LIBERDADE CONDICIONAL
CONFISSÃO
ARREPENDIMENTO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VIOLAÇÃO
Sumário

(da responsabilidade do Relator)
I. A decisão de concessão da liberdade condicional assenta num juízo de prognose favorável sobre o comportamento do agente uma vez regressado ao meio social aberto, juízo que tem de ser afirmativo e não meramente presumido isto é, na eventualidade de haver dúvidas inultrapassáveis quanto ao sentido favorável ou desfavorável de um tal juízo, não tem aqui aplicação uma espécie de in dubio pro reo.
II. Como juízo que é, do que se trata é de algo por natureza relativamente incerto: a emissão de um juízo de prognose favorável comporta sempre o risco de o condenado não vir a corresponder à expetativa que nele se depositou; e a emissão de um juízo de prognose desfavorável não significa que o condenado, se acaso lhe tivesse sido concedida a liberdade condicional, não viesse a revelar-se merecedor de que aquele voto lhe houvesse sido outorgado.
III. Devendo rejeitar-se uma decisão de mera intuição ou profundamente marcada pelo subjetivismo, dadas as suas arbitrariedade e incerteza, de resto incompatíveis com requisitos essenciais de um verdadeiro Estado de Direito Democrático, não pode em todo o caso esperar-se nesta matéria um juízo passível de escrutínio matemático.
IV. Para a concessão da liberdade condicional não é absolutamente imprescindível que o condenado reconheça os factos que as decisões condenatórias deram como provado que praticou, os crimes cometidos e a existência das vítimas correspondentes, e que assuma um genuíno arrependimento.
V. A ausência daquele reconhecimento ou daquele arrependimento, em si mesma, não deve conduzir a um juízo de prognose desfavorável; a ele poderá levar se, em concreto, puder fundadamente dizer-se que a não assunção dos factos e em particular a inexistência de arrependimento resultam da persistência, no recluso, de sentimentos avessos às normas e aos bens jurídicos atingidos e que estes acarretam o risco de voltar a ofender umas e outros.
VI. Não pode assim defender-se, logo no plano abstrato, que esta sua postura de não reconhecimento dos factos e/ou de não manifestação de arrependimento obstam terminantemente à formulação do tal juízo de prognose favorável; da mesma forma, aliás, que, ao contrário, o reconhecimento dos factos e uma manifestação, até sincera, de arrependimento, não conduzem forçosamente a um juízo de prognose favorável.
VII. Pode suceder que o recluso não reconheça os factos ou não se manifeste arrependido por razões relativamente benignas, como por exemplo por vergonha social e de proteção da autoimagem, e que se tenha definitivamente afastado de uma qualquer propensão criminosa que chegara a vivenciar; como pode suceder que o percurso do recluso em todas as demais dimensões da sua vida tenha sido tão positivo que, no cômputo geral, compense a crítica que se lhe possa dirigir por não assumir a autoria dos factos e/ou por se não manifestar genuinamente arrependido de os ter cometido, ao ponto de nos persuadir que tudo indica que saberá e conseguirá, em liberdade, comportar-se de forma comunitariamente responsável e, em particular, que não cometerá novos crimes.
VIII. A relação do condenado com o crime cometido, a que se reporta o art. 173º, nº 1 do CEPMPL, é assim um elemento a considerar, de entre outros.
IX. O que os números públicos consistentemente indiciam, ainda que de forma tendencial, é uma implantação muito perturbadora dos crimes de violência doméstica e de violação na sociedade, que dificilmente será compatível, do ponto de vista da defesa da ordem e da paz social, com uma execução efetiva da pena aplicada meramente pela metade.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório
Pelo Juízo de Execução das Penas de Lisboa (Juiz 5) foi proferida no dia ... de ... de 2025 decisão de não concessão de liberdade condicional, ao meio da pena, ao recluso AA, com os demais sinais identificativos constantes dos autos.
Inconformado, o Arguido interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões:
«1) O ora Recorrente é recluso, no Estabelecimento Prisional ..., onde cumpre, em execução sucessiva, as seguintes penas de prisão:
- 2 anos e 6 meses, à ordem do P.C.S. n.º 5/20.5... do Juízo Local Criminal de Setúbal, pela prática de 1 crime de violência doméstica agravado (pena cumprida e declarada extinta);
- Única de 4 anos e 9 meses, à ordem do P.C.C. n.º 395/15.1... do ... (J2), pela prática de 2 crimes de violação;
2) O presente recurso é do Despacho, aliás douto Despacho, que não concedeu a Liberdade Condicional, no marco do 1/2 da referida pena de 4 Anos e 9 meses.
3) O douto Despacho ora recorrido considera não estar preenchido o requisito material da prevenção especial previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 61º do Código Penal, concluindo “Efetivamente, verificados que estejam, como estão no presente caso, os requisitos de ordem formal – quais sejam o cumprimento de metade da pena com um mínimo absoluto de seis meses (período de tempo a partir do qual, na perspetiva do legislador, a pena tem potencialidade de já ter cumprido as suas finalidades) e o consentimento do recluso (art. 61.º do código penal, de ora em diante designado CP) -, o legislador exige, ainda, que a libertação se revele compatível com a defesa da ordem e paz social (art. 61.º n.º 2 al. b) do CP).
Pretende-se, pois, dar ênfase à prevenção geral, traduzida na proteção dos bens jurídicos e na expetativa que a comunidade deposita no funcionamento do sistema penal.
Não estando assegurado este requisito, não poderá ser concedida a liberdade condicional, ainda que o condenado revele bom prognóstico de recuperação.
Este prognóstico de recuperação consubstancia o último dos pressupostos materiais: o legislador apenas permite a libertação condicional caso haja fundada expetativa de que, em liberdade, o condenado conduzirá a sua vida responsavelmente, sem cometer crimes (art. 61.º n.º 2 al. a) do CP).
Apela-se, em suma, à prevenção especial, na perspetiva de ressocialização e prevenção da reincidência.
Na avaliação da prevenção especial terá o julgador de elaborar um juízo de prognose sobre a conduta do recluso no que respeita a reiteração criminosa e o seu bom comportamento futuro, a aferir pelas circunstâncias do caso, antecedentes, personalidade e evolução durante o cumprimento da pena.
No que ao presente caso diz respeito importa frisar, desde logo, que são muito elevadas as necessidades de prevenção geral, expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de infração em que está em causa um valor nuclear da convivência social.
4. A decisão de não concessão da Liberdade Condicional é uma decisão desacertada, assente, quase exclusivamente, na perceção/intuição do douto Tribunal a quo, recolhida nas Audições do recluso, que vai no sentido contrário ao de toda a matéria de facto carreada para os autos e dada como provada;
5. Desvaloriza ainda e desconsidera o facto de ter 27 anos.
6. A decisão de não concessão da Liberdade Condicional, atento o teor do douto Despacho ora recorrido, resulta apenas de douto Tribunal a quo, em que ouviu, o recluso ora Recorrente, não acreditar nas declarações que o mesmo lhe prestou, pela alegada falta de interiorização;
7. Sublinha-se que o douto Despacho recorrido não justifica, não fundamenta, não aponta, as razões que levaram o Digno Tribunal a quo a intuir que as declarações não eram sinceras, não eram normais, não correspondiam ao que verdadeiramente o recluso sentia;
8. A partir desta impressão/intuição, que é contrária a todas as evidências existentes, documentalmente, nos autos, à evolução da personalidade e do sentido autocrítico do ora Recorrente sobre o crime cometido e o desvalor da sua conduta, o Tribunal a quo decidiu, considerar que o recluso não foi sincero consigo e, por isso, e estribando-se nos poderes de que dispõe e, em nosso entender e com o devido respeito, exorbitando-os de forma inaceitável, porque não são ilimitados, decidiu como decidiu, por essa falta de sinceridade que intuiu e não lhe conceder a Liberdade Condicional;
9. O que, naturalmente, não pode ser verdade e, certamente, não o é;
10. É, na parte respeitante à Personalidade do Agente e à Evolução da Mesma durante a Execução da Pena, que o Digno Tribunal a quo se estriba para não conceder a Liberdade Condicional;
11. Mas o Digno Tribunal a quo não só não valorou adequadamente o arrependimento e o sentido autocrítico manifestado pelo recluso ora Recorrente como desvaloriza a evolução da personalidade ao longo da execução da pena;
12. Certamente, se o ora Recorrente não tem evoluído no sentido autocrítico em relação ao crime praticado e não verbalizasse essa evolução, teríamos, agora, o Digno Tribunal a quo a dizer isso mesmo, que não evoluíra, nem no sentido autocrítico, nem na verbalização do mesmo;
13. A sua apreciação não pode ser puramente subjetiva, assentar, nos escassos minutos da Audição do recluso.
14. A ser assim – que não pode ser – os poderes do Juiz do TEP seriam, relativamente à concessão da Liberdade Condicional, ilimitados e não sujeitos a controlo, designadamente, jurisdicional;
15. Apesar de o Magistrado do TEP ter grande liberdade de apreciação e de decisão, estas não podem, sob risco de incompreendidas pelos destinatários e, por via disso, levarem à total quebra da confiança no exercício do poder judicial e ao seu descrédito, ser destituídas, por completo, de fundamento factual objetivo e, no mesmo caso e de forma repetida no tempo, serem contrárias aos pareceres e documentos exigíveis pela lei, para melhor ajudar à tomada de justa decisão;
16. O douto Despacho ora recorrido enferma, pois, de vários vícios, desde a falta de fundamentação, passando por ininteligibilidade de várias conclusões, falta de suporte factual e documental das decisões tomadas e excessiva e exorbitante liberdade de apreciação, estribando-se, no essencial, em mera intuição pessoal, que contraria e está em notória oposição aos elementos/factos/documentos/evidências objetivas existentes nos autos, até à violação da lei;
17. O douto Despacho viola, entre outras disposições legais, o artigo 61º, nº 1, alínea a), do Código Penal e artigo 146º, nº 1, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.
18. Não se vislumbra em que medida a sujeição do arguido para cumprimento do remanescente da pena, à obrigação de permanência na habitação, mediante vigilância eletrónica, possa, por um lado, causar forte perigo e insegurança para a tranquilidade e ordem pública, e, por outro lado, que tal medida não seja adequada nem eficaz para prevenir o perigo da continuidade da atividade criminosa.
19. Se o arguido ficar em casa, eletronicamente vigiado, está afastado o mencionado perigo.
20. A permanência na habitação tem ainda o efeito positivo de poupar o arguido ao efeito criminógeno da reclusão em estabelecimento prisional, pelo período preventivo, tendo em vista o binómio ganhos/perdas – efeito ressocializador versus a dessocialização inevitavelmente devido ao efeito criminógeno – que, pode ser, será, desfavorável ao fim da ressocialização da pena.
21. A requerida obrigação de permanência na habitação, mediante vigilância eletrónica, nos termos e para os efeitos do art. 201º do C.P.P., satisfaz perfeitamente as exigências cautelares que o caso requer.
22. Pelo que, é obrigatório mandar elaborar esta informação sempre que o arguido solicitar que a mesma seja realizada, sendo forçoso dar cumprimento ao disposto no nº 2 do artigo 7º da Lei nº 33/2010.
23. A realização deste elemento pelos serviços de reinserção social enquadra-se na economia processual.
24. Encontra-se estabelecida uma gramática processual, que corresponde a um conjunto de regras sobre o andamento dos processos judiciais, não se devendo aqui confundir aquele vocábulo no sentido de normas sobre o uso da linguagem. Está em causa a tramitação processual legalmente consagrada ou, segundo léxico diferente, economia processual vigente. Na economia adjetiva, o primeiro vocábulo da expressão não deve aqui ser entendido na aceção de moderar gastos, reduzir atividades ou de quantia amealhada graças ao corte nas despesas.
25. Assume o significado de normativo que regula o funcionamento de uma dinâmica, neste caso a dos autos judiciais que correm seus termos nos tribunais. Por vezes, é utilizada palavra diversa, na expressão gestão processual. Numa aceção que se afigura imprópria, nalgumas ocasiões, a expressão economia processual surge associada à aludida redução de atividades, à celeridade ou à simplificação.
26. Neste quadro, a Assembleia da República aprovou democraticamente um regime que prevê uma certa tramitação, que tem de ser escrupulosamente cumprida pelos tribunais.
27. De acordo com aquele regime, cronologicamente seguem-se os atos por esta ordem: a. Requerimento formulado pelo arguido (n° 1 do artigo 7°);
b. Prévia informação elaborada pelos serviços de reinserção social (n° 2 do artigo 7°); c. Audição do Ministério Público (n° 3 do artigo 7°);
d. Audição do arguido, que se pronunciará após ser notificado do teor daquela informação (n° 3 do artigo 7°);
e. Decisão "por despacho do juiz" (n° 1 do artigo 7°).
26) O juiz é titular de um órgão de soberania. Estatui com independência, imparcialmente e no exercício de um poder que apenas a ele lhe compete. Fá-lo sujeitando-se à lei, sem enjeitar os contributos interdisciplinares que permitem apurar qual a situação dos arguidos sem se alhear da realidade que ainda não conhece e que lhe será transmitida pelos serviços de reinserção social, à qual incumbe uma missão a cumprir no domínio judiciário, respeitando a tendência atual de o juiz conhecer o mundo que vai para além do processo e dos códigos, não se abstraindo da vivência concreta experienciada no terreno e cujos elementos são trazidos por especialistas de diferentes áreas do saber, o que tem encontrado consagração na lei substantiva e adjetiva.
27) Se não estiverem arredados os alegados perigos de fuga e da continuação da atividade criminosa encontram-se, pelo menos, significativamente mitigados.
28) Como local para execução da medida, o arguido indica a morada dos seus avós.
Termos em que, como nos demais de direito que doutamente se suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, a decisão que recusou a concessão da Liberdade Condicional ao ora Recorrente e substituindo-a por outra que lhe conceda a Liberdade Condicional, pela Obrigação de Permanência na Habitação, por estarem preenchidos os respetivos pressupostos formais e materiais, remetendo-se, subsequentemente, os autos, ao Digníssimo Tribunal a quo, para os efeitos previstos no nº 2 do artigo 177.º do CEPMPL.»
O recurso foi admitido com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
O Ministério Público apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
«NOTA PRÉVIA
a) Recorre o recluso duma decisão da apreciação da LC ao meio da pena, sem que nas suas alegações ou conclusões ponha em causa a existência de fortes necessidades de prevenção geral, que se considerou existirem e não estarem afastadas nesta fase de cumprimento da pena, aspeto sobre o qual não se pronunciou o recurso, pelo que esta é uma deficiência estrutural do mesmo que determina desde logo o seu decaimento...
b) Pois que mesmo considerando-se a procedência do recurso no que a prevenção especial diz respeito são evidentes as necessidades de prevenção especial, e estas permanecem íntegras após a apreciação do recurso...
1) O ora Recorrente é recluso, no Estabelecimento Prisional ..., onde cumpre, em execução sucessiva, as seguintes penas de prisão:
- 2 anos e 6 meses, à ordem do P.C.S. n.º 5/20.5... do Juízo Local Criminal de Setúbal, pela prática de 1 crime de violência doméstica agravado;
- Única de 4 anos e 9 meses, à ordem do P.C.C. n.º 395/15.1... do ... (J2), pela prática de 2 crimes de violação;
2) Afirma o recorrente que o presente recurso é do douto Despacho que não concedeu a Liberdade Condicional, no marco dos 1/2 da referida pena de 4 Anos e 9 meses, (o que não se compreende pois que se apreciou a LC quanto às duas penas em cumprimento sucessivo).
3) A decisão de não concessão da Liberdade Condicional não é de forma alguma uma decisão desacertada, pois não assenta quase exclusivamente, na perceção/intuição do douto Tribunal a quo pois que vai no sentido de toda a matéria de facto carreada para os autos e que foi dada como provada após audição do recluso;
4) Não se desvaloriza e desconsidera o facto de ter 27 anos, pois que o mesmo não obstante jovem tem antecedentes criminais e cumpre pena por crimes graves.
5) O Despacho recorrido justifica, e fundamenta, as razões que determinaram a decisão, fazendo constar declarações do recluso ora recorrente, elucidativas.
6) Não é apenas na parte respeitante à Personalidade do Agente e à Evolução da Mesma durante a Execução da Pena, que o Digno Tribunal a quo se estriba para não conceder a Liberdade Condicional pois que foi avaliada a prevenção geral de forma clara.
7) Apurou-se que quanto à prevenção especial o recluso necessita, pois, de evoluir - e muito - a sua consciência crítica e consolidar o seu percurso prisional.
8) Para o efeito será importante que frequente programas específicos para a sua tipologia de crimes de modo a que os mesmos possam contribuir para a aquisição de competências pessoais e sociais que potenciem a interiorização do desvalor da sua conduta e alteração comportamental almejada (note-se, o condenado efetuou pedido para integrar o programa).
9) Naquele contexto e no âmbito da tipologia dos crimes em análise, para beneficiar da liberdade condicional é fundamental equacionar e avaliar medidas de flexibilização da pena de modo a que possa testar-se a capacidade contentora do seu apoio no exterior, bem como firmar-se uma convicção sobre se o condenado logra manter uma conduta normativa em meio livre e se está capaz de observar as injunções e proibições inerentes à liberdade condicional.
Deverá assim flexibilizar a pena, o que ainda não sucedeu.
10) Assim, entendemos que face à matéria de fato apurada resulta que não se encontram diminuídas as razões de prevenção especial que ao caso assistem, não laborando a sentença em qualquer erro de apreciação ou subjetividade.
11) Resulta ainda da sentença que;
Cumpre também salientar as muito elevadas necessidades de prevenção geral no que aos crimes de violência doméstica diz respeito, na medida em que importa colocar definitivamente termo a um dos principais flagelos da sociedade portuguesa, designadamente, aos maus tratos físicos e psicológicos.
12) Se é certo que se pretende inquestionavelmente a recuperação e ressocialização do arguido/recluso, não se pode escamotear, de todo, as consequências decorrentes da sua conduta para a vítima.
Neste contexto – e essencialmente no âmbito dos crimes de violação e de violência doméstica -, a pena não pode deixar de ter uma razoável componente retributiva.
Como tal, não seria compreendida pela comunidade (i.e., o cidadão comum) a libertação, por referência ao meio da pena e quando ainda faltam praticamente 3 anos e 4 meses para o seu termo, do perpetrador de crimes desta natureza.
13) Assim, a libertação do recluso nesta altura não salvaguardaria o sentimento geral de vigência das normas penais violadas com a prática dos crimes, banalizaria tal prática, atacaria a paz jurídica entre o cidadão e o seu sentimento de que as normas em questão foram suficientemente defendidas através da pena já cumprida, transmitiria um enfraquecimento da ordem jurídica potenciador de delitos desta natureza, defraudaria, em suma, a confiança da comunidade no funcionamento do sistema penal e a proteção, além do mais, de bem jurídico relevante no nosso sistema penal.
14) Por outro lado, em sentido contrário do que parecem apontar, em parte, os relatórios dos serviços de educação e da reinserção social, o recluso manifesta uma total ausência de consciência crítica no tocante à sua conduta pretérita, às suas consequências, sendo ainda clarividente uma total ausência de empatia pela vítima.
15) Ora, a reflexão autocrítica sobre a conduta criminosa e suas consequências é indispensável para que se conclua que o condenado está munido de um relevante inibidor endógeno.
16) Nas atuais circunstâncias, considera-se persistirem necessidades de reinserção social no plano das competências pessoais, sendo relevante que o recluso desenvolva o seu processo de mudança endógena, através da frequência dos programas para ofensores sexuais e de violência doméstica.
17) E sendo certo que o arrependimento e reconhecimento do ilícito perpetrado não são fatores imprescindíveis à concessão da liberdade condicional - nem aliás tal foi, assim, afirmado na sentença e no nosso parecer - o certo é que tais circunstâncias não podem deixar de ser ponderadas em sede de personalidade do condenado e refletir-se na apreciação da evolução desta no cumprimento da pena.
18) Tanto mais quando é consabido que a reiteração criminosa no âmbito de crimes sexuais cometidos por adultos é muito elevada, precisamente porque aqueles se encontram incapazes de interiorizar o mal perpetrado, vendo a sua conduta como normal e até resultado de uma pretensa sedução das vítimas, embora escondam por saberem que a sociedade a condena e a entende como repugnante.
19) Ou seja numa medida graciosa como é a da concessão da liberdade condicional, que não se trata dum direito subjetivo do recluso, que apenas tem direito à apreciação da LC e não mais, será numa perspetiva de integração POSITIVA, em que os factos terão de ser apreciados de forma a construir o juízo de prevenção especial integrativa que manifestamente ainda não existe no caso…
20) Diremos que é ao recluso que cabe construir e percorrer o seu percurso prisional, afastando as razões de prevenção especial e da proteção de bens jurídicos que determinaram a aplicação da pena, partindo-se também da sua vida passada, onde constam naturalmente as condenações...
21) Ora no caso concreto, face à gravidade e reiteração dos factos e do percurso prisional do recluso, ainda inconclusivo, o mencionado equilíbrio não foi ainda atingido, pois face ao desvalor das condutas em termos de prevenção quer geral quer especial e face assim às necessidades de consolidação do percurso do recluso, bem andou a sentença recorrida.
Assim sendo mantida decisão ora recorrida farão Vª Exºs a costumada Justiça.»
Uma vez remetidos os autos a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta lavrou douto parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado pelo art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o Arguido respondeu, reafirmando a sua posição.
Colheram-se os vistos e teve lugar a conferência.
*
2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 O objeto do recurso
A problemática que se encontra sob debate é no fundo a de saber se deve ou não conceder-se liberdade condicional ao Recorrente; mostra-se ainda subordinada à nossa apreciação, pelo Recorrente, a sua eventual sujeição ao regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica, no contexto da dita liberdade condicional.
2.2 A decisão recorrida
Tem a decisão recorrida o seguinte teor, que aqui se transcreve nas partes relevantes:
«I. Relatório
(…)
Foram elaborados e juntos aos autos os relatórios previstos no art. 173.º n.º 1 als. a) e b) do CEPMPL.
O Conselho Técnico emitiu, por unanimidade, parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional (art. 175.º do CEPMPL).
Ouvido o recluso este, entre outros esclarecimentos, deu o seu consentimento à concessão da liberdade condicional (art. 176.º do CEPMPL).
O M.P. emitiu parecer desfavorável (art. 177.º n.º 1 do CEPMPL).
II. Fundamentação:
1. De facto:
1.1 Factos mais relevantes:
Circunstâncias do caso:
O recluso cumpre, em execução sucessiva, as seguintes penas de prisão:
1. 2 anos e 6 meses, à ordem do P.C.S. n.º 5/20.5... do Juízo Local Criminal de Setúbal, pela prática de 1 crime de violência doméstica agravado (pena cumprida e declarada extinta);
2. Única de 4 anos e 9 meses, à ordem do P.C.C. n.º 395/15.1... do ... (J2), pela prática de 2 crimes de violação;
Cumprimento da pena:
- Início: 2.3.2021;
- 1/2: 17.10.2024;
- 2/3: 2.1.2026;
- 5/6: 17.3.2027;
- Termo: 2.6.2028;
*
1.2 Motivação da matéria de facto:
A convicção do tribunal no que respeita a matéria de facto – infra resumida e objeto de análise sintética - resultou da decisão condenatória junta aos autos, da ficha biográfica e certificado de registo criminal do recluso, dos relatórios juntos aos autos, elaborados pelos serviços prisionais e pela reinserção social, dos esclarecimentos prestados em conselho técnico e das declarações do recluso.
*
2) De Direito (e respetiva subsunção factual):
A liberdade condicional tem como escopo “o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recuperar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão. Com tal medida […] espera o Código fortalecer as esperanças de uma adequada reintegração social do interessado, sobretudo daquele que sofreu um afastamento mais prolongado da coletividade” (Leal-Henriques e Simas Santos, in “Código Penal”, Rei dos Livros, 1.º vol., 2.ª ed., pág. 504).
Assim, a finalidade primária da liberdade condicional “é a reinserção social do cidadão recluso, sendo certo que, até serem atingidos os dois terços da pena, esta finalidade está limitada pela exigência geral preventiva de defesa da sociedade” (Anabela Rodrigues, in “A Fase de Execução das Penas e Medidas de Segurança no Direito Português”, BMJ, 380, pág. 26).
Efetivamente, verificados que estejam, como estão no presente caso, os requisitos de ordem formal – quais sejam o cumprimento de metade da pena com um mínimo absoluto de seis meses (período de tempo a partir do qual, na perspetiva do legislador, a pena tem potencialidade de já ter cumprido as suas finalidades) e o consentimento do recluso (art. 61.º do código penal, de ora em diante designado CP) -, o legislador exige, ainda, que a libertação se revele compatível com a defesa da ordem e paz social (art. 61.º n.º 2 al. b) do CP).
Pretende-se, pois, dar ênfase à prevenção geral, traduzida na proteção dos bens jurídicos e na expetativa que a comunidade deposita no funcionamento do sistema penal.
Não estando assegurado este requisito, não poderá ser concedida a liberdade condicional, ainda que o condenado revele bom prognóstico de recuperação.
Este prognóstico de recuperação consubstancia o último dos pressupostos materiais: o legislador apenas permite a libertação condicional caso haja fundada expetativa de que, em liberdade, o condenado conduzirá a sua vida responsavelmente, sem cometer crimes (art. 61.º n.º 2 al. a) do CP).
Apela-se, em suma, à prevenção especial, na perspetiva de ressocialização e prevenção da reincidência.
Na avaliação da prevenção especial terá o julgador de elaborar um juízo de prognose sobre a conduta do recluso no que respeita a reiteração criminosa e o seu bom comportamento futuro, a aferir pelas circunstâncias do caso, antecedentes, personalidade e evolução durante o cumprimento da pena.
No que ao presente caso diz respeito importa frisar, desde logo, que são muito elevadas necessidades de prevenção geral, expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de infração em que está em causa um valor nuclear da convivência social.
Com efeito, os crimes sexuais, mormente o referido, gera forte repúdio no seio da sociedade, o que encontra explicação, também, nas consequências que estes crimes podem comportar, deixando as vítimas indelevelmente marcadas de forma muito negativa para o resto da sua vida.
Cumpre também salientar as muito elevadas necessidades de prevenção geral no que aos crimes de violência doméstica diz respeito, na medida em que importa colocar definitivamente termo a um dos principais flagelos da sociedade portuguesa, designadamente, aos maus tratos físicos e psicológicos, flagelo este que, em pleno século XXI continua a ser transversal na nossa sociedade, sem que se perspetive qualquer atenuação, apesar da progressiva chamada de atenção da educação, da sociedade civil, do Estado e dos meios de comunicação social para a gravidade de tais comportamentos e para a desagregação manifesta que provoca nos agregados familiares, bem como para as consequências nefastas que provoca no desenvolvimento da pessoa humana, o atentado que potencia à dignidade da pessoa e as consequências decorrentes para o corpo e a saúde (física e psicológica) das vítimas.
Se é certo que se pretende inquestionavelmente a recuperação e ressocialização do arguido/recluso, não se pode escamotear, de todo, as consequências decorrentes da sua conduta para a vítima.
Neste contexto – e essencialmente no âmbito dos crimes de violação e de violência doméstica -, a pena não pode deixar de ter uma razoável componente retributiva.
Como tal, não seria compreendida pela comunidade (i.e., o cidadão comum) a libertação, por referência ao meio da pena e quando ainda faltam praticamente 3 anos e 4 meses para o seu termo, do perpetrador de crimes desta natureza.
Assim, a libertação do recluso nesta altura não salvaguardaria o sentimento geral de vigência das normas penais violadas com a prática dos crimes, banalizaria tal prática, atacaria a paz jurídica entre o cidadão e o seu sentimento de que as normas em questão foram suficientemente defendidas através da pena já cumprida, transmitiria um enfraquecimento da ordem jurídica potenciador de delitos desta natureza, defraudaria, em suma, a confiança da comunidade no funcionamento do sistema penal e a proteção, além do mais, de bem jurídico relevante no nosso sistema penal.
No âmbito da prevenção especial, as respetivas necessidades ainda são muito prementes.
É certo que não averba infrações disciplinares desde junho de 2023.
Em meio livre beneficiará do apoio dos avós, essencialmente a nível de integração habitacional e familiar.
Porém:
O recluso tem um percurso de vida marcado por reduzidos vínculos afetivos e dinâmicas estruturantes e protetoras, denota fragilidades pessoais, emocionais e sociais que se entendem como fundamentais trabalhar.
Por outro lado, em sentido contrário do que parecem apontar, em parte, os relatórios dos serviços de educação e da reinserção social, o recluso manifesta uma total ausência de consciência crítica no tocante à sua conduta pretérita, às suas consequências, sendo ainda clarividente uma total ausência de empatia pela vítima.
Isso foi evidente na sua audição na qual, confrontado com os crimes, no essencial, referiu: “não violei essa pessoa nem lhe bati”).
Ora, a reflexão autocrítica sobre a conduta criminosa e suas consequências é indispensável para que se conclua que o condenado está munido de um relevante inibidor endógeno.
Quem não logrou ainda percecionar em plenitude o mal cometido, dificilmente possui mecanismos passíveis de evitar a repetição da sua conduta.
Como explicitam João Luís de Moraes Rocha e Sónia Maria Silva Constantino (in “Reclusão e Mudança” - “Entre a Reclusão e a Liberdade”, Vol. II, Pensar a Reclusão, Almedina, pág. 171), “sem interiorização da responsabilidade dificilmente será possível alterar comportamentos”.
Neste âmbito necessita, pois, de evoluir – e muito - a sua consciência crítica e consolidar o seu percurso prisional.
Para o efeito será importante que frequente programas específicos para a sua tipologia de crimes de modo a que os mesmos possam contribuir para a aquisição de competências pessoais e sociais que potenciem a interiorização do desvalor da sua conduta e alteração comportamental almejada (note-se, o condenado efetuou pedido para integrar o programa).
Por outro lado, ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da pena (licenças de saída jurisdicional, regime aberto no interior e/ou regime aberto no exterior).
Naquele contexto e no âmbito da tipologia dos crimes em análise, para beneficiar da liberdade condicional é fundamental equacionar e avaliar medidas de flexibilização da pena de modo a que possa testar-se a capacidade contentora do seu apoio no exterior, bem como firmar-se uma convicção sobre se o condenado logra manter uma conduta normativa em meio livre e se está capaz de observar as injunções e proibições inerentes à liberdade condicional.
Ademais, regista frágeis competências escolares, manteve irregularidade a nível profissional, não revelando objetivos definidos, embora faça planos para um projeto de vida mais positivo.
Em suma e no essencial:
Nas atuais circunstâncias, considera-se persistirem necessidades de reinserção social no plano das competências pessoais, sendo relevante que o recluso desenvolva o seu processo de mudança endógena, através da frequência dos programas para ofensores sexuais e de violência doméstica.
Por outro lado, importa que beneficie de medidas de flexibilização da pena que possibilitem avaliar a recetividade do meio e o impacto da sua libertação na vida da vítima e da segurança da sociedade, em geral.
Assim, pese embora se julgue positivos uma parte residual dos fatores elencados, é mister concluir que razões de prevenção geral e especial impõem que se acompanhe o parecer unânime do Conselho Técnico e do M.P., no sentido de que não estão reunidas condições para que seja concedida ao recluso, neste momento, a liberdade condicional.
(…)»
2.3 Factos processuais com potencial relevo para a decisão
Da análise dos autos, a saber, dos elementos que integram a certidão de .../.../2025 (referência eletrónica nº ...), do Processo Único de Recluso e do Apenso A), resultam vários elementos que aqui exaramos, por se revestirem de potencial interesse para a decisão:
2.3.1 No âmbito do Proc. nº 395/15.1... o Recorrente foi condenado, por acórdão transitado em julgado em ... de ... de 2018, na pena única de 4 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova, pela prática, em dias não concretamente determinados de ..., de dois crimes de violação, na pessoa da ofendida BB, previstos pelo art. 164º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na redação introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4/09.
2.3.2 No âmbito do Proc. nº 5/20.5..., por sentença de ... de ... de 2020, transitada em julgado em ... de ... de 2021, o Recorrente foi condenado pela prática, entre ... e dia não apurado de ..., de um crime de violência doméstica agravado, na pessoa de CC, previsto pelo art. 152º, nºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória de 2 anos e 6 meses de proibição de contactos com a ofendida.
2.3.3 A prática do crime mencionado em 2.3.2 viria a estar na origem da revogação da suspensão da execução da pena referida em 2.3.1, nos termos de despacho proferido em ... de ... de 2021, transitado em julgado em ... de ... de 2021.
2.3.4 O Recorrente começou em ... de ... de 2021 a cumprir a pena de prisão mencionada em ........2, tendo sido homologada a contagem de pena nos seguintes termos, por despacho judicial de ... de ... de 2021:
- meio da pena: 02/06/2022;
- 2/3 da pena: 02/11/2022;
- termo da pena: 02/09/2023.
2.3.5 O Relatório para Liberdade Condicional ao meio da pena (da soma das duas penas), elaborado nos autos com data de 14 de novembro de 2024, concluiu por um parecer desfavorável, consignando o seguinte, relativamente à história de vida, condições pessoais e sociais e projetos de futuro do Recorrente (referência eletrónica nº 2015636 do Apenso A.):
- Quando em liberdade, espera integrar o agregado dos avós maternos, que residem em ..., sendo que estes deparam-se com problemas de saúde e residem sozinhos…;
...o Recorrente desenvolveu o seu processo de socialização em ..., junto dos avós, mas adotado por uma tia, após a morte prematura dos seus pais quando tinha dois anos de idade (a mãe encontrava-se grávida e suicidou-se e o pai devido a problema de saúde grave de epilepsia)…;
…regressou ao agregado dos avós aos seis anos, ressentindo-se com a educação austera praticada pelos tios…;
…não tem visitas por parte da família…;
…tem uma irmã mais velha, com quem manteve sempre um relacionamento próximo, mas atualmente não tem mantido contacto…;
…a nível afetivo manteve duas ligações mais significativas…;
…não teve até ao momento medidas de aproximação ao meio livre, não se perspetivando porém qualquer rejeição, uma vez que gozava no seu meio de uma imagem positiva…;
…iniciou o percurso escolar em idade regular, mas a falta de motivação reteve-o várias vezes…;
…foi acompanhado em Psicologia durante a frequência do 6º ano…;
…no 3º Ciclo frequentou um curso de carpintaria que terminou aos 18 anos e o habilitou com o 9º ano de escolaridade…;
…iniciou então atividade profissional de modo instável e em diversas áreas, ... ... e chegou a permanecer um período de tempo na Irlanda do Norte…;
…não tem qualquer projeto profissional para quando em liberdade, embora pense conseguir uma colocação rapidamente…;
…quando em liberdade, o Recorrente dependerá do apoio da família, essencialmente dos avós, os quais, por sua vez, dependem das suas pensões de reforma…;
…tem epilepsia, à qual tem vindo a ser acompanhado nos serviços clínicos do Estabelecimento Prisional…;
…revela neste momento uma maior capacidade reflexiva e consciência crítica, embora ainda frágil, quanto à sua anterior conduta…;
…no Estabelecimento Prisional ... tem mantido uma conduta adequada às normas instituídas…;
…aguarda a integração na Escola e no Programa Vincular…;
…não beneficiou até ao momento de licenças de saída jurisdicional.
2.3.6 Os Serviços Prisionais elaboraram também um relatório de liberdade condicional, datado de 31 de julho de 2024, concluindo no sentido de que é prematura uma eventual libertação antecipada, relatório esse do qual constam nomeadamente as seguintes indicações quanto ao Recorrente (referência eletrónica nº 1982034 do Apenso A.):
- apresenta atualmente uma postura correta e uma imagem cuidada, verificando-se um nível de interação social adequado…;
-…concluiu o 9º ano enquadrado em formação profissional na área da carpintaria…;
-…frequentou o ensino secundário no ano letivo 2021/2022, mas devido a incompatibilidade com uma professora, acabou por abandonar a frequência escolar…;
-…recentemente voltou a manifestar interesse em integrar a escola, tendo efetuado matrícula para o ano letivo seguinte…;
-…em meio prisional permanece inativo em termos de trabalho, não evidenciando por ora motivação para a colocação laboral…;
-…manifesta disponibilidade para realizar intervenção específica dirigida às suas fragilidades criminógenas, tendo efetuado pedido para integrar o respetivo programa…;
-…padece de patologia de saúde que requer acompanhamento regular e cumprimento da terapêutica prescrita, matéria em que, apesar de alguns incumprimentos iniciais, tem adotado uma postura mais responsável…;
-…regista três infrações disciplinares (a 18/11/2022, agressões a outro recluso – 12 dias de cela disciplinar; a 27/03/2023, agressões entre reclusos – 4 dias de cela disciplinar, sanção esta objeto de perdão; e a 21/06/2023, comportamento agressivo e ameaçador numa deslocação ao hospital – 3 dias de cela disciplinar e 5 de permanência obrigatória no alojamento)…;
-…não beneficia de qualquer visita desde 23/08/2023…;
-…não teve ainda qualquer licença de saída jurisdicional…;
-…denota intenção de adequar o seu discurso de acordo com a desejabilidade social, por forma a facilitar a flexibilização da pena, verbalizando que assume, mas sem ressoar qualquer convicção sobre a real assunção dos atos cometidos, mantendo ausência de consciência crítica sobre os factos que determinaram a sua condenação.
2.3.7 O Conselho Técnico reuniu no dia 22 de novembro de 2024 e emitiu por unanimidade parecer desfavorável à concessão de liberdade condicional (referência eletrónica nº 11465884 do Apenso A.)
2.3.8 Após, nesse mesmo dia, procedeu-se à audição do recluso (referência eletrónica nº 11465888 do Apenso A.)
2.3.9 O Ministério Público junto do Tribunal de Execução das Penas também emitiu parecer desfavorável, a 26 de novembro de 2024, invocando razões de prevenção geral e especial (referência eletrónica nº 11481764 do Apenso A.)
*
2.4 Conhecimento do mérito do recurso
A problemática essencial a apreciar, recorde-se, é a de saber se deve ou não conceder-se liberdade condicional ao Recorrente; entende este que sim – vejamos se tem razão.
É ponto incontroverso nos autos que o Recorrente reúne condições formais para beneficiar da liberdade condicional ao meio da pena: tenha-se presente, a este propósito, que está em situação de reclusão desde 2 de março de 2021, em cumprimento de duas penas sucessivas de prisão, que somam um total de 7 anos e 3 meses, o que significa que já atingiu o referido e necessário meio da pena, à luz do preceituado pelo art. 63º, nºs 1 e 2 do Código Penal; e tenha-se presente ainda, por outro lado, que o Recorrente cumpriu já bem mais que o mínimo de seis meses requerido pelo art. 61º, nº 2 do Código Penal.
O que se discute nestes autos é se se encontram ou não preenchidos os requisitos materiais do instituto da liberdade condicional, previstos pelas duas alíneas do nº 2 daquele art. 61º, a saber:
a. Se é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b. Se a libertação se revela compatível com a defesa da ordem e da paz social.
O Tribunal de Execução das Penas considerou que nenhum desses requisitos se verificava no caso concreto.
Atentemos ao primeiro deles – se é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que ele, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
Defende o Recorrente, em síntese, que a decisão recorrida não avaliou de forma acertada as declarações por ele prestadas aquando da sua audição, declarações essas que evidenciam uma notória evolução no sentido autocrítico sobre o crime cometido; e que assenta num juízo puramente subjetivo, de intuição, a partir de uma audição que decorreu durante escassos minutos, com isso excedendo o Sr. Juiz os seus poderes, que se mostram exercidos de forma ilimitada e não sujeitos a controlo.
Que dizer?
A decisão de concessão da liberdade condicional assenta num juízo de prognose favorável sobre o comportamento do agente uma vez regressado ao meio social aberto. Juízo, note-se, que à luz dos termos que constam da norma, tem de ser afirmativo e não meramente presumido; isto é, na eventualidade de haver dúvidas inultrapassáveis quanto ao sentido favorável ou desfavorável de um tal juízo, não tem aqui aplicação uma espécie de in dubio pro reo, havendo então que negar a liberdade condicional (Joaquim Boavida, A flexibilização da prisão, Almedina, 2018, pg. 137; Ac. da RL de 5/12/2024, relatado por Maria de Fátima Bessa, in www.dgsi.pt; no mesmo sentido, a respeito do lugar análogo do juízo de prognose inerente à suspensão da execução da pena, vide Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, pg. 344). O in dubio pro reo poderá eventualmente ser convocado, mas apenas a propósito do estabelecimento dos factos que estão na base do juízo, neste sentido: havendo uma dúvida razoável e inultrapassável quanto à prova de um facto desfavorável ao recluso, deve ele ser considerado não demonstrado (Figueiredo Dias, ob. cit., pgs. 344/345).
Como juízo que é, do que se trata é de algo por natureza relativamente incerto: a emissão de um juízo de prognose favorável comporta sempre o risco de o condenado não vir a corresponder à expetativa que nele se depositou; e a emissão de um juízo de prognose desfavorável não significa que o condenado, se acaso lhe tivesse sido concedida a liberdade condicional, não viesse a revelar-se merecedor de que aquele voto lhe houvesse sido outorgado.
Precisamente porque assim é, pode sem esforço apontar-se esta matéria como uma das mais difíceis de tratar no contexto da execução das penas de prisão; e a história dos regimes e critérios de concessão da liberdade condicional aí está para o comprovar.
É sabido que até ao segundo quarto do século XX, a predição da conduta do condenado em liberdade baseava-se apenas nos conhecimentos e na experiência do juiz que proferia a decisão – era a chamada prognose intuitiva. A dificuldade e a incerteza na formulação desse juízo levou entretanto ao surgimento das propostas de tábuas de prognose, constituídas por fatores que, de acordo com a experiência de casos anteriores, conduziam a valores de maior ou menor probabilidade de reincidência – era a chamada prognose científica. Cedo se percebeu, porém, que este rumo pretensamente estatístico ou científico estava recheado de perigos potenciais, o que expôs a metodologia à crítica: seja do ponto de vista de uma certa mecanização ou desumanização da justiça penal; seja do ponto de vista da própria eficácia do sistema, no sentido em que as tábuas de prognose não garantem deterministicamente que não se produza o evento menos provável, tanto mais quanto é certo que radicam na consideração do que acontece na generalidade dos casos, sem atentar aos traços específicos do indivíduo. Este último aspeto é particularmente impressivo, na medida em que a razoabilidade que é pedida ao juízo de prognose não deve derivar de um raciocínio de tipo generalizador, como é inevitavelmente o caso do pensar estatístico (sobre toda esta matéria vide Sandra Oliveira e Silva, A liberdade condicional no direito português: breves notas, pgs. 378 e seguintes).
Vale o exposto por dizer que, devendo rejeitar-se uma decisão de mera intuição ou profundamente marcada pelo subjetivismo, dadas as suas arbitrariedade e incerteza, de resto incompatíveis com requisitos essenciais de um verdadeiro Estado de Direito Democrático, não pode em todo o caso esperar-se nesta matéria um juízo passível de um escrutínio matemático.
O que pode e deve exigir-se é que o juízo de prognose assente numa real e individualizada ponderação de todos os fatores pessoais relevantes e se mostre fundado em critérios de razoabilidade, tudo na base de um procedimento legal estabelecido em ordem a proporcionar uma decisão o mais objetiva e ancorada possível.
Repare-se, a este último propósito, que a competência para a decisão nesta matéria é do juiz do Tribunal de Execução das Penas, decerto, mas esta competência não é exercida de forma desassociada de elementos estruturantes que a enquadram e servem de apoio e tendencial orientação para uma tomada de posição conscienciosa e racionalmente legitimada.
Repare-se que até 90 dias antes da data admissível para a concessão de liberdade condicional, o juiz solicita (i) relatório dos serviços prisionais contendo avaliação da evolução da personalidade do recluso durante a execução da pena, das competências adquiridas nesse período, do seu comportamento prisional e da sua relação com o crime cometido; (ii) e
relatório dos serviços de reinserção social contendo avaliação das necessidades subsistentes de reinserção social, das perspetivas de enquadramento familiar, social e profissional do recluso e das condições a que deve estar sujeita a concessão de liberdade condicional, ponderando ainda, para este efeito, a necessidade de proteção da vítima; e para além disso, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do condenado, pode ainda o juiz solicitar outros elementos que se afigurem relevantes para a decisão (art. 173º do Código da Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade/CEPMPL).
Repare-se ainda que é imperativa a realização de um conselho técnico, o qual, como se sabe, é um órgão auxiliar do tribunal de execução das penas, com funções consultivas, composto pelo diretor do estabelecimento prisional, pelo responsável para a área do tratamento penitenciário, pelo chefe do serviço de vigilância e segurança e pelo responsável da competente equipa dos serviços de reinserção social e que emite parecer nesta matéria (arts. 142º, 143º, 174º e 175º do CEPMPL).
E repare-se, por fim, que o recluso é ouvido e o Ministério Público emite parecer (arts. 176º e 177º do CEPMPL).
Assim é que a decisão a tomar pelo juiz de execução das penas surge na sequência de todo este procedimento concebido e executado em ordem a fornecer-lhe elementos auxiliares de decisão e que, do mesmo passo, servirão também de pontos de apoio ao escrutínio da qualidade dessa mesma decisão.
No caso concreto, não só tiveram lugar todos esses passos processuais prévios à decisão, como de todos eles colheu o Tribunal de Execução das Penas indicações de sentido desfavorável à concessão da liberdade condicional, particularmente na vertente aqui em debate, relativa às bases da formulação do tal juízo de prognose.
Com efeito, o relatório dos Serviços Prisionais; o relatório da DGRSP; o parecer do Conselho Técnico; o parecer do Ministério Público; todos foram no sentido da não concessão da liberdade condicional ao Recorrente, sendo que no que especificamente respeita à matéria contida na alínea a) do nº 2 do art. 61º do Código Penal, aqueles dois relatórios e o parecer do Ministério Público apontam no sentido da sua não verificação, ou pelo menos da sua não verificação com consistência satisfatória.
E quanto à audição do Recorrente, a decisão recorrida faz saber que a leitura que o Tribunal de Execução das Penas faz é que aquele manifesta uma total ausência de consciência crítica quanto às suas condutas, e faz fundar essa sua apreciação na postura por aquele assumida durante a diligência e em particular numa concreta resposta que deu.
Dito isto, olhando ao caso concreto, percebe-se então que o juízo lavrado na decisão recorrida não radica numa mera impressão subjetiva, ou numa intuição pessoal, ou numa decisão imponderada; antes surge na sequência de um procedimento composto por elementos que lhe servem de apoio e que convocou.
Recuperemos o que ficou dito na decisão recorrida:
«O recluso tem um percurso de vida marcado por reduzidos vínculos afetivos e dinâmicas estruturantes e protetoras, denota fragilidades pessoais, emocionais e sociais que se entendem como fundamentais trabalhar.
Por outro lado, em sentido contrário do que parecem apontar, em parte, os relatórios dos serviços de educação e da reinserção social, o recluso manifesta uma total ausência de consciência crítica no tocante à sua conduta pretérita, às suas consequências, sendo ainda clarividente uma total ausência de empatia pela vítima.
Isso foi evidente na sua audição na qual, confrontado com os crimes, no essencial, referiu: “não violei essa pessoa nem lhe bati”.
Ora, a reflexão autocrítica sobre a conduta criminosa e suas consequências é indispensável para que se conclua que o condenado está munido de um relevante inibidor endógeno.
Quem não logrou ainda percecionar em plenitude o mal cometido, dificilmente possui mecanismos passíveis de evitar a repetição da sua conduta.
Como explicitam João Luís de Moraes Rocha e Sónia Maria Silva Constantino (in “Reclusão e Mudança” - “Entre a Reclusão e a Liberdade”, Vol. II, Pensar a Reclusão, Almedina, pág. 171), “sem interiorização da responsabilidade dificilmente será possível alterar comportamentos”.
Neste âmbito necessita, pois, de evoluir – e muito - a sua consciência crítica e consolidar o seu percurso prisional.
Para o efeito será importante que frequente programas específicos para a sua tipologia de crimes de modo a que os mesmos possam contribuir para a aquisição de competências pessoais e sociais que potenciem a interiorização do desvalor da sua conduta e alteração comportamental almejada (note-se, o condenado efetuou pedido para integrar o programa).
Por outro lado, ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da pena (licenças de saída jurisdicional, regime aberto no interior e/ou regime aberto no exterior).
Naquele contexto e no âmbito da tipologia dos crimes em análise, para beneficiar da liberdade condicional é fundamental equacionar e avaliar medidas de flexibilização da pena de modo a que possa testar-se a capacidade contentora do seu apoio no exterior, bem como firmar-se uma convicção sobre se o condenado logra manter uma conduta normativa em meio livre e se está capaz de observar as injunções e proibições inerentes à liberdade condicional.
Ademais, regista frágeis competências escolares, manteve irregularidade a nível profissional, não revelando objetivos definidos, embora faça planos para um projeto de vida mais positivo.
Em suma e no essencial:
Nas atuais circunstâncias, considera-se persistirem necessidades de reinserção social no plano das competências pessoais, sendo relevante que o recluso desenvolva o seu processo de mudança endógena, através da frequência dos programas para ofensores sexuais e de violência doméstica.
Por outro lado, importa que beneficie de medidas de flexibilização da pena que possibilitem avaliar a recetividade do meio e o impacto da sua libertação na vida da vítima e da segurança da sociedade, em geral.»
Bem se vê então que a decisão recorrida não só não assenta numa mera impressão subjetiva ou intuição, como se encontra, ao invés, apoiada, que o mesmo é dizer, fundamentada, nos termos exigíveis pelo art. 146º, nº 1 do CEPMPL, em informação relevante que consta dos autos, merecendo por isso, em sentido geral, a nossa adesão.
E mesmo em relação ao que o Tribunal de Execução das Penas extrai da audição do Recorrente, este último não logra mostrar que seja errada ou abusiva a interpretação que a decisão recorrida faz das palavras por ele ditas naquele contexto. Na verdade, ouvindo a diligência, percebe-se que o Recorrente não reconhece que haja perpetrado os gestos pelos quais foi condenado e não profere qualquer expressão que pudesse levar-nos a pensar que esteja arrependido pelo que fez.
É certo - não deixemos de o dizer - que não vemos como absolutamente imprescindível que o Recorrente reconhecesse os atos que as decisões condenatórias deram como provado que praticou, os crimes cometidos e a existência das vítimas correspondentes, e que assumisse um genuíno arrependimento.
Ainda que nesta sede já não beneficie o Recorrente da presunção de inocência quanto aos factos pelos quais foi condenado - presunção essa naturalmente extinta com o trânsito em julgado das respetivas decisões, à luz do que decorre do art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa -, podendo pois todos nós assumir que o Recorrente praticou efetivamente os atos descritos em tais decisões, não vemos, na verdade, que um tal reconhecimento e a concomitante interiorização da culpa e a manifestação de arrependimento sejam necessariamente imprescindíveis à concessão da liberdade condicional.
Bem sabemos que há uma certa divisão na jurisprudência a este propósito. A título exemplificativo, acolhem aparentemente a ideia da imprescindibilidade do reconhecimento dos factos subjacentes às condenações e/ou do arrependimento os seguintes acórdãos: da RL de 11/03/2025 e de 17/12/2014, relatados, respetivamente, por Rui Coelho e Jorge Langweg.
Já no sentido contrário, que cremos, em todo o caso, corresponder à posição predominante, afastando essa imprescindibilidade, vejam-se os seguintes acórdãos: Ac. da RL de 5/12/2024, da RC de 12/07/2023, da RL de 27/01/2016 e da RP de 30/01/2019, relatados, respetivamente, por Maria de Fátima Bessa, Pedro Lima, Carlos Almeida e Pedro Vaz Pato (no campo doutrinário, vide Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2ª edição, Almedina, 2023, pg. 119).
Tendemos a esta segunda orientação, embora não deixemos de aqui deixar algumas observações.
Em primeiro lugar, não pode dizer-se que seja indiferente se o recluso, passada que seja parte da pena, neste caso, metade da soma global das duas penas de cumprimento sucessivo, reconhece ou não os crimes cometidos e se está por eles ou não genuinamente arrependido. É o próprio legislador quem no-lo sugere no art. 173º, nº 1 do CEPMPL, quando refere que uma das dimensões sobre as quais deve debruçar-se o relatório dos serviços prisionais a elaborar para efeitos de ponderação da liberdade condicional é o da «relação [do recluso] com o crime cometido».
Em segundo lugar, se o recluso que vem genuinamente a reconhecer os factos e o desvalor da sua conduta e a manifestar-se seriamente arrependido por tê-los praticado merece aplauso e, ao desse modo proceder, ruma num sentido favorável a que lhe seja dirigido um juízo de prognose positivo, não se vê por que motivo uma postura inversa da sua parte não possa apontar no sentido contrário. O que há a esclarecer é que a ausência daquele reconhecimento ou daquele arrependimento, em si mesma, não deve conduzir a um juízo de prognose desfavorável; a ele poderá levar apenas se, em concreto, puder fundadamente dizer-se que a não assunção dos factos e em particular a inexistência de arrependimento resultam da persistência, no recluso, de sentimentos avessos às normas e aos bens jurídicos atingidos e que estes acarretam o risco de voltar a ofender umas e outros [Inês Baião Sá Rodrigues, “Considerações sobre o regime da liberdade condicional”, in file:///C:/Users/mj01969/Downloads/content%20(2).pdf (acesso em 21/05/2026), pg. 25).
O que não pode, em suma, é defender-se, logo no plano abstrato, que esta sua postura de não reconhecimento dos factos e/ou de não manifestação de arrependimento obstam terminantemente à formulação do tal juízo de prognose favorável; da mesma forma, aliás, que, ao contrário, o reconhecimento dos factos e uma manifestação, até sincera, de arrependimento, não conduzem forçosamente a um juízo de prognose favorável.
Pode mesmo suceder, na verdade, que o recluso não reconheça os factos ou não se manifeste arrependido por razões relativamente benignas, como por exemplo por vergonha social e de proteção da autoimagem, e que se tenha definitivamente afastado de uma qualquer propensão criminosa que tenha chegado a vivenciar; como pode suceder que o percurso do recluso em todas as demais dimensões da sua vida tenha sido tão positivo que, no cômputo geral, compense a crítica que se lhe possa dirigir por não assumir a autoria dos factos e/ou por se não manifestar genuinamente arrependido de os ter cometido, ao ponto de nos persuadir que tudo indica que saberá e conseguirá, em liberdade, comportar-se de forma comunitariamente responsável e, em particular, que não cometerá novos crimes (vide um pouco neste sentido o Ac. da RL de 27/01/2016, atrás mencionado, e a doutrina aí citada).
Em síntese e para o que aqui mais releva, há que sublinhar, no que toca à relação do condenado com o crime cometido, a que se reporta o apontado art. 173º, nº 1 do CEPMPL, que essa será um elemento a considerar, de entre outros, sendo certo que a não assunção de culpa ou arrependimento poderá ter uma relevância negativa se se evidenciar, através de dados concretos, que o recluso não interioriza o desvalor das condutas que põem em causa os bens jurídicos protegidos. Não há, em suma, fundamento para que se exija ao recluso que concorde com a condenação e para que, na ausência dessa concordância ou mesmo ante uma manifestação expressa de discordância, se conclua prontamente que existe perigo de recidiva criminosa.
Aqui chegados, a circunstância de o Arguido não reconhecer a prática dos crimes pelos quais foi condenado e de não mostrar o desejável sentido autocrítico quanto aos seus gestos não constituem em si mesmos obstáculos decisivos à concessão da liberdade condicional; nem a decisão recorrida, em boa verdade, o diz. Com efeito, da leitura do seu texto decorre que o Tribunal de Execução das Penas teve em atenção a «relação [do recluso] com o(s) crime(s) cometidos(s)», como não podia deixar de fazer, mas considerou ainda diversos outros fatores que convergem no sentido do juízo de prognose negativo que veio a formular sobre o Recorrente, como sejam:
- a circunstância de não ter ainda beneficiado de medidas de flexibilização da pena (pelo que isso representa de ausência de demonstração, sequer mínima, de que uma vez regressado à liberdade, ainda que temporariamente, saberá reger a sua conduta do modo exigível);
- a sua irregularidade profissional e as suas frágeis competências escolares (pelo que isso representa de ausência de ferramentas facilitadoras de uma plena integração social); e
- a não frequência de programas para agressores sexuais e de violência doméstica (pelo que isso representa de falta de apetrechamento de competências pessoais para uma vida de respeito pelo outro, nas dimensões relevantes face à criminalidade em apreço, e nomeadamente pelos valores da integridade física e psíquica e da liberdade de determinação e autodeterminação sexuais de terceiros).
E note-se, ademais, que a decisão recorrida não deixou de sopesar a presença de fatores positivos, como sejam a circunstância de o Recorrente não registar infrações disciplinares desde junho de 2023 e que em meio livre beneficiará do apoio dos avós. Percebe-se, porém, que não lhes tenha reconhecido peso suficiente para suplantar os aspetos de pendor negativo.
Na verdade, quanto à dimensão disciplinar, o Recorrente, no seu percurso de reclusão, teve já três episódios pelos quais foi sancionado; e ainda que nestes últimos anos tenha uma conduta a este nível adequada, isso não terá, pelo menos por ora, um peso muito significativo, tendo em conta a natureza específica dos bens jurídicos que em liberdade agredira, cujo acatamento não resulta minimamente testado em ambiente de reclusão. E quanto ao apoio que terá dos avós, é decerto também algo que se acolhe como favorável, mas que também não tem um peso significativo, do mesmo passo que não o teve no passado, visto que o não impediu de perpetrar os atos pelos quais veio a ser condenado; e de resto, a ligação aos avós não parecerá assim tão próxima, já que não se nota que estes lhe façam visitas.
Afigura-se-nos portanto que não merece censura o juízo de prognose negativo que a decisão recorrida contém; e desse modo, não verificado o requisito previsto pelo art. 61º, nº 2, alínea a) do Código Penal, a liberdade condicional sempre seria neste momento de negar.
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Acrescente-se ainda, em todo o caso, que não nos parece que mereça crítica a decisão recorrida quando considera que também não se verifica o requisito da alínea b) da norma, a saber, o de que teria sempre «a libertação [que] se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social».
Recuperemos as considerações aí vertidas a este propósito, que o Recorrente em boa verdade não afronta diretamente no seu recurso:
«No que ao presente caso diz respeito importa frisar, desde logo, que são muito elevadas as necessidades de prevenção geral, expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de infração em que está em causa um valor nuclear da convivência social.
Com efeito, os crimes sexuais, mormente o referido, gera forte repúdio no seio da sociedade, o que encontra explicação, também, nas consequências que estes crimes podem comportar, deixando as vítimas indelevelmente marcadas de forma muito negativa para o resto da sua vida.
Cumpre também salientar as muito elevadas necessidades de prevenção geral no que aos crimes de violência doméstica diz respeito, na medida em que importa colocar definitivamente termo a um dos principais flagelos da sociedade portuguesa, designadamente, aos maus tratos físicos e psicológicos, flagelo este que, em pleno século XXI continua a ser transversal na nossa sociedade, sem que se perspetive qualquer atenuação, apesar da progressiva chamada de atenção da educação, da sociedade civil, do Estado e dos meios de comunicação social para a gravidade de tais comportamentos e para a desagregação manifesta que provoca nos agregados familiares, bem como para as consequências nefastas que provoca no desenvolvimento da pessoa humana, o atentado que potencia à dignidade da pessoa e as consequências decorrentes para o corpo e a saúde (física e psicológica) das vítimas.
Se é certo que se pretende inquestionavelmente a recuperação e ressocialização do arguido/recluso, não se pode escamotear, de todo, as consequências decorrentes da sua conduta para a vítima.
Neste contexto – e essencialmente no âmbito dos crimes de violação e de violência doméstica -, a pena não pode deixar de ter uma razoável componente retributiva.
Como tal, não seria compreendida pela comunidade (i.e., o cidadão comum) a libertação, por referência ao meio da pena e quando ainda faltam praticamente 3 anos e 4 meses para o seu termo, do perpetrador de crimes desta natureza.
Assim, a libertação do recluso nesta altura não salvaguardaria o sentimento geral de vigência das normas penais violadas com a prática dos crimes, banalizaria tal prática, atacaria a paz jurídica entre o cidadão e o seu sentimento de que as normas em questão foram suficientemente defendidas através da pena já cumprida, transmitiria um enfraquecimento da ordem jurídica potenciador de delitos desta natureza, defraudaria, em suma, a confiança da comunidade no funcionamento do sistema penal e a proteção, além do mais, de bem jurídico relevante no nosso sistema penal.»
Ora, afastamo-nos da afirmação, que se lê na decisão recorrida, da componente retributiva da pena: na nossa perspetiva, a pena tem exclusivamente finalidades preventivas, sendo a culpa o seu fundamento e o seu limite, à luz do que decorre do art. 40º, nºs 1 e 2 do Código Penal; e à execução da pena não é suposto também presidir qualquer relevante ideia de expiação do mal causado, tendo antes como finalidades «a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade», de acordo com o que nos dizem os arts. 42º, nº 1 do Código Penal e 2º, nº 1 do CEPMPL.
À parte isso, porém, não vemos que mereça qualquer censura o expendido pela decisão recorrida e a solução jurídico-material a que chega.
Na verdade, os crimes de violência doméstica e de violação, pela sua gravidade, pelos seus efeitos e pela sua frequência, têm correntemente uma ressonância social muito expressiva, despoletando sentimentos de alarme e intensa preocupação quanto à real valia e vigência das normas protetoras e da eficácia dos mecanismos de justiça penal.
Repare-se, ao nível da violência doméstica, que desde 2022 a informação oficial existente aponta para um número de ocorrências anual consistentemente acima das 30.000 [vide https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Temas/CriminalidadeJusticaPenal.aspx e, particularmente quanto ao último ano, o Relatório Anual de Segurança Interna de 2024 (RASI 2024), in https://www.portugal.gov.pt/pt/gc24/comunicacao/documento?i=relatorio-anual-de-seguranca-interna-rasi-2024 (acesso em 21/05/2025)].
E no que ao crime de violação concerne, é de registar a existência, em 2024, de nada menos que 543 participações, traduzindo um aumento de quase 10% em relação ao ano anterior (vide o já citado RASI 2024).
O que estes números consistentemente indiciam, ainda que decerto de forma tendencial, é uma implantação muito perturbadora destes tipos de crimes na sociedade, que dificilmente seria compatível, do ponto de vista da defesa da ordem e da paz social, com uma execução efetiva da pena aplicada meramente pela metade. Decerto que em abstrato não pode dizer-se que fosse juridicamente impossível – isso no-lo diz o art. 61º do Código Penal; mas no plano concreto requerer-se-ia a convergência de circunstâncias verdadeiramente excecionais para que pudesse encarar-se uma libertação condicional tão precoce como comunitariamente aceitável. Não nos cabendo neste espaço um exercício exaustivo, diríamos que seria necessário, pelo menos e entre o mais, que o modo de execução dos crimes houvesse sido dos mais brandos, dentro da panóplia possível de situações abrangidas pelos respetivos tipos legais; que houvesse notícia de que haviam sido escassas as consequências sobre as vítimas; que tivesse existido um processo de voluntária aproximação restaurativa e reparadora entre agressor e agredidas; e que fosse patente a adesão do agressor aos valores e bens jurídicos ofendidos.
Nada disso se vendo sinalizado ou sugerido no caso concreto, não divisamos como possível, neste momento, encarar a liberdade condicional como «compatível com a defesa da ordem e da paz social».
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Uma palavra final a propósito da eventual sujeição do Recorrente à obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, a que aquele alude no seu recurso.
Esta é uma possibilidade legal no contexto do art. 62º do Código Penal, isto é: considerando-se verificados os pressupostos previstos no art. 61º, pode a colocação em liberdade condicional ser antecipada por um período máximo de um ano, ficando o condenado, durante o período da antecipação, para além do mais, sujeito ao regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
Trata-se de um mecanismo flexibilizador da execução da pena, que permite antecipar os momentos normais de apreciação da liberdade condicional, até um ano antes do meio da pena, dos dois terços ou dos cinco sextos, com o limite do cumprimento efetivo de pelo menos seis meses de prisão (cfr. Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 14/2009, in DR I, de 20/11/2009).
O uso desse mecanismo sempre supõe, em qualquer caso, a verificação dos pressupostos previstos pelo art. 61º do Código Penal, o que já vimos não acontecer; e de resto diga-se, em qualquer caso, que não há notícia de esse incidente ter sido despoletado pelo Recorrente, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 188º, nº 1 do CEPMPL, escapando nessa medida, em bom rigor, ao objeto do presente recurso.
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Em suma, nega-se provimento ao recurso.
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3 – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida que recusou a liberdade condicional ao Recorrente AA.
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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta, sem prejuízo de eventual apoio judiciário de que beneficie e da isenção prevista pelo art. 4º, nº 1, alínea j) do Regulamento das Custas Processuais (RCP) – cfr. arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do Código de Processo Penal, a Tabela III anexa ao RCP, e arts. 153º, nºs 1 e 6 e 154º do CEPMPL.
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Registe e notifique.
Após trânsito, e regressados os autos à 1ª Instância, comunique-se aos serviços prisionais e de reinserção social (art. 177º nº 3, 2ª parte, do CEPMPL).
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Lisboa, 12 de junho de 2025
(assinaturas eletrónicas; processado pelo Relator e por todos revisto)
Os Juízes Desembargadores
Jorge Rosas de Castro
Isabel Maria Trocado Monteiro
Rosa Maria Cardoso Saraiva