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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
TU QUOQUE
Sumário
I - O não cumprimento dos ónus primários das als. a) a c) do nº 1 do art. 640º do CPC determina a imediata rejeição do recurso relativo à impugnação da matéria de facto [de toda ela ou apenas de algum segmento da mesma, conforme o vício afete toda a impugnação ou apenas parte dela], ao passo que a inobservância do ónus secundário da al. a) do nº 2 do mesmo preceito só implica a rejeição do recurso da matéria de facto quando a falta ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame da prova pelo tribunal de recurso. II - Quando o recurso incida sobre factos que não interferem com a solução da questão de direito, por serem irrelevantes para alteração/modificação da decisão decretada pelo tribunal recorrido, a Relação deve abster-se de proceder à reapreciação da matéria de facto, para não levar a cabo uma atividade inútil e sem qualquer efeito prático. III - Na modalidade do «venire contra factum proprium», o abuso de direito ocorre quando alguém exerce um direito em contradição com uma conduta [sua] anterior em que a outra parte tenha legitimamente confiado, vindo a mesma, com base na confiança gerada e de boa fé, a programar a sua vida e a tomar decisões na convicção de que aquele direito já não seria exercido. IV - A modalidade «tu quoque» exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois, sem abuso, prevalecer-se da situação daí decorrente, exercer a posição violada pelo próprio, ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.
Texto Integral
Proc. 1335/21.4T8AVR.P1 – 2ª Secção (apelação) Relator: Des. Pinto dos Santos Adjuntos: Des. Rodrigues Pires
Des. João Diogo Rodrigues
* * *
Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório [tendo por base o relatório da sentença recorrida]:
AA e BB instauraram a presente ação declarativa com processo comum contra A..., SA, peticionando que seja declarada a invalidade das deliberações sociais tomadas na assembleia geral da ré do dia 07.01.2021.
Alegaram, em síntese, que:
- são sócios da ré, tendo, no dia 28.07.2020, sido divulgada a convocatória da assembleia geral da mesma, a realizar no dia 15.09.2020;
- nesta reunião fizeram-se representar por um representante que juntou uma declaração de voto nos termos da qual, entre outros aspetos, se colocavam em causa diversos elementos constantes das contas apresentadas e se suscitava a prestação de informações, por parte do conselho de administração, quanto a factos incluídos nos documentos de prestação de contas, informações que não lhe haviam sido prestadas antes ou não haviam sido prestadas de forma clara, transparente, integral e verdadeira ou continham operações cujo registo contabilístico, nos termos apresentados, não poderia ter ocorrido;
- por essa razão e com essa finalidade foi determinada a suspensão da reunião, pelo prazo de 30 dias, tendo sido adicionalmente acordado entre os diversos acionistas da ré e pelos membros da mesa da assembleia geral que as futuras sessões da assembleia geral iriam decorrer por meios telemáticos, considerando a situação pandémica existente e as necessárias medidas de proteção e salvaguarda da saúde pública;
- em virtude de não ter, naquele prazo, sido disponibilizada a informação solicitada, foi, novamente, adiada a continuação da assembleia geral da sociedade para o dia 12.11.2020;
- mas como nesta data continuassem a não ser prestadas as informações solicitadas, corrigidas as contas da sociedade quanto aos concretos pontos que haviam levantado, nem preparado e disponibilizado o dossier de preços de transferência da sociedade por referência ao exercício de 2019, ficou acordado que ocorreria uma nova sessão da mesma assembleia geral no dia 21.12.2020, data na qual seria de esperar que os acionistas da sociedade já tivessem os diversos elementos que os habilitariam a tomar posição final quanto ao sentido de voto a emitir, tendo ainda sido acordado que seriam efetuadas as correções necessárias às contas da sociedade;
- no entanto, nessa data, não lhes foram divulgadas as informações que os órgãos da sociedade se haviam comprometido a remeter, nem efetuadas as correções às contas, ficando, assim, comprometida a realização da agendada sessão da assembleia geral da sociedade;
- ficou então acordado que, quando a informação fosse efetivamente disponibilizada, as partes poderiam marcar uma nova data para a realização da assembleia geral da sociedade, não tendo sido fixada nova data para tal;
- o seu representante recebeu, no passado dia 03.03.2021, um email da presidente da mesa da assembleia geral da sociedade com uma ata da alegada sessão da assembleia geral do dia 07.01.2021, sendo que, ao contrário do que nesta é referido, não existe registo de qualquer tentativa de contacto com o seu representante;
- embora resulte da ata a existência das putativas deliberações em causa, o que é certo é que a marcação de eventual nova sessão da assembleia geral iniciada no dia 15.09.2020, apenas poderia ocorrer quando lhes tivessem sido, efectivamente, disponibilizadas todas as informações e demais elementos necessários à formação esclarecida do sentido de voto;
- ainda que se considerasse que, efectivamente, ficou aprazada para o dia 07.01.2021 nova sessão da dita assembleia geral, o que não aconteceu, sempre teria de se considerar que foram impedidos de nela participarem, na medida em que não lhes foram disponibilizadas as credenciais de acesso à mencionada reunião como havia ocorrido na sessão de 21.12.2020, com violação dos respetivos direitos de sócio;
- conforme decorre do teor da própria ata, na assembleia em causa estiveram presentes os demais acionistas da sociedade, o que significa que estes, ao contrário dos autores, tiveram acesso aos dados ou a informações que permitiram a sua efetiva presença na assembleia geral da sociedade;
- tudo a determinar a nulidade das deliberações por “vícios de procedimento”, nos termos previstos no art. 56º nºs 1 al. a) e 3 do Código das Sociedades Comerciais e por violação das disposições conjugadas ínsitas nos arts. 21º nº 1 al. b), 377º nº 5 al. b) e nº 6 al. b) e 379º do mesmo Código, ponderando que a situação em causa se aproxima, materialmente, da situação de ausência de convocatória.
Subsidiariamente, invocaram o seguinte:
- ainda que as deliberações não sejam nulas, então sempre serão anuláveis nos termos previstos no art. 58º nº 1 al. a) do CSC, por preterição das formalidades necessárias à correta informação aos sócios quanto aos dados de acesso e efetiva participação na assembleia geral realizada pela sociedade;
- mesmo a entender-se que, no dia 07.01.2021, o que ocorreu foi uma nova sessão da assembleia geral iniciada em 15.09.2020, sempre teria de se considerar as deliberações anuláveis ao abrigo do disposto no art. 58º nº 1 al. a) do CSC, na medida em tal assembleia foi suspensa por quatro vezes [quando o limite máximo da suspensão era de duas vezes] e para além do prazo máximo de 90 dias, com violação do disposto no art. 387º do mesmo código;
- além de que as deliberações em causa também serão anuláveis, atendendo a que, conforme resulta da declaração de voto emitida pelo seu representante na assembleia geral de 15.09.2020, foram colocadas diversas questões e reiterados os pedidos de informação sucessivamente dirigidos aos competentes órgãos da sociedade, que nunca forneceram a totalidade dessas informações, sonegando, dessa forma, informação relevante e essencial para a formação do seu direito de voto e para o conhecimento concreto e real da situação financeira da sociedade, incluindo para aferição sobre a correção das contas e dos elementos de prestação de contas da sociedade;
- para mais atendendo a que nem sequer o presidente do Conselho de Administração esteve presente em qualquer das reuniões da assembleia geral iniciada em 15.09.2020, incluindo na alegada reunião de 07.01.2021, com violação do disposto no art. 379º nº 4 do CSC;
- tendo sido violado o seu direito à informação previsto nos arts. 21º nº 1 al. c) e 290º do CSC, com a consequente anulabilidade das deliberações nos termos previstos no art. 58º nº 1 als. a) e c) do CSC.
Ainda subsidiariamente, que:
- caso se entenda que as deliberações em causa não são nulas ou anuláveis com os referidos fundamentos, teria de se relevar então que, nas contas de 2019 da ré, encontram-se registadas em especial duas operações cujo tratamento dado é incompatível com uma visão clara, verdadeira, objetiva e real da situação financeira da sociedade, designadamente os resultados transitados de 2018 [sobrevalorizados por efeito de juros que deveriam ter sido imputados a exercícios anteriores] e o valor de 955.000,00€, incorretamente inscrito na rubrica “outros instrumentos de capital próprio”, por não corresponder a prestações acessórias (não previstas no contrato de sociedade) prestadas pelas sociedades B... e C... (sócias), mas sim a suprimentos;
- sendo que a incorreção do registo tem um impacto material nas contas da sociedade, na medida em que, ao contrário das prestações acessórias, os suprimentos integram as rubricas do passivo e não do capital próprio, o que levará a que os resultados anuais da sociedade tenham de ser necessariamente distintos, porque subvalorizam o passivo da sociedade no valor das prestações em causa e aumentam artificialmente os capitais próprios da sociedade, sobrevalorizando-os, quando, na realidade, não há fundamento legal para o efeito;
- pelo que a situação é passível de ser subsumida ao regime do art. 69º do CSC, em especial atendendo a que a elaboração das contas da sociedade ao considerar que os créditos dos sócios são verdadeiras prestações acessórias [quando tal não é possível, desde logo, por ausência de previsão no contrato de sociedade], coloca em causa a proteção dos credores da sociedade conferida pelo esquema legal aplicável aos créditos de suprimentos, ocorrendo nessa medida a violação de preceitos normativos que, nem por vontade unânime dos sócios podem ser afastados, devendo, dessa forma, considerar-se a deliberação em causa nula, nos termos e para os efeitos do nº 3 daquele artigo;
- sem prejuízo da sua anulabilidade por aplicação do nº 1 do mesmo preceito, na medida em que a consideração, nas contas da sociedade, dos alegados empréstimos realizados pelos sócios corresponde a violação legal das regras relativas à constituição e existência das prestações acessórias (v.g. artigo 287.º do CSC) e dessa forma aquelas contas não respeitaram, na sua elaboração, preceitos legais qualificadores da própria existência dos créditos.
A ré, citada, contestou alegando, no essencial, que:
- em 15.09.2020, realizou-se a assembleia geral de sócios para se proceder à apreciação e deliberação sobre os assuntos constantes da respetiva ordem de trabalhos, conforme alegado pelos autores, sendo verdade que o representante juntou a declaração que se encontra transcrita na ata;
- no dia 14.07.2020, a ré disponibilizou aos autores os documentos de prestação de contas relativos ao exercício de 2019, em concreto, o relatório de gestão, o balanço, a demonstração de resultados por natureza, o anexo às demonstrações financeiras e a certificação legal de contas, tendo-lhes remetido, em 10.08.2020, uma nova versão do anexo às demonstrações financeiras para substituição do anterior, por ter entretanto verificado que, por lapso, não se encontrava indicada a sociedade A..., como parte relacionada, tendo-se procedido à correção do seu ponto 13.1;
- atentas as questões suscitadas pelo representante dos autores na mencionada reunião de 15.09.2020, os acionistas acordaram propor à Presidente da Mesa da Assembleia Geral, o seu adiamento para 15.10.2020, por forma a possibilitar à ré a análise detalhada das objeções levantadas e as consequentes respostas e esclarecimentos, tendo então sido decidido pela presidente da mesa da assembleia geral adiar a sessão para a referida data;
- tal adiamento foi também determinado pela necessidade de a ré e os acionistas AA, CC, B... e C... analisarem uma proposta apresentada pelo representante dos autores, tendo em vista a exoneração das responsabilidades pessoais contraídas por estes últimos perante instituições bancárias, no âmbito de financiamentos concedidos para apoio à atividade da ré;
- sendo que a concretização de tal acordo e a consequente exoneração dos autores de todas as suas responsabilidades financeiras foi, desde 2018, de forma expressa, a “moeda de troca” imposta pelos mesmos à ré e aos demais acionistas, para poderem viabilizar a aprovação das contas, completamente indiferentes aos prejuízos e dificuldades que tal conduta tem causado à ré, mormente junto dos bancos com os quais tem vindo a negociar a reestruturação das suas dívidas;
- não estando os autores a abdicar de tal conduta enquanto não conseguirem os seus propósitos, mesmo que isso tenha como consequência a paralisação da sociedade e mesmo a sua destruição, atendendo a que detêm ações representativas de 50% do capital da ré, atuando em claro abuso de direito, sendo incompreensível a posição dos mesmos que se insurgem quanto aos sucessivos adiamentos quando nada de definitivo se deliberou nas datas designadas anteriormente à assembleia de 07.01.2021;
- dada a impossibilidade de o representante dos acionistas AA, CC, B... e C... participar na reunião agendada para 15.09.2020, por acordo entre os acionistas, foi decidido remarcar aquela reunião para o dia 12.11.2020, sendo que, conforme e-mail de 10.11.2020, o representante dos acionistas AA, CC, B... e C... propôs ao representante dos autores que, no dia daquela reunião, pudesse ser previamente discutido o projeto de acordo para desoneração das responsabilidades financeiras dos autores, bem como a contraproposta também remetida ao representante dos AA., dada a sua incidência nos assuntos constantes da ordem de trabalhos e na deliberações a tomar;
- isto porque, se tal acordo fosse alcançado, do mesmo poderia resultar a aprovação das contas dos exercícios de 2019 e também de 2018, estas por alteração do sentido de voto expresso na assembleia geral de 2017, tendo o representante dos autores acedido a tal;
- na reunião de 12.11.2020, foi acordado que também seriam remetidos ao representante dos autores o dossier preços de transferência de 2019 e as informações que aquele havia sido requerido até ao dia 12.12.2020, que haviam acordado ser necessário para a análise de todos os documentos, tendo presente a data de 21.12.2020 que, por comum acordo, iriam propor à presidente da mesa da assembleia geral, para a nova sessão da assembleia geral iniciada em 15.09.2020;
- razão pela qual foi remarcada para 21.12.2020 a continuação da assembleia geral de 15.09.2020, tendo a ré remetido ao representante dos autores, por email de 14.12.2021, o dossier preços de transferência de 2019;
- sendo que a presidente da mesa da assembleia geral, em 21.12.2020, por email das 10h18 do mesmo dia, e sem quaisquer outras formalidades, recordou ao representante dos autores “a realização da Assembleia Geral da empresa A..., hoje, pelas 15 horas, por meios telemáticos, juntando para isso a “Password do escritório para o SKYPE: ...”;
- no início de tal reunião, conforme se fez lavrar em ata, o representante dos acionistas AA, CC, B... e C..., deu conhecimento da reunião que momentos antes havida sido realizada entre si e o representante dos autores, no âmbito das diligências, então em curso, para a obtenção do acordo de desoneração dos autores e consequente resolução da aprovação das contas de 2018 e 2019, tendo o representante dos autores afirmado que os seus representados necessitavam de mais tempo para tomarem uma posição definitiva sobre a nova versão do referido acordo e analisarem as informações constantes do dossier preços de transferência 2019 que, entretanto, haviam recebido da ré;
- foi, por isso, proposto à PMAG o adiamento da reunião para o dia 07.01.2021, não só para os efeitos referidos anteriormente, mas também para que à ré fosse dada a possibilidade de concluir, até ao dia 31.12.2020, a análise das questões suscitadas na reunião de 15.09.2020;
- tendo o representante dos autores e os demais acionistas, com a anuência da presidente da mesa da assembleia geral, acordado na realização da mencionada reunião por meios telemáticos e que a mesma se realizaria nos exatos termos da reunião de 21.12.2020, ou seja, com as mesmas coordenadas de acesso, via SKYPE, para o mesmo endereço eletrónico, considerando-se os acionistas convocados para o efeito, sem mais formalidades;
- bastava, assim, ao representante dos autores utilizar os dados de acesso que lhe haviam sido já disponibilizados anteriormente para aceder à sessão agendada para 07.01.2021, o que não veio a acontecer;
- apesar das várias tentativas de contacto feitas pela presidente da mesa da assembleia geral, através da referida plataforma, o representante dos autores pura e simplesmente não respondeu, sendo que, em 31.12.2020, por email, a presidente da mesa da assembleia geral enviou ao representante dos autores as atas das reuniões de 15.09.2020 (ata ...), de 12.11.2020 (ata ...) e de 21.12.2020 (ata ...), sendo que, nesta última expressamente ficou exarada a realização da reunião da AG em 07.01.2021;
- e a ré, também naquele dia 31.12.2020, remeteu, por e-mail, ao representante dos autores, tal como havia sido acordado na reunião de 21.12.2020, as respostas a todas as questões que aquele havia suscitado Assembleia Geral de 15.09.2020;
- resulta, assim, claro que a continuação da reunião de 15.09.2020, no circunstancialismo fáctico que alegou, foi sucessivamente remarcada em 15.10.2020, 12.11.2020 e 21.12.2020, sendo certo que, em rigor, nas reuniões de 12.11.2020 e 21.12.2020, nem sequer chegaram a ser retomados os trabalhos decorrentes da ordem de trabalhos da assembleia geral de 15.09.2020, tendo sido esta a única sessão em que se analisaram os assuntos agendados naquela ordem de trabalhos;
- era suposto que a retoma dos trabalhos da reunião de 15.09.2020 pudesse ter ocorrido na reunião de 07.01.2021, em virtude dos representantes dos acionistas terem acordado que, por força das circunstâncias supra descritas, o representante dos autores só naquela data se encontraria em condições de se pronunciar em definitivo sobre a nova versão do acordo de exoneração de responsabilidades dos autores e sobre as contas da sociedade, retomando-se, assim, quanto a este último assunto, a ordem de trabalhos da assembleia geral que se havia iniciado em 15.09.2020;
- o representante dos autores não suscitou, até hoje, quaisquer questões ou duvidas sobre o dossier preços de transferência de 2019, que lhe foi remetido em 14.12.2020, nem se pronunciou sobre os esclarecimentos e informações complementares que lhe foram enviadas, por e-mail, em 31.12.2020, questões essas que nunca passaram de mero pretexto para que, sem qualquer fundamento, se pudessem opor à aprovação das contas de 2019, como já o haviam feito em relação às contas de 2018;
- a questão dos juros que o representante dos autores tem vindo a suscitar como fundamento para a não aprovação das contas, no tocante aos exercícios de 2018 e 2019, prende-se com o critério adotado pela ré quanto à sua contabilização, sendo que a opinião com reserva emitida pelo fiscal único relativamente às contas, apenas reflete uma divergência entre ele e a ré, quanto ao critério de contabilização dos juros da dívida daquela para com o Banco 1..., entendendo o mesmo que os juros de tal dívida deveriam ter sido contabilizados nos exercícios de 2016, 2017 e 2018;
- mas atendendo a que o processo de reestruturação se havia iniciado em finais de Outubro de 2017, a ré partiu do pressuposto que a regularização parcial de tal dívida, conforme acordado judicialmente, com o pagamento de parte das quantias devidas ao Banco, em 18 prestações mensais, com início em 01.01.2018 e termo em 30.01.2019, lhe conferia base legal para a contabilização dos juros no exercício de 2017 (2/12 avos) e no exercício de 2018 (10/12 avos);
- sem prejuízo de, conforme decorre do relatório da certificação legal de contas respeitante ao exercício de 2019, tal questão ter deixado de ter qualquer expressão no respetivo exercício, constituindo as reservas feitas pelos autores um expediente de má-fé para prejudicar a ré, impedindo-a de cumprir as suas obrigações legais, mormente fiscais, retirando-lhe capacidade de negociação com a banca para a obtenção dos financiamentos de que necessita, dificultando a conclusão do processo de reestruturação da sua divida com o Banco 1..., num manifesto e intolerável abuso de direito;
- como decorre das atas das assembleias gerais de 2010, 2011 e 2017, foram realizadas prestações acessórias voluntárias à ré pelos acionistas B... Lda., C... Lda. e AA, nunca tendo sido levantada nenhuma objeção, nem quanto aos seus montantes, nem quanto às suas condições, nem quanto à sua natureza;
- pelo que as objeções a propósito de tais prestações suscitadas pelo representante dos autores para fundamentação da sua não aprovação das contas de 2018 e intenção de não aprovação das respeitantes a 2019, carecem de qualquer sentido e de base legal, constituindo expediente de manifesta má-fé para prejudicarem a ré e os demais acionistas, impedindo aquela de se financiar e reforçar os seus capitais, num manifesto e intolerável abuso de direito;
- sendo falso que a ré tenha obstaculizado o direito de fiscalização e informação dos autores, atendendo a que lhes tem disponibilizado sempre os documentos a que por lei se encontra obrigada, facultando, de igual modo, sem restrições, o acesso dos mesmos às instalações da sociedade e a consulta de todos os elementos que nela se encontram, o que os mesmos nunca se dispuseram a fazer;
- é, ainda, absolutamente falso que o teor das atas das reuniões das assembleias gerais da ré não corresponda ao fiel relato de tudo o que nelas foi dito ou documentado;
- a não aprovação das contas de 2018 e a intenção de não aprovação das contas de 2019 por parte dos autores não passa de um infundado e ilegítimo pretexto para alcançar, entre outros fins, aquele que, no imediato, pretendem alcançar, a sua desoneração de todas as responsabilidades financeiras contraídas perante a ré e perante o acionista AA, tendo inclusive afirmado que aprovariam tais contas caso tal viesse a acontecer;
- os autores atuam, assim, com abuso de direito, nas modalidades de “venire contra factum proprium” (porque em contradição com o comportamento assumido anteriormente para apenas alcançarem a exoneração das dívidas da sociedade) e na modalidade “tu quoque” (porque também são responsáveis pela violação da norma que invocaram pretendendo fazerem valer-se dos adiamentos dos trabalhos a que deram origem);
- e litigam em manifesta má-fé, por terem intentado a presente ação sem qualquer fundamento válido para o efeito, o que não deviam ignorar, tendo alterado intencionalmente a verdade dos factos, omitindo factos relevantes para a boa decisão da causa, como sejam respostas e emails por parte da ré, assim como foram eles que impediram a assembleia geral de se realizar, tendo ainda praticado omissão grave do dever de cooperação, nomeadamente por terem omitido os verdadeiros fundamentos para as condutas que imputam como impróprias à ré, fazendo assim do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguirem um objetivo ilegal e sem qualquer fundamento.
Requereu, por isso, a condenação dos autores como litigantes de má-fé no pagamento de uma multa e, bem assim, a pagarem-lhe os montantes despendidos a título de despesas com o processo e honorários com mandatário.
Teve lugar a audiência prévia, na qual, por não ter havido acordo das partes quanto ao litígio, foi fixado o valor da ação, foi proferido despacho saneador tabelar e foram fixados o objeto do litígio e os temas de prova.
Realizou-se a audiência final e foi depois proferida sentença com o seguinte dispositivo: «V – DECISÃO Pelo exposto: 1) Decido julgar a presente ação parcialmente procedente e em consequência declaro a nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral da ré A..., S.A. que se realizou em 07.01.2021, determinando o cancelamento dos registos lavrados com fundamento nas referidas deliberações, julgando prejudicado tudo o demais peticionado; 2) Indefiro o pedido de condenação dos autores como litigantes de má fé e em consequência não condeno os mesmos em qualquer multa ou indemnização a favor da ré; 3) Condeno a ré A..., S.A. no pagamento integral das custas da ação. Registe e notifique.».
Irresignada com o sentenciado, interpôs a ré o presente recurso de apelação [admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões: «I. No presente recurso está em causa saber se as deliberações tomadas na Assembleia Geral de 07.01.2021 são nulas ou anuláveis, sendo que, como bem refere o Tribunal ‘a quo’, a divergência factual prende-se, no essencial, com a circunstância de ter sido ou não designada aquela data, para continuação da assembleia geral e termos em que isso terá sucedido. II. Pretendendo a Recorrente, a reapreciação da matéria de facto quantos aos pontos 18, 20 e 22 dos factos provados e, por via dessa apreciação, deve dar-se como provadas as als. b) a h) dos factos não provados, porquanto a prova constante dos Autos e a prova testemunhal, resultante da audiência de discussão e julgamento, não foi corretamente valorada. III. De salientar que os factos provados baseiam-se nas sucessivas atas para elencar os factos provados, incluindo a ata de 7 de Janeiro, sendo que quanto a esta apenas não resultou provado que a sessão tenha sido adiada para o referido dia 7 de Janeiro e que a mesma se realizaria nos mesmos termos, isto é, por meios telemáticos com as chaves de acesso já informadas aos sócios. IV. O Tribunal desconsiderou ‘in totum’ o depoimento das testemunhas, com exceção do depoimento do Dr. DD, tendo, com base neste depoimento, “anulado” toda a prova produzida, o que a Recorrente não aceita, em especial, porque a prova documental não dá suporte às suas declarações. V. Foi dado como provado no ponto 18) que não foi acordada qualquer data, o que, decorre da prova produzida, não corresponde à realidade. VI. Nos sucessivos adiamentos da Assembleia Geral foi sempre designada uma data, sendo que esses adiamentos, dito pela própria testemunha, Dr. DD, ouvido na sessão de 09-04-2024, início às 14:51 e fim às 16:03, tinham em vista a informação aos sócios de várias questões, o que aliás, o Tribunal ‘a quo’ dá conta quando refere que os AA. pretendiam que as contas fossem reformuladas, por não concordarem com os termos em que foram registadas as operações, conforme resulta do depoimento supra transcrito. VII. A referida testemunha refere 3 ordens de razão para não ter acordado no adiamento: seria uma terceira suspensão, o que a lei não permite, a segunda, a falta de informação e a terceira, não se sabia bem, atendendo aos constrangimentos da Covid-19 em que termos poderia realizar-se a AG. VIII. Ora, sendo a testemunha, além de advogado, também professor de Direito Comercial, não podia desconhecer que apesar da imperatividade da norma, só haveria nulidade do ato de adiamento se tal constar do pacto social, o que não sucede. IX. De facto, trata-se de uma deliberação dos sócios, que constituiria uma irregularidade que, face às circunstâncias, se aceitava cometer, sem qualquer prejuízo para qualquer dos sócios. X. Depois, e a respeito das medidas restritivas decorrentes da Pandemia, em 21 de Dezembro já se sabiam as medidas para o Natal e Ano Novo, sendo que o fim da proibição de circulação entre concelhos deixaria de vigorar a 4 de Janeiro e, além disso, como foi referido pelo Dr. DD e pelas restantes testemunhas, ficou combinado que a AG se faria por meios telemáticos. XI. E, mesmo considerando que Janeiro é mês em que frequentemente se realizam exames na faculdade, não se compreende, nem a testemunha explicou porque é que tal facto podia contender com a marcação da data. XII. Por outro lado, e como verificou o Tribunal, a AG em causa não retomou os seus trabalhos a 15 de Outubro, porque a Presidente da Mesa remeteu ao representante dos autores um email, dando nota da impossibilidade da sua realização por impedimento do representante dos demais sócios (Dr. EE), conforme facto 12) dado como provado. Portanto, o adiamento não foi determinado no âmbito da própria AG ou deliberado pelos sócios, como devia ter sido, não obstante, houve acordo nesse sentido entre as partes, tendo os trabalhos sido retomados no dia 12.11.2020, com a presença de todos os sócios. XIII. Assim, apesar das divergências entre as partes, acordos houve entre os sócios que, de facto, superavam o disposto por lei. XIV. Pelo que mal se compreende porque é que o Tribunal não considerou que a marcação da data de 7 de Janeiro foi acordada pelas partes, apenas com base no depoimento desta testemunha sendo que a apreciação global dos acontecimentos indiciam o contrário. XV. O que, de resto foi confirmado, de forma clara e contundente, pelas testemunhas FF, ouvida na sessão de 12.12.2023, com início às 14:14 e fim às 15:08 e Dr. EE, ouvido na mesma sessão, com início às 15:09 e fim 15:33, conforme depoimentos supra transcritos. XVI. Pelo que, e pelo decorrer da normalidade, tendo sido a AG sucessivamente adiada, com indicação de data, como consta das atas, o que a testemunha DD não negou, não é de duvidar que na AG ficasse definida uma data, no caso o dia 7 de Janeiro. XVII. Também não foi corretamente valorada a prova no que diz respeito ao ponto 20) já que ao contrário, resultou provado que a presidente da mesa enviou as credenciais ou dados de acesso ao Dr. DD, na qualidade de representante dos AA., como resulta dos depoimentos transcritos, sendo que a testemunha e presidente da Mesa referiu que o mesmo estava ciente que os mesmos termos da reunião de 21 de Dezembro. XVIII. Igualmente, e quanto ao ponto 22) foram feitas, na sessão de 7 de Janeiro, tentativas de contacto do representante dos AA. quer via Skype, quer telefonicamente, o que resulta não só do documento n.º 15 junto com a contestação como do depoimento das testemunhas, como acima se transcreveu. XIX. E assim, não podem restar dúvidas que o contacto foi tentado, mas sem sucesso. XX. Da prova produzida, resulta, evidente, que os sócios deliberaram uma terceira suspensão dos trabalhos, para o dia 7 de Janeiro de 2021, não só pelas negociações em curso mas também para que o representante dos AA., Dr. DD, tivesse tempo para analisar a informação enviada em inícios de Dezembro e depois no final de Dezembro. XXI. Mais foi provado que foram todos os sócios esclarecidos que essa sessão se faria pelos mesmos meios, onde naturalmente se inclui as chaves de acesso anteriormente enviadas ao Dr. DD. XXII. Razão pela qual devem os factos não provados, als. b) a h) dar-se como provados, pois que resultam dos depoimentos e documentos supra transcritos. XXIII. A valoração da prova foi incorreta sendo que todas as estranhezas levantadas pelo M.mo Juiz ‘a quo’ releva para a ponderação são infundadas, sendo certo que acaba mesmo por entender que as questões levantadas para a não aprovação das contas não eram impeditivas do voto. XXIV. Por fim, cabe referir que, no que respeita às contradições dos depoimentos da Dr.ª FF, do Dr. EE, e mesmo da GG, as testemunhas referiram o mesmo, com ressalva de pequenos pontos que nem sequer são essenciais para a questão, em especial, quem é que fez e quantas vezes foi tentado o contacto. XXV. E assim, atenta a prova produzida, há que modificar a matéria provada, nos termos seguintes: No ponto 18) retirar-se a parte “não tendo sido acordada qualquer data para tal”. e substituindo-se por “tendo ficado acordado o dia 7 de Janeiro de 2021” No ponto 20) retirar que “ou informou o mesmo da sua realização” No ponto 22) passar a constar “como ficou a constar em ata, existiram, pelo menos, 3 tentativas de contacto de DD, na qualidade de representante de BB e de AA.” E, por conseguinte, devem os factos não provados, als. b) a h) dar-se como provados. XXVI. No mais, tendo em conta os factos supra descritos, e que correspondem à matéria de facto que deve ser tida como provada, é manifesto que a ação devia ter sido julgada improcedente e os Recorridos condenados como litigantes de má-fé. XXVII. Errou também o Tribunal ‘a quo’ na análise jurídica quando refere que a sessão de 07.01.2021 é, de facto, uma nova assembleia geral. XXVIII. Mesmo que entenda que o referido na ata n.º ... quanto à existência do acordo de todos quanto a novo adiamento para o dia 07.01.2021 não consubstancia prova plena quanto a tal facto, a prova de que não houve acordo quanto ao adiamento para a data referida competia aos AA. o que, como supra se deixou expresso, minimamente resulta provado. XXIX. Pelo contrário, trata-se da continuação da AG regularmente convocada para o dia 15.09.2020, tendo sido prestados todos os esclarecimento e informações solicitadas pelos AA., como acaba por concluir o Tribunal ‘a quo’. XXX. E assim, estavam verificados todos os pressupostos para que a reunião de 07.01.2021 pudesse retomar a análise da Ordem de Trabalhos da Assembleia Geral de 15.09.2020 e, nessa medida, poderem os acionistas deliberar sobre os assuntos daquela constantes. XXXI. Aliás, resulta claro do circunstancialismo fáctico supra descrito, que a AG foi sucessivamente remarcada em 15.10.2020, 12.11.2020 e 21.12.2020, sendo certo que, em rigor, nas reuniões de 12.11.2020 e 21.12.2020, nem sequer chegaram a ser retomados os trabalhos decorrentes da Ordem de Trabalhos da Assembleia Geral de 15.09.2020, tendo sido esta a única sessão em que se analisaram os assuntos agendados na indicada Ordem de Trabalhos. XXXII. Por outro lado, não pode ter acolhimento o avançado pelo Tribunal quanto à nulidade das deliberações porque a reunião ocorreu em local diverso do que constava da convocatória. XXXIII. Pois, como vimos, foi o Tribunal esclarecido que as instalações da Recorrente não estão aptas a acolher uma reunião por meios telemáticos, como foi acordado por todos, pois a sala de reuniões é pequena e sem qualquer tipo de suporte informático que permitisse a reunião. XXXIV. Deste modo, foi cumprida a norma da al. a) do n.º 6 do art. 377.º do C.S.C., sendo certo que nem tal circunstância foi posta em causa pelos AA.. XXXV. Embora em primeira Instância tenha ficado prejudicada a questão de ter sido ou não facultado aos autores o acesso à sessão de 07.01.2021, sempre se dirá que resulta da prova produzida que os AA. através do seu representante, tinham conhecimento que a AG se realizaria nos mesmos termos, ou seja, com as mesmas coordenadas de acesso, via SKYPE, para o mesmo endereço eletrónico, considerando-se os acionistas convocados para o efeito, sem mais formalidades. XXXVI. Também não se conforma a Recorrente quanto à questão subsidiária dos sucessivos adiamentos, tendo sido julgado que houve violação do disposto no art. 387.º do C.S.C., pois, os adiamentos foram sendo solicitados pelos acionistas, através dos seus representantes, considerando o acordo a realizar e a análise detalhada das objeções levantadas, e as consequentes respostas e esclarecimentos. XXXVII. Os adiamentos nunca tiveram oposição por parte dos AA., que nada provou em contrário. XXXVIII. Considerando a apreciação do Tribunal ‘a quo’ quanto aos pedidos subsidiários no que diz respeito à anulabilidade das deliberações por não terem sido fornecidas aos AA. todas as informações solicitadas por estes e bem assim das prestações acessórias que foram prestadas nos exercícios anteriores, e cuja decisão a Recorrente não põe em causa, não se compreende o raciocínio do M.mo Juiz quanto ao pedido principal e, bem assim, quanto ao abuso de direito por parte dos AA. XXXIX. A Recorrente entende que a conduta dos AA. ficou bem plasmada na prova produzida, sendo que continua convicta da regularidade dos atos por si praticados, das contas apresentadas e bem assim sobre a legalidade do adiamento dos trabalhos e que culminaram na sessão da Assembleia de 07.01.2021. XL. Já a conduta dos AA., porque contrária aos valores da boa fé, não merece a tutela do Direito, devendo merecer censura de V. Ex.as, ao contrário do que sucedeu na primeira Instância, quer por via do abuso de direito na modalidade de ‘venire contra factum proprium’ quer na modalidade ‘tu quoque’. XLI. A douta sentença recorrida porque não aplicou corretamente o direito aos factos dados como provados, violou o disposto nos arts. 334.º e 342.º do C.Civ., 56.º, 63.º 377.º, 397º e 388.º do C.S.C. e, de igual forma, o n.º 2 do art. 9.º do C.Civ., já que as exigências interpretativas plasmadas na fundamentação não têm o mínimo de correspondência nas normas putativamente violadas. Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de vossas excelências, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a douta decisão recorrida na parte impugnada, com o que se fará JUSTIÇA!».
Os autorescontra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida nos seus precisos termos, não sem antes suscitarem duas questões prévias:
- A «inutilidade processual do recurso da matéria de facto» por estar provado, sob o nº 12) dos factos provados, «que a assembleia geral em causa não retomou os seus trabalhos em 15 de outubro de 2020, porque a presidente da mesa da assembleia geral remeteu ao representante dos autores um email, dando nota da impossibilidade da sua realização por impedimento do representante dos demais sócios (Dr. EE)» estando, «portanto, assente, que o “adiamento” da reunião para o dia 12 de novembro de 2020 não foi deliberado pelos sócios, mas, antes, determinado, unilateralmente, e previamente, pela presidente da mesa, com fundamento no impedimento do representante dos demais sócios, o Dr. EE», o que, na sua ótica, constitui violação do que estabelece o nº 1 do artigo 387.º do CSC, que atribuia competência para determinar a suspensão dos trabalhos à assembleia geral, e determina a nulidade da deliberação tomada a 07.01.2021, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 56º do CSC;
- E a «rejeição parcial do recurso de impugnação da matéria de facto», por entenderem que o recurso interposto da matéria de facto, no que concerne à impugnação das alíneas f) a h) da matéria de facto dada como não provada, deverá ser rejeitado por violação do ónus imposto pelo artigo 640.º do CPC, em particular o ónus de indicar os concretos meios probatórios que evidenciam o erro de julgamento».
* * *
II. Questões a apreciar e decidir:
Em atenção às conclusões das alegações das partes, que, de acordo com o estabelecido nos arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do CPC, fixam o thema decidendum deste recurso [sem prejuízo do eventual conhecimento de questões de conhecimento oficioso], as questões a apreciar e decidir consistem em saber: 1. Se é de rejeitar o recurso da matéria de facto relativamente às als. f) a h) dos factos não provados, por inobservância dos ónus de impugnação legalmente estabelecidos; 2. Se é de rejeitar o recurso da matéria de facto por inutilidade para o desfecho do recurso; 3. Se há que alterar a matéria de facto impugnada; 4. Se há que alterar a solução jurídica declarada na sentença recorrida, ainda que por aplicação do instituto do abuso de direito.
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III. Factos provados e não provados:
i) A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1) Em 28.12.2004 foi registada a constituição da sociedade A..., Lda., com o capital social de € 5.000,00, composto por quatro quotas no valor nominal de € 1.250,00, pertencendo cada uma dessas quotas a HH, AA, CC e BB, tendo sido nessa data nomeado como gerente AA, o qual veio renunciar à gerência em 30.12.2009.
2) O capital social da A..., Lda. foi aumentado para o valor de 120.000,00, em 14.04.2005, tendo cada um dos sócios acima identificados ficado a ser titular de uma quota de € 30.000,00.
3) Por cessão registada em 04.04.2006, HH cedeu a sua quota a AA.
4) Por deliberação de 28.12.2009, registada em 30.12.2009, o capital social da A..., Lda. foi aumentado para o valor de € 300.000,00, tendo ficado repartido por três quotas, no valor nominal de € 75.000,00, pertencentes cada uma a AA, CC e BB e ainda por uma quota no valor nominal de € 70.000,00, pertencente a AA e por uma quota no valor nominal de € 5.000,00, pertencente a B... Unipessoal, Lda.
5) Em consequência dessa mesma deliberação, a partir de 30.12.2009, a A..., Lda. passou a estar registada como sociedade anónima, tendo alterado a sua denominação para A..., S.A., passando o seu capital social a estar representado por 60.000 ações com o valor nominal de € 5,00 cada uma.
6) No dia 28.07.2020 foi divulgada uma convocatória da assembleia geral da ré, a realizar no dia 15.09.2020 com a seguinte ordem de trabalhos: “Ponto um: apresentação, discussão e deliberação sobre o Relatório de Gestão e Contas do exercício de 2019; Ponto dois: Discussão e deliberação sobre a aplicação de resultados por parte do Conselho de Administração; Ponto três: Apreciação geral da Administração e Fiscalização da Sociedade; Ponto quatro: Outros assuntos de interesse para a Sociedade”.
7) Na assembleia geral de sócios realizada em 15.09.2020 estiveram presentes os seguintes sócios:
- B... Unipessoal, Lda., titular de ações representativas de 1,67% do capital social da ré, ali representada por EE;
- C..., Lda., titular de ações representativas de 1,67% do capital social da ré, ali representada por EE;
- AA, titular de ações representativas de 21,66% do capital social da ré, ali representado por EE;
- CC, titular de ações representativas de 25% do capital social da ré, ali representado por EE;
- BB, titular de ações representativas de 25% do capital social da ré, ali representado por DD;
- AA, titular de ações representativas de 25% do capital social da ré, ali representado por DD.
8) Na assembleia geral referida em 7) esteve ainda presente FF, na qualidade de presidente da mesa da assembleia geral e GG na qualidade de secretária da mesa da assembleia geral.
9) Na assembleia geral referida em 7), DD, em representação de BB e de AA, juntou um documento denominado “declaração de voto” com o teor constante do documento nº 3 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
10) Após discussão entre os sócios e a fim de se esclarecerem as questões suscitadas pelos sócios BB e AA, com o acordo de todos os presentes, foi decidido pela presidente da mesa da assembleia geral adiar tal assembleia para o dia 15/10/2020.
11) Adicionalmente foi acordado entre os diversos acionistas da ré e pelos membros da mesa da assembleia geral que as futuras sessões da assembleia geral iriam decorrer por meios telemáticos, considerando a situação pandémica existente e as necessárias medidas de proteção e salvaguarda da saúde pública, sendo deixado ao critério e conveniência da mesa da assembleia geral a indicação dos meios telemáticos a partir dos quais seria realizada a sessão da assembleia geral.
12) No dia 14.10.2020, FF, na qualidade de presidente da mesa da assembleia geral, remeteu a DD, na qualidade de representante de BB e de AA, o email com o teor constante do documento nº 7, com o seguinte teor: “Exmo Sr. Dr. DD Cumpre-me informar V. Exa. que, por força de impedimento surgido ao Sr. Dr. EE, o que o impossibilita de assegurar a sua presença na reunião que havia ficado apontada para o próximo dia 15/10 (continuação da Assembleia Geral da A..., SA), tal como o mesmo já teve oportunidade de transmitir a V. Exa., e considerando que aquele representa os acionistas AA, CC e B..., Lda, vemo-nos forçados a adiar a referida reunião para o próximo dia 12/11, à mesma hora, ou para dia e horas que, alternativamente, V. Exa entenda dever propor. Pedindo desculpa por eventuais incómodos, agradecemos antecipadamente a sua compreensão. A Presidente da Mesa da Assembleia Geral FF”.
13) No dia 12.11.2020, estiveram novamente presentes os sócios referidos em 7), representados pelas mesmas pessoas, tendo sido proposto por EE o “adiamento da reunião” uma vez que existiam negociações em ordem a desonerar os sócios BB e de AA de responsabilidades pessoais contraídas perante a sociedade e terceiros e consequente saída dos mesmos da sociedade, nos termos que resultam da ata nº ..., cuja cópia foi junta como documento nº 9 com a contestação, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
14) Na referida ata ficou ainda consignado o seguinte: “No contexto da referida reunião pelo Dr. EE foi proposto o adiamento da presente reunião para o próximo dia 21/12/2020, pelas 15h, devendo, no prazo de 30 dias a contar desta data da AG, ser remetido ao Dr. DD, enquanto representante dos acionistas AA e BB, o dossier “preços de transferência 2019”, bem como os elementos que venham a ser tidos como relevantes para o esclarecimento de questões que possam decorrer da análise de tal dossier, respeitantes à atividade da sociedade A... e às suas relações com as demais sociedades com as quais se relaciona. Atento o proposto foi dada a palavra ao Dr. DD, e por este foi dito que, em representação dos seus representados, saúda a disponibilidade para elaboração do dossier “preços de transferência 2019” e, nessa medida, com a receção de tal dossier, a possibilidade de estes verem esclarecidas todas as questões relacionadas com a atividade da sociedade, de modo a que possam tomar uma posição esclarecida sobre as contas da sociedade, pelo que, atentos os fundamentos invocados, concorda com o proposto adiamento. Ambos os representantes dos indicados acionistas acordaram também na realização da próxima reunião por meios telemáticos, atentos os fortes condicionalismos e restrições decorrentes da pandemia da doença COVID 19, no que foram imediatamente secundados pela PM da AG. Nessa medida a proposta em causa foi aprovada com os votos favoráveis dos acionistas representados. Pela PM da AG foi dito que, atento o deliberado, ficava a AG adiada para a reunião do próximo dia 21/12/2020, pelas 15h, considerando-se os acionistas convocados para o efeito e para a mesma Ordem de Trabalhos, devendo aquela ser realizada por meios telemáticos. Nada mais havendo a tratar, foi encerrada a sessão.”.
15) No dia 21.12.2020, FF, na qualidade de presidente da mesa da assembleia geral, remeteu a DD, na qualidade de representante de BB e de AA, o email com o teor constante do documento nº 11, com o seguinte teor: “Exmo. Sr. Dr. DD, Bom dia, Tal como resultou da passada reunião, de dia 12/11/2020, venho relembrar, a realização da Assembleia Geral da empresa A..., hoje, pelas 15 horas, por meios telemáticos, juntando para isso a “Password do escritório para o SKYPE empresas: ...”. Com os melhores cumprimentos, II ..........@.....”.
16) No dia 21.12.2020, estiveram novamente presentes os sócios referidos em 7), representados pelas mesmas pessoas, tendo tal presença sido assegurada por meios telemáticos.
17) Na ocasião referida em 16), porque os sócios se encontravam ainda em negociações em ordem a desonerar os sócios BB e de AA de responsabilidades pessoais contraídas perante a sociedade e terceiros e consequente saída dos mesmos da sociedade e ainda para permitir a análise das informações constantes do dossier de preços de transferência 2019, que havia sido remetido a DD, por email apenas em 14.12.2020, por todos foi acordado em não deliberar quaisquer dos assuntos.
18) Na mesma ocasião acordaram ainda que a próxima assembleia geral para tal efeito seria realizada igualmente por meios telemáticos, atentos os fortes condicionalismos e restrições decorrentes da pandemia da doença COVID 19, não tendo sido acordada qualquer data para tal.
19) Foi elaborada a ata nº ... da sociedade ré, com data de 07.01.2021, na qual se consignou o seguinte: “Iniciou-se a reunião à hora marcada, com a seguinte Ordem de Trabalhos: Ponto um: Apresentação, discussão e deliberação sobre o Relatório de Gestão e Contas do exercício de 2019; Ponto dois: Discussão e deliberação sobre a aplicação de resultados por parte do Conselho de Administração; Ponto três: Apreciação geral da Administração e Fiscalização da Sociedade; Ponto quatro: Outros assuntos de interesse, para a Sociedade. Estiveram presentes, conforme lista de presenças anexa: 1) Em representação do acionista B... Unipessoal, Lda, o Dr. EE, advogado, conforme carta de representação apresentada à presidente da Mesa da AG, a que corresponde de 1,67% do capital social 2) Em representação da acionista C..., Ld a, o Dr. EE, advogado, conforme carta de representação apresentada à presidente da Mesa da AG, a que corresponde de 1,67% do capital social. 3) Em representação do acionista AA, o Dr. EE, advogado, conforme carta de representação apresentada à presidente da Mesa da AG, a que corresponde a percentagem de 21,66% do capital social. 4)Em representação do acionista CC, o Dr. EE, advogado, conforme carta de representação apresentada à presidente da Mesa da AG, a que corresponde a percentagem de 25% do capital social. 5) A administração, pela pessoa da Sra. JJ. 6) O Sr. Revisor Oficial de Contas, Sr. Dr. KK. 7) Integrando a Mesa da AG, como sua presidente, a Sra. Dra. FF 8) Integrando a Mesa da AG como sua secretaria, a Sra. GG. Apesar de ter sido devidamente convocado, não compareceu o Sr. Dr. DD, legal representante dos acionistas BB e AA. Na hora designada para o início dos trabalhos, estando presentes o representante dos acionistas indicados em 1), 2), 3), 4), bem como a administração e o revisor oficial de contas, e tendo constatado a ausência do representante dos acionistas BB e AA, após terem sido feitas pela Presidente da Mesa da AG várias tentativas de contacto telefónico e telemático com o representante daqueles acionistas, e depois de ter aguardado por resposta ou justificação por parte de tal representante durante 45 minutos, constatando a existência de quórum, por ela foi determinado início da reunião. Pela Presidente da Mesa da AG foi igualmente determinada a elaboração da lista de presenças anexa à presente ata, indicando-se nela o nome e domicílio de cada um dos acionistas e seus representantes, bem como o número, a categoria e o valor nominal das ações pertencentes a cada acionista. Pela Presidente da Mesa da AG foi dito que, verificando-se a ausência do representante dos acionistas BB e AA, e depois de se ter aguardado, por 45 minutos, pela presença de tal representante, realizadas que foram várias tentativas de contacto com aquele representante, todas frustradas por ausência de resposta, e verificando-se existir quórum para poderem ser tomadas deliberações em primeira convocação, deviam ser iniciados os trabalhos para discussão e deliberação dos pontos da Ordem de Trabalhos. PONTO 1 - APRESENTAÇÃO, DISCUSSÃO E DELIBERAÇÃO SOBRE O RELATÓRIO DE GESTÃO E CONTAS DO EXERCÍCIO DE 2019 Depois de apresentados pela Sra. Administradora JJ, foram aprovados o Relatório de Gestão e as Contas do Exercício de 2019, por unanimidade dos acionistas representados. PONTO 2 - DISCUSSÃO E DELIBERAÇÃO SOBRE A APLICAÇÃO DE RESULTADOS POR PARTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO Depois de apresentada pela Sra. Administradora JJ, foi aprovada a proposta de aplicação de resultados para o efeito submetida a deliberação pelo Conselho de Administração, por unanimidade dos acionistas representados, traduzindo-se aquela na transferência do valor do resultado líquido positivo, para a conta de resultados transitados PONTO 3 - APRECIAÇÃO GERAL DA ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO DA SOCIEDADE Os acionistas representados, depois de feita a apresentação e apreciação por parte do Sr. Revisor Oficial de Contas, e analisados que foram os respetivos documentos, aprovaram os mesmos por unanimidade, tendo expressado um voto de louvor e de reconhecimento ao Conselho de Administração e ao Sr. Revisor Oficial de Contas pelos resultados alcançados e, no tocante à atuação daquele ultimo, pela inexcedível colaboração prestada ao Conselho de Administração e demais órgãos societários, agradecendo o empenho de todos, a sua dedicação, competência e zelo profissional. PONTO 4 - OUTROS ASSUNTOS DE INTERESSE PARA A SOCIEDADE Pelo representante dos acionistas indicados em 1), 2), 3) e 4), foi pedida a palavra para informar os presentes de que, não obstante a ausência do seu ilustre colega, tudo continuaria a fazer para com o mesmo alcançar o acordo que por ambos tem vindo a ser trabalhado com base na proposta por aquele oportunamente apresentada e na contraproposta que ao mesmo por si foi submetida, tendo em vista a desoneração dos acionistas AA e BB das responsabilidades pessoais por aqueles contraídas perante a sociedade e terceiros, a consequente saída dos mesmos da sociedade e, nesse âmbito, a resolução das questões relacionadas com a aprovação das contas de 2018. Pelos demais presentes foi expressa a sua total concordância com o desenvolvimento e concretização do referenciado acordo. Pelo representante dos acionistas indicados em 1), 2), 3) e 4) foi ainda pedida a palavra para propor um voto de confiança e de louvor às Sras. Presidente e Secretária da Mesa da AG, às mesmas expressando igual confiança para a elaboração da ata da reunião. Submetida a votação foi a proposta aprovada por unanimidade dos presentes. Nada mais havendo a tratar, foi encerrada a reunião pelas 17h30m”.
20) FF, na qualidade de presidente da mesa da assembleia geral, não remeteu a DD, na qualidade de representante de BB e de AA, quaisquer credenciais ou dados de acesso para que o mesmo pudesse participar na reunião de sócios referida em 19) ou informou o mesmo da sua realização.
21) Por email, em dia 03.03.2021, FF remeteu a DD cópia da ata referida em 19).
22) Ao contrário do que ficou a constar em ata, não existiu qualquer tentativa de contacto de DD, na qualidade de representante de BB e de AA.
23) O presidente do conselho de administração CC não esteve pessoalmente presente em qualquer das reuniões da assembleia geral iniciada em 15.09.2020.
24) Por email datado de 14.07.2020 foram disponibilizados aos autores pela presidente da mesa, o relatório de gestão, o balanço, a demonstração de resultados por natureza, o anexo às demonstrações financeiras e a certificação legal de contas referentes ao exercício de 2019 da sociedade, com o teor que resulta dos documentos nºs 8 a 12 da petição inicial e 29 da contestação, que aqui se dão por reproduzidos.
25) Posteriormente, em 10.08.2020, foi-lhes remetida uma nova versão do anexo às demonstrações financeiras, para substituição do que anteriormente havia sido entregue, ali se indicando igualmente a sociedade A..., como parte relacionada.
26) No documento de certificação legal de contas relativas ao exercício de 2019 da sociedade ré, com o teor constante resulta do documento cuja cópia foi junta com a petição inicial como documento nº 10 e com a contestação como documento nº 29 ficou consignado o seguinte: “Decorrente da negociação do acordo de reestruturação de dívida com o Banco 1..., a Empresa registou no exercício findo em 31.12.2018 o montante de cerca de 184.000,00 euros na rubrica Outros Passivos Correntes referentes a juros vencidos e não contabilizados nos respetivos exercícios. Não obstante o reconhecimento da dívida a pagar, o seu registo deveria ter sido realizado por reexpressão, de forma a afetar os corretos exercícios, o que motivou a reserva redigida na Certificação Legal de Contas do exercício anterior. Consequentemente, no exercício findo a 31 de dezembro de 2018, o qual é apresentado como comparativo das demonstrações financeiras em questão, o Resultado Líquido do Período encontra-se subvalorizado em 184.000,00 euros e o saldo 25 da rubrica relativa a Resultados Transitados encontra-se, a essa data, sobrevalorizada em 184.000,00 euros (excluindo o respetivo efeito fiscal). Relativamente ao exercício findo em 31 de dezembro de 2019 e aos saldos apresentados nas demonstrações financeiras a essa data, a matéria anteriormente descrita já não teve qualquer efeito na nossa opinião”.
27) Nas contas da sociedade, na rubrica referente ao capital próprio, encontra-se registado na conta “outros instrumentos de capital próprio”, o valor total de € 955.000,00, o qual diz respeito a prestações acessórias por parte dos sócios B... Unipessoal, Lda. (€ 620.000,00), C..., Lda. (€ 260.000,00) e AA (€ 75.000,00).
28) No pacto social da sociedade ré não está prevista qualquer obrigação de prestação acessórias.
29) EE enviou a DD o email com data de 10.11.2020 e com o teor que resulta do documento nº 8 junto com a contestação, que aqui se dá por reproduzido, no âmbito das negociações que existiam entre as partes, propondo que, no dia da reunião de 12.11.2020, pudesse ser previamente discutido o projeto de acordo para desoneração das responsabilidades financeiras dos autores.
30) As contas da ré referentes ao exercício de 2018 foram auditadas e certificadas pelo fiscal único nos termos que resultam do documento nº 28 junto com a contestação.
31) Na assembleia geral da sociedade ré realizada em 02.12.2010, onde estiveram presentes todos os sócios, foi deliberado por unanimidade a realização pela acionista B... Unipessoal, Lda. de prestações acessórias voluntárias, no montante de € 400.000,00, nos termos ali previstos.
32) Na assembleia geral da sociedade ré realizada em 20.12.2011, onde estiveram presentes todos os sócios, foi deliberado por unanimidade a realização pela acionista B... Unipessoal, Lda. de prestações acessórias voluntárias, no montante de € 100.000,00, nos termos ali previstos.
33) Foram ainda deliberadas a realização de prestações acessórias voluntárias pelos acionistas B... Unipessoal, Lda., C..., Lda. e AA nos termos que resultam da ata nº ..., relativa à assembleia geral realizada em 23.11.2017, documento junto com a contestação sob o nº 30 que aqui se dá por reproduzido.
34) As contas do exercício referente a 2017 foram aprovadas na assembleia geral que se realizou em 28.08.2018, na qual não estiveram presentes os autores.
35) Na assembleia geral de sócios que se realizou em 17.05.2019, tendo entre o mais como ordem de trabalhos a aprovação das contas referentes ao exercício de 2018, nada se deliberou nesse sentido, tendo sido consignado em ata (ata nº ...) o que resulta do documento nº 5 junto com a contestação e que aqui se dá por reproduzido.
*
ii) … E considerou não provados os seguintes factos:
a) No dia 12.11.2020 foi ainda acordado que seriam efetuadas as correções necessárias às contas da sociedade.
b) Na ocasião referida em 17), foi proposto à presidente da mesa da assembleia geral e ficou acordado o adiamento da reunião para o dia 07.01.2021, pelas 15 horas, tendo na sequência sido decidido por aquela que a assembleia geral ficava adiada para tal data, considerando-se os acionistas convocados para tal efeito.
c) Na ocasião referida em 17), foi igualmente acordado que a reunião de 07.01.2021 se realizaria nos mesmos termos da reunião de 21.12.2020, ou seja, com as mesmas coordenadas de acesso, via SKYPE, para o mesmo endereço eletrónico, considerando-se os acionistas convocados para o efeito, sem mais formalidades.
d) Como o representante dos autores já dispunha do ID (identificação do utilizador) “...”, bastava tão só que aquele se encontrasse disponível para a chamada de acesso à reunião na plataforma “SKYPE”, tal como havia ocorrido na reunião de 21.12.2020.
e) Apesar das várias tentativas de contacto feitas pela presidente da mesa da assembleia geral, através da referida plataforma, às 15h07 e às 15h20, o representante dos autores pura e simplesmente não respondeu.
f) Em 31.12.2020, por email, a presidente da mesa da assembleia geral enviou ao representante dos autores as atas das reuniões de 15.09.2020 (ata ...), de 12.11.2020 (ata ...) e de 21.12.2020 (ata ...).
g) A concretização do acordo acima referido e a consequente exoneração dos autores de todas as suas responsabilidades financeiras foi, desde 2018, de forma expressa, a “moeda de troca” imposta pelos mesmos à ré e aos demais acionistas, para poderem viabilizar aprovação das contas.
h) O representante dos autores, apesar das exigências feitas, não suscitou, até hoje, quaisquer questões ou dúvidas sobre o dossier preços de transferência de 2019, que lhe foi remetido em 14.12.2020, nem tão pouco se pronunciou sobre os esclarecimentos e informações complementares que lhe foram enviadas, por e-mail, em 31.12.2020.
i) Não obstante a opinião com reserva emitida pelo fiscal único, no tocante a tais juros, conforme CLC de 2016 e 2017, nem por isso deixaram os autores de aprovar as contas dos exercícios de 2016 e 2017.
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IV. Apreciação das questões indicadas em II:
1. Se é de rejeitar o recurso da matéria de facto relativamente às als. f) a h) dos factos não provados, por inobservância dos ónus de impugnação legalmente estabelecidos.
Os recorridos defendem, nas contra-alegações, que, relativamente aos factos não provados das als. f) a h), a recorrente não observou os ónus de impugnação fixados no art. 640º do CPC e que, por via disso, o recurso de tal matéria de facto deve ser rejeitado.
Vejamos.
Dispõe o art. 640º do CPC que: «1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 – (…).».
Comparando este normativo com o art. 712º do CPC de 1961 [Código que precedeu o ora vigente], escreve Abrantes Geraldes [in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualizada, 2022, pgs. 194-195] que “A comparação que pode fazer-se entre a primitiva redação do art. 712º do CPC de 1962 e o atual art. 662º [agora, 640º] revela que a possibilidade de alteração da matéria de facto que, além, era indicada a título excecional, é agora assumida como função normal da Relação, verificados que sejam os requisitos que a lei consagra. Nesta operação foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissão de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.”
Continua, ainda, o mesmo ilustre Conselheiro: “(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto: a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões. b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos. c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos. d) (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.” [obr. cit., pgs. 197-198]
E conclui depois: “A rejeiçãototal ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b)). b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a)). c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.). d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda. e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação. (…) As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilização das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto, como instrumento de realização da justiça.” [pgs. 200-202]
Com recurso aos princípios gerais da proporcionalidade e razoabilidade que funcionam como espécie de filtro/válvula de segurança do sistema, é este o entendimento que uniformemente vem sendo seguido pelo Supremo Tribunal de Justiça [e, em geral, pelos tribunais da Relação], quando chamado a apreciar recursos sobre a impugnação da matéria de facto e a interpretação do que estabelece o art. 640º do CPC [a título de exemplo e chamando à colação apenas alguns dos mais recentes, vejam-se os acórdãos do STJ de 17.09.2024 (proc. 4667/20.5T8VIS.C1.S1), 19.03.2024 (proc. 150/19.0T8PVZ.P1.S1), 14.03.2024 (proc. 8176/21.7TSLSB.L1.S1), 27.02.2024 (proc. 2351/21.1T8PDL.L1.S1), 31.01.2024 (proc. 7341/19.1T8ALM.L1.S1) e 16.01.2024 (proc. 818/18.8T8STB.E1.S1), todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Alguns destes arestos [caso dos Acórdãos de 14.03.2024 e de 27.02.2024]e, ainda, outros [de que são exemplo, os Acórdãos do STJ de 25.01.2024, proc. 1007/17.4T8VCT.G1.S1, de 21.03.2023, proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1, de 13.10.2022, proc. 1700/20.4T8LRS.L1.S1, de 03.10.2019, proc. 77/06.5TBGVA.C2.S2 e de 29.10.2015, proc. 233/09.4T8VNC.G1.S1, todos disponíveis naquele sítio da DGSI], no que também constitui jurisprudência unânime do STJ, procedem, ainda no âmbito do apelo aos referidos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade [sobre o conteúdo destes princípios, vejam-se os Acórdãos de 14.03.2024 e de 21.03.2023], a uma separação, em termos de exigência de cumprimento e efeitos da sua não observância, entre os ónus das alíneas do nº 1 e os das alíneas do nº 2 do citado preceito, apelidando os primeiros de ónus primários [que visam delimitar o objeto e a fundamentação concludente da impugnação] e os segundos de ónus secundários [que visam facilitar o acesso aos meios de prova objeto do registo áudio, relevantes para a apreciação da impugnação deduzida]. E se quanto aos primeiros concluem que o não cumprimento do exigido nas alíneas do nº 1 leva necessariamente à rejeição imediata do recurso [na parte relativa à impugnação da matéria de facto], já no que toca à inobservância dos segundos, entre os quais se inclui a indicação com exatidão das passagens da gravação em que o recurso se funda, entendem que só implicará a rejeição quando a falta ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame da prova pelo tribunal de recurso.
É, pois, em função deste quadro de exigências que há que aferir se a impugnação da matéria de facto por parte da recorrente, no que diz respeito às assinaladas alíneas dos factos não provados, observa suficientemente os referidos ónus.
Ora, quer na motivação do recurso, quer nas respetivas conclusões, a recorrente não indica quaisquer meios de prova para abalarem a convicção do Mmo. Julgador a quo que considerou a factualidade das als. f), g) e h) não provada, sendo certo que o que delas consta não está relacionado com os demais factos impugnados por aquela: factos provados nºs 18), 20) e 22) e alíneas b), c), d) e e) dos factos não provados. Estes estão, todos eles, relacionados com o que se passou na assembleia geral (continuação) de 21.12.2020, referida nos factos provados 16) e segs., e se foi ou não acordada e em que termos a reunião de 07.01.2021, a que se reportam os factos provados 19) e segs.. Os factos das als. f) a h) não têm que ver com o que se passou ou terá passado nestas reuniões, reportando-se a outros eventos/acontecimentos alegados pela ora recorrente na contestação: se em 31.12.2020, por email, a presidente da mesa da assembleia geral enviou ao representante dos autores as atas das reuniões de 15.09.2020 (ata ...), de 12.11.2020 (ata ...) e de 21.12.2020 (ata ...) [al. f)]; se a concretização do acordo com vista à exoneração dos autores de todas as suas responsabilidades financeiras foi, desde 2018, a “moeda de troca” imposta pelos mesmos à ré e aos demais acionistas, para poderem viabilizar a aprovação das contas [al. g)]; e se o representante dos autores, apesar das exigências feitas, não suscitou, até hoje, quaisquer questões ou dúvidas sobre o dossier preços de transferência de 2019, que lhe foi remetido em 14.12.2020, nem tão pouco se pronunciou sobre os esclarecimentos e informações complementares que lhe foram enviadas, por e-mail, em 31.12.2020 [al. h)].
Por isso, impunha-se que, quanto à materialidade fáctica destas três alíneas, a recorrente, tal como fez para a restante factologia que impugnou, desse efetivo cumprimento ao estabelecido na al. b) do nº 1 do art. 640º do CPC, o que manifestamente não fez, incumprindo, assim, nesta parte, este ónus de impugnação primário.
Aliás, mesmo quanto à al. f), cuja prova assentaria, essencialmente, em meios documentais [prova do envio do email e de cópias das atas nela referidas] e que, a existirem, poderiam ser oficiosamente tidos em conta por este tribunal de 2ª instância, ex vi do disposto nos arts. 607º nº 4 e 663º nº 2 do CPC [dos quais resulta que neste acórdão poderíamos/deveríamos «toma(r) em consideração os factos (…) provados por documentos»], está este tribunal impedido de fazê-lo. Isto porque tal facto radica no que a ré, ora recorrente, alegou no art. 52º da contestação, onde refere que enviou ao representante dos autores, Dr. DD, as atas das reuniões em causa [atas das reuniões de 15.09.2020 (ata ...), de 12.11.2020 (ata ...) e de 21.12.2020 (ata ...)], através do email que constitui o documento nº 16 junto com aquele articulado, mas, neste documento, com data de 31.12.2020, nenhuma referência é feita ao envio dessas atas, fazendo-se somente menção ao envio das informações e dos esclarecimentos que aquele havia solicitado na AG de 15.09.2020 [o teor deste email é o seguinte (suprimem-se os parágrafos): «Exmo. Senhor Dr. DD, boa tarde. Espero, antes de mais, que se encontre bem. Conforme compromisso assumido na reunião da AG do passado dia 21/12/2020, envio, em anexo, as informações/esclarecimentos que oportunamente nos solicitou. Procuramos, nas informações registadas no documento anexo, responder a todas as questões que nos colocou, conforme constam da Declaração de Voto que apresentou na AG de 15/09/2020. Para facilitar a sua explanação fazemo-lo no próprio texto, a vermelho. Reiteramos a nossa disponibilidade para fornecer ou facultar a consulta de quaisquer outros elementos que entenda por convenientes. Renovados votos de BOM ANO NOVO! A Presidente da Mesa da Assembleia Geral Cprs., II»].
Deste modo, por inobservância do referido ónus primário da al. b) do nº 1 do citado art. 640º, rejeita-se a impugnação da matéria de facto atinente às alíneas f), g) e h) dos factos não provados.
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2. Se é de rejeitar o recurso da [restante] matéria de facto por inutilidade para o desfecho do recurso.
Como atrás frisámos, os recorridos [também] invocam nas contra-alegações a inutilidade processual do recurso da matéria de facto por estar provado, sob o nº 12) dos factos provados, «que a assembleia geral em causa não retomou os seus trabalhos em 15 de outubro de 2020, porque a presidente da mesa da assembleia geral remeteu ao representante dos autores um email, dando nota da impossibilidade da sua realização por impedimento do representante dos demais sócios (Dr. EE)» estando, «portanto, assente, que o “adiamento” da reunião para o dia 12 de novembro de 2020 não foi deliberado pelos sócios, mas, antes, determinado, unilateralmente, e previamente, pela presidente da mesa, com fundamento no impedimento do representante dos demais sócios, o Dr. EE», o que, na sua ótica, constitui violação do que estabelece o nº 1 do artigo 387.º do CSC, que atribuia competência para determinar a suspensão dos trabalhos à assembleia geral, e determina a nulidade da deliberação tomada a 07.01.2021, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 56º do CSC.
Temos como certo que a reapreciação da matéria de facto impugnada está reservada à que se apresenta relevante para a solução do caso. Isto porque o propósito que subjaz à impugnação da decisão de facto é o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa da que foi proclamada na decisão recorrida no que concerne ao mérito da causa. Por isso, tal atividade só faz sentido em situações em que a factualidade impugnada possa ter interferência na solução jurídica do caso [decisão de mérito], ou seja, quando o desfecho do recurso a favor do recorrente esteja dependente da modificação daquela factologia.
Quando incida sobre factos que não interferem com a solução da questão de direito, por serem irrelevantes para alteração/modificação da decisão decretada pelo tribunal recorrido, a Relação deve abster-se de proceder à reapreciação da matéria de facto. Caso contrário, estará a levar a cabo uma atividade inútil e sem qualquer efeito prático, com desconsideração do que proclama o art. 130º do CPC, segundo o qual «[n]ão é lícito realizar no processo atos inúteis» [sobre esta problemática e no sentido que fica exposto, vd. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., nota 526, pg. 334, que refere: “[é] claro que a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto apenas se justifica nos casos em que da eventual modificação da decisão possa resultar algum efeito útil relativamente à resolução do litígio no sentido propugnado pelo recorrente, sendo dispensável nos demais casos em que não interfira de modo algum no resultado declarado pela 1ª instância”; idem, Acórdãos do STJ de 14.07.2021, proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1 e de 09.02.2021, proc. 26069/18.3T8PRT.P1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj, constando do sumário do primeiro destes arestos que “Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1ª instância quando essa atividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa, ut artº 130º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação.”].
Não é, no entanto, o que acontece in casu com os factos provados nºs 18), 20) e 22) e com os factos não provados das als. b) a e), corretamente impugnados pela recorrente, pois os mesmos dizem diretamente respeito ao que os autores peticionaram a título principal e ao que foi decidido na sentença recorrida, pelo que a sua eventual alteração, nos termos pretendidos por aquela, poderá determinar a modificação/revogação do que se decidiu na sentença.
Além disso, os autores, ora recorridos, não atribuíram relevância, na petição inicial, ao facto de a continuação da assembleia geral que esteve designada para a 15.10.2020 ter sido adiada pela presidente da mesa da assembleia geral – e não por deliberação em assembleia geral, como impõe o art. 387º nº 1 do CSC –, dando a entender que aceitaram o adiamento [deram o seu assentimento]. Por isso, não formularam nenhum pedido que diretamente se fundasse nesse adiamento, pois, das várias causas de nulidade e de anulabilidade das deliberações sociais que invocaram, nenhuma assenta na irregularidade/ilegalidade daquele adiamento.
E embora se aluda na fundamentação jurídica da sentença a tal questão, a verdade é que dela não se extraiu qualquer conclusão jurídica no sentido de declarar que a nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral de 07.01.2021 também se deveu ao dito adiamento de 15.10.2020, tendo-se aquela estribado, para tal, noutros fundamentos [diz-se na sentença, a pgs. 36-37, o seguinte (suprimem-se os parágrafos): «Por outro lado, conforme resulta do que se provou em 12), a assembleia geral em causa não retomou os seus trabalhos em 15.10.2020, porque a presidente da mesa da assembleia geral remeteu ao representante dos autores um email, dando nota da impossibilidade da sua realização por impedimento do representante dos demais sócios (Dr. EE). Sem deixar de notar que tal adiamento não foi determinado no âmbito e decurso da própria assembleia geral ou deliberado pelos sócios, como devia ter sido, atento o disposto no artigo 387º do Código das Sociedades Comerciais. Mostrando-se, no mínimo, controverso que pudesse ter existido novo adiamento nestes termos, para mais, com fundamento na mera impossibilidade de presença do representante de alguns dos sócios, o que é certo, conforme resulta provado e é aceite por ambas as partes, não só existiu acordo nesse sentido, como os trabalhos foram retomados no dia 12.11.2020, com a presença de todos os sócios» (sublinhado nosso)].
Estaríamos então perante uma questão nova, só agora suscitada em sede recursória.
É verdade que tratando-se de uma nulidade e sendo, por via disso, de conhecimento oficioso, como proclama o art. 286º do CCiv., não estaria este tribunal da Relação impedido de conhecê-la, ao abrigo do que decorre dos arts. 608º nº 2, parte final, e 663º nº 2 do CPC.
Mas ao fazê-lo também teria de conhecer do eventual abuso de direito dos autores, na modalidade de venire contra factum proprium – questão que é, igualmente, de conhecimento oficioso [cfr., i. a., Acórdãos do STJ de 16.06.2020, proc. 3300/15.1T8ENT-A.E1.S1, disponível in CSM.ECLI e de 04.12.2014, proc. 2606/07.8TJVNF.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj] e que até foi invocada pela ré relativamente a toda a atuação daqueles –, por estarem agora a invocar a nulidade de um ato [o adiamento da continuação da assembleia geral de 15.10.2020 por parte da presidente da respetiva mesa] a que antes [incluindo na p. i.] não deram relevância jurídica e relativamente ao qual, como se diz na sentença, até houve acordo de ambas as partes, tanto mais que os trabalhos da assembleia geral foram retomados nos dias 12.11.2020 e 21.12.2020, com a presença do representante dos autores e sem que este levantasse qualquer problema relacionado com aquele adiamento.
Por isso, não assiste razão aos recorridos ao pretenderem conferir inutilidade processual à impugnação da referida matéria de facto por parte da recorrente.
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3. Se há que alterar a matéria de facto impugnada [factos provados nºs 18), 20) e 22) e factos não provados das als. b) a e)].
Como referido, a recorrente impugnou adequadamente os factos indicados em epígrafe, observando os ónus primários das als. a), b) e c) do nº 1 e o ónus secundário da al. a) do nº 2, ambos do art. 640º do CPC.
Há, por isso, que apreciar a impugnação.
Antes de avançarmos importa (re)lembrar que o poder de reapreciação da prova pelos tribunais da Relação, quando assenta, no todo ou em parte, em depoimentos/declarações gravados [como acontece no caso em apreço], não tem hoje o alcance restrito, quase residual, que teve no passado, em que se sustentava que a 2ª Instância não podia procurar uma nova convicção e que devia limitar-se, apenas e só, a aferir se a do julgador a quo, vertida nos factos provados e não provados e na fundamentação desse seu juízo valorativo, tinha suporte razoável no que a gravação, em conjugação com os demais elementos probatórios dos autos, permitiam percecionar. Pelo contrário, atualmente impera uma conceção mais ampla de tal poder que, embora reconheça que a gravação áudio ou vídeo dos depoimentos e declarações [ainda assim, mais no primeiro caso do que no segundo] não consegue traduzir tudo quanto pôde ser percecionado pelo tribunal da 1ª instância, designadamente, o modo como as declarações foram prestadas, as hesitações que as acompanharam, as reações perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória e que existem aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas são percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, entende, ainda assim, que os tribunais da Relação têm a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos, fazendo-os passar também pelo crivo das regras da experiência, como efetiva garantia de um segundo grau de jurisdição.
Por isso, quando, ao reapreciar a prova e valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção a que, como os tribunais de 1ª instância, também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, o tribunal da Relação deve proceder à modificação da decisão recorrida, fazendo jus ao reforço dos poderes que lhe estão atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um efetivo segundo grau de jurisdição [neste sentido, i. a., Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., 2022, Almedina, pgs. 333-334 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed. reimpr., 2025, Almedina, pgs. 858-860; relativamente ao art. 712º nº 1 do CPC na versão anterior a 2013, mas com argumentos válidos para o atual art. 662º nº 1 do CPC, ainda, Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., 2008, pgs. 213-218 e Remédio Marques, in A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª ed., 2011, pgs. 638-646; na jurisprudência, entre muitos outros, Acórdãos do STJ de 27.02.2024 (proc. 7997/20.2T8SNT.L1.S2), de 17.10.2023 (proc. 2154/07.6TBPVZ.P2.S1), de 28.11.2023 (proc. 2898/17.4T8CSC.L1.S1), de 12.10.2023 (proc. 1358/19.3T8PTM.E2.S1) e de 10.03.2022 (proc. 6640/12.3TBMAI.P2.S2), todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Feitas estas breves considerações, vejamos então os factos que estão aqui em questão.
Comecemos pelos factos provados nºs 18), 20) e 22), que estão conexionados entre si[conclusões V a XXI, XXIII, XXIV e XXV das alegações].
A recorrente pretende a alteração da resposta que a 1ª instância deu a estes factos, mais concretamente:
- que do primeiro seja retirado o segmento «não tendo sido acordada qualquer data para tal», substituindo-a por «tendo ficado acordado o dia 7 de janeiro de 2021»;
- que do segundo seja eliminada a parte final, mais concretamente «ou informou o mesmo da sua realização»;
- e que do terceiro passe a constar «como ficou a constar em ata, existiram, pelo menos, 3 tentativas de contacto de DD, na qualidade de representante de BB e de AA».
Chama à colação, para tal, os depoimentos das testemunhas DD [este no sentido de infirmar o que foi valorizado pelo tribunal a quo], FF e EE, indicando as exatas passagens das respetivas gravações em que radica a sua pretensão, bem como o teor das atas da assembleia geral de 21.12.2020 e de 07.01.2021 e os documentos nºs 15 e 16 juntos com a contestação.
O facto 18) tem o seguinte teor: «Na mesma ocasião acordaram ainda que a próxima assembleia geral para tal efeito seria realizada igualmente por meios telemáticos, atentos os fortes condicionalismos e restrições decorrentes da pandemia da doença COVID 19, não tendo sido acordada qualquer data para tal.».
E o facto 20) tem a seguinte redação: «FF, na qualidade de presidente da mesa da assembleia geral, não remeteu a DD, na qualidade de representante de BB e de AA, quaisquer credenciais ou dados de acesso para que o mesmo pudesse participar na reunião de sócios referida em 19) ou informou o mesmo da sua realização.».
E do facto 22) consta: «Ao contrário do que ficou a constar em ata, não existiu qualquer tentativa de contacto de DD, na qualidade de representante de BB e de AA.».
Procedemos à audição integral dos depoimentos das três referidas testemunhas, constantes dos registos áudio existentes nos autos.
Comecemos então pelas palavras ditas por elas [depoimentos] quanto à aludida materialidade, seguindo a ordem por que foram inquiridas na audiência final.
A testemunha FF [ouvida na audiência final na sessão da tarde do dia 12.12.2023; foi a presidente da mesa da assembleia geral que teve reuniões, pelo menos, em 15.09.2020, 12.11.2020 e 21.12.2020 e é contabilista da sociedade ré desde 2004 e funcionária desta] começou por dizer, sobre os factos em análise, que na reunião de 21.12.2020 ficou combinado por todos os participantes que a assembleia geral continuaria a 07.01.2021 e que esta seria feita nos mesmos termos daquela e que isso mesmo fez constar da respetiva ata; que, por isso, não enviou ao Dr. DD os acessos para essa reunião, por meios temáticos [como aconteceu na de 21.12.2020]; confrontada com o que consta da ata sobre tal assunto [onde se diz apenas que a próxima reunião seria feita «por meios telemáticos», não constando da mesma qual o concreto meio temático que seria utilizado, designadamente se seria o mesmo que foi utilizado na reunião de 21.12.2020, nem qual a password necessária para o acesso, nomeadamente se a mesma desta última reunião], insistiu que a reunião de 07.01.2021 seria feita nos mesmos termos da reunião de 21.12.2020, não tendo dado qualquer justificação para o facto de não ser isso que está exarado na referida ata; contudo, mais adiante, por volta dos minutos 25-26, já referiu não se recordar se, na reunião de 21.12.2020, foi dito que a de 07.01.2021 iria ter lugar no escritório do Dr. EE, acrescentando também não se recordar se foi falado que o acesso para esta reunião seria com as mesmas credenciais da reunião de 21.12.2020; confrontada com o facto de a testemunha GG [ouvida na sessão da manhã do mesmo dia 12.12.2023] ter dito que tinha sido alertada pela depoente, por email e por mensagem, para a reunião de 07.01.2021, disse não se recordar de tal; que na reunião de 07.01.2021, no escritório do Dr. EE [onde, segundo ela, estiveram presentes 5 pessoas (ela, o Dr. EE, o Revisor Oficial de Contas, a Administradora e GG), apesar de então se estar numa fase de grande contágio pandémico provocado pela Covid 19 que levou a que alguns dias depois fosse imposto novo confinamento obrigatório (não tendo dado qualquer explicação para o facto de se terem reunido cinco pessoas num escritório, apesar das medidas restritivas à liberdade de circulação e de reunião de pessoas então existentes e não obstante, segundo ela, ter ficado acordado que a reunião seria por meios de comunicação à distância)] e que o Dr. EE, face à ausência do Dr. DD, fez uma chamada por telemóvel embora não saiba se para o telemóvel deste ou se para o escritório do mesmo, além de ter tentado contactá-lo duas ou três vezes pelo Skype [diga-se que, no art. 51º da contestação, a ré alegou que quem tentou contactar «várias vezes» o Dr. DD foi a «Presidente da Mesa da Assembleia Geral, ou seja, esta testemunha e não o Dr. EE, sendo, aliás, também isso que consta da ata da referida reunião]; que, naquela reunião, não se estranhou a ausência do Dr. DD, apesar de ter dito que este nunca tinha faltado a nenhuma reunião anterior; que não recebeu, depois de 07.01.2021, qualquer email ou mensagem do Dr. DD a pronunciar-se sobre essa reunião, nem a informá-la dos motivos da sua ausência, apesar de tal nunca ter acontecido antes; e que enviou a ata da reunião de 07.01.2021 ao Dr. DD em março do mesmo ano [não deu explicação para este atraso de cerca de dois meses no envio daquela].
A testemunha EE [ouvido também na sessão da tarde de 12.12.2023 da audiência final; advogado da ré desde 2019, tendo sido o representante dos acionistas AA, CC, B... Unipessoal, Lda e C..., Lda nas reuniões a que aludem os autos] declarou que na reunião de 21.12.2020 [que teve lugar no seu escritório, apesar da respetiva ata referir que teve lugar na sede social da sociedade ré] acordaram, ele e o Dr. DD, por sugestão deste, que a reunião seguinte seria a 07.01.2021, no seu escritório e seria feita por meios temáticos, com acesso através das coordenadas, via Skype, daquela reunião [de 21.12.2020], não tendo, no entanto, apresentado qualquer justificação para o facto de não ser isso que consta da ata [com a qual foi confrontado]; insistiu que, na reunião de 21.12.2020, a presidente da mesa da AG [a testemunha FF] disse a todos, em voz alta, que a reunião de 07.01.2021 seria também através de Skype e com a mesma password [não tendo sido isto que disse aquela testemunha]; que na reunião de 07.01.2021 esperaram cerca de 15 minutos por contacto do Dr. DD e depois disso a presidente da mesa [divergindo do depoimento desta, que só apontou tentativas de contacto daquele por parte desta testemunha] e ele próprio tentaram contactá-lo por 3 ou 4 vezes, pelo Skype e por telemóvel, tendo ligado para o escritório daquele e sido atendido por uma secretária do mesmo [relembre-se que, no art. 51º da contestação, foi alegado que quem procedeu às tentativas de contacto com o Dr. DD foi a «Presidente da Mesa da Assembleia Geral» e não esta testemunha]; que tem ideia, mas não a certeza, de ter tentado contactar o Dr. DD para o telemóvel dele, já que dispunha do contacto deste; que uns dias depois, no dia 10.01.2021, enviou um email ao Dr. DD [de que, diga-se, não juntou qualquer comprovativo] a dar-lhe conta do que tinha acontecido na reunião de 07.01.2021, mas não obteve qualquer resposta deste.
A testemunha DD [ouvido na sessão de julgamento de 09.04.2024; foi o representante dos acionistas AA e BB, autores nesta ação, nas reuniões da AG de 15.09.2020, 12.11.2020 e 21.12.2020] referiu que na manhã do dia 21.12.2020 a presidente da mesa da AG [a testemunha FF] lhe enviou um email com a password para a reunião da tarde desse dia, relembrando-o da realização desta, respetiva hora e que a mesma seria por Skype; que na reunião de 21.12.2020 [realizada, como acordado, através de Skype], porque a ré não tinha ainda fornecido todas as informações e esclarecimentos que o depoente havia requerido na reunião da AG de 15.09.2020, apesar de terem já decorrido mais de três meses, combinou com o Dr. EE [representante dos demais acionistas] que a ré reuniria todos os elementos em falta até final desse mês [dezembro de 2020] e enviar-lhos-ia [indicou os elementos que estavam então em falta, nos termos indicados na motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida]; confrontado com o teor da ata da reunião de 21.12.2020, declarou não ter memória alguma de ter recebido esta ata [importa lembrar que, apesar da ré ter alegado, no art. 52 da contestação, que enviou esta ata (e as das duas anteriores reuniões da mesma AG) ao depoente no dia 31.12.2020, através do email que constitui o doc. 16 junto com a contestação, não fez prova desse envio, tanto mais que neste documento nenhuma referência lhe é feita, como já atrás dissemos]; que naquela reunião não ficou acordada nenhuma data para a sua continuação, designadamente a que a ré alegou na contestação [07.01.2021], tendo, diversamente, ficado combinado que depois do envio das ditas informações seria convocada uma nova assembleia geral [e não a continuação da que se havia iniciado a 15.09.2020], na medida em que um novo adiamento não era permitido por lei, além de se ter já esgotado o prazo legal para conclusão da dita AG; que não ficou então acordada nenhuma data também por causa das suas ocupações profissionais, relacionadas com as funções de docente universitário que exercia e por se aproximar a época de exames na disciplina que lecionava na faculdade; que a única coisa que ficou combinada foi a de que a assembleia geral seguinte [que seria uma nova e não a continuação da iniciada em 15.09.2020] iria ser realizada [como a de 21.12.2020] por meios temáticos, por causa da pandemia provocada pela Covid 19, mas não se combinou o meio que seria utilizado, nem se fez qualquer referência à necessária password; que não recebeu nenhuma informação [email, mensagem ou qualquer outro] prévia a dar-lhe conta da realização da reunião do dia 07.01.2021; que neste dia esteve em casa a trabalhar [durante todo o dia], contactável, e não recebeu nenhum contacto nem nenhuma chamada das testemunhas FF e/ou EE, assim como não houve nenhum contacto daqueles para o seu escritório, pois nele trabalhavam então três secretárias e nenhuma lhe deu notícia de qualquer contacto dos mesmos; que não tem memória de, nos dias seguintes àquele dia 07.02.2021, ter recebido qualquer email do Dr. EE.
Passando ao modo como estes depoimentos foram prestados e à articulação dos mesmos com os demais meios de prova constantes dos autos.
Face ao modo como estas três testemunhas depuseram podemos afirmar que o depoimento da última [DD] se apresentou mais coerente, mais espontâneo e mais fundamentado que os depoimentos das duas primeiras [FF e EE] e que, por isso, se mostra mais credível que estes.
Mas não basta isto para, sem mais, respondermos à impugnação fáctica da recorrente. É ainda necessário conjugar tais depoimentos com os outros meios de prova existentes e produzidos nos autos. Só a conjugação de todos eles permitirá a este tribunal da Relação concluir se a razão está do lado da sentença recorrida ou, pelo contrário, se do lado da recorrente.
E, neste ponto, acompanhamos a bem fundamentada motivação da matéria de facto provada e não provada constante da sentença recorrida, sem deixar de referir que nela, no que concerne à factualidade impugnada pela recorrente, não foram só tidos em conta os depoimentos das três identificadas testemunhas, mas também outros, menos importantes é certo, de que ali se dá conta, mais concretamente os das testemunhas AA [sócio da ré e pai do autor AA e do acionista CC], JJ [administradora da ré sem poderes de representação, conforme resulta da certidão de registo comercial] e GG [que exerceu funções como secretária da mesa da assembleia geral].
Diz-se ali, quanto à questão fulcral [relativa ao que se acordou na reunião de 21.12.2020, particularmente se foi acordada ou não a continuação da assembleia geral, iniciada a 15.09.2020, para o dia 07.01.2021 e em que termos], que «a prova testemunhal apresentou-se, no essencial, cindida entre dois blocos distintos, designadamente pela versão apresentada pela testemunha DD (corroborando as alegações dos autores no sentido de não ter sido designada a data de 07.01.2021 e não ter sido sequer contactado para tal efeito) e a versão das restantes testemunhas, na parte em que asseveraram que a assembleia foi novamente adiada para esse dia e que aguardaram pela presença à distância do representante dos autores, tendo tentado contactar o mesmo sem sucesso)», acrescentando que «[n]a apreciação da questão tomou-se por garantido que a livre convicção do julgador que decorrerá da prova testemunhal não é e nem deverá ser formada de forma determinante pela mera circunstância da maioria das testemunhas depor num determinado sentido, na medida em que, atenta a menor fiabilidade do referido meio de prova, mais do que a quantidade, o que releva e deverá relevar é a qualidade (postura e reações assumidas pelas testemunhas e constrangimentos decorrentes de relações especiais que contendam com a sua maior parcialidade) e coerência dos depoimentos, em especial no confronto com os demais meios de prova, tudo devidamente cotejado com as regras da experiência comum e normalidade do acontecer».
Depois, a propósito dos depoimentos prestados pelas testemunhas cujas gravações ouvimos e atrás reproduzimos por súmula, o Mmo. Juiz a quo consignou o seguinte [suprimem-se alguns parágrafos]: «Não se atribuiu (…) qualquer credibilidade à testemunha FF, não só atendendo às descritas contradições, no que concerne ao facto de ter sido ou não dito em 21/12/2020, que a reunião de 07/01/2021, seria através de meios telemáticos nos mesmos termos, mas igualmente atendendo ao facto de ser funcionária da ré, relação de dependência que não só relevará num quadro normal, mas em especial num contexto em que existe um litígio entre os sócios da sociedade, tendo-se formado dois grupos estanques (como resulta do alegado pelas partes), estando a mesma na dependência dos sócios que controlam a administração da empresa.». «Por outro lado, no que concerne ao depoimento da testemunha EE, teve-se presente que o mesmo referiu que a presidente da mesa da assembleia geral disse que a reunião de 07/01/2021 se faria por meios telemáticos através da mesma password (o que nem a própria FF disse), tendo esclarecido que, nessa data, estiveram todos reunidos no seu escritório a aguardar o contacto do Dr. DD durante 15 minutos. Tendo ainda referido que, (…), ele e a presidente da mesa da assembleia geral tentaram contactá-lo três ou quatro vezes via Skype (o que mais uma vez se nota nem a própria FF disse)». Além de que, acrescentamos nós agora, também não foi isso que foi alegado no art. 51º da contestação, como atrás se referiu.
Mais deu conta que, apesar do que esta testemunha disse [no sentido de ter remetido um email ao Dr. DD em 10.01.2021, a dar-lhe conta do que se tinha passado na reunião de 07.01.2021, e de não ter obtido resposta daquele], «não foi junto qualquer email datado de 10 de Janeiro de 2021, dando nota da realização da assembleia em questão». E concluiu que «[n]o referido quadro, atendendo não só às contradições que se consignaram e aos interesses que representa (ainda mais relevantes num quadro assumido de litígio entre duas fações de sócios e paralisação quanto à aprovação das contas), mas igualmente ao que se consignará infra, também não se conferiu qualquer credibilidade ao depoimento da referida testemunha».
Quanto ao depoimento de DD, refere-se na sentença que «não obstante a qualidade de representante dos autores, (…)», o seu testemunho «mereceu total credibilidade face à forma como depôs» e acrescentou que «tal credibilidade adveio ainda do cotejo de todos os depoimentos no confronto com os demais factos provados (quer por acordo, quer por documento) com as regras da experiência comum e normalidade do acontecer. Conforme decorre do (…) acordo das partes e da própria ata nº ..., além de existir um litígio entre os autores e os restantes sócios quanto à aprovação das contas de 2018 e 2019 (cuja aprovação estava dependente do voto favorável dos autores por serem titulares de 50% do capital social), existiam ainda em curso negociações em ordem a desonerar os autores de responsabilidades assumidas perante a ré e terceiros, acordo esse que passaria pela transmissão das suas ações. Mostrando-se inequívoco que se formaram dois blocos distintos, um composto pelos autores (representados pela testemunha DD) e outro formado pelos restantes sócios (representados pela testemunha EE). Independentemente da questão de saber se a conclusão do acordo seria condição ‘sine qua non’ para a aprovação das contas e a legalidade ou não dessa tomada de posição (questão de direito), mostra-se incontroverso que, em termos de normalidade do acontecer, a não aprovação das contas conferia aos autores manifesta vantagem negocial (o que a própria ré alegou sob a bandeira de um pretenso abuso de direito). No descrito quadro, não se entende de que forma ou porque razão, caso tivessem tido conhecimento do adiamento da sessão da assembleia geral realizada em 21/12/2020 para o dia 07/01/2021, os autores não compareceriam, deixando que, em consequência dessa ausência, os restantes sócios ficassem com a oportunidade de aprovar as contas (como aprovaram), perdendo assim a referida vantagem negocial (sem que sequer tivesse existido qualquer reação antes de ter sido remetida a ata em causa em Março ou qualquer documento a denotar que existiu tal conhecimento)».
Fazemos aqui um breve parêntesis para salientar que, na ótica dos Julgadores deste tribunal da Relação, e sem prejuízo dos demais que indicaremos de seguida, este fundamento é fulcral para a credibilização do depoimento desta testemunha e da versão carreada para os autos pelos autores, ora recorridos, não se alcançando, de todo, por que motivos abdicariam estes [os demandantes] da dita vantagem numa fase tão crucial das negociações que mantinham com a ré e que poderiam culminar, a breve trecho, na sua desoneração de responsabilidades assumidas perante aquela e terceiros [e pela transmissão das suas ações aos demais acionistas], ainda que, como contrapartida, com a aprovação das contas da sociedade ré de 2018 e 2019. Para quem já tinha acordado em três adiamentos/continuações da AG iniciada em 15.09.2020, não seria, certamente, por mais um adiamento/continuação da mesma AG que deitaria a perder toda a sua estratégia e vantagem negocial.
E continua a sentença recorrida: «Por outro lado, não deixa de se estranhar que a presidente da mesa tivesse tido a preocupação de recordar a DD que estava marcada a sessão de 21/12/2020, remetendo-lhe as credenciais nesse mesmo dia, sem que tivesse tido a mesma preocupação relativamente à sessão de 07/01/2021, quando nas palavras da testemunha GG, a mesma até a terá informado da reunião, quer por email, quer por mensagem. Por outro lado, tendo sido acordado em 12/11/2020 (ata ...) que a reunião de 21/12/2020 seria efetuada por meios telemáticos, atentos os condicionalismos e restrições decorrentes da pandemia da doença COVID19, tendo sido acordado ainda posteriormente que também o seria na próxima assembleia (o que é aceite por ambas as partes e referido por grande parte das testemunhas), é com perplexidade que se constata resultar da conjugação do depoimento de todas as testemunhas inquiridas (com exceção da testemunha DD) com o que ressalta da ata nº ..., que na reunião de 07/01/2021, terão estado presentes (não à distância), não só o representante dos restantes sócios (Dr. EE), mas igualmente o revisor oficial de contas e as testemunhas FF, GG e JJ. Perplexidade que se adensa, na medida em que não se poderá deixar de notar, por ser facto notório, que na data em questão, não só se estava no pico da referida pandemia, como num quadro de declaração de estado de emergência, com as restrições daí decorrentes. Não deixando assim de ser incoerente e ilógico, num quadro de normalidade, que no escritório do representante dos restantes sócios estivessem presentes cinco pessoas, uma delas que se havia deslocado ao Porto para uma consulta do hospital, sem temor ou receio pelas consequências daí decorrentes e em contradição com a posição anteriormente assumida (constatando-se uma vez mais a coerência do discurso da testemunha DD que declarou precisamente estar a trabalhar em casa devido à pandemia). (…) Não deixando de se ter igualmente presente que as atas em causa (atas nºs 38 e 39) não configuram documentos autênticos e como tal não provam só por si o que nelas foi declarado, aí se incluindo na parte em que se mostra consignado na ata n.º ... que o adiamento da reunião ficaria marcado para 07/01/2021. (…)».
A estes fundamentos acrescem, ainda, outros dois.
Um deles está relacionado com os documentos nºs 16 e 17, juntos com a contestação, datados de 31.12.2020. O primeiro destes documentos é um email enviado pela testemunha FF, na qualidade de presidente da mesa da AG, ao Dr. DD a informá-lo do envio, em anexo, das informações e esclarecimentos que este havia solicitado na reunião de 15.09.2020 e cuja remessa ficou acordada na reunião de 21.12.2020. O segundo é constituído por essas informações e esclarecimentos, antecedidos de um pequeno introito assinado, igualmente, pela referida testemunha. Nestes documentos [email e introito que antecede as informações e esclarecimentos] não é feita qualquer menção à eventual continuação da AG em 07.01.2021 seguinte [assim como nada diz acerca do envio das atas das reuniões de 15.09.2020, 11.12.2020 e 21.12.2020, contrariamente ao que foi alegado no art. 52º da contestação e dito em julgamento pela testemunha FF]. E seria normal que a fizessem [faria, aliás, todo o sentido fazê-lo], não tanto [mas também] com o propósito de alertar o representante dos autores para a data da continuação da AG, mas principalmente para lhe dar conta de que, com o envio de tais informações e esclarecimentos, a presidente da mesa da AG tinha, pelo menos, a expetativa de não haver obstáculos à continuação da AG na data [pretensamente] aprazada e à conclusão dos respetivos trabalhos, incluindo a aprovação das contas de 2018 e 2019. Mas, como se disse, nada é dito a tal respeito, nem no email nem no introito das informações/esclarecimentos [do teor do email já demos nota no item 1 deste ponto IV; por sua vez, o teor deste introito é o seguinte (suprimem-se os parágrafos): «Exmo. Sr. Dr. DD. Conforme compromisso assumido na AG de 21/12/2020, procuramos, nas informações infra registadas, responder a todas as questões que suscitou, conforme constam da Declaração de Voto que apresentou na AG de 15/09/2020. Para facilitar a sua explanação fazemo-lo no próprio texto, a vermelho. Obrigado e votos de Bom Ano Novo. II»].
O outro, refere-se ao documento nº 8, igualmente junto com a contestação, que é um email, datado de 10.11.2020, enviado pelo Dr. EE ao Dr. DD, no qual se faz expressa menção à reunião da AG que iria ter lugar a 12.11.2020 [o teor deste email é o seguinte (suprimem-se os parágrafos): «Exmo. Colega Caro Dr. DD. Na sequência do meu e-mail infra, submeto à sua consideração, como base de trabalho, o projeto de acordo, que anexo. O referido, para facilitação de explicitação das alterações pretendidas pelos meus clientes e para uma melhor compreensão daquelas, contém alterações e comentários por nós diretamente inseridos no texto da proposta que teve a gentileza de me enviar. Como anteriormente referi, permito-me sugerir que, sem prejuízo dos comentários que entretanto me queira fazer chegar, seja o assunto objeto de discussão na reunião agendada para o próximo dia 12/11. Com os melhores cumprimentos. EE»].
O envio deste email e, bem assim, o email que a presidente da mesa da AG remeteu ao Dr. DD na manhã do dia 21.12.2020, a dar-lhe conta da reunião na parte da tarde desse dia [bem como do meio telemático que nela seria utilizado e respetiva password] – cfr. facto provado nº 15) –, permitem identificar como comum/normal a alusão à data da reunião seguinte [continuação da AG em data próxima] na troca de correspondência [por email] entre, por um lado, a presidente da mesa da AG ou o Dr. EE e, por outro, o Dr. DD.
Por isso, a inexistência de qualquer menção, nos documentos nºs 16 e 17, juntos com a contestação, à continuação da AG no dia 07.01.2021, constitui também um forte contributo para convencimento de que na reunião de 21.12.2020 não foi acordada nenhuma data para continuação da AG iniciada em 15.09.2020 e que o que aí se combinou foi tão só o envio ao representante dos autores, até final daquele mês e ano [31.12.2020], das informações e esclarecimentos que a ré tardava em prestar e que haviam sido solicitados pelo representante dos autores há mais de três meses. E faz, outrossim, sentido, como referiu a testemunha DD, que perante esta demora de mais de três meses não houvesse a certeza de que a ré conseguisse, ainda assim, prestar essas informações/esclarecimentos até 31.12.2020 e que, por isso, não fazia sentido acordar-se naquela reunião uma nova data para a sua continuação [isto, claro está, além dos outros argumentos referidos por esta testemunha, indicados na súmula do seu depoimento].
Finalmente, importa referir que estas conclusões não são postas em causa pelo teor do documento nº 15, junto com a contestação, com o qual a recorrente pretende fazer prova da alteração que propõe para o facto provado nº 22) e, bem assim, do que consta da al. e) dos factos não provados.
Desde logo, porque do mesmo não resulta de onde foi extraído, não se sabendo se se trata de um print relativo ao programa/sistema Skype do escritório do Dr. EE, ou se de outro qualquer de contacto por áudio ou vídeo. Depois, caso diga respeito àquele Skype, porque não indica durante quanto tempo foram tentadas as chamadas para o Dr. DD, no dia 07.01.2021, já que nele apenas constam tentativas de chamada, sem resposta, às 15,07 e 15,20 horas, sem menção do tempo de duração de tais tentativas, desconhecendo-se, assim, se estas foram de escassos segundos [de tal modo que nem sequer chegariam ao destinatário] ou se se prolongaram por algum tempo [suficiente para chegarem ao destinatário e poderem ser por ele atendidas]. E finalmente [principalmente] porque, não tendo ficado demonstrado [pelos motivos que apontámos] que a reunião de 21.12.2020 continuaria no dia 07.01.2021, com utilização do mesmo meio telemático [Skype] e da mesma password, de nada valeriam aquelas tentativas de chamadas [através deste meio e desta password], já que delas não teria o destinatário conhecimento.
O que se exigia, perante a «ausência» do Dr. DD, era que a presidente da mesa da AG ou o Dr. EE tivessem ligado para o telemóvel daquele [cujo contacto era, pelo menos, do conhecimento do último] ou que lhe tivessem enviado mensagem por email [do qual ambos dispunham] a avisá-lo de que estava atrasado para a realização da reunião. E, assim, seria fácil estes [melhor, a ré recorrente] fazerem prova de que aquele teria sido efetivamente contactado para aceder à dita reunião, bastando, para tal, que aos autos fossem juntas cópias dessa(s) chamada(s) [retirando-a do histórico do telemóvel)] e/ou do email enviado.
Deste modo, perante a prova produzida e que se deixa analisada, a nossa convicção não diverge da que foi formulada pelo Mmo. Julgador a quo quanto aos referidos factos provados impugnados, pelo que entendemos ser de manter inalterados os factos provados nºs 18), 20) e 22).
E o mesmo acontece relativamente aos factos não provados das als. b), c), d) e e), já que estes constituem o contraponto daqueles factos provados [conclusões XXII e XXV das alegações].
Deste modo, o recurso da recorrente improcede no segmento relativo à impugnação da matéria de facto, mantendo-se inalterada a factualidade, provada e não provada, fixada na sentença recorrida.
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3. Se há que alterar a solução jurídica declarada na sentença recorrida, ainda que por aplicação do instituto do abuso de direito.
Nas conclusões XXVI a XXXIX das alegações, a recorrente pugna pela alteração da decisão de mérito proferida na 1ª instância, defendendo que as deliberações tomadas na reunião de 07.01.2021 não padecem da nulidade declarada na sentença.
Acontece, porém, como facilmente se afere das conclusões XXVI, XXXI e XXXV, que a recorrente radica a alteração da solução jurídica no pressuposto da procedência da matéria de facto que impugnou nas alegações e conclusões do recurso. Na sua perspetiva e face aos termos constantes de tais conclusões, a alteração da referida matéria de facto constitui conditio sine qua non para a, também pretendida, alteração da decisão de direito.
Como a impugnação fáctica improcedeu in totum, apresenta-se evidente que o conhecimento das questões jurídicas ali suscitadas [nas conclusões XXVI a XXXIX] se mostra prejudicado pela manutenção da matéria de facto dada como provada e como não provada na sentença recorrida.
Não há, por conseguinte, que reponderar da correção da nulidade anunciada a pgs. 39 da sentença, onde se diz que [suprime-se o parágrafo]: «E sendo assim teremos de concluir que as deliberações tomadas em 07.01.2021 o foram no âmbito de uma nova assembleia geral, por não se poder considerar que a mesma constituiu uma mera continuação da convocada para o dia 15.09.2020. Donde, (…) tendo as deliberações em causa sido tomadas em assembleia geral que não foi previamente convocada nos termos legais e sem que nela (…)tivessem estado presentes ou representados todos os sócios, terão de se considerar nulas, por força do disposto no artigo 56º nº 1 alínea a) do Código das Sociedades Comerciais.».
A recorrente, nas conclusões XXXII e XXXVI, sustenta, ainda, que a nulidade das deliberações tomadas em 07.01.2021 não pode assentar também no facto de a reunião ter ocorrido em local diverso do que constava da convocatória, assim como não pode ser tido como gerador de anulação daquelas deliberações o facto de a assembleia geral iniciada em 15.09.2020 ter sido sucessivamente adiada e ter excedido os prazos fixados no art. 387º do CSC.
Labora, contudo, em erro, já que a decisão recorrida não assenta a nulidade que declarou na primeira destas causas, nem tão pouco declarou anuláveis as deliberações de 07.01.2021 com fundamento na segunda causa. Isto porque o Mmo. Julgador a quo se limitou a apreciá-las e a proclamar que, se a ação não procedesse com fundamento na causa de nulidade atrás mencionada, sempre procederia com base nas causas agora em apreço; no primeiro caso, implicando a nulidade daquelas deliberações e, no segundo, levando à anulação das mesmas.
Com efeito, quanto à primeira destas causas refere-se na sentença o seguinte [transcreve-se apenas o segmento conclusivo]: «Sem prejuízo de se notar que, a dar-se como boa a versão apresentada por algumas das testemunhas, tendo-se realizado tal reunião de sócios no escritório do representante dos restantes sócios e não na sede, sempre as deliberações também seriam nulas, por tal reunião ocorrer em local diverso do que constava do aviso convocatório (sede da sociedade». E quanto à segunda, consignou-se, no essencial, o seguinte [suprimem-se os parágrafos]: «Mas abstraindo disso, é inequívoco que, entre a data inicialmente marcada (15.09.2020) e a data em que se formaram as deliberações (07.01.2021) decorreram 114 dias, sem descurar que, até à sessão realizada em 21.12.2020, também já haviam decorrido 97 dias, ou seja, mais do que o limite legal de 90 dias. Mostrando-se igualmente incontroverso que a AG em causa, a contar com a que se realizou em 07.01.2021, teve quatro adiamentos (atendendo igualmente à desmarcação da data inicial de 15.10.2020). Ou seja, não só os sucessivos adiamentos não foram deliberados pela assembleia, mas pela presidente da AG, como o foram em violação do disposto no artigo 387º do Código das Sociedades Comerciais. Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 58º nº 1 alínea a) do Código das Sociedades Comerciais, são anuláveis as deliberações que violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56º, quer do contrato de sociedade. Para concluir que tais deliberações também seriam anuláveis pelas referidas razões e por estarem em causa preceitos legais imperativos (nesse sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/02/2018, base de dados da DGSI, processo nº 5221/10.5TBSTS.P1.S2).» [sublinhados nossos].
Como tal, também não há que apreciar estas questões.
Resta a questão do abuso de direito, invocada pela recorrente na conclusão XL das alegações.
Relativamente a este assunto, limita-se a afirmar que «(…) a conduta dos AA., porque contrária aos valores da boa fé, não merece a tutela do Direito, devendo merecer censura de V. Ex.as, ao contrário do que sucedeu na primeira Instância, quer por via do abuso de direito na modalidade de ‘venire contra factum proprium’ quer na modalidade ‘tu quoque’.». Ou seja, a recorrente não concretiza que concretas condutas dos autores poderão integrar as modalidades do abuso de direito que invoca. E, diga-se, esta omissão não é só das conclusões, pois no corpo das alegações também não o faz.
Seremos, por isso, muito breves na apreciação desta questão.
O art. 334º do CCiv. considera que age em abuso de direito ou que é ilegítimo o exercício de um direito «quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Para que o exercício de um direito seja abusivo exige-se que “o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder” ou, dito de outro modo, “que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça”. Basta que o excesso se verifique objetivamente, não se exigindo que o agente tenha consciência dele. Mas só haverá abuso de direito se houver “contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”. E no preenchimento dos conceitos constantes da parte final do normativo em apreço - «boa fé», «bons costumes» e «fim social ou económico» - haverá que atender, quanto aos dois primeiros, “às conceções ético-jurídicas dominantes”, e quanto ao último a “juízos de valor positivamente consagrados na própria lei” [assim, Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ediç., Almedina, pgs. 564-565; cfr. também Coutinho de Abreu, in Do Abuso de Direito, 1999, Almedina, pgs. 15 e segs., que entende que há abuso de direito “quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”].
O abuso de direito comporta várias modalidades, das quais destacamos agora, por serem as que a recorrente invocou, o venire contra factum proprium, ou conduta contraditória e o tu quoque.
No venire contra factum proprium distinguem-se o venire negativo, em que o agente “manifesta uma intenção ou, pelo menos, gera uma convicção de que não irá praticar certo ato e, depois, pratica-o mesmo” [ainda que o acto em causa seja permitido por integrar o conteúdo de um direito subjetivo] e o venire positivo, em que “o agente em causa demonstra ir desenvolver certa conduta e, depois, nega-a”, podendo estas atuações dizer respeito quer ao exercício de um determinado direito potestativo, quer ao exercício de um direito subjetivo comum. No fundo, nesta modalidade o abuso de direito ocorre quando alguém exerce um direito em contradição com uma conduta [sua] anterior em que a outra parte tenha legitimamente confiado, vindo esta, com base na confiança gerada e de boa fé, a programar a sua vida e a tomar decisões na convicção de que aquele direito já não seria exercido [assim, Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2000, Almedina, pgs. 250-255 e Tomo IV, 2005, Almedina, pgs. 275-297; mesmo Autor, in Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Almedina, pgs. 742-745 e Baptista Machado, in Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, RLJ ano 118, pgs. 169, 227 e 228].
Desta descrição decorre que o venire contra factum proprium demanda: i) um comportamento anterior, suficientemente inequívoco/concludente no seu conteúdo, da parte que exerce o direito que seja suscetível de gerar uma situação objetiva de confiança no destinatário [parte contrária]; ii) uma atuação deste destinatário, objetivamente justificada, baseada na boa fé e na confiança gerada por aquele comportamento; iii) e um comportamento posterior [atual] daquele primeiro declarante, objetivamente contraditório com o inicialmente manifestado [além dos Autores citados, cfr. ainda, i. a., os Acórdãos do STJ de 10.01.2023, proc. 412/20.3T8PBL.C1.S1, de 04.07.2019, proc. 34352/15.3T8LSB.L1.S1, de 07.03.2019, proc. 499/14.8T8EVR.E1.S1, de 27.04.2017, proc. 1192/12.1TVLSB.L1.S1 e de 12.11.2013, proc. 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Já a fórmula tu quoque“exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois, sem abuso: - ou prevalecer-se da situação daí decorrente; - ou exercer a posição violada pelo próprio; - ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada”. A aplicação desta modalidade do abuso de direito “requer cautela”, pois se “[f]ere a sensibilidade primária, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir exigir a outrem o seu acatamento”, já “[n]ão é líquido, contudo e sempre ‘a priori’, que um sujeito venha eximir-se aos seus deveres jurídicos alegando violações perpetradas por outra pessoa” [assim, Menezes Cordeiro, obr. cit., Tomo IV, pgs. 327 e segs.; idem, Acórdãos do STJ de 21.03.2023, proc. 2164/16.2T8PTM.E1.S1 e de 14.03.2019, proc. 1189/15.0T8PVZ.P1.S1, disponíveis no mesmo sítio da dgsi; neste último diz-se que “O conteúdo do princípio da proibição do ‘tu quoque’ é o de que quem atua ilicitamente, em desconformidade com o direito, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma atuação ilícita da contraparte”].
Ora, atentando neste quadro referencial, facilmente se conclui o seguinte:
- Quanto à primeira modalidade, não se encontra provado que os autores tenham alguma vez, perante a ré, algum dos seus demais acionistas ou qualquer outra pessoa, manifestado intenção de não arguírem a nulidade das deliberações sociais tomadas na reunião de 07.01.2021 com fundamento na causa que foi efetivamente atendida e declarada na sentença recorrida, pelo que a ré não tinha motivos para se convencer que aqueles não intentariam a presente ação para tal fim.
- No que concerne à segunda modalidade, também não está demonstrado que os réus tivessem violado qualquer norma legal [do CSC ou de outro diploma] ou societária [dos estatutos da sociedade ré, de que são acionistas] relativamente à reunião de 07.01.2021 que, como se diz na sentença recorrida, não se tratou da continuação da assembleia geral iniciada em 15.09.2020, mas sim de «uma nova assembleia geral (…) que não foi previamente convocada nos termos legais» e na qual foram tomadas deliberações «sem que nela tivessem estado presentes ou representados todos os sócios», no caso, sem a presença dos autores.
Soçobra, por isso, também este fundamento do recurso da apelante.
Improcedendo totalmente o recurso, há que confirmar, na íntegra, a douta sentença recorrida.
Pelo decaimento, as custas deste recurso ficam a cargo da recorrente - arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC..
Em conformidade com o exposto, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
2º) Condenar a recorrente nas custas do recurso, pelo decaimento.
Porto, 17/6/2025
Pinto dos Santos
Rodrigues Pires
João Diogo Rodrigues