IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCIPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO
Sumário

I - A Recorrente limitou-se a afirmar que o Tribunal considerou umas testemunhas mais do que outras, sem especificar as partes dos depoimentos que determinariam diferente apreciação dos factos. Não apresentou razões justificativas daquilo que conclui, ou seja, que é um erro dar crédito aos testemunhos nos quais sustentou o Tribunal a sua decisão.
O princípio da livre apreciação da prova permite ao julgador recorrer às regras da experiência e sua convicção, desde que logre justificá-la permitindo a respectiva compreensão e sindicância da decisão. Por isso, não será a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, que irá sobrepor-se à convicção do Tribunal.
II - Em parte alguma do Código de Processo Penal se exige que a decisão contenha um resumo da prova produzida, uma reprodução por assentada dos depoimentos prestados, um resumo dos documentos juntos. Cumpre, isso sim, indicar os meios de prova relevantes quanto aos factos (e não é preciso fazê-lo um a um), bem como explicar qual o relevo de tal prova, expondo a apreciação crítica efetuada sobre o seu conteúdo.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal do Seixal – J3 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Em razão do exposto, o Tribunal decide condenar a arguida AA pela prática de um crime de subtracção de menor, p. e p. pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, numa pena de 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, nos termos do artigo 50.º do Código Penal.
Mais decide o Tribunal julgar parcialmente procedente, porque provado apenas em parte, o pedido de indemnização civil deduzido por BB contra a arguida AA e, consequentemente, condena esta a pagar-lhe uma indemnização por danos não patrimoniais gerados por tal conduta, no valor de € 1500,00 (mil e quinhentos euros), montante este actualizado na presente data, a que acrescem juros de mora à taxa legal, a contar de hoje e até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se a demandada civil quanto ao demais peticionado. (…)»
- do recurso -
Inconformada, recorreu a Arguida formulando as seguintes conclusões:
« I. É certo que existe o princípio da livre apreciação da prova (art.° 127.7CPP), mas não se trata de um poder discricionário em que pode valer tudo, sobretudo em processo penal, em que vigora os princípios da presunção de inocência do arguido e in dubio pro reo.
II. A prova dos autos deve ser apreciada de acordo com os princípios fundamentais da presunção de inocência e in dubio pro reo.
III. O princípio da presunção da inocência encontra-se consagrado no art.° 32.°, n.° 2 da Constituição, como uma garantia fundamental. O princípio in dubio pro reo consubstancia um princípio geral do direito processual penal e até do próprio Estado de Direito. Só deve haver lugar a condenação quando se verificam “indícios fortes” que sustentem a condenação e revelem uma convicção indubitável de que o facto se
verifica.
IV. Foram completamente desvalorizadas as declarações das testemunhas da Arguida que afirmaram, de forma peremptória, que ouviram várias vezes a criança dizer-lhe que não queria ir para o pai e esta - a arguida- afirmar que teria de ir !
V. Ao invés, foram perfeitamente valoradas as declarações das testemunhas do arguido que nada declararam ouvir da boca da menor e da própria, que vive na dependência do progenitor e que, salvo melhor opinião, deveriam ter sido precedidas de meios de avaliação das reais capacidades da menor de testemunhar de forma isenta no caso em apreço;
VI. A verdade é que o Tribunal a quo não valorou a prova daqui decorrente o que teve um impacto negativo na decisão de condenação da arguida;
VII. A verdade é que a arguida que, relembre-se, nunca teve qualquer problema de foro criminal até lhe ser retirada de forma abrupta a sua filha menor, tem pautado a sua vida nos últimos tempos pela revolta, aliás compreensível, de quem tem sido privada do contacto com a sua filha.
VIII. A verdade é que a arguida nunca poderia ter praticado o crime de subtração de menor dado que, e conforme consta dos autos, nessa época a arguida e a filha CC estavam protegidas pelo Estatuto de Vítimas de Violência Doméstica, conforme previsto na Lei n.° 112/2009, de 16 de setembro, sendo a queixa contra o progenitor.
IX. A verdade é que a arguida nunca se ausentou ou tentou ausentar com a filha para o estrangeiro ou mesmo para outra morada em Território Nacional que o progenitor desconhecesse, apesar de ter nacionalidade brasileira e dispor, certamente, dos meios para o fazer.
X. A verdade é que sempre residiu onde ora reside e onde as vizinhas a viam com a filha e a ouviam dizer á menina que estar teria de ir com o progenitor, apesar da criança afirmar que não queria ir!
XI. A verdade é que tais tais provas não foram tomadas em linha de conta pelo tribunal a quo !
XII. Em face da prova testemunhal produzida nos autos, ou da sua ausência, e conforme a concreta e especificação desenvolvida no corpo destas alegações, e da análise dos meios probatórios impunha-se decisão diversa.
XIII. A sentença recorrida violou, assim, nomeadamente o art.° 127/CPP e o art.° 32, n.° 2 da Constituição; »
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
«1.ª – A arguida AA foi condenada, , pela prática, em autoria material de crime de subtracção de menor, previsto e punido pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, numa pena de 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, nos termos do artigo 50.º do Código Penal e ainda no pagamento BB de uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 1500,00 (mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da data da sentença e até integral e efectivo pagamento;
2.ª – De acordo com o disposto no art.º 412.º n.º 1 do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer;
3.ª - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas, sendo que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do artigo 412.º n.º 3 do referido diploma legal fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação;
4.ª – Salvo melhor opinião e face à ausência no recurso dos requisitos indispensáveis para a impugnação da matéria de facto, resta-nos apenas concluir que no caso em apreço estamos perante uma mera desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a proferida pela própria recorrente, entendendo-se também que está bem nítida a forma como o douto Tribunal formou a sua convicção, convicção esta devidamente fundamentada, sendo que os elementos de prova produzidos foram apreciados de acordo com as regras legalmente estabelecidas conforme resulta da sentença proferida;
5.ª – A apreciação e ponderação da prova encontra-se adstrita às regras próprias do princípio da livre apreciação da prova, conforme artigo 127.º do Código de Processo Penal e que, impõe ao julgador, na formação da sua convicção, uma vinculação a critérios de lógica racional e de crítica, também associado a regras de experiência comum, entendendo nós que o Tribunal a quo não poderia ter decidido de forma diversa;
6.ª - É de referir que apenas existe erro notório na apreciação da prova quando para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulado no artigo 127.º do Código de Processo Penal. (Ac. do STJ de 04-10-2001 in Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ – ano IX, Tomo III, pág. 182);
7.ª - De salientar também que quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.
8.ª – Resultaram provados todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do ilícito criminal pelo qual a arguida vinha acusada, sendo que da douta sentença condenatória resulta claramente a motivação em que o douto Tribunal fundamentou a sua decisão.
9.ª – Pelo exposto, entende-se não merece qualquer censura a decisão do Tribunal a quo ao decidir pela condenação da recorrente nos termos e com os fundamentos ali expostos »
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando os termos da resposta.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a única questão a decidir é a do invocado erro na valoração da prova
DA SENTENÇA RECORRIDA
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada:
« 1) CC nasceu em .../.../2010 e é filha de BB e de AA;
2) Porque os seus pais estão separados, corre termos no Juízo de Família e Menores do Seixal – J2 - o processo nº …, para regulação do exercício das responsabilidades parentais em relação à CC;
3) Neste processo nº …, por decisão do Mmo. Juiz, datada de .../.../2019, foi fixado o seguinte regime provisório relativo aos convívios da criança com o pai:
“4. A mãe fomentará os convívios da menor com o pai.
5.A menor estará com o pai, pelo menos de 15 (quinze) em 15 (quinze) dias desde Sexta-feira após a Escola até à Segunda-feira seguinte, indo o pai buscar e entregar à Escola.
6.A menor lanchará e jantará, pelo menos uma vez com o pai durante a semana, e caso os progenitores vivam em casas separadas, pernoitará com o pai. Na falta de acordo, será de todas as Quartas-feiras para Quintas-feiras a seguir ao fim de semana que passou com a mãe, e de Quinta-feira para Sexta-feira a seguir ao fim de semana que passou com o pai.
7.A menor passará pelo menos 15 (quinze) dias de férias de Verão com o pai e metade das férias de Páscoa e do Natal com o pai.
8.No dia do pai e dia de aniversário do pai, a menor estará com o pai, e no dia da mãe e dia de aniversário da mãe a menor estará com a mãe. (…)
10.No dia de aniversário da menor, esta tomará uma refeição principal com cada progenitor. Se não puder almoçar, lancha com o progenitor com quem não janta.
11.A Consoada será alternada, e quem não passar a Consoada, passa o dia 25 de Dezembro desde as 11h00 até às 11h00 da manhã de dia 26 de Dezembro. Na falta de acordo, nos anos ímpares a Consoada será passada com o pai e nos anos pares será passada com a mãe.
12.Quem não passou a Consoada, passa a Passagem do Ano com a menor, e quem não passou a Passagem do ano passa o dia 01 de Janeiro, desde as 11h00 até às 11h00 de dia 02 de Janeiro.”
4) Esta decisão foi, de imediato, notificada à arguida e produziu efeitos, não tendo dela sido interposto recurso;
5) Assim, a partir de ... de 2019, a CC deveria passar fins de semana alternados com o pai, desde 6ª feira a 2ª feira de manhã, e deveria pernoitar em casa deste uma noite por semana, durante a semana. Também deveria estar com o pai no dia do pai;
6) No entanto, a arguida por diversas e sucessivas vezes não cumpriu, como estava obrigada, esta decisão judicial, apenas porque não quis que a CC convivesse com o pai e pernoitasse em casa deste;
7) A arguida morava e mora no ..., em ..., que é um parque de campismo, vedado, com acesso condicionado na portaria e, para impedir que o pai da CC a fosse buscar e estivesse com ela, como determinado pelo tribunal, a arguida nunca deu autorização para que BB entrasse no recinto, bem sabendo que, dessa forma, a entrada lhe seria vedada, como sempre aconteceu;
8) Assim, por diversas vezes, quando BB ia a casa da arguida, para buscar a CC para passar com ele o fim de semana, o acesso foi-lhe vedado e a arguida não lhe atendeu o telefone, impedindo-o, dessa forma, de levar consigo a filha;
9) A arguida recusou-se a entregar a CC ao pai nas 6ªs. feiras, impedindo que a mesma passasse com este o fim de semana que estava estipulado, nos termos da decisão supra proferida, designadamente nas seguintes datas:
- a arguida não deixou a CC passar com o pai o fim de semana de 26 (6ª feira) a ... de ... de 2020, tendo-se recusado a entregá-la na 6ª feira, quando este a foi buscar, para esse efeito, a casa da mãe, no ...;
- a arguida recusou-se a entregar a CC ao pai no dia 25 de setembro (6ª feira) e, dessa forma, impediu-a de passar com o pai o fim de semana de 25 a ... de ... de 2020;
- no dia .../.../2020 (6ª feira) a arguida, sabendo que era o fim de semana que esta deveria passar com o pai, foi buscar a CC à escola mais cedo, por forma a que, quando BB chegou já a menor não estava no estabelecimento de ensino. Depois disso, a arguida não mais atendeu o telefone ou aceitou os contactos que BB lhe fez e, dessa forma, impediu que este passasse com a CC o fim de semana de ... a .../.../2020, como deveria e estava estipulado pela decisão judicial;
- a arguida não deixou a CC passar com o pai o fim de semana de 4 (6ª feira) a ... de ... de 2020, tendo-se recusado a entregá-la ao pai na 6ª feira, quando o irmão DD a foi buscar à escola, para esse efeito.
10) Pelo menos entre ...-...-2020 e ...-...-2020, a CC nunca passou um fim de semana com o pai, porque a arguida sempre o impediu e recusou-se a entregá-la ao pai;
11) Também entre 18 de janeiro e ... de ... de 2021 a CC não passou com o pai os fins-de-semana que se iniciavam em ...-...-2021 e ...-...-2021 (sextas-feiras), como estava estipulado, porque a arguida o impediu e se recusou a deixá-la ir ou a entregá-la ao pai;
12) No dia .../.../2021, dia do pai, a CC também não esteve com o progenitor, porquanto, não conseguindo este contactar com a filha, por o seu telemóvel ter sido bloqueado até às 19H24, nesse momento CC enviou uma mensagem ao mesmo, perguntando-lhe se a vinha buscar, logo lhe referindo BB que a queria ver naquele dia, pelas 19H31; CC inicialmente respondeu ao pai “Ok” e, quando ele retorquiu que a ia buscar para irem tomar um gelado, a mesma já respondeu, entre as 19H31 e 19H32, que não, já nem queria ir, porque era de noite, o que respondeu, por influência da arguida;
13) Posteriormente, por decisão do Mmo. Juiz, datada de .../.../2021, foi alterado o regime provisório e determinado que a menor CC passaria a residir alternadamente com ambos os progenitores, por períodos de uma semana;
14) Mais se determinou que:
“a) Sendo hoje quarta-feira, e indo a menor hoje para a casa do pai, a transição ocorrerá às quartas-feiras, indo o progenitor que vai ficar com a menor busca-la à escola e não havendo escola, no final do horário letivo.
b)O progenitor que fica com a menor, deverá entregá-la na quarta feira na escola, ou na casa do outro progenitor, caso a escola esteja em regime de telescola.
c) A menor deverá falar diariamente com o progenitor que não está a residir, de preferência por videochamada, e que na falta de acordo ou combinação, será as 19h30 de cada dia, estando o progenitor com quem a menor está obrigada a fazer videochamada para o progenitor que não está com a menor”.
15) Esta decisão foi notificada à arguida e a BB e teve efeitos imediatos;
16) Nesta decisão foi fixada uma sanção pecuniária compulsória de 200,00€ por cada dia em que este regime fosse incumprido;
17) Assim, a partir de ... de 2021, a CC deveria ter passado a residir com ambos os progenitores, alternadamente, por períodos de uma semana;
18) No dia .../.../2021 (4ª feira) a arguida, sabendo que nesse dia o pai iria buscar a filha para passar a semana seguinte em casa deste, foi buscar a CC à escola e quando BB aí chegou a arguida recusou-se a entregar-lhe a CC;
19) BB, para poder estar com a filha, foi buscá-la a casa da arguida, já depois das 19h00;
20) Dessa forma, a arguida atrasou a entrega da CC ao pai por algumas horas, apenas porque queria perturbar o convívio entre ambos;
21) Durante o mês de ... de 2021, a CC não passou qualquer semana com o pai, como devia e estava estipulado pela decisão judicial, porquanto na semana de ...-...-2021 a ...-...-2021 a menina, que na semana anterior ficara com a arguida, estava em isolamento profilático por Covid-19 em casa da arguida, que perdurou até ...-...-2021 e também, na semana que se iniciava em ...-...-2021 e perdurava até ...-...-2021, em que devia estar com o pai, nesta última porque a arguida recusou entregá-la a BB;
22) Devido aos sucessivos incumprimentos, este regime provisório foi novamente alterado, por decisão datada de .../.../2021, que determinou, além do mais, o seguinte:
“1. A menor deverá passar o resto desta semana com o pai, começando com o pai e irmão uterino, com quem o pai vive, e ocorrendo a transição no domingo, voltando ao regime estabelecido”;
23) Esta decisão foi, de imediato, notificada à arguida e a BB, tendo produzido efeitos imediatamente.
24) No entanto, não obstante esta decisão, a arguida não deixou a CC ir com o pai no próprio dia .../.../2021, à saída do tribunal, como a decisão judicial tinha determinado;
25) Devido às sucessivas e reiteradas violações por parte da arguida do regime de convívios estabelecido pelo tribunal e ao facto de esta, reiteradamente, ter impedido o convívio da CC com o pai, por decisão de .../.../2021, o Mmo. Juiz alterou o regime provisório de regulação das responsabilidades parentais e determinou que a CC passava a residir com o pai, passando apenas um dia por semana com a mãe que, na falta de acordo seria o domingo, entre as 12h00 e as 19h00, tendo então ficado estabelecido que a entrega da menina ao pai seria no domingo seguinte, dia ...-...-2021, pelas 19 horas, no posto da GNR de ...;
26) Não obstante esta decisão ter tido efeitos imediatos e o recurso dela interposto efeito devolutivo, a arguida continuou a recusar-se a entregar a CC ao pai, não o fazendo no dia ...-...-2021 e persistindo em tal falta de entrega até ...-...-2021, data em que, em sede de conferência de pais no Proc. n.º … e por BB estar ausente do país entre ...-...-2021 e ...-...-2021, foi proferida decisão agendando como data para a entrega da menina ao pai por parte da arguida o dia ...-...-2021, pelas 14 horas, no ...”, da ..., em ..., do que a arguida ficou ciente; todavia, no dia ...-...-2021, a arguida não entregou a menina ao pai, entrega essa que só veio a concretizar-se no dia .../.../2021.
27) Assim, depois o Tribunal ter determinado que a CC passava a residir com o pai, a arguida continuou a recusar-se a cumprir essa ordem e manteve a CC a residir consigo durante mais 25 dias;
28) Ao atuar da forma descrita, a arguida agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, no intuito que logrou alcançar de sistemática e repetidamente dificultar e impedir que a CC convivesse com o pai, bem sabendo que dessa forma estava a desrespeitar o regime de convívios estipulado pelo tribunal em sede de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
29) Fê-lo sem qualquer razão atendível, apenas porque não queria que a CC passasse tempo e dormisse em casa do pai, bem sabendo que dessa forma punha em crise, como o fez, o bem-estar da criança e o direito desta e do seu progenitor conviverem.
30) A arguida sabia, ainda, ser a sua conduta proibida e punida por lei;
31) Em diversas ocasiões em que CC não foi entregue ao pai de entre as supra descritas, a menina chegou a manifestar a BB, como sucedeu em ...-...-2021, que não queria ir com ele e várias vezes o fazendo (ainda que não em todas elas) por a arguida lhe dizer que assim agisse;
32) Em virtude da conduta da arguida, BB foi impedido de ver, estar e conversar com a filha CC, nos moldes antes descritos, o que lhe causou muito transtorno, desgosto, tristeza, angústia, impotência e sofrimento;
33) Durante longos períodos, BB não falou sequer com a sua filha CC, não sabendo como a mesma se encontrava, o que o deixava preocupado;
34) O demandante civil foi sempre muito próximo da filha CC, mantendo um bom relacionamento com ela, já que foi sempre um pai presente na sua vida, sendo muito importante para si que conseguisse continuar a vê-a e acompanhar o seu crescimento, motivo pelo qual sempre lutou para poder estar com ela;
35) BB também se sentiu humilhado e impotente perante o comportamento da arguida.
Mais se provou que:
36) Actualmente, CC está a viver com o pai, com base em regime provisório quanto ao exercício das responsabilidades parentais, não tendo havido decisão final a esse respeito no Proc. n.º … do Juiz … do Juízo de Família e Menores …, e há mais de um ano que não conversa com a mãe;
37) O demandante civil tem a profissão de electromecânico, que exerce por conta própria, auferindo mensalmente cerca de € 1400,00;
38) O demandante civil vive com uma companheira, que ganha € 1200,00, com a menor CC e DD, quando este não se encontra embarcado em trabalho, sendo que este último não contribui para as despesas da casa;
39) O agregado familiar do demandante civil conta ainda com a pensão de alimentos que a arguida paga à filha CC, no valor mensal de € 150,00;
40) O agregado familiar do demandante civil despende mensalmente € 1200,00 no pagamento de empréstimo contraído para a aquisição de habitação, € 150,00 do ATL da filha CC, € 150,00 do aparelho dentário da mesma, e € 228,00 no pagamento de um empréstimo;
41) A arguida é terapeuta de Medicina Chinesa, auferindo mensalmente desta actividade cerca de € 1600,00;
42) A arguida vive sozinha, despendendo € 100,00 no pagamento da renda de casa e € 150,00 no pagamento da pensão de alimentos à filha CC;
43) A arguida tem um namorado, mas habitando em casas separadas;
44) A arguida confessou parte dos factos de que foi acusada;
45) A arguida não tem antecedentes criminais.»
FUNDAMENTAÇÃO
Vem a Recorrente questionar a decisão de facto quer no que toca à valoração da prova quer no que se prende com a ponderação do princípio do in dubio pro reo.
Assenta a sua diferente leitura na prova produzida, nomeadamente por terem sido «desvalorizadas as declarações das testemunhas da Arguida que afirmaram, de forma peremptória, que ouviram várias vezes a criança dizer-lhe que não queria ir para o pai e esta - a arguida- afirmar que teria de ir ».
Vejamos, então.
Em sede de recurso, pode o Tribunal da Relação de Lisboa reapreciar a matéria de facto por uma de duas vias.
Por um lado, como consequência da apreciação dos vícios previstos no art.º 410.º/2 do Código de Processo Penal, ou seja, com um âmbito mais restrito. Neste domínio, o Tribunal deverá verificar a ocorrência de tais vícios a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Constatada a ocorrência de um dos apontados vícios, cumpre ao Tribunal de recurso corrigir a decisão de facto em conformidade, ou remeter o processo à primeira instância para proceder a tal reparação caso não esteja ao seu alcance, desta forma alcançando o fim do recurso.
Por outro lado, poderá o Tribunal da Relação de Lisboa ser chamado a pronunciar-se no âmbito de uma impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, caso em que a apreciação versará a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
Neste caso, o recurso não corresponde a um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição das gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída, mas sim um mero remédio correctivo para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida. Tais erros emergirão como resultado de uma deficiente apreciação da prova e terão sempre de corresponder aos concretos pontos de facto identificados no recurso.
Tanto assim é que são reconhecidas limitações ao “segundo” julgamento que ao Tribunal de recurso assiste, com base na prova documentada [vd. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 26.10.2021, Desembargador Manuel Advínculo Sequeira, ECLI:PT:TRL:2021:510.19.6S5LSB.L1.5.DD «Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado.
- As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanas e nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento.
- Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade pelo que só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.
- Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.»]
Por tudo isto, perante esta forma de impugnação, cumpre ao Tribunal da Relação de Lisboa analisar os factos questionados, verificar se têm suporte na fundamentação da decisão recorrida e avaliar e comparar a prova indicada na dita fundamentação, testando a sua consistência e coerência. Apenas no caso de tal sustentação soçobrar perante este exame deverá o Tribunal considerar que outra decisão deveria ter sido tomada pelo Tribunal recorrido e, consequentemente, intervir na respectiva correcção [cfr. Acs. STJ de 14.03.2007, Conselheiro Santos Cabral - ECLI:PT:STJ:2007:07P21.5C; de 23.05.2007, Conselheiro Henriques Gaspar - ECLI:PT:STJ:2007:07P1498.95; de 29.10.2008, Conselheiro Souto de Moura - ECLI:PT:STJ:2008:07P1016.19; e de 20.11.2008, Conselheiro Santos Carvalho - ECLI:PT:STJ:2008:08P3269.6B].
Consequentemente, o recurso de impugnação ampla merece especiais imposições fixadas na lei, a saber, no art.º 412.º/3 do Código de Processo Penal: «a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.»
Impõe-se, então, ao Recorrente que indique os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados bem como os meios de prova e respectiva interpretação, avaliação, que imponham decisão diversa daquela produzida em primeira instância.
Caso o Recorrente entenda existirem provas que devam ser renovadas terá que os indicar especificadamente e expor as razões que justifiquem que a dita renovação evitará o reenvio do processo tal como resulta do art.º 430.º do Código de Processo Penal.
Neste domínio da indicação da prova produzida, caso tenha sido sujeita a gravação, exige-se ao Recorrente a referência ao que tiver sido consignado na acta, devendo o recorrente apontar as passagens das gravações em que fundamenta a sua pretensão recursiva. Não lhe bastará remeter para a totalidade de um ou de vários depoimentos, mas sim indicar as concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas no Tribunal da Relação de Lisboa (art.º 412.º/4 e 6 do Código de Processo Penal) – cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 3/2012, in DR, 1.ª de 18.04 2012 «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Aqui chegados, cumpre expressar a conclusão que se impõe no que toca à impugnação ampla e sua apreciação. O Tribunal de recurso só poderá alterar a decisão se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Caso tais provas não imponham essa decisão diversa, mas apenas a permitam, paralelamente àquela que foi a decisão da primeira instância, deverá ser esta última a prevalecer, não havendo lugar a qualquer correcção da decisão recorrida, desde que se mostre devidamente fundamentada e, face às regras da experiência comum, couber dentro de uma das possíveis soluções (vd., Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.2021, Desembargador Jorge Gonçalves - ECLI:PT:TRL:2021:477.20.8PDAMD.L1.5.A4).
Ora, a Recorrente limitou-se a afirmar que o Tribunal considerou umas testemunhas mais do que outras, nomeadamente aquelas que indicou, sem especificar as partes dos depoimentos que determinariam diferente apreciação dos factos.
De igual forma não apresentou razões justificativas daquilo que conclui, ou seja, que é um erro dar crédito aos testemunhos nos quais sustentou o Tribunal a sua decisão.
Perante o princípio da livre apreciação da prova tal como consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal, permite-se ao julgador recorrer às regras da experiência e sua convicção de julgador, desde que logre justificá-la permitindo a respectiva compreensão e sindicância. Assim, não será a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, que irá sobrepor-se à convicção do Tribunal. Caso contrário, nunca seria possível alcançar uma decisão final. Chegamos, então, à evidente conclusão de que o Tribunal de recurso apenas poderá intervir de forma correctiva perante a invocação fundamentada de um erro de apreciação da prova, que venha a concluir ter existido.
Lida a fundamentação da sentença, que se estende por 78 (!) páginas, o que se retira?
Em primeiro lugar, uma observação sobre a metodologia seguida. Em parte alguma do Código de Processo Penal se exige que a decisão contenha um resumo da prova produzida, tal como foi feito nesta sentença. Não cabe ao Tribunal reproduzir de assentada os depoimentos prestados. Não se exige o resumo dos documentos. Cumpre, isso sim, indicar os meios de prova relevantes quanto aos factos (e não é preciso fazê-lo um a um), bem como explicar qual o relevo de tal prova, expondo a apreciação crítica efetuada sobre o seu conteúdo.
O que, lida a motivação, o Tribunal fez. Para além de indicar os referidos conteúdos, explicou porque uns foram tidos por verdadeiros e relevantes, e outros, ao invés, foram desvalorizados.
Facto a facto ponderou os vários meios de prova que sobre os mesmos se reportavam e explicou como os valorou. E, no que toca às testemunhas indicadas pela Arguida, foi indicando porque razão as suas afirmações não podiam ser tidas como reveladoras da verdade, atenta a prova documental e outros depoimentos que suportavam visão distinta, aquela que acabou por prevalecer.
Não se vislumbrando insuficiências, contradições qualquer incongruência em tal fundamentação, a qual permite compreender o critério seguido pelo Tribunal que não merece censura, conclui-se inexistir qualquer erro na valoração da prova.
Nessa medida, é inconsequente a alegação de que o Tribunal violou o princípio do in dubio pro reo.
Entende a Recorrente que o Tribunal a quo teve que ter sido confrontado com dúvidas. Para si, resulta claro que da prova emerge uma incerteza quanto aos factos e, nessa medida, a decisão o deverá reflectir, suportando-se neste invocado princípio para dar a matéria da acusação como não provada.
Como já vimos acima, não é reconhecido à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova. Ora, o que a Recorrente defende é que teve dúvidas quanto aos factos, atenta a prova produzida, nomeadamente ao teor dos depoimentos das testemunhas que indicou e às suas próprias declarações. Logo, se o Tribunal não teve as mesmas dúvidas, violou o princípio do in dubio pro reo.
Naturalmente, esta é uma visão equivocada da questão, já que o Tribunal, com a amplitude permitida pela livre apreciação da prova, superou as dúvidas que poderia ter e produziu uma decisão fundamentada na qual expressa como chegou aos factos provados. Não se vislumbra qualquer vício argumentativo que questione tal grau de certeza e, do conjunto da prova produzida, não se alcança a existência de uma dúvida tão evidente que o Tribunal a quo não pudesse ignorar.
«O princípio in dubio pro reo resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.» [ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 14/01/2014, Desembargadora Alda Tomé Casimiro, ECLI:PT:TRL:2014:76.10.2GTEVR.L1.5.8C]
Conforme referido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/11/2010, Desembargador Artur Oliveira, [ECLI:PT:TRP:2010:997.08.2GCSTS.P1.3F] «O princípio in dubio pro reo pressupõe que, após a produção e apreciação exaustiva de todos os meios de prova, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos; não de uma dúvida hipotética e abstracta, sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas antes de uma dúvida assumida pelo próprio julgador.
Só há violação do princípio in dubio pro reo quando for manifesto que o julgador, perante uma dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo a versão que o desfavorece».
Com efeito, «A diversidade das versões não faz, necessariamente, operar o princípio in dubio pro reo. Este pressupõe um juízo positivo de dúvida resultante de um inultrapassável impasse probatório.»
[ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 30/09/2009, Desembargador Gomes de Sousa, ECLI:PT:TRC:2009:195.07.2GBCNT.C.71].
Apesar de limitado na amplitude do seu conhecimento sobre a matéria, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/11/2022, Conselheiro Orlando Gonçalves, [ECLI:PT:STJ:2022:76.20.4T9VLS.L1.S1.75], segundo o qual «Se na fundamentação da sentença/acórdão oferecida pelo tribunal, este não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.
No caso em apreciação, não é nesta perspetiva que o recorrente coloca a questão, mas antes no entendimento, seu, de que a prova produzida em julgamento impunha uma diversa decisão da que foi tomada, como se verifica quando defende, designadamente, que face à ausência de provas impunha-se ao tribunal de 1.ª instância e ao da Relação ter dúvidas sobre os factos dados como provados, o que traduz diferente questão, apreciada no âmbito do erro de julgamento no acórdão recorrido.»
Podendo a Relação ir mais além - «Sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, compreende-se o entendimento, repetidamente afirmado na jurisprudência do Supremo, de que não resultando da decisão que o tribunal ficou num estado de dúvida sobre os factos e que «ultrapassou» essa dúvida, dando-os por provados, contra o arguido, ao S.T.J. fica vedada a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio «in dubio pro reo» dado o quadro dos respectivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito.
Por isso se diz que no S.T.J. só pode conhecer-se da violação desse princípio quando da decisão recorrida resultar que, tendo o tribunal a quo chegado a um estado de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido; ou então quando, não tendo o tribunal a quo reconhecido esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, nos termos do vício do erro notório na apreciação da prova.
Não se compreende que se siga o mesmo raciocínio na Relação.
O princípio in dubio pro reo deve ser entendido objectivamente, e nessa perspectiva, no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.» [ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 07/05/2019, Desembargador Jorge Gonçalves, ECLI:PT:TRL:2019:485.15.0GABRR.L2.5.86] – certo é que, na decisão que nos ocupa, não se vislumbra existirem razões que imponham a invocada dúvida, quando confrontados com a decisão de facto recorrida e a fundamentação que a acompanha, atentas as provas produzidas em audiência.
«O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio.
A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal.» [ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 02/11/2021, Desembargador Luis Gominho, ECLI:PT:TRL:2021:50.19.3JELSB.L1.5.F1]
Logo, no caso concreto, não se mostra violado o princípio do in dubio pro reo, como pretendido pela Recorrente
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DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso mantendo-se inalterada a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça.

Lisboa, 17.Junho.2025
Rui Coelho
João António Filipe Ferreira
Alda Tomé Casimiro