PROCEDIMENTO CRIMINAL
TRANSMISSÃO
ESTADO ESTRANGEIRO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
BRANQUEAMENTO
Sumário

I – Requerida pelo Ministério Público a transmissão de procedimento criminal para outro Estado, ao abrigo dos arts. 89.º e seguintes da Lei n.º 144/99 de 31/08, importa assegurar o exercício do contraditório, conforme previsto no art. 91.º, n.º 1 e 2 do mesmo Diploma.
II – O art. 91.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99 dispõe que o tribunal aprecia a necessidade da delegação, com audiência contraditória, «na qual se expõem as razões para solicitar ou denegar esta forma de cooperação internacional». Quando o n.º 2 do art. 91.º refere que «o Ministério Público bem como o suspeito ou o arguido podem responder ao requerimento a que se refere o n.º 1 no prazo de 10 dias, quando não sejam os requerentes», tem que se entender que esta resposta respeita ao exercício do contraditório previsto no número anterior, ou seja, tem em vista contraditar as razões invocadas para justificar o pedido de cooperação judiciária internacional.
III - Por conseguinte, numa situação em que o pedido é feito pelo Ministério Público, os autos se encontram em fase de inquérito e vigora o segredo de justiça externo (art. 86.º do CPP), sendo o ora recorrente mero suspeito (e não arguido), o exercício do contraditório para o efeito previsto no art. 91.º, n.º 1 e 2 da Lei 144/99 tem de se harmonizar com o regime do segredo de justiça.
IV - Não é exigível para o exercício do contraditório a notificação do teor integral da peça processual em que o Ministério Público requer a transmissão do inquérito, na medida em que esta peça aborda diversas matérias sujeitas a segredo de justiça, sendo certo que o seu conhecimento não é necessário para o exercício do contraditório quanto ao pedido de transmissão do inquérito.
V - Tratando-se de um pedido de cooperação judiciária internacional, em que o Estado Português solicita a outro Estado a continuação de um procedimento criminal, a decisão judicial não contempla qualquer juízo de mérito sobre o inquérito ou os indícios investigados.
VI – O tribunal competente para apreciar o pedido de instauração ou transmissão de procedimento criminal, ao abrigo do art. 91.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99, relativamente a processo em fase de inquérito é o respetivo Tribunal de Instrução Criminal, em conformidade com a previsão do art. 17.º do CPP, segundo o qual compete ao juiz de instrução exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos previstos neste Código.
VII – As exigências do art. 23.º da Lei n.º 144/99 não se prendem com o exercício do contraditório, mas com a regularidade do pedido a transmitir à autoridade estrangeira, tanto assim que o n.º 3 prevê a possibilidade de a autoridade estrangeira poder exigir o suprimento de irregularidades ou que o pedido seja completado com elementos adicionais. Caso o prosseguimento seja aceite pela autoridade estrangeira, o processo segue os seus termos na fase em que se encontrava, pelo que é evidente que a divulgação integral do seu conteúdo, como se o segredo de justiça não vigorasse, colocaria em causa a eficácia da delegação.
VIII - O art. 90.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 144/99, quando prevê que a delegação da instauração de procedimento penal ou a sua continuação num Estado estrangeiro depende da verificação da condição de que o facto integre crime segundo a legislação portuguesa e segundo a legislação daquele Estado, apenas se refere à previsão da dupla incriminação segundo a lei de ambos os Estados. A amnistia não interfere com a previsão dos tipos legais de crime, apenas extingue a responsabilidade criminal concreta (cfr. art. 127.º, n.º 1 do Código Penal).
IX – Encontrando-se o crime de branqueamento de capitais tipificado, quer na lei portuguesa (art. 368.º-A do Código Penal), quer na lei angolana (art. 60.º da Lei n.º 34/11 de 12 de dezembro e art. 82.º da Lei da Lei n.º 5/20 de 27 de janeiro) a Lei da República de Angola n.º 11/16 de 12 de agosto, que amnistiou os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros até 11 de Novembro de 2015, não eliminou do ordenamento angolano o crime de branqueamento, pelo que não impede a delegação do inquérito: a tipificação legal subsiste à luz de ambos os ordenamentos.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Tribunal Central de Instrução Criminal foi proferida decisão deferindo a promoção do Ministério Público no sentido da transmissão do processo de inquérito à República de Angola, ao abrigo do artigo 91.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99, de 31-08, para continuação do procedimento criminal.
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Inconformado, recorreu o arguido AA, formulando as seguintes conclusões:
«I. O presente recurso tem por objecto o despacho do TCIC de .../.../2024 apenas comunicado ao Recorrente por notificação de .../.../2024, fruto de sucessivas insistências que determina a delegação do presente processo nas autoridades Angolanas, julgando procedente a promoção do DCIAP de .../.../2023 nesse sentido, nos termos do disposto no artigo 91.º n.º 3 da Lei 144/99.
II. O despacho recorrido fez uma apreciação errada da questão decidenda, nomeadamente, por ter desconsiderado vícios processuais da comunicação ao Recorrente da promoção do DCIAP de .../.../2023, bem como, acima de tudo, por ter desvalorizado a evidente falta de preenchimento de sucessivos requisitos do pedido de delegação em causa.
H.1) Da irregularidade por ocultação do conteúdo do pedido de cooperação
III. A notificação dirigida do Recorrente para exercício do contraditório quanto à promoção do DCIAP de .../.../2023 continha apenas 13 de 177 páginas, sendo que dessas 13 páginas não consta qualquer referência concreta aos supostos factos imputados ao Recorrente, nem ao enquadramento jurídico dos mesmos.
IV. O despacho do TCIC de .../.../2023, que ordena a aludida notificação do Recorrente, não faz qualquer referência à ocultação parcial do conteúdo da promoção do DCIAP de .../.../2023, nem tão pouco é avançada qualquer justificação para essa ocultação.
V. O exercício do direito ao contraditório de modo efectivo, esclarecido e informado depende estritamente de ao Recorrente serem dados a conhecer o conteúdo integral do pedido de delegação do presente processo, e dos documentos que o instruem.
VI. A ocultação indevida de parte substancial da promoção do DCIAP de .../.../2023 impediu o Recorrente de apreender quais as eventuais razões que suportam o pedido em questão, e, consequentemente, inviabilizou o exercício do contraditório a respeito dessas putativas razões.
VII. A ocultação ilegal acima referida consubstancia uma irregularidade, nos termos do disposto no artigo 123.º n.º 1 do CPP, a qual desde já se invoca para todos os efeitos.
VIII. Ao contrário do que erradamente supôs o Tribunal a quo, a irregularidade em questão, por bulir com valores e direitos fundamentais do ordenamento jurídico, não é passível de sanação, nomeadamente por decurso do prazo curtíssimo de 3 dias previsto no artigo 123.º n.º 2 do CPP o que tem sido reconhecido pela melhor jurisprudência.
IX. Ainda que assim não se entendesse, o que se admite por mera hipótese, sempre haveria que relevar que a irregularidade em questão foi, de facto, invocada tempestivamente no requerimento do Recorrente de .../.../2024, tendo-o sido dentro do prazo de 3 dias acrescido de multa referente ao 3.º dia útil (artigo 107.º-A, alínea c), do CPP), cujo comprovativo de liquidação acompanhou o referido requerimento. Na hipótese de a questão supra não vir a proceder o que se admite por mera cautela de patrocínio sempre haveria que considerar o seguinte:
H.2) Do Tribunal competente
X. artigo 91.º da Lei 144/99, estatui que a competência para apreciar o pedido de delegação incumbe ao "tribunal competente para conhecer do facto", referindo-se aí ao Tribunal que seria competente para julgar a causa, ajuizando da condenação ou absolvição dos arguidos.
XI. A competência prevista no artigo 91.º da Lei 144/99 não pode, por isso, ser do juiz de instrução (in casu, do TCIC), cuja função consiste, de resto, na fiscalização da actividade do MP na fase de inquérito e na salvaguarda dos direitos fundamentais dos sujeitos envolvidos.
XII. Requer-se seja declarada a nulidade insanável da decisão recorrida, por violação de regras de competência, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, alínea e), do CPP.
Admitindo, por mera hipótese, que assim não se entenda, sempre se invoca o seguinte:
H.3) Da pendência de recurso no tribunal constitucional
XIII. Em .../.../2022, o TRL proferiu Acórdão, já transitado em julgado, que determinou expressamente o arquivamento do inquérito e a absolvição do aqui Recorrente tendo o DCIAP recusado, até à presente data, cumprir essa decisão.
XIV. O Recorrente tem, desde o trânsito em julgado desses Acórdão, tomado todas as medidas legais para assegurar que o mesmo é cumprido pelo DCIAP.
XV. No âmbito dessas diligências, foi interposto recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, por requerimento apresentado em .../.../2024 (cfr. documento n.º 4), o qual se encontra ainda pendente de apreciação pelo Tribunal Constitucional (cfr. documentos n.º 5, n.º 6 e n.º 7).
XVI. Da apreciação desse recurso e dos seus termos subsequentes poderá e deverá, em última análise, resultar decisão que determine o encerramento definitivo do presente inquérito, em cumprimento da decisão que arquivamento resultante do Acórdão do TRL de .../.../2022.
XVII. Consequentemente, a cisão entre esse recurso cuja decisão incumbe aos Tribunais Portugueses e o restante processado delegado nas autoridades Angolanas poderá importar a prática de actos processuais inúteis e de diligências acrescidas que de outro modo seria perfeitamente escusadas.
XVIII. Pelo que o pedido de delegação os presentes autos nas Autoridades Angolanas é frontalmente contrário ao requisito da boa administração da Justiça, estatuído no artigo 90.º n.º 1, alínea d), da Lei 144/99, devendo ser revogada a decisão recorrida com esse fundamento e substituída por outra que recuse a delegação peticionada pelo DCIAP.
Ainda que assim não se entendesse, o que se admite por mera hipótese e sem conceder, sempre haverá que levar em conta o seguinte:
H.4) Da falta de requisitos do pedido de delegação formulado pelo DCIAP
XIX. O artigo 23.º n.º 1 da Lei 144/99 estabelece como requisitos do pedido de cooperação qualificação jurídica dos factos narração dos factos, incluindo o lugar e o tempo da sua prática quaisquer documentos relativos ao facto
XX. A promoção do DCIAP de .../.../2023 sem prejuízo da irregularidade já invocada supra sobre a respectiva notificação não contém qualquer descrição, ainda que sucinta, dos supostos factos que são imputados ao Recorrente, e muito menos qualquer referência ao lugar e tempo dos mesmos, nem expõe qual o eventual enquadramento jurídico das alegadas suspeitas que são imputadas ao Recorrente.
XXI. Essa promoção não é, tão pouco, acompanhada de qualquer documento que sustente aquelas putativas alegações de factos, que em si mesmos se desconhecem.
XXII. Conclui-se, com clareza, que a exposição do DCIAP que integra o pedido de delegação do processo nas autoridades Angolanas não cumpre os requisitos legais previstos no artigo 23.º n.º 1, alíneas e), f) e g), da Lei 144/99.
XXIII. Nem se invoque o segredo de justiça que pende sobre os autos, tal como faz o Tribunal a quo, porquanto daí não resulta uma justificação legítima para cercear o direito de defesa do Recorrente, ocultando a integralidade das suspeitas que lhe são imputadas e que servem para motivar o pedido de delegação.
XXIV. O exposto integra o vício de irregularidade, a qual foi tempestivamente invocada no requerimento de .../.../2024 do Recorrente.
XXV. O despacho recorrido, ao não reconhecer o vício em questão, incorreu num manifesto error in judicando, devendo ser, por isso, revogado e substituído por outro que declare a irregularidade da promoção do DCIAP de .../.../2024 e recuse a delegação do presente processo nas autoridades Angolanas, o que se requer.
XXVI. A eventual interpretação das disposições conjugadas do artigo 86.º n.º 3 do CPP (que prevê o segredo de justiça) e artigo 23.º n.º 1, alíneas c), e), f) e g), da Lei 144/99, que permita ocultar do sujeito titular de direito ao contraditório quanto a pedido de delegação de processo em autoridade estrangeira a descrição, ainda que sucinta, dos factos que lhe são imputados, a qualificação jurídica desses factos e a prova documental de suporte sempre seria MANIFESTAMENTE INCONSTITUCIONAL, por se traduzir numa restrição desproporcional do direito à defesa consagrado no artigo 32.º n.º 1 da CRP, bem como dos princípios da tutela jurisdicional efectiva e do processo equitativo, previstos no artigo 20.º n.º 1 e n.º 4 da CRP o que desde já se argui, para todos os efeitos.
Caso não proceda a questão invocada, o que se concebe sem conceder, sempre se considere o seguinte:
H.5) Do propósito ilegal do pedido de cooperação
XXVII. Estabelece-se no artigo 90.º n.º 1, alínea d), da Lei 144/99 que o pedido de delegação de justificar pelo interesse da boa administração da justiça
XXVIII. Importa ter em conta o contexto do pedido de delegação do presente processo nas autoridades Angolanas, pois daí decorrerá, com toda a clareza, que o propósito desse pedido do DCIAP é totalmente alheio à boa administração da justiça.
XXIX. Considere-se que o presente inquérito originou em denúncia apresentada em 2011, pelo activista … BB.
XXX. Assim que tomou conhecimento dos presentes autos, o Requerente tomou a iniciativa de o que fez por requerimento de .../.../2014, no qual explicou e documentou a razão para as aludidas movimentações, bem como a licitude do dinheiro envolvido nas mesmas.
XXXI. Após apreciação do requerimento de .../.../2014, o DCIAP determinou o arquivamento do inquérito quanto ao Recorrente, justamente por entender que as explicações fornecidas não permitem que soçobre a menor dúvida sobre a legítima proveniência dos capitais transacionados
XXXII. Esse despacho de arquivamento foi revogado por despacho de intervenção hierárquica, o qual foi sucessivamente declarado nulo pelo TCIC e renovado pelo DCIAP, conduzindo, em última análise, a que o presente inquérito se encontre em curso há mais de 10 anos, sem qualquer desenvolvimento relevante das (supostas) investigações.
XXXIII. Os esclarecimentos prestados pelo Recorrente, conjugados com a ausência de qualquer indício sério que suporte as suspeitas iniciais, após 10 anos de investigação, deveriam ter determinado, há muito tempo, o arquivamento ao abrigo do disposto no artigo 277.º n.º 1 e n.º 2 do CPP.
XXXIV. Acresce um factor decisivo: em .../.../2022, na sequência de recurso interposto pelo Recorrente, foi proferido Acórdão pelo TRL, já transitado em julgado, que ordenou expressamente o arquivamento do inquérito e a absolvição do Recorrente, com fundametno na falta do pressuposto processual da competência internacional das Autoridades Portuguesas.
XXXV. Tanto o TCIC como o DCIAP em persistido em desrespeitar esse Acórdão, mantendo a investigação em curso contra o que ficou imperativamente determinado por um Tribunal Superior.
XXXVI. Acresce um elemento determinante: o crime de branqueamento, que é imputado ao Recorrente pelo DCIAP embora sem revelar o fundamento factual e jurídico para o efeito prescreve no prazo de 15 anos, nos termos dos artigos 118.º n.º 1, alínea a), ponto i), e 368.º-A n.º 3 do Código Penal.
XXXVII. Datando de 2011 a denúncia que deu origem aos presentes autos, esse prazo ter-se-á já completado em relação a todos os pretensos crimes que o denunciante aí entendeu inscrever, ou estará na iminência de se completar.
XXXVIII. O contexto, delineado supra, do pedido de delegação formulado pelo DCIAP revela que o encerramento da investigação foi já determinado pela decisão de arquivamento em relação ao Recorrente (acórdão do TRL de .../.../2022), e ainda que assim não fosse, esse arquivamento sempre seria obrigatório em face da ausência de indícios que sustentem as suspeitas iniciais e, em qualquer dos casos, em virtude da prescrição, efectiva ou iminente, de todas as (falsas) imputações criminais dirigidas ao Recorrente.
XXXIX. O que permite concluir que o pedido de delegação do presente processo nas autoridades Angolanas é, em boa verdade, um expediente do DCIAP para perpetuar artificialmente o presente inquérito, valendo-se da suspensão do prazo de prescrição prevista artigo 91.º n.º 6 da Lei 144/99, furtando-se de ter que determinar a conclusão da investigação na sequência do arquivamento do inquérito e delegando essa incumbência no seu homólogo Angolano.
XL. O pedido de delegação em causa é, não só alheio, como contrário ao propósito da boa administração da justiça (artigo 90.º n.º 1, alínea d), da Lei 144/99) até porque, se fosse esse o objectivo prosseguido pelo DCIAP, já teria pedido a referida delegação há muito tempo, invocando as mesmas supostas razões que fez constar da promoção de .../.../2023 e não após mais de 10 anos de suposta investigação totalmente.
Ainda que assim não se entendesse, o que se concebe por mera cautela, sempre haveria que relevar o seguinte:
H.6) Das decisões de arquivamento do inquérito
XLI. O artigo 8.º n.º 1, alínea a), da Lei 144/99, concretiza o princípio ne bis in idem, estatuindo que pedido de delegação de processo em autoridade estrangeira não é admissível quando os factos que o motivam hajam sido objecto de decisão de arquivamento, em Portugal ou noutro Estado em que tenha sido instaurado procedimento pelo mesmo facto.
XLII. Como vimos já, o presente processo foi objecto de decisão de arquivamento, por Acórdão do TRL de .../.../2022, já transitado em julgado, o que desde logo preenche o disposto naquele preceito, tornando liminarmente inamissível a delegação pretendida pelo DCIAP.
XLIII. A isso acresce que, tendo a denúncia que deu origem ao presente processo sido também apresentada ao MP Angolano, a mesma deu aí origem a dois processos-crime n.º … e n.º … que terminaram, ambos, com decisões de arquivamento, conforme informação carreada para estes autos por despacho do TCIC de .../.../2016, a fls. 3033 e segs.
XLIV. Pelo que também daí resulta a inadmissibilidade do pedido de delegação à luz do artigo 8.º n.º 1, alínea a), da Lei 144/99, tendo em conta que os supostos factos que são imputados procedimento pelo mesmo facto noutro Estado in casu, Angola.
XLV. Conclui-se que o pedido de cooperação internacional formulado pelo DCIAP sempre deveria ser declarado liminarmente inadmissível, nos termos do disposto no artigo 8.º, alínea a), da Lei 144/99.
XLVI. O Tribunal a quo incorreu, também neste ponto, num manifesto erro de subsunção do caso à Lei aplicável, devendo ser, por isso, revogado e substituído por outro que julgue inadmissível a delegação do presente processo nas autoridades Angolanas o que se requer, subsidiariamente.
Ainda que o supra exposto não fosse julgado procedente, o que se admite por mera cautela de patrocínio e sem conceder, sempre haveria que considerar o seguinte:
H.7) Da não punibilidade pela lei Angolana
XLVII. O artigo 90.º n.º 1, alínea a), da Lei 144/99, concretizando o princípio fundamental do nulla poena sine lege, estabelece que a delegação de processo-crime em autoridade crime segundo a legislação portuguesa e segundo a legislação daquele Estado", neste caso: a República de Angola.
XLVIII. O crime de branqueamento, que traduz a imputação dirigida ao Recorrente, foi introduzido no ordenamento Angolano pela Lei n.º 34/2011 de 12/12, que entrou em vigor em 12/12/2011 (artigo 71.º).
XLIX. As suspeitas imputadas pelo DCIAP ao Recorrente decorrem dos supostos factos inscritos na denúncia que deu origem aos presentes autos (é isso o que resulta do despacho do TCIC de .../.../2013, de fls. 1352 e segs.), a qual foi apresentada em 2011, em data que não é possível precisar.
L. É apenas possível supor que todas as imputações dirigidas ao Recorrente pelo referido denunciante e, depois, pelo DCIAP se reportam a data anterior a 12/12/2011 data de entrada em vigor da Lei n.º 34/2011 de 12/12 no ordenamento Angolano.
LI. Por conseguinte, os alegados factos imputados ao Recorrente não constituem, nem poderiam constituir, crime à luz da legislação Angolana, pois não eram puníveis como tal à data da sua pretensa prática.
LII. Não estaria, por isso, preenchido o requisito legal previsto no artigo 90.º n.º 1, alínea a), da Lei 144/99, sendo o pedido de delegação ilegal e inadmissível.
LIII. Ao desconsiderar a ausência desse requisito imperativo, o Tribunal a quo sempre teria incorrido num evidente erro de apreciação, devendo ser, por isso, revogado e substituído por outro que julgue improcedente o pedido de delegação do presente processo nas autoridades Angolanas o que se requer, a título subsidiário.
LIV. A eventual interpretação do disposto no artigo 90.º n.º 1, alínea a), da Lei 144/99, que julgue admissível a delegação de processos em entidade estrangeira independentemente de o facto objecto do processo-crime em questão ser também punível, em concreto, à luz do ordenamento jurídico do Estado delegatário, sempre seria MANIFESTAMENTE INCONSTITUCIONAL, por infracção do princípio do nulla poena sine lege, previsto no artigo 29.º n.º 1 da CRP o que desde já se argui, para todos os efeitos.
Nestes termos, requer a V. Exas. julguem o presente recurso inteiramente procedente, proferindo Acórdão que determine:
i) a irregularidade do despacho recorrido, nos termos do artigo 123.º do CPP, e a rejeição do pedido de delegação do presente processo nas autoridades Angolanas, com fundamento na inobservância de requisitos processuais do pedido de delegação por parte do DCIAP ou, subsidiariamente, da regra de competência para decidir esse pedido e; ou, caso assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese,
ii) a revogação do despacho recorrido com fundamento em erro de interpretação e a rejeição do pedido de delegação do presente processo nas autoridades Angolanas, devido à não verificação dos respectivos requisitos legais».
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Recorreu igualmente o arguido CC, formulando as seguintes conclusões:
«a) O pedido de transmissão do processo à República de Angola, formulado a fls.... pelo Ministério Público (MP) português restringe-se exclusivamente, como bem escreveu a Mm.a a quo no douto despacho recorrido, ao «(...) crime de branqueamento é previsto e punido quer pela legislação portuguesa (artigo 368.º-A do Código Penal), com uma pena de prisão até 12 anos, e pela legislação angolana (artigo 60.0 da Lei n.0 34/2011, de 12-12, e atualmente artigo 82.0 da Lei n° 5/2020, de 27-01 com uma pena de prisão até 8 anos (artigo 91.°, n°1 ,alíneas a) e b)).» (sic);
b) O MP sabia e sabe bem e não ignorava, nem ignora, em consequência da natureza dos presentes autos e das múltiplas referências existentes no processo às leis de amnistia da República de Angola, que o referido tipo de crime se encontra amnistiado e, por conseguinte, que se encontra extinto o procedimento penal por tais factos contra o recorrente, facto que omitiu à Mm.a JIC no aludido pedido e posteriormente;
c) Ao omitir a amnistia, na República de Angola, do mencionado tipo de crime o MP incumpriu de forma grosseira e chocante, para além do mais, os deveres de cooperação e boa-fé e incumpriu outrossim os requisitos gerais e especiais do pedido de transmissão do processo impostos pela Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal (Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto);
d) O douto despacho recorrido não teve em consideração a especificidade de cada um dos cidadãos identificados no pedido formulado pelo MP, nomeadamente nas “RAZÕES DO PEDIDO DE TRANSMISSÃO”, e o que ali é ou não é escrito e assim imputado ou não a cada um deles;
e) Ignorando nas “RAZÕES DO PEDIDO DE TRANSMISSÃO” descritas pelo Ministério Público a fls. 8285-8293 não consta, ao invés do que sucede relativamente a outros cidadãos, a descrição de qualquer facto imputável ao recorrente;
f) A transmissão de um processo para outro Estado pressupõe, s.m.o., que o MP - Estado português - concretize os factos em questão relativamente a todos os cidadãos objecto do processo e outrossim, no mínimo, o tempo da prática de tais factos inclusive por forma a previamente conhecer da prescrição criminal que o comando normativo inscrito no Art.° 8°, n.° 1, al. c), obriga a conhecer, sob pena da respectiva violação;
g) Uma vez que, nos termos da citada norma, a cooperação não é admissível se o procedimento criminal se encontrar extinto o que, s.mo., constitui uma verdadeira imposição de conhecimento oficioso, quer pelo MP, quer pelo Juiz, de todas as causas de extinção do procedimento penal, entre as quais figura a prescrição;
h) Consequentemente, deveria a Mm.a Juíza a quo ter solicitado ao MP a discriminação de factos concretos imputáveis ao ora recorrente e a indicação das datas em que alegadamente foram praticados, porquanto da douta promoção (pedido) do MP não consta, no que a si lhe diz respeito, um único facto / acto por si praticado;
i) Relativamente ao recorrente, ao invés do que sucede com outros cidadãos (cfr. fls. 8288 e segs.), da descrição das razões do pedido de transmissão formulado pelo MP constam apenas consta três referências, ou seja, a menção de que é natural de ... e ai reside (cfr. ponto (iii) - fls. 8125) e que está impedido de sair de ..., por força de medida de coação a que ali se encontra sujeito (cfr. ponto (iv)-fls. 8125) e que foi “ …” e “…”, nenhum destes três factos constitui, como está bom de ver, razão justificativa para a transmissão dos presentes autos que sob o n.° 208/13.9TELSB correm os seus termos no DCIAP desde o ano de 2013, como decorre da sua numeração, mas, como referimos no Art.° l.° do requerimento acima junto sob o DOC. N.l e constata a fls. 1 do Volume I do processo, emergiram de certidão extraída do inquérito n.° 142/12.0TELSB que então foi arquivado relativamente a outros cidadãos;
j) O ora recorrente está a ser investigado em Portugal desde o ano de 2012, ou, considerando apenas a numeração do presente processo, desde 2013, há mais de 10 (dez) anos;
k) Porém, o ora recorrente, até hoje, nunca foi constituído arguido;
l) O recorrente alegou no Art.° 15.° do seu requerimento cuja cópia juntou sob o DOC. N.° 2 o seguinte: «(...) o MP sabe bem e não ignora que os factos que, no exemplo, descreve, ainda que venham a provar-se com a dimensão e natureza que lhes atribui e assim se possa subsumir aos tipos de crimes a que ali alude, estão amnistiados pelas Leis de Amnistia e de ... de 2015 e 2022.»;
m) Perante tal alegação, o MP ficou em silêncio a Mm.a Juíza, s.m.o., surpreendentemente, demitindo-se das suas funções e, como usa dizer-se, tropeçando nas suas próprias palavras, inscreveu no douto despacho recorrido, na respectiva segunda folha in fine o seguinte:«(...) não é conhecida nem. foi invocada cabalmente, qualquer amnistia aos factos em ..., nem tem a mesma sido considerada em outros processos paralelos: (...)»;
n) Cada uma das profissões forenses, magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e advogados, concorre na sua missão específica para êxito ou inêxito da justiça; os deveres de cooperação, boa-fé processual e correção que o direito adjectivo (actualmente regem os Art.°s 7.°, 8.° e 9.° do C.P.C.) impõem a todos um comportamento de recíproca colaboração tendo por finalidade a realização da justiça;
o) Não é aceitável que o MP, neste processo, primeiro, aparente ignorar as leis de amnistia da República de Angola, omitindo a amnistia à Mm.a JIC e, depois, perante a sua invocação se remeta ao silêncio, congelando assim a defesa da legalidade democrática e dos direitos fundamentais dos cidadãos;
p) Mas, pior, muito pior, é verificar que a Mm.a Juíza a quo afirma no douto despacho recorrido, em primeiro lugar, que : «(...) não é conhecida. (...) qualquer amnistia aos factos em ..., nem tem a mesma sido considerada em outros processos paralelos: (...)»;
q) Ora, quando a Mm.a Juiz a quo afirma «(...) nem tem a mesma sido considerada em outros processos paralelos;(...). está, como é manifesto, a reconhecer que conhece a lei de amnistia da República de Angola e que sabe, por dever de ofício, que a referida lei não tem sido, como ali diz, considerada em outros processos paralelos, o que constitui uma insanável contradição no segmento dispositivo / decisório do douto despacho recorrido;
r) No douto despacho recorrido a Mm.a Juíza, no que concerne á amnistia, afirma, «(..,) nem foi invocada cabalmente, qualquer amnistia aos factos em ... (…)».; o recorrente, como acima referiu e transcreveu, invocou as leis de amnistia da República de Angola nos termos inscritos no Art. 5.° do seu requerimento cuja cópia juntou sob o DOC. N.° 2, fê-lo, é certo, de uma forma genérica, mas estando a dirigir- se à Mm.a Juiz a quo, aliás, JIC, confiou que, esta, i) oficiosamente diligenciasse pela obtenção das leis de amnistia da República de Angola e as considerasse na decisão a proferir ou, no limite, tratando-se as leis de amnistia da República de Angola de documentos essenciais (formalidade ad prob respeitam ao único meio para produção da prova do acto) que ordenasse a notificação do ora recorrente, nos termos previstos no Art.° 590.°, n.° 3, do CPC, aplicável ex vi Art.0 4.° do CPP, para vir juntar aos autos cópias das referidas leis;
s) O douto despacho recorrido ignorou que a amnistia constitui uma verdadeira questão prévia que, enquanto tal, deve ser conhecida oficiosamente e decidida em qualquer altura do processo, precedendo quaisquer outras questões, aliás, a jurisprudência é unânime no sentido de que a amnistia opera "ope legis” pelo que é de conhecimento oficioso, sendo também incorrecta a interpretação que ali é feita da questão;
t) Aliás, a questão da aplicação de amnistia a um pedido de transmissão de processo para outro país e assim a existência ou não de lei de amnistia é, s.m.o., do conhecimento oficioso, mesmo que não suscitada pelas partes, por forma a garantir o cumprimento da imposição prevista no Art.° 8.°, n.° 1, al. c) da Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto, porquanto a amnistia extingue o procedimento penal e extinto que esteja o procedimento a cooperação não é admissível;
u) A Leis de amnistia da República de Angola n.° 11/16, de 12 Agosto e n.° 35/22, de 23 de Dezembro, concretamente em consequência do disposto nos seus Art°s l.° e 3.°, amnistiaram na República de Angola o crime de branqueamento previsto e punido - como bem é referido no douto despacho recorrido - pela legislação angolana (artigo 60.° da Lei n.° 34/2011, de 12-12, e atualmente artigo 82.° da Lei n° 5/2020, de 27-01 com uma pena de prisão até 8 anos (artigo 91.°, n° 1, alíneas a) e b));
v) Por efeito da amnistia encontra-se extinto, na República de Angola, o procedimento criminal contra o ora recorrente por eventuais crimes de branqueamento de capitais cometidos até ao dia ... de ... de 2022 (Art.°s l.°s das identificadas Leis);
w) Sendo inquestionável que o crime de branqueamento de capitais se encontra amnistiado na República de Angola ter-se-á de concluir, de imediato, pela não verificação das condições especiais prevista nas als. a) e d), do n.° 1, do Art. 90.° da Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto; porquanto, restringindo-se a imputação do MP à«(...) prática de crimes de branqueamento (...)« e estando este tipo de crime amnistiado na República de Angola, os factos em questão, por força das amnistias, não integram crime (o eventual crime inexiste) e consequentemente a delegação não se justifica pelo interesse da boa administração da justiça;
x) Aliás, o procedimento penal contra o ora recorrente, na República de Angola, por eventuais crimes de branqueamento de capitais encontra-se extinto por força, i.e., do efeito das amnistias, sendo inadmissível a transmissão do processo para a República de Angola nos termos do disposto no Art.° 8.°, n.° 1, al. c) da Lei 144/99, de 31 de Agosto e no Art.° 128.°, n.° 3 do CP, o que é do conhecimento oficioso do Tribunal;
y) Finalmente, é outrossim do conhecimento oficioso do Tribunal, o que a Mm.a Juíza a quo não conheceu, que também em Portugal o procedimento criminal contra o ora recorrente pelo crime previsto no Art.° 368°-A do CP (Branqueamento) se encontra extinto, questão que, repetimos, s.m.o., é conhecimento oficioso Tribunal como decorre da disposição legal citada, na alínea anterior, uma vez que, de acordo com o disposto no Art.° 368.°-A, n.° 5, do CP: «O facto não é punível quando o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e a queixa não tenha sido tempestivamente apresentada.»;
z) Não tendo, como resulta dos autos, sido apresentada qualquer queixa contra o recorrente e estando a investigação pendente desde a data inscrita na folha um do primeiro Volume, dia que o recorrente concretamente desconhece, mas que emergiu de certidão extraída do inquérito n.° 142/12.0TELB, autuado no ano de 2012, é manifesta a existência da condição material de exclusão da pena inscrita no n.° 5 do Art.° 368.°-A do CP, por inexistência de qualquer queixa, questão que, s.m.o., é do conhecimento oficioso para os efeitos da verificação da existência das condições previstas nos Art.°s 8.°, n.° 1, al. c) e 90°, n.° 1, al. a) da Lei 144/99, de 31 de Agosto e que determina a imediata extinção do procedimento criminal aqui em curso contra recorrente.
Termos em que, atento o exposto, especificamente por violação das referidas disposições legais, deve o douto despacho recorrido ser revogado e declarada a imediata extinção do procedimento criminal aqui em curso contra recorrente por verificação da condição material de exclusão da pena prevista no Art.° 368.°-A, n.° 5, do CP, por força do disposto no Art.° 8.°, n.° 1, al. c), da Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto, sem embargo naturalmente da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam do conhecimento oficioso».
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Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público ao recurso de AA, concluindo nos seguintes termos:
«I - O recurso do suspeito é interposto do douto despacho judicial proferido em .../.../2024, através do qual a Mma. JIC: (i) declarou o TCIC competente para apreciar e decidir o requerimento de transmissão do procedimento criminal formulado pelo Ministério Público; (ii) declarou sanada a eventual irregularidade da notificação do ora recorrente para exercer o contraditório face ao requerimento de transmissão do procedimento criminal; e, (iii) determinou a transmissão do processo relativamente ao ora recorrente à República de Angola para continuação do procedimento criminal.
II - Ao longo dos anos, o ora recorrente tem apresentado múltiplos requerimentos e vários recursos, que tiveram por objectivo declarado fazer cessar a investigação de que é alvo no âmbito dos presentes autos. Sustentava o ora recorrente que o Ministério Público português não tinha competência internacional para o investigar. Contudo, ao opor-se à transmissão do procedimento criminal para a Justiça de Angola, revela o ora recorrente que, afinal, não quer ser investigado nem em Portugal, nem no país onde nasceu e reside e de onde é nacional, ......
III - Nos autos investigam-se factos ocorridos em território português susceptíveis de integrarem o crime de branqueamento de capitais, p. ep. pelo art. 368.°A do Código Penal, aos quais é aplicável a lei penal portuguesa, “seja qual for a nacionalidade do agente” (cfr. art. 4.° al. a) do CPP), e, para os quais o Ministério Público português tem competência para realizar inquérito (cfr. art. 266.° do CPP).
IV - O ora recorrente é apenas uma das várias entidades (singulares e colectivas) investigadas nestes autos.
V - Os factos praticados pelo recorrente em ... são objecto de procedimento criminal instaurado pela Justiça angolana.
VI - Nem a Lei 144/99 de 31/08, nem o Código de Processo Penal, nem a Lei da Organização do Sistema Judiciário atribuem ao Juiz de Julgamento a competência para apreciar um pedido de transmissão de um processo a um país estrangeiro para prosseguimento da investigação.
VII - Perante um pedido de transmissão, o que interessa apurar é se estão ou não verificados todos os requisitos e condições legalmente impostos para tal puder ocorrer, e, não apurar da suficiência ou insuficiência de indícios para condenar ou absolver.
VIII - Bem andou a Mma. JIC a quo em considerar que o TCIC tinha competência para apreciar o pedido de transmissão do processo à República de Angola para prosseguimento da investigação, não tendo violado qualquer norma, designadamente as invocadas pelo recorrente, e, não padecendo o douto despacho recorrido de nulidade insanável por violação de regras de competência.
IX - Requer o ora recorrente que se revogue a douta decisão recorrida de .../.../2024, em virtude de, no dia seguinte a essa decisão, em .../.../2024, o ora requerente ter “interposto um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade (...), o qual se encontra pendente de apreciação pelo Tribunal Constitucionar, e, que a delegação de competência na Justiça de Angola nessa circunstância “é frontalmente contrário ao requisito da boa administração da Justiça estatuído no artigo 90.° n.° 1, alínea d), da Lei 144/99
X - Sucede que o douto despacho recorrido não apreciou tal questão, desde logo por ter sido proferido em data anterior à interposição do referido recurso perante o Tribunal Constitucional.
XI - Pretende pois o suspeito recorrente que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa se pronuncie sobre matéria não apreciada no douto despacho recorrido. Porém, tal pretensão não é lícita, sendo manifesta a sua improcedência, impondo-se, quanto a ela, a sua rejeição, nos termos conjugados do art. 420.° n.° 1 al. a) e414.°n.°3 do CPP.
XII - A notificação efectuada ao ora recorrente foi suficiente para o mesmo exercer o seu direito ao contraditório, inexistindo qualquer irregularidade daquela.
XIII - A Mma. JIC não efectuou qualquer “interpretação das disposições conjugadas do artigo 86.° n.° 3 do CPP (que prevê o segredo de justiça) e artigo 23.° n.° 1, alíneas c), e),f) e g), da Lei 144/99, que permita ocultar do sujeito titular de direito ao contraditório quanto a pedido de delegação de processo em autoridade estrangeira a descrição, ainda que sucinta, dos factos que lhe são imputados, a qualificação jurídica desses factos e a prova documental de suporte", e, a douta decisão recorrida não se traduz “numa restrição desproporcional do direito a defesa consagrado no artigo 32.° n.° 1 da CRP, bem como dos princípios da tutela jurisdicional efectiva e do processo equitativo, previstos no artigo 20.° n.° 1 e n.°4 da CRP".
XIV - Ainda que se estivesse perante uma irregularidade de notificação, a mesma teria ficado sanada pois que o ora recorrente não a arguiu tempestivamente.
XV - E, ainda que se estivesse perante uma irregularidade de notificação e esta tivesse sido arguida tempestivamente, sempre a mesma estaria sanada por força do art. 121.°n.° 1 al. c) do CPP, aplicável às nulidades dependentes de arguição, e, por maioria de razão, às irregularidades. Com efeito, o ora recorrente prevaleceu-se da faculdade a cujo exercício o acto alegadamente anulável se dirigia, pois que o invocado vício não obstou a que contraditasse o pedido de transmissão, com base em fundamento não formal.
XVI - O Tribunal a quo não errou ao considerar verificados os requisitos do pedido de cooperação internacional previstos no art. 23.° n.° 1 da Lei n.° 144/99, designadamente, nas ais. c), e), f) e g), e, as condições especiais previstas no art. 90.° n.° 1 do mesmo diploma legal, designadamente na al. d) l.a parte.
XVII - O requerimento de transmissão do procedimento criminal cumpre os requisitos legais previstos no artigo 23.° n.° 1 ais. c) e), f) e g) da Lei 144/99, pois que:
- indica inequivocamente a “qualificação jurídica dos factos que motivam o procedimento” [al. c) do n.° 1 do art. 23° da Lei 144/99]: crime de branqueamento, sendo, pois, falso que o requerimento não “expõe qual o eventual enquadramento jurídico das alegadas suspeitas que são imputadas ao Recorrente".
- contém uma “narração dos factos” (incluindo o lugar e o tempo da sua prática), a qual se estende de fls. 8126 a fls. 8285 e de fls. 8287 a fls. 8290 [al. e) do n.° 1 do art. 23.° da Lei 144/99].
- indica o “texto das disposições aplicáveis no Estado’’'’ que formula o pedido, o qual consta de fls. 8285-8287 e de fls. 8291-8292 [al. f) do n.° 1 do art. 23.° da Lei 144/99].
- nas notas de rodapé, indica especificadamente os documentos relativos aos factos narrados [al. g) do n.° 1 do art. 23.° da Lei 144/99].
XVIII - A transmissão do procedimento criminal justifica-se pelo interesse da boa administração da justiça [al. d) 1 ,a parte do n.° 1 do art. 90.° da Lei 144/99].
XIX - Inexiste qualquer “finalidade ilegal e ilegítima!'’ a presidir o pedido de transmissão, mas sim o propósito de esgotar todas as possibilidades que se afigurem úteis ao bom sucesso da presente investigação: a descoberta da verdade. Frisa-se que está o Ministério Público vinculado a empreender as “diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação’'’ (cfr. art. 262.° n.° 1 do CPP).
XX - Relativamente ao ora recorrente, inexiste qualquer decisão de arquivamento, portuguesa ou angolana, que impeça a transmissão da investigação, e, o Tribunal a quo não violou o estatuído no art. 8.° n.° 1 al. a) da Lei n.° 144/99.
XXI - O ora recorrente é suspeito de factos integrantes do crime de branqueamento que se prolongaram no tempo e que ultrapassaram a data de 12/12/2011, data em que entrou em vigor a Lei angolana n.° 34/2011 de 12/12
XXII - O Tribunal a quo não efectuou qualquer “interpretação do disposto no artigo 90° n.0 1, alínea a), da Lei 144/99, que julgue admissível a delegação de processos em entidade estrangeira independentemente de o facto objecto do processo-crime em questão ser também punível, em concreto, a luz do ordenamento jurídico do Estado delegatário”, e, consequentemente, não infringiu o princípio do nulla poena sine lege».
*
O Ministério Público respondeu também ao recurso de CC, concluindo nos seguintes termos:
«I - O recurso do suspeito é interposto do douto despacho judicial proferido em .../.../2024, na parte em que a Mma. JIC determinou a transmissão do processo relativamente ao suspeito ora recorrente à República de Angola para continuação do procedimento criminal.
II - Nos autos investigam-se factos ocorridos em território português susceptíveis de integrarem o crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art. 368.°-A do Código Penal.
III - Os factos integrantes dos crimes precedentes foram praticados em ..., de onde o ora recorrente é natural e nacional e onde reside, tendo, no período relevante para a investigação do crime de branqueamento, ocupado altos cargos públicos em ....
IV - Não obstante no seu recurso o ora recorrente suscitar várias questões, certo é que apenas efectua um concreto pedido recursivo: “deve o douto despacho recorrido ser revogado e declarada a imediata extinção do procedimento criminal aqui em curso contra [o] recorrente por verificação da condição material de exclusão da pena prevista no Art. ° 368. °-A, n.0 5, do CP”.
V - Sucede que o douto despacho recorrido não apreciou tal questão, desde logo porque a mesma não foi suscitada pelo ora recorrente quando exerceu o seu direito ao contraditório em relação ao requerimento de transmissão do procedimento penal formulado pelo Ministério Público.
VI - Pretende pois o suspeito recorrente que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa se pronuncie sobre matéria não apreciada no douto despacho recorrido. Porém, tal pretensão não é lícita, sendo manifesta a improcedência do presente recurso, impondo-se a sua rejeição, nos termos conjugados do art. 420.° n.° 1 al. a) e 414.° n.°3 do CPP.
VII - Os indícios coligidos nos autos apontam indubitavelmente para a natureza pública dos crimes precedentes.
VIII - O suspeito ora recorrente não esclareceu que ilícito(s) de natureza semi- pública constitui(em), afinal, o(s) crime(s) precedente(s) do crime de branqueamento investigado nestes autos.
IX - Alguns dos factos suspeitos imputados ao ora recorrente foram praticados já depois da entrada em vigor da Lei n.° 83/2017 de 18/08 (ocorrida em 17/09/2017), concretamente nos anos de 2018 e 2019. Assim, e pelo menos quanto a esses factos mais recentes, a ausência de queixa por parte de um suposto ofendido por um crime de natureza semi-pública não determina a não punibilidade do crime de branqueamento imputado ao ora recorrente, pois que desde 17/09/2017 vigora a norma prevista no n.° 7 do art. 368.-A do Código Penal: “O facto é punível ainda que o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e esta não tiver sido apresentada
X - O Tribunal a quo não errou ao considerar verificado o requisito do pedido de cooperação internacional previsto no art. 23.° n.° 1 al. e) da Lei n.° 144/99: a “ narração dos factos, incluindo o lugar e o tempo da sua prática
XI - O requerimento de transmissão do procedimento criminal contém uma “ narração dos factos, incluindo o tempo da sua”, a qual se estende de fls. 8126 a fls. 8285 e de fls. 8287 a fls. 8290 dos autos principais.
XII - E, a narração dos factos imputados ao ora recorrente permite aferir e excluir a verificação da prescrição do procedimento criminal relativamente ao mesmo, e, portanto, concluir-se que o procedimento não se encontra extinto por prescrição, ficando afastada a aplicação do art. 8.° n.° 1 al. c) da Lei 144/99.
XIII - Desconhece-se o sentido em que as duas Leis angolanas de Amnistia - Lei n.° 11/2016 de 12/08, e, Lei n.° 35/2022 de 23/12 - têm sido interpretadas e aplicadas pela Justiça de Angola, mas estas não têm tido impacto no processo crime angolano n.° 12/2020, no âmbito do qual o ora recorrente foi acusado (juntamente com outros) por factos que se iniciam em 2004 e se prolongam por diversos anos.
XIV - Resulta de forma expressa e clara da Lei angolana n.° 35/2022 de 23/12 que esta excepciona da sua aplicação os crimes de branqueamento.
XV - O preenchimento do art. 8.° n.° 1 al. c) da Lei n.° 144/99 por efeito de amnistia depende de que, no Estado estrangeiro (no caso, ...), tenha sido instaurado procedimento pelos mesmos factos e este tenha sido extinto por amnistia, o que não é o caso.
XVI - A situação prevista no art. 8.° n.° 1 al. c) da Lei n.° 144/99 é distinta da prevista no art. 90.° n.° 1 al. a) da Lei n.° 144/99, e, a Mma. JIC a não violou nenhum desses preceitos legais.
XVII - O interesse da boa administração da justiça justifica a transmissão do procedimento criminal, não tendo a Mma. JIC a quo violado a al. d) do n.° 1 do art. 90.° da Lei n.° 144/99».
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Admitidos os recursos, foi determinada a sua subida imediata, em separado e com efeito suspensivo.
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da improcedência dos recursos.
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Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer.
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Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
I – Recurso do recorrente AA
1 - Irregularidade da notificação do pedido de delegação processual formulado pelo DCIAP
2 - Competência do Tribunal
4. - Pendência de recurso no Tribunal Constitucional
4 - Falta de requisitos do pedido de delegação formulado pelo DCIAP, nos termos do art. 23.º n.º 1 da Lei 144/99
5 - Propósito ilegal do pedido de cooperação
6 - Decisões de arquivamento do inquérito
7 - Não punibilidade pela lei angolana.
II - Recurso do recorrente CC
1 - Omissão da descrição de factos relativos ao recorrente no pedido de transmissão
2 - Amnistia do crime de branqueamento pela lei angolana
3 - Inexistência de queixa – art. 368.º-A, n.º 5 do Código Penal, na redação anterior à Lei n.º 83/2017 de 18/08.
FUNDAMENTAÇÃO
A decisão recorrida
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«O Ministério Público promoveu a transmissão do processo à República de Angola para continuação do procedimento criminal, ao abrigo do previsto nos artigos 89.º e seguintes da Lei n.º 144/99, de 31-08, Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, invocando que estão preenchidos os requisitos previstos no artigo 90.º do referido diploma.
Cumpre apreciar e decidir.
Ao abrigo do artigo 89.º do diploma em análise «a instauração de procedimento penal ou a continuação de procedimento instaurado em Portugal por facto que constitua crime segundo o direito português podem ser delegadas num Estado estrangeiro que as aceite, nas condições referidas nos artigos seguintes».
O Ministério Público entende que há fundada suspeita da prática de crimes, no território português, de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º-A do Código Penal por AA, DD; CC; EE; FF; GG e HH.
Não obstante, avança o Ministério Público, há que anteder que os crimes precedentes ocorreram em ...; as entidades lesadas são entidades públicas angolanas; os principais suspeitos (AA e CC), assim como dois testas-de-ferro (DD e EE) são naturais, nacionais e residentes em ...; AA e CC estão impedidos de sair de ..., por estarem sujeitos a medidas de coacção; os demais suspeitos, que figuram como testas-de-ferro, praticaram factos em momento prévio ou concomitante com o crime de branqueamento em ..., pelo que a sua responsabilização penal depende da responsabilização penal dos demais, estando, desse modo, a justiça angolana melhor posicionada para obter prova junto da ..., do ..., e junto da entidade que guarda o acervo documental do …, nomeadamente para efectuar a ligação entre os fluxos monetários ocorridos em Portugal e as aquisições de bens em Portugal, e, por outro lado, para apurar as origens ilícitas dos activos que permitiram aqueles fluxos e aquisições, podendo fazê-lo, igualmente, com mais celeridade, do que Portugal usando a cooperação internacional.
Notificados para tal alguns dos suspeitos/arguidos exerceram o contraditório, a saber, AA (fls. 8310 e seguintes); CC (fls. 8327 e seguintes); DD (fls. 8404 e seguintes).
O Ministério Público pronunciou-se sobre as objecções à transmissão a fls. 8423 a 8451.
Cumpre apreciar e decidir.
O Ministério Público cumpriu os requisitos gerais e especiais do pedido de transmissão, nos termos da Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal.
O crime de branqueamento é previsto e punido quer pela legislação portuguesa (artigo 368.º-A do Código Penal), com uma pena de prisão até 12 anos, e pela legislação angolana (artigo 60.º da Lei n.º 34/2011, de 12-12, e actualmente artigo 82.º da Lei nº 5/2020, de 27-01, com uma pena de prisão até 8 anos (artigo 91.º, n.º 1, alíneas a) e b)).
Pelo menos quatro suspeitos têm nacionalidade angolana e ali residem, devendo os demais continuar a ser investigados conjuntamente, sob pena de o julgamento não se efectivar nem em Portugal, nem no estrangeiro (artigo 91.º, n.º 1, alínea c), e n.º 4).
As questões suscitadas pelos opoentes não contendem com a verificação dos requisitos legais, sendo, aliás, manifesto que este TCIC é o tribunal competente, ante a fase processual em curso; a existir qualquer irregularidade a mesma não foi invocada tempestivamente e os opoentes já apresentaram oposição, estando sanada (artigo 123.º do Código de Processo Penal); não corresponde à realidade que o pedido de transmissão não esteja fundamentado (basta atentar a fls. 8285 a 8293, o que os opoentes conheceram e não rebateram); a finalidade de prosseguir a investigação visa a descoberta da verdade, pelo que não se vislumbra que tal seja uma finalidade ilegítima, ainda que os suspeitos discordem da mesma; o Ministério Público cumpriu com os requisitos do artigo 23.º da Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, como consta do pedido integral (fls. 8126 a 8293), ainda que os autos estejam em segredo de justiça; não houve decisão de arquivamento quanto a DD, nem é conhecida nos autos decisão de arquivamento em ...; inexiste despacho judicial em Portugal a arquivar os autos quanto a AA; inexiste identidade de factos com outros processos angolanos que sejam conhecidos nos autos; não é conhecida, nem foi invocada cabalmente, qualquer amnistia aos factos em ..., nem tem a mesma sido considerada em outros processos paralelos; o recurso invocado por CC já foi decidido com trânsito em julgado, sendo rejeitado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que não é um obstáculo à transmissão.
Pelo exposto, afigura-se necessária a transmissão do processo à República de Angola, ao abrigo do artigo 91.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99, de 31-08, para continuação do procedimento criminal.
Devolva os autos ao Ministério Público».
I – Recurso do recorrente AA
1 - Irregularidade da notificação do pedido de delegação processual formulado pelo DCIAP
A primeira questão suscitada pelo recorrente consiste na falta de notificação do conteúdo integral da promoção de .../.../2023, pela qual o Ministério Público requereu a delegação do inquérito às Justiças de Angola.
Alega o recorrente que a notificação em causa continha em anexo uma cópia de fls. 8124 a 8127 e fls. 8285 a 8293 dos autos, omitindo-se toda a restante promoção, o que violaria o exercício do contraditório previsto no art. 91.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99 de 31/08. Tal omissão configura, em seu entender, uma irregularidade, nos termos do art. 123.º do CPP, que afeta a validade do ato, pelo que é de conhecimento oficioso e tem natureza insanável, na medida em que viola o direito ao contraditório.
O Tribunal recorrido considerou indevidamente que a irregularidade se encontrava sanada, prossegue o recorrente, pelo que a irregularidade deve ser declarada, ordenando-se a repetição da notificação ao ora Recorrente da totalidade do conteúdo da promoção do DCIAP em que é pedida a cooperação internacional ao abrigo do artigo 90.º da Lei 144/99.
Cumpre apreciar.
Com relevância para a apreciação da questão, retiram-se os seguintes factos da consulta do processo:
- O Ministério Público promoveu nos autos de inquérito, em .../.../2023, a prolação de decisão de transmissão do processo à República de Angola para continuação do procedimento criminal, ao abrigo dos arts. 89.º e seguintes da Lei n.º 144/99 (fls. 8118 e seguintes);
- Por despacho de .../.../2023, foi ordenada a notificação dos suspeitos para exercerem o contraditório, ao abrigo do art. 91.º, n.º 2 do mesmo Diploma;
- O ora recorrente foi notificado, na pessoa do seu Il. Mandatário, por ofício expedido a .../.../2023;
- Em .../.../2024 (data de expedição por correio registado), o ora recorrente veio pronunciar-se sobre a promoção, arguindo a irregularidade da notificação, por apenas ter sido notificado de cópia de fls. 8124 a 8127 e 8285 a 8293, concluindo pela notificação do pedido integral;
- O recorrente acompanhou o seu requerimento de uma autoliquidação de pagamento de multa no valor de € 153,00;
- O despacho recorrido indeferiu a arguição de nulidade, considerando que «a existir qualquer irregularidade a mesma não foi invocada tempestivamente e os opoentes já apresentaram oposição, estando sanada (artigo 123.º do Código de Processo Penal)».
Transcreve-se ainda o teor de fls. 8285 a 8293 da supra referida promoção:
«III – RAZÕES DO PEDIDO DE TRANSMISSÃO
1. Estabelece o art. 89.o da Lei n} 144199 de 31/08 (que aprovou a Lei da Cooperação Judiciária lntemacional em Matéria Penal) que "A instauração de procedimento penal ou a continuação de procedimento instaurado em Portugal por facto que constitua crime segundo o direito português podem ser delegadas num Estado estrangeiro que as aceite, nas condições referidas nos artigos seguintes”.
O art. 90.' da Lei nº 144/99 elenca as condições especiais de que depende a delegação:
"l - A delegação da instauração de procedimento penal ou a sua continuação num Estado estrangeiro dependem da verificação das condições gerais previstas no presente diploma e ainda das seguintes condições especiais:
a) Que o facto integre crime segundo a legislação portuguesa e segundo a legislação daquele Estado;
b) Que a reação criminal privativa da liberdade seja de duração máxima não inferior a um ano ou, tratando-se de pena pecuniária, o seu montante máximo não seja inferior a quantia equivalente a 30 unidades de conta processual;
c) Que o suspeito ou o arguido tenham a nacionalidade do Estado estrangeiro ou, sendo nacionais de um terceiro Estado ou apátridas, ali tenham a residência habitual;
d) Quando a delegação se justificar pelo interesse da boa administração da justiça ou pela melhor reinserção social em caso de condenação.
2 - Verificadas as condições a que se refere o número anterior, pode ainda ter lugar a delegação:
a) Quando o suspeito ou o arguido estiverem a cumprir sentença no Estado estrangeiro por crime mais grave do que o cometido em Portugal;
b) Quando, em conformidade com a lei do Estado estrangeiro, não possa ser obtida a extradição do suspeito ou do arguido ou, quando solicitada, ela for negada e estes tenham residência habitual nesse Estado;
c) Quando o suspeito ou o arguido forem extraditados para o Estado estrangeiro por outros factos e seja previsível que a delegação do processo criminal permite assegurar melhor reinserção social.
3 - A delegação pode ainda efectuar-se, independentemente da nacionalidade do agente, quando Portugal considerar que a presença do arguido em audiência de julgamento não pode ser assegurada, podendo todavia sê-lo no Estado estrangeiro.
4 - Excecionalmente, a delegação pode efectuar-se independentemente do requisito da residência habitual, quando as circunstâncias do caso o aconselharem, designadamente para evitar que o julgamento não pudesse efetivar-se quer em Portugal quer no estrangeiro”.
Respetivamente, os arts. 91 .º, 923 e 93.º da Lei nº 144199 regulam o processo de delegação, a transmissão do pedido e os efeitos da delegação.
2 Nos autos recolheram-se indícios de que, pelo menos, os sete suspeitos supra identificados levaram a cabo em território português manobras de branqueamento de capitais.
Sucede que:
(i) os crimes precedentes ocorreram em ...;
(ii) as entidades lesadas pelos crimes de branqueamento de capitais são entidades públicas angolanas;
(iii) OS Principais Suspeitos - AA e CC - e dois dos “testas DE FERRO” - DD E EE - são naturais e nacionais de ... e aí residem; (iv) AA e CC estão impedidos de sair de ..., por força das medidas de coacção a que ali se encontram sujeitos;
(v) não obstante os três demais "testas-de-ferro" - FF, GG e HH - não serem nacionais de ..., actualmente nenhum ali residir e desconhecer-se se mantêm ou não relações pessoais ou profissionais com entidades residentes em ... -, certo é que os factos que praticaram em momentos prévios e/ou concomitantes ao branqueamento (quer relativos a crimes precedentes quer relativos a crimes instrumentais) situaram-se em ..., e, a sua responsabilização penal está intimamente dependente da responsabilização penal dos dois principais suspeitos.
A título exemplificativo:
- na tentativa de justificar fluxos monetários da ... e da ... (ambas geridas por FF), para a ..., AA juntou um contrato de venda de 334 veículos (vehicle sales Agreement), datado de .../.../2010, alegadamente celebrado entre as sociedades ... (fornecedor) - então representada por II - e ... (cliente) - representada por FF - pelo preço de 3r'255.211,00 USD, o qual previa que os veículos deveriam ser entregues em .... As diligências probatórias para confirmar/infirmar a veracidade do que consta nesse contrato e a origem última dos fundos estão na dependência do Estado angolano/Justiça angolana, designadamente : averiguar s e a ... teve actividade económica de venda de VEÍCULOS registada em ...; averiguar se a ... teve actividade económica registada em ... que justificasse a aquisição de 334 veículos; averiguar se há registo de, entre 2010 e 2012, a ... ou a ... ter efectuado o pagamento de impostos alfandegários relativos a veículos; identificar, localizar e inquirir (ou interrogar) II; averiguar da eventual existência de contratos elaborados e de fluxos financeiros entre a ... e alguma entidade pública angolana (v.g., ... e …).
- na tentativa de justificar uma transferência de 10.228.479,00 USD da ... (gerida por FF) para a ..., AA juntou um contrato de prestação de serviços (escavação e preparação de terreno, construção de alvenaria de 150 casas, etc), a prestar em ..., datado de ... de 2010, celebrado entre as sociedades ... (fornecedor), representada por II, e ... (cliente), representada por FF, pelo preço de USD 10.228.479,00. Mais vma vez, as diligências probatórias para confirmar/infirmar a veracidade do que consta nesse contrato e a origem última dos fundos estão na dependência do Estado angolano/Justiça angolana, designadamente: averiguar se a ... teve actividade económica registada em ... para prestar os serviços descritos no contrato; averiguar se a ... teve actividade económica registada em ... para contratar os serviços em questão; averiguar da eventual existência de contratos elaborados e de fluxos financeiros entre a ... e alguma entidade pública angolana (r.g., ... e …). na tentativa de justificar uma transferência de 964.000,00 USD da ... (gerida por GG) para a ..., AA juntou cópia de uma factura com o n.o ... da ..., datada de ...1...12010, respeitante à suposta venda de 1.000 toneladas de peixe à ... (a entregar em ...?). Também aqui as diligências probatórias para confirmar/infirmar a veracidade do que consta nessa factura e a origem última dos fundos estão na dependência do Estado angolano/Justiça angolana, designadamente: averiguar se a ... tem actividade económica registada em ... que justifique a aquisição de 1.000 toneladas de peixe; averiguar da eventual existência de algum contrato que justifique a transferência de 3.297.973,00 USD do ... para a ...; averiguar da existência de outros fluxos financeiros entre a ... e entidades públicas angolanas.
- na tentativa de justificar a transferência de 1.200.000,00 euros ocorrida no dia .../.../2010, com origem no … (de que AA era … desde ...),para a conta ... n.o ... titulada por HH, foi indicada que a mesma se destinava a pagar a ..." (Invoice ou Factura ...). Mais uma vez, as demais diligências probatórias para confirmar/infirmar a veracidade do que consta nessa factura estão na dependência do Estado angolano/Justiça angolana, designadamente: averiguar da existência da tal Factura ..., de um qualquer contrato escrito correspondente e da evidência/falta de evidência de venda de bens e/ou de serviços prestados por HH ao ….
Está a Justiça de Angola muito melhor posicionada para junto da empresa pública ..., do ..., da entidade que procede à guarda do acervo documental do … e das entidades bancárias sediadas em ..., obter esclarecimentos e prova relativa não só quanto aos fluxos já identificados como tendo origem última numa daquelas entidades públicas ou em entidades chinesas que terão efectuado pagamentos comprativos para garantirem a adjudicação de contratos por parte do …, mas também para confirmar/infirmar se os demais fluxos supra descritos no ponto D.II.3 tiveram origem última (e ilícita) numa das referidas entidades públicas ou em entidades particulares adjudicatárias. E indubitável, pois, que existe um melhor posicionamento da Justiça angolana para efectuar a ligação entre, por um lado, os fluxos monetários ocorridos em Portugal e as aquisições de bens em Portugal, e, por outro lado, as origens (ilícitas) dos activos que permitiram aqueles fluxos e aquisições. E, a Justiça de Angola não só está melhor posicionada para prosseguir a investigação, como poderá fazê-lo de uma forma muito mais célere do que a Justiça portuguesa através de pedidos de cooperação judiciária internacional. Ora, em face da antiguidade de grande parte dos factos, o tempo urge.
3. Mostram-se reunidos os pressupostos previstos no art. 90." da Lei n.º 144/99.
Com efeito:
(l) os factos indiciados integram crime - o de branqueamento de capitais – segundo
- a legislação portuguesa, que o prevê no art. 368.º-A do código penal português; e, a legislação do Estado de Angola, que o previa no art. 60.º da Lei n.o 34l/2011 de 12/12 (que aprovou a Lei de Branqueamento de capitais de Financiamento do Terrorismo), e, que, atualmente, o prevê no art. 82º da Lei n.º 5/2020 de 27/01 (art. 90.º n.º 1 al a) da Lei n.º 144/99).
(ii) a reação criminal privativa da liberdade é de duração máxima não inferior a um ano, pois que: o a legislação portuguesa estabelece uma pena de prisão até 12 anos. o a legislação angolana estabelecia e estabelece uma pena de prisão de 2 aB anosle3.
(iii) quatro dos suspeitos têm nacionalidade angolana e residem em ... (art. 90.º, n.º I al. c) da Lei n.º 144/99).
(iv) as circunstâncias do caso aconselham que, relativamente aos três demais suspeitos - que nem são nacionais de ..., nem lá residem, mas que agiram como "testas-de-ferro" -, continuem a ser investigados conjuntamente com os suspeitos angolanos, no âmbito de um mesmo processo (art. 90.º n.º 4 da Lei n.º 144/99).
Por todo o exposto, o Ministério Público português entende que deverá proceder-se à transmissão do processo à República de Angola para continuação do procedimento criminal o pelo que se promove que seja proferida, depois de exercido o contraditório (art. 91.º n.º 2 da Lei n.º 144/99) decisão nesse sentido, a apreciar posteriormente pela Exma. Sra. Ministra da Justiça, através do envio de certidão de todos os elementos relevantes do processo à Exma. Sra. Procuradora-Geral da República».
Cumpre apreciar.
De acordo com o disposto no art. 91.º da Lei n.º 144/99,
«1 - O tribunal competente para conhecer do facto aprecia a necessidade da delegação, a requerimento do Ministério Público, do suspeito ou do arguido, com audiência contraditória, na qual se expõem as razões para solicitar ou denegar esta forma de cooperação internacional.
2 - O Ministério Público bem como o suspeito ou o arguido podem responder ao requerimento a que se refere o n.º 1 no prazo de 10 dias, quando não sejam os requerentes».
No caso em apreço, o recorrente foi notificado para exercer o contraditório relativamente ao pedido do Ministério Público, sem que tivesse sido transmitida a totalidade da promoção de .../.../2023, mas apenas fls. 8124 a 8127 e 8285 a 8293.
Por conseguinte, não houve uma omissão de notificação para o exercício do contraditório, mas uma notificação que o recorrente considera incompleta para esse efeito. Não foi omitido o ato de notificação prescrito pelo citado art. 91.º, n.º 2, divergindo apenas o recorrente quanto ao conteúdo da notificação, que no seu entender não permite exercer o contraditório.
Tal situação, a relevar, apenas poderia enquadrar-se nas irregularidades processuais previstas no art. 123.º do CPP, por não se encontrar abrangida por qualquer outra norma que determine a nulidade do ato (art. 118.º do CPP). Aliás, assim foi arguida pelo recorrente.
Contrariamente ao alegado pelo recorrente, não se crê que a situação em apreço possa enquadrar-se no n.º 2 do art. 123.º do CPP, ou seja, que esteja em causa a arguição de um vício que afete a validade do ato, na medida em que o ato não foi omitido, pelo que não pode equiparar-se a qualquer nulidade insanável.
Trata-se, pois, de um irregularidade dependente de arguição.
O recorrente alega que arguiu a suposta irregularidade no prazo previsto no art. 123.º, n.º 1 do CPP, considerando que a notificação foi expedida em férias judiciais e o ato foi praticado no terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo (art. 107.º-A CPP).
Sucede que, como se decidiu no Ac. RG de 11/06/2013 (CJ 2013, III, p. 270) «o prazo estabelecido no art. 123.º, n.º 1 do CPP (…no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado) não é um prazo estabelecido para a prática de um ato processual, entendido este como todo o ato que se integra na sequência processual com vista a decisão sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as consequências jurídicas e a sua justa aplicação, mas sim, de um prazo legal para a arguição de irregularidade de que possa enfermar precisamente um ato processual, acarretando o decurso desse prazo, sem que ocorra tal arguição, a sanação do vício, passando o ato a produzir todos os efeitos jurídicos como se fosse perfeito (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo penal, , Verbo, 4.ª Ed., II vol., p. 103)».
Daí que seja inaplicável à arguição de irregularidades o estatuído no art. 107.º-A CPP, porquanto, passado o prazo fixado no art. 123.º, n.º 1 do CPP, ocorre a sanação do vício.
É uma consequência da menor gravidade dos vícios a que corresponde a figura da irregularidade, que levou a lei a impor um regime de arguição mais limitado, que facilita a consolidação dos efeitos precários entretanto produzidos (cfr. João Conde Correia, Comentário Judiciário do CPP, Tomo I, 2.ª Ed., p. 1340).
Por outro lado, o ora recorrente tomou posição sobre o teor das “razões do pedido” que lhe foram notificadas, exercendo o contraditório no sentido de manifestar a sua oposição.
O art. 91.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99 dispõe que o tribunal aprecia a necessidade da delegação, com audiência contraditória, «na qual se expõem as razões para solicitar ou denegar esta forma de cooperação internacional».
Quando o n.º 2 do art. 91.º refere que «o Ministério Público bem como o suspeito ou o arguido podem responder ao requerimento a que se refere o n.º 1 no prazo de 10 dias, quando não sejam os requerentes», tem que se entender que esta resposta respeita ao exercício do contraditório previsto no número anterior. Ou seja, tem em vista contraditar as razões invocadas para justificar o pedido de cooperação judiciária internacional.
Por conseguinte, numa situação em que o pedido é feito pelo Ministério Público, os autos se encontram em fase de inquérito e vigora o segredo de justiça externo (art. 86.º do CPP), sendo o ora recorrente mero suspeito (e não arguido), como sucede no caso em apreço, o exercício do contraditório para o efeito previsto no art. 91.º, n.º 1 e 2 da Lei 144/99 tem de se harmonizar com o regime do segredo de justiça.
Daí que não seja exigível para o exercício do contraditório a notificação do teor integral da peça processual, na medida em que esta aborda diversas matérias sujeitas a esse segredo de justiça, sendo certo que o seu conhecimento não é necessário para o exercício do contraditório quanto ao pedido de transmissão do inquérito.
Na verdade, a delegação em Estado estrangeiro pode respeitar à instauração ou continuação de procedimento penal (art. 89.º da lei n.º 144/99), pelo que não se impõe uma delimitação factual detalhada, semelhante a uma acusação, a qual poderá nem vir a ser deduzida, sendo certo que o contraditório não tem em vista uma pronúncia sobre a suficiência de indícios, mas sobre o fundamento da necessidade da delegação requerida.
Tratando-se de um pedido de cooperação judiciária internacional, em que o Estado Português solicita a outro Estado a continuação de um procedimento criminal, a decisão judicial não contempla qualquer juízo de mérito sobre o inquérito ou os indícios investigados, tanto mais que o inquérito é uma fase dirigida pelo Ministério Público, em que tal apreciação se encontra subtraída ao Juiz.
Ora, no caso dos autos, o recorrente foi notificado da parte da promoção (supra transcrita) em que o Ministério Público justificou as razões pelas quais requer a delegação do inquérito, a qual se afigura suficiente para o exercício do contraditório, o qual foi efetivamente exercido pelo recorrente, pronunciando-se sobre o pedido de delegação do inquérito, pelo que, de harmonia com o disposto no art. 121.º, n.º 1, al. c) do CPP, aplicável às nulidades dependentes de arguição, sempre se teria por sanada.
Em face do exposto, importa concluir que o despacho recorrido não merece censura nesta parte, pelo que o recurso improcede.
2 – Competência do Tribunal
O recorrente invoca como questão prévia a incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal para apreciar o pedido de transferência do processo para as Justiças de Angola.
Para tanto, alega que o art. 91.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99 atribui essa competência “ao "tribunal competente para conhecer do facto", referindo-se ao Tribunal que seria competente para julgar a causa, ajuizando da condenação ou absolvição dos arguidos, o que, em seu entender, não abrange o juiz de instrução, cuja função em fase de inquérito se resume à fiscalização da atividade do MP à salvaguarda dos direitos fundamentais, pelo que concluir pela nulidade insanável da decisão recorrida, por violação de regras de competência, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, alínea e), do CPP.
Cumpre apreciar.
O despacho recorrido apreciou o pedido de transmissão do processo à República de Angola para continuação do procedimento criminal.
Trata-se de uma forma de cooperação judicial internacional em matéria penal, prevista no art. 1.º, n.º 1, al. b) e 89.º e seguintes da Lei n.º 144/99.
A este propósito, o citado art. 89.º prevê que a instauração de procedimento penal ou a continuação de procedimento instaurado em Portugal por facto que constitua crime segundo o direito português podem ser delegadas num Estado estrangeiro que as aceite, nas condições referidas nos artigos seguintes.
Estão aqui compreendidos procedimentos criminais em diversas fases, podendo ainda nem sequer estar instaurado.
De acordo com o disposto no art. 91.º, n.º 1 da citada Lei, o tribunal competente para conhecer do facto aprecia a necessidade da delegação, a requerimento do Ministério Público, do suspeito ou do arguido, com audiência contraditória, na qual se expõem as razões para solicitar ou denegar esta forma de cooperação internacional.
Ora, a referência ao “tribunal competente para conhecer do facto” tem de ser articulada com a fase processual em que se encontrar o processo cuja delegação noutro Estado é pretendida, sob pena de a norma ficar esvaziada de sentido em todos os casos em que o procedimento criminal ainda não se iniciou ou ainda não foi atingida a fase de julgamento, pois só neste último caso é que está definido o Tribunal com competência para proceder ao julgamento do objeto do processo.
Por conseguinte, o “tribunal competente para conhecer do facto” não tem o sentido atribuído pelo recorrente de tribunal competente para proceder ao julgamento. O art. 91.º, n.º 1 da Lei 144/99 não fala em tribunal competente para julgar o facto, sendo certo que a competência para o julgamento só se fixa após a dedução da acusação
No caso dos autos, o procedimento encontra-se em fase de inquérito, não existindo acusação, a qual poderá nunca chegar a ser deduzida.
Nestas circunstâncias, o único tribunal com competência para conhecer do facto referente ao inquérito é o respetivo Tribunal de Instrução Criminal, em conformidade com a previsão do art. 17.º do CPP, segundo o qual compete ao juiz de instrução exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos previstos neste Código.
No mesmo sentido concorrem as disposições dos arts. 268.º, n.º 1, al. f) e 269.º, n.º 1, al. f) do CPP, bem como o art. 119.º, n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, quando prevê que «compete aos juízos de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, salvo nas situações, previstas na lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito podem ser exercidas pelos juízos locais criminais ou pelos juízos de competência genérica».
Não existe qualquer disposição legal que preveja a competência de outro juízo para a apreciação de pedidos de transmissão de processo criminal em fase de inquérito, sendo certo que a apreciação deste pedido não comporta qualquer juízo sobre os indícios investigados ou a investigar.
Assim, importa concluir pela improcedência do recurso quanto a esta questão.
3 – Pendência de recurso perante o Tribunal Constitucional
O recorrente alega que interpôs um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, por requerimento apresentado em .../.../2024 (cfr. documento n.º 4), o qual se encontra ainda pendente de apreciação pelo Tribunal Constitucional, de cuja apreciação poderá resultar decisão que determine o encerramento definitivo do presente inquérito, pelo que o pedido de delegação os presentes autos nas Autoridades Angolanas é frontalmente contrário ao requisito da boa administração da Justiça, estatuído no artigo 90.º n.º 1, alínea d), da Lei 144/99, devendo ser revogada a decisão recorrida com esse fundamento.
Na sua resposta, o Ministério Público alega que esta questão não foi objeto de apreciação pelo despacho recorrido, pois a mesma não foi suscitada ao Tribunal, tanto mais que o dito recurso para o Tribunal Constitucional foi instaurado em data posterior à prolação da decisão impugnada, impondo-se a rejeição do recurso quanto a esta questão, nos termos dos arts. 420.º, n.º 1, al. a) e 414.º, n.º 3 do CPP.
Cumpre apreciar.
Com relevância para a presente questão, o recorrente alega o seguinte:
- Em .../.../2022, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu Acórdão, já transitado em julgado, que determinou o arquivamento do inquérito quanto ao aqui Recorrente (Apenso AA);
- Não obstante, o DCIAP não arquivou o inquérito, tendo o ora recorrente apresentado, em .../.../2022, uma reclamação ao TCIC quanto à promoção do DCIAP que determinou a continuação do inquérito;
- O TCIC pronunciou-se quanto a essa reclamação por despacho de .../.../2022, no qual se declarou sem jurisdição para apreciar o requerido pelo suspeito.
- Dessa decisão, foi interposto recurso, decidido por Acórdão desta Relação de de …/…/2023, confirmando a decisão recorrida;
- O ora recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, do referido acórdão do TRL de …/…/2023, tendo este recurso sido considerado processualmente inadmissível;
- Em .../.../2024, o recorrente interpôs recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, estando pendente de apreciação reclamação ao Tribunal Constitucional sobre a admissibilidade do recurso, que a ser julgado procedente levará à admissão do anterior recurso de revista para o STJ, no âmbito do qual este haverá de apreciar o pedido deduzido pelo recorrente para encerramento definitivo do inquérito.
- Por este motivo, o recorrente entende que é inadmissível a delegação do presente processo nas Autoridades Angolanas, pois poderia levar a uma cisão do processo entre estas e as Autoridades Portuguesas, o que acarretaria um prejuízo para a regular tramitação dos autos, pelo que é contrário ao requisito da boa administração da Justiça, estatuído no artigo 90.º n.º 1, alínea d), da Lei 144/99.
Assim resumida a posição do recorrente, importa conferir o despacho recorrido.
Ora, esta situação não foi, nem podia ter sido apreciada no despacho recorrido, pois a mesma não foi suscitada no requerimento pelo qual o suspeito AA exerceu o contraditório relativamente ao pedido de transmissão do processo. Aliás, tal situação é posterior à prolação do despacho recorrido, pois este foi proferido em .../.../2024 e o recurso para o Tribunal Constitucional a que alude o recorrente apenas foi apresentado em .../.../2024.
Deste modo, trata-se de uma questão nova.
Como é sabido, os recursos são remédios jurídicos, destinam-se a obter a reapreciação de uma decisão, mas não a obter a decisão de questões novas, que não tenham sido suscitadas perante o tribunal recorrido, sob pena de tal apreciação suprimir um grau de jurisdição.
Como se refere no Ac. STJ de 25/03/2009 (P. 09P0308 em www.dgsi.pt) «é regra geral do regime dos recursos que estes não podem ter como objeto a decisão de questões novas, que não tenham sido especificamente tratadas na decisão de que se recorre, mas apenas a reapreciação, em outro grau, de questões decididas pela instância inferior. A reapreciação constitui um julgamento parcelar sobre a validade dos fundamentos da decisão recorrida, como remédio contra erros de julgamento, e não um julgamento sobre matéria nova que não tenha sido objeto da decisão de que se recorre.
O objeto e o conteúdo material da decisão recorrida constituem, por isso, o círculo que define também, como limite maior, o objeto de recurso e, consequentemente, os limites e o âmbito da intervenção e do julgamento (os poderes de cognição) do tribunal de recurso.
No recurso não podem, pois, ser suscitadas questões novas que não tenham sido submetidas e constituído objeto específico da decisão do tribunal a quo; pela mesma razão, também o tribunal ad quem não pode assumir competência para se pronunciar ex novo sobre matéria que não tenha sido objeto da decisão recorrida».
Face ao exposto, não se toma conhecimento desta questão.
4 - Falta de requisitos do pedido de delegação formulado pelo DCIAP, nos termos do art. 23.º n.º 1 da Lei 144/99
O recorrente alega que o pedido de cooperação, na parte que lhe foi notificada, não respeita o art. 23.º n.º 1, al. c), e), f) e g) da Lei 144/99, designadamente porque não contém a narração dos factos imputados, incluindo o lugar e o tempo da sua prática e quaisquer documentos relativos ao facto.
Tal configura uma irregularidade arguida em sede de contraditório, não podendo o segredo de justiça estender-se aos factos imputados ao recorrente.
A interpretação das disposições conjugadas do art. 86.º n.º 3 do CPP (que prevê o segredo de justiça) e art. 23.º n.º 1, alíneas c), e), f) e g), da Lei 144/99, que permita ocultar do sujeito titular de direito ao contraditório quanto a pedido de delegação de processo em autoridade estrangeira a descrição, ainda que sucinta, dos factos que lhe são imputados, a qualificação jurídica desses factos e a prova documental de suporte sempre seria manifestamente inconstitucional, por se traduzir numa restrição desproporcional do direito à defesa consagrado no artigo 32.º n.º 1 da CRP, bem como dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e do processo equitativo, previstos no artigo 20.º n.º 1 e n.º 4 da CRP.
Cumpre apreciar.
Quanto ao exercício do contraditório, já se referiu acima no ponto 1 o sentido da exigência contida no art. 91.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 144/99 e a sua harmonização com o segredo de justiça, tendo-se concluído pela improcedência do recurso quanto à irregularidade suscitada.
O recorrente vem retomar a mesma questão, desta feita invocando o art. 23.º da mesma Lei, que tem a seguinte redação:
«1 - O pedido de cooperação deve indicar:
a) A autoridade de que emana e a autoridade a quem se dirige, podendo fazer esta designação em termos gerais;
b) O objecto e motivos do pedido;
c) A qualificação jurídica dos factos que motivam o procedimento;
d) A identificação do suspeito, arguido ou condenado, da pessoa cuja extradição ou transferência se requer e a da testemunha ou perito a quem devam pedir-se declarações;
e) A narração dos factos, incluindo o lugar e o tempo da sua prática, proporcional à importância do acto de cooperação que se pretende;
f) O texto das disposições legais aplicáveis no Estado que o formula;
g) Quaisquer documentos relativos ao facto.
2 - Os documentos não carecem de legalização.
3 - A autoridade competente pode exigir que um pedido formalmente irregular ou incompleto seja modificado ou completado, sem prejuízo da adopção de medidas provisórias quando estas não possam esperar pela regularização.
4 - O requisito a que se refere a alínea f) do n.º 1 pode ser dispensado quando se tratar da forma de cooperação referida na alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º».
Ora, as exigências do art. 23.º não se prendem com o exercício do contraditório pelo requerido, mas com a regularidade do pedido a transmitir à autoridade estrangeira.
Tanto assim é que o n.º 3 prevê a possibilidade de a autoridade estrangeira poder exigir o suprimento de irregularidades ou que o pedido seja completado com elementos adicionais. Daqui decorre que esta norma trata de definir os requisitos exigíveis para a transmissão do pedido à autoridade a quem é solicitado o pedido de cooperação, por um lado, e que tais requisitos admitem regularização ou aditamento, a pedido da entidade solicitada.
Caso o prosseguimento seja aceite pela autoridade estrangeira, o processo segue os seus termos na fase em que se encontrava, pelo que é manifesto que a divulgação integral do seu conteúdo, como se o segredo de justiça não vigorasse, colocaria em causa a eficácia da delegação.
No caso dos autos, o despacho recorrido verificou o cumprimento integral dos requisitos do art. 23.º da Lei 144/99, tendo em conta o pedido integral, que não se confunde com a parte notificada ao recorrente para o efeito do exercício do contraditório a que alude o art. 91.º, n.º 1 do mesmo diploma, atenta a existência de segredo de justiça.
Conferido o pedido em apreço, não se discorda da apreciação feita pelo Tribunal recorrido, uma vez que o pedido contém as menções exigidas pelo art. 23.º, n.º 1 da Lei 144/99, designadamente, a “qualificação jurídica dos factos que motivam o procedimento'” (crime de branqueamento), a narração dos factos (incluindo o lugar e o tempo da sua prática), e o texto das disposições aplicáveis no Estado que formula o pedido, assim como a remissão para os documentos pertinentes.
Mais se refira que a exigência da alínea e) do 1 do art. 23.º da Lei n.º 144/99 tem em vista a delimitação do objeto do pedido, não existindo nesta fase um direito do recorrente de se pronunciar sobre este, pois o juízo sobre a procedência do pedido de delegação não se baseia numa apreciação de mérito sobre a suficiência dos indícios.
Assim, importa concluir que não se verifica qualquer irregularidade da notificação ao recorrente, por incumprimento dos requisitos previstos no citado art. 23.º, n.º 1, não se verificando qualquer restrição desproporcional do direito à defesa consagrado no artigo 32.º n.º 1 da CRP, bem como dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e do processo equitativo, previstos no artigo 20.º n.º 1 e n.º 4 da CRP.
O recurso improcede também nesta parte.
5 - Propósito ilegal do pedido de cooperação
O recorrente alega que o pedido de delegação dos presentes autos nas autoridades Angolanas não preenche o requisito previsto no artigo 90.º n.º 1, alínea d), da Lei 144/99.
Dispõe o artigo 90.º n.º 1, da Lei 144/99:
«1 - A delegação da instauração de procedimento penal ou a sua continuação num Estado estrangeiro dependem da verificação das condições gerais previstas no presente diploma e ainda das seguintes condições especiais:
a) Que o facto integre crime segundo a legislação portuguesa e segundo a legislação daquele Estado;
b) Que a reacção criminal privativa da liberdade seja de duração máxima não inferior a um ano ou, tratando-se de pena pecuniária, o seu montante máximo não seja inferior a quantia equivalente a 30 unidades de conta processual;
c) Que o suspeito ou o arguido tenham a nacionalidade do Estado estrangeiro ou, sendo nacionais de um terceiro Estado ou apátridas, ali tenham a residência habitual;
d) Quando a delegação se justificar pelo interesse da boa administração da justiça ou pela melhor reinserção social em caso de condenação».
O recorrente, em suma, entende que a finalidade da delegação não é o interesse da boa administração da justiça, mas apenas protelar a continuação do inquérito, que dura há mais de 10 anos, sem que tenha até agora sido deduzida acusação, desonerando o DCIAP do dever de acatar a decisão de arquivamento e impedindo, o decurso do prazo de prescrição quanto aos ilícitos investigados.
Vejamos.
Quanto às decisões do TRL foi decidido:
Por acórdão de .../.../2022 (apenso AA): «conceder provimento ao recurso, em revogar o despacho recorrido, que substituem por outro que, em cumprimento do anteriormente decidido nos autos, sobre a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal, definida nos artºs 4º a 6º do Código Penal, para abrir inquérito por factos praticados por um cidadão nacional de outro País, nesse mesmo País, absolve o recorrente AA da instância penal em que o mesmo era visado, com o consequente arquivamento dos autos».
Não obstante, porque o Ministério Público entendeu tratar-se da investigação de factos praticados em Portugal (e não em ...), e na sequência de intervenção hierárquica, o inquérito prosseguiu, na sequência do que veio a ser interposto novo recurso sobre o despacho do Mmo. Juiz de Instrução de .../.../2022, que se achou sem jurisdição para apreciar reclamação do ora recorrente de .../.../2022 em que este requeria que se determinasse a cessação da investigação e de todos os atos materiais enquadráveis no presente inquérito.
Tal recurso, que correu termos sob o apenso AE, foi decidido por Acórdão desta Relação de .../.../2023, o qual confirmou o despacho recorrido, com a seguinte fundamentação:
«I) Entende o Recorrente que o JIC, durante o inquérito, tem competência para apreciar o seu requerimento (com o teor supra transcrito).
Tem razão o Recorrente quando defende que o JIC tem competência para, em sede de inquérito declarar e determinar as consequências das ilegalidades que contendam com direitos, liberdades e garantias do Arg..
Na verdade, quanto a essa questão, concordamos com a jurisprudência do acórdão da RL de 24/09/2015, com o seguinte sumário: “I - O juiz de instrução tem competência para apreciar as invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos liberdades e garantias, tanto mais que as normas constitucionais são de aplicação directa. II - Em questões de alegada violação de direitos liberdades e garantias, a intervenção jurisdicional impõe-se, no imediato, independentemente da fase processual em que a mesma ocorra, assim se garantindo a tutela jurisdicional consagrada no texto constitucional e materializando o “direito ao juiz” que a mesma comporta.”.
No entanto, o que aqui está em causa é, genericamente, a continuação da actividade investigatória do MP, em relação ao Recorrente, nestes mesmos autos, e não a prática, durante o inquérito, de qualquer concreto acto que tenha violado direitos, liberdades e garantias deste.
Entendemos que, tendo havido recurso sobre determinada questão processual e tendo havido decisão sobre a mesma, nunca podia deixar tal decisão de produzir o efeito de caso julgado formal, porque, das duas uma, ou o recurso e a respectiva decisão eram completamente inúteis e então não podiam ser admissíveis, ou a lei admitia que num mesmo processo e sobre uma mesma questão houvesse mais do que uma decisão, contraditórias entre si.
A força do caso julgado formal opõe-se a todos os sujeitos e intervenientes processuais.
A consequência do caso jugado formal é, pois, para além do mais, que não pode haver outra decisão no mesmo processo sobre a mesma questão e, se houver, vale a que transitou em primeiro lugar.
No presente caso, o que o acórdão, cuja força de caso julgado se invoca, decidiu foi que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes, em matéria penal, para abrir inquérito por factos praticados noutro país pelo Recorrente, nacional desse outro país.
Não poderá, pois, haver neste processo decisão diferente sobre a mesma matéria.
Mas o prosseguimento da actividade investigatória do MP nestes autos não implica, por si só, a violação desse caso julgado, nem põe em causa qualquer direito, liberdade ou garantia, porque do elenco constitucional destes não consta um direito a não ser objecto de investigação criminal (cf. art.ºs 24º a 57º da CRP).
Na verdade, o objecto do processo penal só se fixa com a acusação ou com o RAI (no caso de arquivamento pelo MP). Até lá, podemos dizer que o objecto do processo é dinâmico e está em aberto.
Assim, só com a dedução da acusação, se ela ocorrer, se poderá determinar se o MP respeitou aquela decisão, relativa à competência internacional dos tribunais portugueses,
Por isso, naquele momento, o JIC não tinha competência para se pronunciar sobre a violação do caso julgado, pelo que improcede, nesta parte, o recurso».
Assim, não pode afirmar-se que o presente pedido de delegação de inquérito tem em vista a prossecução de finalidade ilegítima, já que esta última decisão .../.../2023 reconhece a competência do Ministério Público para prosseguir com o inquérito.
Por outro lado, quanto a esta matéria, diz-se o seguinte no despacho recorrido:
«Pelo menos quatro suspeitos têm nacionalidade angolana e ali residem, devendo os demais continuar a ser investigados conjuntamente, sob pena de o julgamento não se efectivar nem em Portugal, nem no estrangeiro (artigo 91.º, n.º 1, alínea c), e n.º 4).
(…)
«a finalidade de prosseguir a investigação visa a descoberta da verdade, pelo que não se vislumbra que tal seja uma finalidade ilegítima, ainda que os suspeitos discordem da mesma».
Efetivamente, apesar de o recorrente pugnar pela extinção do presente inquérito e o mesmo durar já há mais de 10 anos, os propósitos ilegais imputados às autoridades judiciárias carecem de qualquer substância.
Por outro lado, de acordo com a fundamentação do pedido de transmissão, investigam-se no inquérito factos que podem integrar o crime de branqueamento de capitais cometidos em território português, sendo indicadas razões objetivas para justificar o melhor posicionamento das Justiças de Angola para prosseguir com o inquérito, caso venha a aceitá-lo:
- O recorrente é natural de ... e aí residente;
- Está impedido de sair de ..., por força de medidas de coacção a que ali se encontra sujeito;
- Os factos prévios e/ou concomitantes ao branqueamento (quer relativos a crimes precedentes quer relativos a crimes instrumentais) situaram-se em ...;
- As entidades lesadas pelos crimes de branqueamento de capitais são entidades públicas angolanas;
Deste modo, não há como contrariar a afirmação feita no pedido de transmissão de que a Justiça de Angola está melhor posicionada para proceder às diligências investigatórias, de forma mais célere que a Justiça portuguesa através de pedidos de cooperação judiciária internacional.
Acresce que não é evidente qualquer outra finalidade no pedido que não o cumprimento da lei e a boa administração da justiça, pelo que o recurso improcede quanto a esta questão.
6 – Decisões de arquivamento do inquérito
O recorrente alega que o pedido não é admissível, pois o presente procedimento foi já objeto de decisão de arquivamento, tomada no Acórdão do TRL de .../.../2022, proferido nestes autos na sequência de recurso interposto pelo recorrente, que correu termos sob o apenso 208/13.9TELSB-AA.L1.
Por outro lado, os factos imputados ao Requerente nestes autos já foram objecto de inquérito criminal junto do Ministério Público de Angola, o qual concluiu pelo respectivo arquivamento.
Dispõe o art. 8.º da Lei n.º 144/99:
«1 - A cooperação não é admissível se, em Portugal ou noutro Estado em que tenha sido instaurado procedimento pelo mesmo facto:
a) O processo tiver terminado com sentença absolutória transitada em julgado ou com decisão de arquivamento;
b) A sentença condenatória se encontrar cumprida ou não puder ser cumprida segundo o direito do Estado em que foi proferida;
c) O procedimento se encontrar extinto por qualquer outro motivo, salvo se este se encontrar previsto, em convenção internacional, como não obstando à cooperação por parte do Estado requerido.
2 - O disposto nas alíneas a) e b) do número anterior não se aplica se a autoridade estrangeira que formula o pedido o justificar para fins de revisão da sentença e os fundamentos desta forem idênticos aos admitidos no direito português.
3 - O disposto na alínea a) do n.º 1 não obsta à cooperação com fundamento na reabertura de processo arquivado previsto na lei».
O recorrente afirma que o presente inquérito se extinguiu quanto a ele. No entanto, como explicitou no ponto anterior, não corresponde à realidade processual que o inquérito esteja extinto quanto ao recorrente, pois não foi preferida qualquer decisão de arquivamento pelo Ministério Público, sendo certo que a decisão proferida no Acórdão desta Relação de .../.../2023 (apenso AE) expressamente reconhece essa situação.
Quanto ao arquivamento de inquéritos pelos mesmos factos instaurados em ... contra o recorrente, este também não o demonstra com a apresentação de qualquer documento proveniente das Justiças de Angola.
O recorrente limita-se a citar um despacho proferido nos autos principais em .../.../2016, que não permite fundamentar tal conclusão. Aliás, tal despacho apenas permite a interpretação contrária, na medida em que afirma que o Ministério Público português não tem competência para investigar em inquérito a prática pelo recorrente de supostos factos ocorridos em ..., pois o que está neste momento em causa é a investigação do recorrente por crimes alegadamente cometidos em Portugal.
É, pois, evidente, que não resulta do processo a existência de processos de inquérito com objeto idêntico, contra o ora recorrente em Portugal e em ..., nem que o Ministério Público de Angola tenha procedido ao arquivamento de inquérito referente àquele, com o mesmo objeto do inquérito a que respeita o presente recurso.
Importa, pois, concluir que não se verifica o impedimento a que alude o art. 8.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 144/99, pelo que o recurso improcede nesta parte.
7 - Não punibilidade pela lei angolana
A última questão suscitada pelo recorrente consiste na não punibilidade do crime de branqueamento pela lei angolana, incorrendo o despacho recorrido na violação do art. 90.º, n.º 1 da Lei 144/99.
O recorrente alega que o crime de branqueamento foi introduzido na legislação Angolana pela Lei n.º 34/2011 de 12/12, que entrou em vigor no dia da respetiva publicação, ou seja, em 12/12/2011. Todos os factos objeto do presente inquérito são anteriores a essa data, pelo que não constituem crime à luz da legislação Angolana, pois não eram puníveis como tal à data da sua figurada prática.
Caso se julgue admissível a delegação de processos em entidade estrangeira independentemente de o facto objeto do processo-crime em questão ser também punível, em concreto, à luz do ordenamento jurídico do Estado delegatário, tal entendimento será inconstitucional por infração do princípio do nulla poena sine lege, previsto no artigo 29.º n.º 1 da CRP.
Cumpre apreciar.
De acordo com o disposto no art. 90.º, n.º 1 da lei n.º 144/99, «a delegação da instauração de procedimento penal ou a sua continuação num Estado estrangeiro dependem da verificação das condições gerais previstas no presente diploma e ainda das seguintes condições especiais:
a) Que o facto integre crime segundo a legislação portuguesa e segundo a legislação daquele Estado».
No caso dos autos, o Ministério Público requer a delegação do inquérito, no qual investiga factos que podem integrar a prática do crime de branqueamento, previsto no art. 368.º-A do Código Penal português.
A tipificação da conduta correspondente foi introduzida no ordenamento jurídico angolano pelo art. 60.º da Lei n.º 34/2011 de 12/12, que entrou em vigor no dia da respetiva publicação, ou seja, em 12/12/2011. Atualmente, está prevista no art. 82.º da Lei n.º 5/2020 de 27/01.
Sucede que, contrariamente ao alegado pelo recorrente (que aliás apenas adianta uma suposição), a totalidade das condutas objeto de investigação não é anterior a 12/12/2011, pelo que, a partir dessa data, se verifica a identidade de incriminação pela lei portuguesa e angolana.
Por outro lado, uma vez que o processo é transferido no estado em que se encontra, a circunstância de alguns factos objeto do inquérito serem anteriores a 12/12/2011 não impede a delegação do procedimento em si, sem prejuízo das consequências a retirar da aplicação da lei no tempo em sede de decisão final do inquérito.
Esta interpretação não colide com o art. 29.º, n.º 1 da CRP, não implicando qualquer aplicação retroativa concreta da lei que define o tipo legal de crime.
Assim, e em suma, o recurso de AA improcede na íntegra.
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II - Recurso do recorrente CC
1 - Omissão da descrição de factos relativos ao recorrente no pedido de transmissão do procedimento a este notificado
A primeira questão suscitada pelo recorrente CC consiste na alegada falta de indicação de factos relativos ao mesmo nas “razões do pedido de transmissão” que lhe foram notificadas.
Entende o recorrente que deveriam estar concretizados os factos que lhe dizem respeito, designadamente quanto ao tempo, por forma a apreciar a prescrição do procedimento criminal, de harmonia com o art. 8.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 144/99 de 31/08, pelo que a Mma. Juiz de Instrução deveria ter exigido ao Ministério Público a sua discriminação.
Cumpre apreciar.
Como já se referiu acima, nos pontos 1 e 4 do recurso do recorrente AA, o presente inquérito encontra-se submetido a segredo de justiça, sendo o recorrente apenas suspeito, o que obriga a uma compatibilização do exercício do contraditório previsto no art. 91.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99 com as exigências inerentes à vigência do segredo, por forma a que aquele direito seja exercido sem que sejam comprometidas as finalidades deste último.
O art. 91.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99 dispõe que o tribunal aprecia a necessidade da delegação, com audiência contraditória, «na qual se expõem as razões para solicitar ou denegar esta forma de cooperação internacional». Quando o n.º 2 do art. 91.º refere que «o Ministério Público bem como o suspeito ou o arguido podem responder ao requerimento a que se refere o n.º 1 no prazo de 10 dias, quando não sejam os requerentes», tem que se entender que esta resposta respeita ao exercício do contraditório previsto no número anterior. Ou seja, tem em vista contraditar as razões invocadas para justificar o pedido de cooperação judiciária internacional.
Ora, o recorrente CC foi notificado das “razões do pedido de transmissão” (supra transcritas no ponto 1 do recurso de AA), não sendo exigível para o exercício do contraditório a notificação do teor integral da peça processual em que o Ministério Público requereu a delegação do inquérito, pois aí são especificados diversos elementos sujeitos a esse segredo de justiça, cujo conhecimento não é necessário para o exercício do contraditório.
O contraditório não tem em vista uma pronúncia sobre a suficiência de indícios, mas sobre o fundamento da necessidade da delegação requerida, a decisão judicial não contempla qualquer juízo de mérito sobre o inquérito ou os indícios investigados, tanto mais que o inquérito é uma fase dirigida pelo Ministério Público, em que tal apreciação se encontra subtraída ao Juiz.
Por conseguinte, a notificação da promoção na parte supra transcrita, na qual o Ministério Público justificou as razões pelas quais requer a delegação do inquérito, é suficiente para o exercício do contraditório, não se impondo a comunicação da “narração dos factos, incluindo o lugar e o tempo da sua prática”, a que alude o art. 23.º, n.º 1, al. e) da Lei n.º 144/99, pois tal exigência não se prende com o exercício do contraditório pelo requerido, mas com a regularidade do pedido a transmitir à autoridade estrangeira e a definição do seu objeto.
No caso dos autos, o despacho recorrido verificou o cumprimento integral dos requisitos do art. 23.º da Lei 144/99, tendo em conta o pedido integral, que não se confunde com a parte notificada ao recorrente para o efeito do exercício do contraditório a que alude o art. 91.º, n.º 1 do mesmo diploma, atenta a existência de segredo de justiça.
Conferido o pedido em apreço, não se discorda da apreciação feita pelo Tribunal recorrido, uma vez que o pedido contém as menções exigidas pelo art. 23.º, n.º 1 da Lei 144/99, designadamente, a “qualificação jurídica dos factos que motivam o procedimento'” (crime de branqueamento de capitais), a narração dos factos (incluindo o lugar e o tempo da sua prática), e o texto das disposições aplicáveis no Estado que formula o pedido.
Mais se refira que estão em causa factos praticados em Portugal, que se prolongam por vários anos, não se verificando a extinção do procedimento por prescrição, nos termos dos arts. 368.º-A, n.º 3 e 118.º, n.º 1, al. a] do Código Penal, impeditiva da delegação (art. 8.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 144/99.
É que, mesmo que se possa vir a colocar a prescrição de alguns ilícitos em concreto, uma vez que a delegação do processo implica a sua continuação na fase em que o procedimento se encontra, apenas a prescrição global de todos os supostos crimes investigados impediria a cooperação judiciária internacional, o que manifestamente não sucede.
Assim, e em conclusão, o recurso improcede quanto a esta questão.
2 - Amnistia do crime de branqueamento pela lei angolana
O recorrente alega que o despacho recorrido desconsidera o efeito extintivo do procedimento criminal decorrente da aplicação da amnistia prevista nas Leis da República de Angola n.º 11/16 de 12 de agosto e 35/22 de 23 de dezembro, o que releva pra a exclusão do pedido de cooperação, nos termos do art. 90.º, n.º 1, al. a) e d) da Lei n.º 144/99.
Com efeito, o crime de branqueamento de capitais, previsto no Código Penal português no art. 368.º-A, foi introduzido no ordenamento angolano pelo art. 60.º da Lei n.º 34/11 de 12 de dezembro, estando atualmente previsto no art. 82.º da Lei da República de Angola n.º 5/20 de 27 de janeiro, ao qual corresponde uma pena de dois a oito anos de prisão.
De acordo com o disposto no art. 1.º, n.º 1 da citada Lei n.º 11/16, «são amnistiados todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros até 11 de Novembro de 2015».
Nos termos do art. 3.º da mesma Lei, a amnistia não abrange:
«a)- Os crimes dolosos cometidos com violência ou ameaça a pessoas de que resultou a morte ou quando esta, não tendo ocorrido, tenha havido o emprego de arma de fogo;
b)- Os crimes de tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, punidos com pena superior à prevista na alínea a) do artigo 8.º da Lei n.º 3/99, de 6 de Agosto - Lei sobre o Tráfico e Consumo de Estupefacientes, Substâncias Psicotrópicas e Precursores;
c)- Os crimes de tráfico de pessoas e órgãos de seres humanos;
d)- Os crimes previstos nos artigos 392.º a 395.º do Código Penal, designadamente o estupro, a violação, a violação de menor de 12 anos e o rapto violento ou fraudulento;
e)- Os crimes de promoção e auxílio à imigração ilegal».
Quanto à Lei n.º 35/22, a mesma declara que «são amnistiados todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 8 anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros, no período de 12 de Novembro de 2015 a 11 de Novembro de 2022».
Porém, nos termos do art. 3.º, n.º 1, al. h), a amnistia prevista na presente lei não abrange «os crimes de peculato, de corrupção, de recebimento indevido de vantagens, de participação económica e negócio, de abuso de poder, de tráfico de influência, de branqueamento de capitais, de financiamento ao terrorismo e de proliferação de armas de destruição em massa».
Mais se refere no n.º 2 do mesmo art. 3.º que «não são amnistiados os reincidentes e os agentes de crimes que se encontrem em situação de concurso efectivo de infracções», acrescentando o n.º 3 que «não são abrangidos pela presente Amnistia os crimes patrimoniais cujos danos não tenham sido reparados».
Assim, importa desde já excluir da análise do presente recurso os efeitos da Lei n.º 35/22, visto que a amnistia nela prevista não se aplica aos crimes de branqueamento de capitais. Por outras palavras, os eventuais crimes cometidos no período abrangido por esta Lei (factos posteriores a 12/11/2015) não beneficiam da amnistia nela prevista, pelo que a mesma nunca poderia obstar à transmissão do inquérito.
E tanto basta para concluir pela improcedência do recurso nesta parte.
Em todo o caso, sempre se dirá que, quanto à Lei n. º 11/16, o despacho recorrido refere que «não é conhecida, nem foi invocada cabalmente, qualquer amnistia aos factos em ..., nem tem a mesma sido considerada em outros processos paralelos». Na realidade, o ora recorrente, quando exerceu o contraditório sobre o pedido de delegação do inquérito, limitou-se a invocar que os crimes “estão todos amnistiados pelas Leis de Amnistia de ... de 2015 e 2022” (cfr. ar. 14.º do requerimento de .../.../2024).
Ou seja, o recorrente não identificou qualquer ato normativo, remetendo para uma lei cuja existência é desconhecida (2015) e para uma outra que não tem aplicação ao tipo de ilícito em apreço (2022).
De qualquer modo, ainda que seja aplicável a amnistia prevista na Lei n.º 11/16 aos crimes de branqueamento de capitais (desconhece-se a prática da jurisprudência angolana quanto a esta questão), afigura-se que a mesma não impede a transmissão do inquérito.
Com efeito, o art. 8.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 144/99 exclui a cooperação se em Portugal ou noutro Estado em que tenha sido instaurado procedimento pelo mesmo facto o processo tiver terminado com sentença absolutória transitada em julgado ou com decisão de arquivamento.
Ora, não foi instaurado em ... nenhum processo de inquérito contra o ora recorrente, com o mesmo objeto que o presente (que respeita a factos alegadamente praticados em Portugal), o qual tenha sido arquivado, nomeadamente por efeito da amnistia prevista na citada Lei de ... n.º 11/16.
Por outro lado, o art. 90.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 144/99, quando prevê que a delegação da instauração de procedimento penal ou a sua continuação num Estado estrangeiro depende da verificação da condição de que o facto integre crime segundo a legislação portuguesa e segundo a legislação daquele Estado, apenas se refere à previsão da dupla incriminação segundo a lei de ambos os Estados.
A amnistia não interfere com a previsão dos tipos legais de crime, apenas extingue a responsabilidade criminal concreta (cfr. art. 127.º, n.º 1 do Código Penal).
Ora, o crime de branqueamento de capitais encontra-se tipificado, quer na lei portuguesa (art. 368.º-A do Código Penal), quer na lei angolana (art. 60.º da Lei n.º 34/11 de 12 de dezembro e art. 82.º da Lei da Lei n.º 5/20 de 27 de janeiro). A citada lei da amnistia não eliminou do ordenamento angolano o crime de branqueamento, pelo que, não impede a delegação do inquérito: a tipificação legal subsiste à luz de ambos os ordenamentos.
Finalmente, como já acima se referiu, o pedido de transmissão do inquérito justifica-se porque se investigam factos que podem integrar o crime de branqueamento de capitais cometidos em território português, sendo indicadas razões objetivas para justificar o melhor posicionamento das Justiças de Angola para prosseguir com o inquérito, porquanto:
- O recorrente CC é natural de ... e aí residente;
- Está impedido de sair de ..., por força de medidas de coacção a que ali se encontra sujeito;
- Os factos prévios e/ou concomitantes ao branqueamento (quer relativos a crimes precedentes quer relativos a crimes instrumentais) situaram-se em ...;
- As entidades lesadas pelos crimes de branqueamento de capitais são entidades públicas angolanas;
Deste modo, a Justiça de Angola está melhor posicionada para proceder às diligências investigatórias, de forma mais célere que a Justiça portuguesa através de pedidos de cooperação judiciária internacional.
Importa, pois, concluir que a delegação do inquérito se justifica pelo interesse da boa administração da justiça, de harmonia com o art. 90.º, n.º 1, al. d) da Lei n.º 144/99, não existindo qualquer impedimento, nomeadamente derivado da Lei da amnistia angolana n.º 11/16, pois da mesma não derivou a extinção de qualquer procedimento com o mesmo objeto contra o recorrente, nem a supressão da incriminação no ordenamento angolano.
O recurso improcede também quanto a esta questão.
3 - Inexistência de queixa – art. 368.º-A, n.º 5 do Código Penal na redação anterior à Lei n.º 83/2017 de 18/08.
Finalmente o recorrente invoca em seu benefício o art. 368.º-A, n.º 5 do Código Penal, na redação anterior à Lei n.º 83/2017 de 18/08, que previa que o facto não é punível quando o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e a queixa não tenha sido tempestivamente apresentada.
Entende o recorrente que se trata de uma questão de conhecimento oficioso, cuja procedência releva para o efeito da verificação das condições previstas no art. 8.º, n.º 1, al. c) e 90.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 144/99.
Conferido o requerimento do recorrente de .../.../2024, pelo qual este exerceu o contraditório sobre o pedido de transmissão do procedimento criminal do Ministério Público, verifica-se que a mesma não foi suscitada e, como tal não foi apreciada no despacho recorrido.
Trata-se de uma questão nova, que não se pode considerar de conhecimento oficioso, tanto mais que o efeito visado com a mesma no pedido recursivo (declaração da imediata extinção do procedimento criminal aqui em curso contra o recorrente) excede o âmbito do recurso, que apenas versa sobre a decisão de .../.../2024, que deferiu o pedido de transmissão do inquérito às Justiças de Angola.
Acresce que esta questão apenas poderia relevar quanto a factos anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 83/2017 de 18/08, que alterou a redação do art. 368.º-A do Código Penal, cujo atual n.º 7 estatui que «o facto é punível ainda que o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e esta não tiver sido apresentada» e o recorrente invoca esta questão sem qualquer substanciação de facto, não discriminando minimamente a que ilícitos se pretende referir.
O recurso improcede na íntegra.

DECISÃO
Nestes termos, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar os recursos interpostos por AA e CC totalmente improcedentes.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se em 4 UC a respetiva taxa de justiça.

Lisboa, 17/06/2025
Rui Poças
Ester Pacheco dos Santos
Paulo Barreto