uma no valor de € 4.500.00 pertencente a DD (NIF ...) e outra no valor de € 500,00 pertencente a “B... Unipessoal, Lda.” (sócia da A...);

30.A gerência da “C..., Lda.”, ficou confiada ao requerido BB;

31.Aquando da elaboração do parecer da Sr.ª Administradora da Insolvência, a sociedade que se encontrava a explorar o estabelecimento comercial outrora explorado pela A... era a sociedade “D..., Lda.”, NIPC ..., constituída em 22.02.2021, com o objecto societário “Pastelaria, fabrico de pão e bolos, serviço de esplanada, venda de tabaco, restauração com lugares ao balcão”, tendo a sua sede social sido fixada na Rua ..., ...;

32.O capital social da sociedade aludida em 31) é constituído por duas quotas, uma no valor de € 300,00 (trezentos euros), pertencente a BB e outra no valor de € 700,00 (setecentos euros) pertencente a B... UNIPESSOAL, Lda., sendo que a sua gerência ficou confiada a BB (sócio e gerente da insolvente A...);

33.Não obstante a inactividade da A... desde o ano de 2015, continuou a ser feita publicidade à denominação “A...”, designadamente nos blackout´s que no estabelecimento comercial ainda permaneciam e da publicidade afixada no exterior;

34.Em alguns dos documentos consultados pela administradora da insolvência verificou-se que a morada « Rua ..., ...» embora não sendo o local da sede da insolvente era também utilizada pela insolvente como sendo a morada do seu estabelecimento, pelo que, não obstante a A... ter a sua sede social fixada na Rua ..., ..., também usava a morada Rua ..., ..., como morada associada ao seu estabelecimento comercial (o estabelecimento tem acesso por ambas as ruas);

35.Apesar de desde o ano de 2009, a A... ter obrigações vencidas, continuou a exercer a sua actividade até 31.03.2015, nunca se tendo apresentado à insolvência;

36.Ao não se ter apresentado à insolvência, a insolvente, através da pessoa do seu gerente, deu continuidade à sua exploração (deficitária), acumulando novas dívidas, designadamente perante a Fazenda Nacional e à Segurança Social, situação que o aludido gerente não podia ignorar, o que provocou incremento do seu passivo;

37.Pelo menos, desde 31.03.2015 – data em que cessou a sua actividade em termos de IVA e em que transmitiu todo o activo que lhe era conhecido (a favor da sociedade “C..., Lda.”) que não é conhecido qualquer giro comercial à insolvente, estando a mesma incapaz de gerar meios financeiros capazes de saldar o seu passivo, apresentando nessa altura um passivo de valor não inferior a € 190.692,63, sendo que 42% desse passivo era devido ao ESTADO (AT e SS);

38.Aos 20.12.2017, a A... é inscrita na Lista Pública de Execuções pelo motivo aposto de “inexistência de bens”;

39.Por virtude dos factos aludidos em 37) e 38), a não apresentação da A... à insolvência nos anos de 2009 a 2012, agravou a sua situação insolvencial, facto que o requerido, enquanto seu gerente, não podia desconhecer;

40.O requerido BB exerceu sempre as funções de gerente da insolvente, decidindo os destinos da mesma;

41.O requerido diligenciou por entregar e amortizar a dívida ao credor requerente da insolvência AA, após ter havido lugar a transação homologada em 20.05.2015 no âmbito do processo n.º 218/14.9T8VNG, no valor global contabilizado pela administradora da insolvência em 78.000,00 €, tudo como flui da lista anexa à exposição de 29.06.2023 da AI junta ao apenso B, que aqui se dá por reproduzida, para os devidos e legais efeitos;

42.No âmbito da lista de créditos actualizada (a 29.06.2023) junta pela AI no âmbito do apenso de reclamação de créditos, foi reconhecido ao credor requerente da insolvência, o crédito de € 38. 165,98, sendo que € 28.944,36 foram ali insertos sob condição suspensiva, por forma a remeter o concreto valor em dívida para o que vier a resultar da decisão a ser proferida pelos embargos de executado pendentes a tal respeito, por referência à interpretação do que as partes haverão estipulado a título de cláusula penal no acordo almejado entre ambas em processo judicial);

43.O aqui credor requerente deixou de figurar como credor na lista mais recente actualizada pela administradora da insolvência, uma vez que o seu crédito veio a ser satisfeito;

44.Na decorrência da dívida da sociedade insolvente perante a Segurança Social Portuguesa, houve lugar a reversão, estando o requerido BB a efectuar pagamentos àquela entidade, tudo como flui dos documentos juntos a este apenso com a exposição de ref.ª 46847495;

45.O requerido tem 53 anos de idade, e é empresário do ramo da hotelaria;

46.Não foram apreendidos quaisquer bens a favor da massa insolvente – à excepção de um saldo de € 216,01 -, tendo o processo principal sido encerrado por insuficiência da massa insolvente por despacho proferido em 15.12.2022;

47.Na lista de créditos mais recente – devidamente actualizada em 29.01.2025 – a administradora da insolvência fez saber que os créditos que se mantém operantes são os dos credores Autoridade Tributária (€ 24. 213,22), os da Segurança Social (€ 49.793,96), os da Banco 1... (€ 23.056,70), e os do Banco 2... (€ 20.578,93) – todos eles comuns e em parte subordinado, totalizando a globalidade do passivo o montante de € 117.642,81, tudo como flui da exposição e lista anexa à mesma com a ref.ª 51178167, que aqui se dá por integralmente reproduzida, para os devidos e legais efeitos.


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Factos não Provados

a)Os trabalhadores (ou alguns deles) que estiveram vinculados à A... tivessem transitado para a sociedade que lhe sucedeu na exploração do estabelecimento comercial;

b)O requerido BB detenha património pessoal, designadamente imóveis de avultado valor, de valor superior ao montante da dívida global apurada pela administradora da insolvência;

c)O requerido BB detenha parca escolaridade e que, nessa decorrência, não estivesse inteirado das falhas e incumprimentos contabilísticos acima apurados, e tivesse achado que as capas de arquivo que entregou à AI respondessem a todas as questões suscitadas.

d)As contas anuais do exercício da empresa nos anos de 2013 a 2018, e que a omissão dos depósitos dos legais documentos contabilísticos se tenha ficado a dever a falha da Autoridade Tributária;

e)O agravamento da situação económica da empresa se tenha ficado a dever única e exclusivamente a factores exógenos à pessoa do aqui requerido;

f)DD seja divorciada do gerente da A..., ora requerido BB;

g)O requerido BB tenha celebrado acordo de pagamento prestacional com a AT e esteja a proceder ao pagamento da dívida reconhecida a tal credor no âmbito destes autos;

h)As dívidas reconhecidas aos credores Banco 2... e Banco 1... derivem de duas letras indevidamente cobradas.


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IV-DIREITO

No presente incidente de qualificação da insolvência, o tribunal a quo considerou-a culposa por falta de apresentação da devedora à insolvência no prazo legal para esse efeito, ter disposto dos bens em proveito de terceiros, favorecendo outra empresa na qual o gerente tem interesse directo-(cfr. 186.º, n.º 2, als. d) e f) e n.º 3, al.a) do CIRE).

O Recorrente discordou frontalmente do enquadramento jurídico sustentado na sentença argumentando nomeadamente que não é apontada na sentença recorrida qualquer factualidade relativa aos anos 2019, 2020, 2021 e 2022, sendo apenas discutidas questões relativas a anos anteriores.

Defendeu que foi desconsiderado que, entre o momento da declaração de insolvência e a sentença deste incidente já foi liquidado 50% do passivo e, à exceção das dívidas ao Estado que reverterão naturalmente para o seu gerente, as demais dívidas são de 2009, foram impugnadas e eram de expressão reduzida no cômputo do passivo da sociedade. Entende que estas dívidas de 2009 estão prescritas.

Acrescentou que a afectação da qualificação da insolvência não só o afecta a si pessoalmente como também os trabalhadores que dele dependem.

Reconheceu a imperfeição da sua actuação, declarando, contudo, que não foi dolosa pois liquidou todo o passivo que conseguiu e continua a fazê-lo.

Regime jurídico aplicável

O regime da qualificação da insolvência é uma novidade introduzida no C.I.R.E. que sofreu a influência do direito espanhol, ou seja, do regime homólogo consagrado na recente Ley Concursal, de Julho de 2003.[2]

No ponto 40 do Preâmbulo do CIRE[3] o legislador revelou o objectivo de se conseguir uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares da empresa e dos administradores de pessoas colectivas, o que seria útil para evitar o surgimento de condutas altamente prejudiciais à protecção e segurança do tráfego jurídico-mercantil.

Como esclarece Catarina Serra[4], o objectivo do incidente é apurar se houve culpa de algum ou de alguns sujeitos na criação ou no agravamento da situação de insolvência e aplicar certas medidas (sanções) aos culpados.

Segundo o artigo 186.º, n.º 1 do CIRE a insolvência deve ser qualificada como culposa na hipótese de ter sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Na anotação a este normativo, de indiscutível importância, Carvalho Fernandes e João Labareda[5] esclarecem que “a insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto…” que “…deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.”

E, com muito interesse para a decisão deste caso, aduzem que “…uma actuação com as características e a relevância acima identificadas deixa de ser atendida, para o efeito de qualificar a insolvência como culposa, se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.” (sublinhado nosso)

A última parte do preceito legal referente ao designado período suspeito é de enorme relevância porquanto só a actuação culposa causadora da insolvência ou do seu agravamento, ocorrida no triénio anterior ao início do processo de insolvência pode ser considerada pelo juiz para efeito de qualificação da insolvência como culposa.

Por outras palavras, qualquer comportamento prejudicial ao interesse dos credores, anterior a esse período de três anos, ainda que subsumível nas hipóteses legais demonstrativas de uma insolvência culposa, nenhuma relevância jurídica assume, devendo a insolvência ser qualificada como fortuita.

Sobre as hipóteses legais caracterizadoras de comportamentos que configuram uma situação de insolvência culposa, auxiliadoras do intérprete, rege o n.º 2, do art. 186º, do C.I.R.E.: «Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto tenham:

a)Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

b)Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

c)Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

d)Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

e)Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

f)Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

g)Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

h)Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i)Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º .

A Lei n.º 9/2022 de 11.02 introduziu no n.º 3 do citado preceito uma nova redação com vista a esclarecer as dúvidas entretanto suscitadas.

Assim, nos termos do n.º 3 do art. 186.º do CIRE “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:

a)O dever de requerer a declaração de insolvência;

b)A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

(…).”

Analisando as alíneas do nº 2 do art. 186º, Maria do Rosário Epifânio[6] considera que “podem ser agrupadas em três categorias fundamentais, a saber: 1) atos que afetam, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; 2) atos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros; 3) incumprimento de certas obrigações legais.

(…) O proémio do nº 2 do art. 186º prevê um elenco de presunções iuris et de iure, considerando “sempre culposa a insolvência” quando se preencha alguma das suas alíneas.”

Nesta conformidade, se o(s) facto(s) praticado(s) pelos legais representantes da devedora for(em) subsumível(is) a qualquer uma das situações previstas no n.º 2 do art. 186.º do C.I.R.E. presume-se que a insolvência é culposa, sendo considerado, pela doutrina e jurisprudência, que estamos perante uma presunção iuris et de iure, ou seja, inilidível de acordo com o preceituado no art. 350.º do C.Civil.

O Tribunal Constitucional[7] pronunciou-se no mesmo sentido: “E assim, uma vez verificado o facto típico previsto na lei (nas várias alíneas deste nº 2), “fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.”

Em suma, ocorrendo qualquer um dos factos típicos previstos no art. 186º nº 2 do CIRE, praticado pelo administrador da insolvente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência- a insolvência deve sempre qualificar-se como culposa por se presumir que foi praticado com dolo ou culpa grave e que criou ou agravou a situação de insolvência, dispensando-se a prova quer da culpa do administrador quer do nexo de causalidade entre o facto ilícito e a situação de insolvência.

Ao invés, quando os administradores, de direito ao de facto, incumpram as obrigações elencadas nas alíneas do n.º 3 do citado preceito legal, e apesar de se presumir a culpa grave dos administradores, para que a insolvência seja qualificada como culposa, a lei exige a prova do nexo de causalidade entre esse incumprimento e a situação de insolvência ou o seu agravamento.

Na doutrina, Catarina Serra[8] reconhece que a alteração da norma com a introdução do advérbio unicamente “tem como inequívoco propósito de esclarecer que a presunção (relativa) aí consagrada respeita apenas ao requisito da culpa grave e a mais nenhum.”

A referida autora refere que a solução legal traduz uma medida intrigante por ser “dificílimo provar os restantes requisitos da insolvência culposa.

E questiona “Em quantos casos se demonstrará o nexo de causalidade entre o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência ou entre o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, de submeter as contas à fiscalização ou de depositar as contas na conservatória do registo comercial e a criação ou o agravamento da insolvência? Desde logo, o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência nunca poderá ser a causa da criação da insolvência, uma vez que é na situação de insolvência que reside a fonte desta obrigação.”

Anteriormente à alteração do mencionado n.º 3, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22/05/2012[9], analisando as respectivas alíneas bem como as alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE também questionou o conteúdo normativo nos seguintes termos:

“Em que medida é que a não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respectivos documentos – enfim, irregularidades contabilísticas – geram ou agravam a insolvência? Em nenhuma medida; quando muito escondem e ocultam a situação de insolvência, mas não geram ou agravam a situação de insolvência [12].

Em que medida é que o incumprimento do dever de apresentação à insolvência pode ser causa da sua criação (da insolvência)? Em nenhuma medida; quando muito tal incumprimento não revela a, em si pressuposta, situação de insolvência.

Em que medida é que o incumprimento dos deveres de elaboração e de depósito das contas podem ser causa duma insolvência ou sequer do seu agravamento? Em nenhuma medida; quando muito escondem e ocultam a situação de insolvência, mas não geram ou agravam a situação de insolvência.

Em que medida a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos contribuem para a situação de insolvência? Em nenhuma medida; desde logo, tal falta sistemática de comparência e de apresentação apenas ocorre e releva em momento posterior à própria declaração judicial de insolvência.

Enfim, os actos/factos constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 são “estranhos” à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal com a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

O que basicamente está em causa, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3, é o incumprimento/violação dos deveres específicos dos comerciantes (v. g. art. 18.º do C. Comercial) e/ou dos deveres gerais dos insolventes (cfr. art. 83.º do CIRE)[13]; é a violação ilícita e culposa de tais deveres legais que leva a lei determinar a aplicação do regime (da insolvência culposa) a estas situações.”

Sobre o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência, devemos articular com o prescrito sobre a mesma no art. 18º, n.º 1 do CIRE «[o] O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº1 do artigo 3º ou à data em que devesse conhecê-la.»

Especificamente sobre o conhecimento da situação de insolvência o nº 3 estatui que «[q]uando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº1 do artigo 20º.”

Este incumprimento generalizado refere-se às obrigações tributárias; contribuições e quotizações para a segurança social; dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação; rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca, relativamente ao local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência.

No caso sub judice o tribunal, perante a matéria de facto provada, concluiu, como vimos, que a insolvência culposa resulta do incumprimento de apresentação à insolvência e da transmissão do património da devedora a terceiros, concretamente a uma sociedade, com quem o gerente tem interesse directo.

Sobre a imputada omissão dos deveres de ter contabilidade organizada e de prestação anual de contas, considerou-se que a conduta (omissiva) não teve carácter doloso.

Análise do Quadro Factual e Subsunção ao Direito

Importa recordar que o Recorrente apontou como falha no enquadramento jurídico não ter ficado demonstrada qualquer actuação ilícita no período de três anos precedente ao início do processo.

Da análise do quadro factual afigura-se-nos que lhe assiste razão, como iremos verificar:

A insolvente exerceu uma actividade destinada à fabricação e comercialização de produtos alimentares e bebidas, nomeadamente pão, bolos, doces e produtos de pastelaria e confeitaria, bem como tabaco, jornais, revistas, brindes e lembranças; exploração de café e snack-bar.

A AI apresentou uma análise do volume de negócios da insolvente do ano 2011 para 2012, e das declarações periódicas trimestrais do IVA dos anos de 2013 e de 2014.

As últimas facturas comunicadas pela devedora à AT foram emitidas em fevereiro de 2015, num total de € 3.725,00, cessando a actividade.

No mês seguinte, em 31.03.2015, vendeu à sociedade “C..., Lda.” vários equipamentos (activo fixo tangível), pelo preço de € 8.245,76 acrescido de IVA, designadamente, vestiários, mesas e cadeiras, forno e estufa, armário mural, frigorífico, utensílios de cozinha, máquina de tabaco, equipamento administrativo, mobiliário de escritório, equipamento informático, arca congeladora, LCD 42 com suporte, equipamento ..., entre outros.

Esta sociedade foi constituída em 02.02.2015 (no mês em que foram emitidas as últimas facturas da insolvente), exactamente com o mesmo o objecto societário da insolvente.

E o capital social é constituído, desde o início da sociedade, por duas quotas, uma no valor de € 4.500.00 pertencente a DD e outra no valor de € 500,00 pertencente a “B... Unipessoal, Lda.” (sócia da A...), sendo a sua sede social numa das moradas associadas ao estabelecimento da insolvente.

A gerência da “C..., Lda.”, ficou confiada ao requerido BB.

Desde 20.12.2017 que a insolvente consta na Lista Pública de Execuções por inexistência de bens penhoráveis.

Deste conjunto de factos podemos concluir que o gerente da insolvente transmitiu para esta nova sociedade, que também foi gerir, o equipamento da sociedade insolvente, a qual deixou de exercer actividade em 2015, ou seja, cerca de 7 anos antes do início do presente processo.

Em suma, na data em que foi decretada a sua insolvência, em 04.09.2022, requerida por um credor, em 23/03/2022, a insolvente, desde 2015, já se encontrava inactiva, sem trabalhadores ao seu serviço.

Apurou-se que a prestação de contas individual do exercício de 2013 foi apresentada com os mesmos valores do exercício de 2012, não obstante a A... ter exercido actividade no exercício de 2013, gerando receitas e suportando despesas nesse mesmo exercício;

Não apresentou as contas anuais respeitantes aos exercícios de 2014 e 2015, pelo que não foi cumprida a obrigação legal estipulada no art.º 70.º do CSC relativamente aos exercícios desses anos, não obstante ter tido actividade comercial.

Nem apresentou as declarações fiscais em sede de IRC relativamente aos últimos cinco exercícios, não tendo sido possível à administradora da insolvência percepcionar se as dos períodos subsequentes foram ou não entregues.

Ora, dúvidas não restam que todos estes factos ocorreram num período anterior ao triénio suspeito, lapso temporal que releva para efeito de enquadrar tais comportamentos na qualificação da insolvência como culposa, sendo que a alegada falta de colaboração com a AI resulta da inactividade da empresa desde 2015 e sobretudo das vicissitudes ocorridas com a empresa de contabilidade, como foi evidenciado na sentença.

Reconhece-se que o comportamento omissivo do Requerido em não apresentar a sociedade à insolvência a partir de 2015, que, na altura, já se confrontava com um passivo elevado, desrespeitou, com culpa grave, esse dever.

Todavia, se por um lado, estamos perante um facto de natureza continuada[10], por outro, é manifesto não ter ficado provado que, por via desse comportamento, a insolvência sofreu um agravamento nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência justamente por estar inactiva desde 2015.

Como se observou no Acórdão da Relação de Coimbra, de 06/10/2020[11] referente a um caso similar “Da própria alegação da autora ressalta a irrelevância do atraso posterior a julho de 2016 para a criação ou agravamento da situação de insolvência, uma vez que, em tal data, já a sociedade insolvente se encontrava destituída de qualquer património e inativa, pelo menos, desde 30 de setembro de 2015.”

Ademais tem sido entendido, sobre esta questão, que o mero decurso do tempo designadamente com o aumento dos juros vencidos nesses três anos não integra o agravamento da insolvência, exigido pela lei.[12]

Note-se que foram reconhecidos créditos à Autoridade Tributária, Segurança Social e a dois bancos, reportados aos anos de 2008 a 2015, ano em a devedora cessou a sua actividade.

No elenco dos factos provados consta que a falta de apresentação à insolvência em resultado da falta de giro comercial, da transmissão do património e da inscrição na Lista Pública de Execuções pelo motivo aposto de “inexistência de bens” e do elevado passivo (pontos 37 e 38) agravou a sua situação insolvencial, facto que o requerido, enquanto seu gerente, não podia desconhecer (ponto 39), o que manifestamente consubstancia um juízo conclusivo.

Na verdade, não ficaram provados quaisquer factos susceptíveis de integrar o agravamento da insolvência em consequência da falta de apresentação à insolvência.

Mutatis mutandis em relação à falta de apresentação das contas anuais respeitantes aos exercícios de 2014 e 2015 e incumprimento da obrigação legal estipulada no art.º 70.º do CSC relativamente aos exercícios desses anos, não obstante ter tido actividade comercial.

Efectivamente, não ficou demonstrado em que medida esse incumprimento contribuiu para o indemonstrado agravamento nos anos de 2019, 2020 e 2021 da situação de insolvência, que era manifesta em 2015 com a cessação da actividade.

Finalmente, cumpre reconhecer o esforço do Recorrente na regularização das dívidas considerando que o aqui credor requerente deixou de figurar como credor na lista mais recente actualizada pela administradora da insolvência, uma vez que o seu crédito veio a ser satisfeito. Relativamente aos créditos à Segurança Social foi operada a reversão, estando o requerido BB a efectuar pagamentos àquela entidade.

Na lista de créditos mais recente – devidamente actualizada em 29.01.2025 – a administradora da insolvência fez saber que os créditos que se mantém operantes são os dos credores Autoridade Tributária (€ 24. 213,22), os da Segurança Social (€ 49.793,96), os da Banco 1... (€ 23.056,70), e os do Banco 2... (€ 20.578,93).

Em resumo, pese embora se reconheça a ilicitude da actuação do gerente da sociedade insolvente, dúvidas não restam que não foi praticada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, inexistindo, por isso, fundamento legal, para qualificar a insolvência como culposa.

Por outro lado, não se registou um agravamento da insolvência nesse período temporal em consequência do incumprimento de apresentação à insolvência e das contas anuais societárias.

Pelas razões expostas, a insolvência deve ser qualificada como fortuita e não culposa.


*

V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, revogam a sentença, declarando a insolvência fortuita.

Custas pelo Recorrido.

Notifique.

Porto, 17/6/2025
Anabela Miranda
João Diogo Rodrigues
Alexandra Pelayo
______________
[1] O efeito do recurso foi fixado (meramente devolutivo) no despacho de recebimento.
[2] Serra, Catarina, “O Novo Regime Português da Insolvência, uma Introdução”, 2.ª edição, Almedina, 2005, pág. 67.
[3] Dec-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
[4] Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, pág. 156.
[5] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, QJ, 3.ª edição, nota 4, pág. 680.
[6] In Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, págs. 129 e segs.
[7] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008, Processo n.º 217/08, de 26/11/2008, DR, 2.ª série, n.º 9 de 14.01.2009, consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[8] Revista Julgar, n.º 48, págs. 20 e segs.
[9] Rel. Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt
[10] Ac. TRC de 06/10/2020 (Maria João Areias) disponível em www.dgsi.pt..
[11] Rel. Maria João Areias disponível em www.dgsi.pt
[12] A título de exemplo v. Ac. TRG de 11/05/2023 (Maria João Matos) disponível em www.dgsi.pt.