PROCEDIMENTO CAUTELAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
DECISÃO SURPRESA
Sumário

I - A ausência de notificação do requerente do procedimento cautelar da intenção de indeferimento liminar não consubstancia a omissão de um ato ou formalidade imposto por lei.
II - O indeferimento liminar do procedimento cautelar não constitui decisão-surpresa, por falta do exercício do contraditório.
III - É de indeferir liminarmente, por insuscetível de vir a ser decretado, o procedimento cautelar em que é pedido o arresto de bens que não são, nem do devedor, nem do adquirente dos bens do devedor.

Texto Integral

Processo: 1403/24.0T8PVZ.P1

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Sumário
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Relatora: Teresa Maria Sena Fonseca
1.º adjunto: Miguel Baldaia de Morais
2.º adjunto: Manuel Fernandes

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
AA intentou procedimento cautelar de arresto contra “A..., Unipessoal, Lda.” e “B... Unipessoal, Lda.”.
Pede que sejam apreendidos os seguintes bens da 1.ª requerida “A..., Unipessoal, Lda.”:
stock dos seguintes fabricantes que se encontra nas instalações da primeira requerida:
C...., Ltd;
D... Ltd;
E..., Ldt.;
F...., Ltd;
G...;
H...., LTD.
Alega:
- que em 2018 vendeu a participação social que detinha sobre a sociedade “I..., Lda.” à segunda requerida “B... Unipessoal, Lda.”;
- que em 2019 a denominação social da “I..., Lda.” se alterou para “A..., Unipessoal, Lda.”, ora primeira requerida;
- que a segunda requerida “B... Unipessoal, Lda.” ficcionou a venda da primeira requerida “A..., Unipessoal, Lda.” à “J..., S.A.”;
- que a “J..., S.A.” enfrenta dificuldades, está em processo de insolvência e que o seu administrador já manifestou a intenção de vender todo o stock da primeira requerida “A..., Unipessoal, Lda.”, sendo este o único património detido pela mesma, cujo arresto peticiona;
- que pretende vir a reverter o negócio simulado entre a segunda requerida “B... Unipessoal, Lda.” e a “J..., S.A.”, referente à venda da primeira requerida “A..., Unipessoal, Lda.”;
- que pretende vir a penhorar as ações e o património da primeira requerida “A..., Unipessoal, Lda.”.
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Foi proferido despacho que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar.
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Inconformado, o requerente interpôs o presente recurso, que rematou nos termos que em seguida se reproduzem.
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferido pelo Tribunal a quo e é o mesmo apresentado na firme convicção de que a referida decisão padece de nulidade, por violação do princípio do contraditório e o direito de acesso aos Tribunais pelo Requerente, mostrando-se uma decisão surpresa.
2. O Requerente não teve oportunidade de se pronunciar sobre a decisão que veio a ser proferida, em especial, na parte que entende que do requerimento inicial inexiste fundamento jurídico para a presente providência cautelar – sendo que, se o tem feito, por certo o Tribunal a quo não tomaria a decisão proferida.
3. Deste modo, a sentença enferma de erro de julgamento e integra uma verdadeira decisão surpresa, tendo violado claramente o princípio constitucional do contraditório, pelo que, nos termos do disposto no artigo 195.º é a sentença ora em crise, nula.
4. Ademais, a decisão proferida não se mostra justa e tem subjacente o pressuposto errado de que não é o património da A... que responde pela dívida da B....
5. Desde logo, o Requerente promoverá pela nulidade de venda simulada das participações sociais da A... feita pela B... à J..., venda esta feita pelo BB que era o gerente das três sociedades. Certo é que, por força dessa suposta venda, a sociedade B... deixou de ter património, já que foi uma sociedade veículo que foi criada para a aquisição das participações sociais então detidas pelo Requerente, que não tinha atividade e que, nessa medida, o único património que tinha era a sociedade A....
7. Ora, se o único património da B... era a detenção a 100% das participações sociais da A..., o património da B... será tanto maior ou menor se a A... for uma sociedade que tem bens e stock, ou não.
8. Dito de outra forma, ao deferir a presente providência, permitir-se-á que o stock se mantenha na esfera jurídica da A..., posto que, assim que a venda simulada seja anulada, a B... será proprietária de uma sociedade – a A... – que terá stock e bens que servirão para liquidar a dívida do Requerente.
9. Todavia, será sempre o património da B... que liquidará a dívida do Requerente – património esse composto pelas participações sociais da sociedade A... que, assim se pretende, ainda terá na sua esfera jurídica o stock existente à data de hoje.
Em face do exposto,
10. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 3.º, número 3 e artigos 391.º e seguintes, todos do CPC e o disposto no artigo 20.º CRP, pelo que se impõe a revogação da decisão proferida e, em sua substituição, que seja determinado o prosseguimento dos presentes Autos.
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II - Questões a dirimir:
- se a decisão proferida constitui uma decisão surpresa, nula por violação do princípio do contraditório;
- se existe fundamento para o decretamento do arresto dos bens indicados da 1.ª requerida “A..., Unipessoal, Lda.”.
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III - Fundamentação de facto
Os factos que relevam para a decisão são os que emergem do relatório que antecede.
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IV - Fundamentação jurídica
a - Se a decisão proferida constitui uma decisão surpresa, nula por violação do princípio do contraditório;
De acordo com a tese do apelante, a decisão de indeferimento liminar constituiu uma decisão-surpresa. Ainda segundo o apelante, a circunstância de o tribunal ter indeferido liminarmente o procedimento cautelar sem que antes lhe tivesse sido dada a possibilidade de se pronunciar consubstanciaria nulidade.
O tribunal de 1.ª instância entende não ter sido cometida a arguida nulidade.
Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentado a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º (art.º 590.º/1 do C.P.C.).
Nos procedimentos cautelares a citação depende de prévio despacho judicial (art.º 226.º/4 do C.P.C.).
Escreve Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum, Coimbra Editora, p. 56): levado o processo ao juiz este pode indeferir liminarmente a petição inicial quando o pedido seja manifestamente improcedente e quando ocorra uma exceção dilatória e a falta do pressuposto não seja suscetível de sanação.
O despacho de indeferimento liminar caracteriza-se por surgir, em regra, imediatamente após a petição ou o requerimento inicial. Afirma desde logo a inviabilidade de prossecução da ação ou do incidente. A avaliação efetuada funda-se unicamente no teor da petição ou do requerimento inicial. Opera sem audição do autor ou requerente e sem que a parte contrária haja sido chamada para os termos do processo.
O seu fundamento pode revestir natureza processual ou prender-se com matéria de fundo. O fundamento da rejeição deve, em qualquer caso, manifestar-se de forma inequívoca. A bondade do indeferimento e a desnecessidade de prosseguir com o processo não devem deixar margem para dúvida. O indeferimento é corolário do princípio da proibição da prática de atos inúteis (art.º 130.º do C.P.C.). A tramitação subsequente seria insuscetível de conduzir ao resultado visado pela demanda.
Como já se viu, a lei processual é explícita ao sujeitar os procedimentos cautelares a despacho liminar. Este despacho precede a tramitação legalmente prevista, que só deverá verificar-se se não existir indeferimento liminar.
Assim, ao menos deste ponto de vista, a ausência de notificação do requerente do procedimento cautelar para a intenção de indeferimento liminar não consubstancia a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 195.º/1 do C.P.C..
Encarado de um ângulo mais lato de observância do contraditório, o facto de a decisão não ter sido precedida de comunicação ao requerente da intenção do juiz reconduz-se a violação das suas garantias a um processo equitativo?
Dúvidas não há de que o princípio do contraditório é um dos princípios estruturantes do processo civil.
O art.º 20.º/1 da Constituição da República Portuguesa prevê que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
O 3.º do C.P.C. preceitua o seguinte:
1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de uma e outras (Andrade, Manuel, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, 379).
Lê-se no ac. do Tribunal Constitucional n.º 259/2000 (DR, II série, de 7 de Novembro de 2000): a norma contida no artigo 3.º n.º 3 do CPC resulta, assim, de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões - suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso - que o tribunal vier a decidir.
O escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo (Freitas, José Lebre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 1999, p. 8).
O princípio do contraditório, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, proíbe a prolação de decisões-surpresa, mesmo que de conhecimento oficioso, e garante a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão (in ac. do Tribunal da Relação do Porto de 30-05-2017, proc. 28354/16.0YIPRT.P1, Fernando Samões, consultável in http://www.dgsi.pt/).
No âmbito de uma conceção ampla do princípio do contraditório, entende-se que existe o direito a uma fiscalização recíproca ao longo de todo o processo, por forma a garantir a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio (cf. Freitas, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui, Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, p. 8).
Afigura-se, porém, desajustado, e até desenquadrado das exigências legais atinentes ao princípio do contraditório, que o juiz tivesse que sobrestar na prolação da decisão de indeferimento liminar, advertindo o requerente do sentido em que pretendia vir a decidir.
A virtualidade do contraditório visada pelo apelante é manifestamente excessiva e vai ao arrepio de norma processual estrita, como a contida no citado art.º 590.º/1 do C.P.C..
Desatende-se, por isso, a arguição da nulidade da sentença.
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II - Se se mostram alegados factos passíveis de conduzir à procedência do arresto requerido
A decisão recorrida entendeu que os factos alegados são manifestamente insuficientes para que a pretensão do requerente possa obter vencimento.
Nos termos do disposto no art.º 362.º/1 do C.P.C., sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
O requerente intentou uma providência cautelar de arresto, que é aquela que se mostra adequada à consecução dos seus propósitos e que se fundamenta no receio da perda da garantia patrimonial do seu crédito (art.º 391.º/1 do C.P.C.).
Preceitua o art.º 391.º/1 do C.P.C. que o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.
E o art.º 392.º/1 do mesmo Código que o requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência.
Segundo o art.º 393.º/1 do C.P.C., examinadas as provas produzidas, o arresto é decretado, sem audiência da parte contrária, desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais.
Nos termos do art.º 691.º/1 do Código Civil, o credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo.
De acordo com o n.º 2 do art.º 691.º/1 do Código Civil, o credor tem o direito de requerer o arresto contra o adquirente dos bens do devedor, se tiver sido judicialmente impugnada a transmissão.
Na situação dos autos, a alegação consiste no seguinte: o requerente terá vendido a sua participação social na “I...”, atual primeira requerida “A...”, à segunda requerida “B...”; parte do pagamento da contrapartida devida não terá sido efetuada pela “B...”; a “B...” transmitiu as quotas da “A...” à “J...”; a “B...” não tem bens.
Pede o arresto de bens da 1.ª requerida “A...”.
Temos, pois, que, de acordo com o alegado, a devedora perante a requerente/credor é a segunda requerida “B...”. Sendo devedora a “B...”, a garantia patrimonial do crédito do requerente consiste, por conseguinte, nos bens da “B...”. O requerente pede o arresto do stock da 1.ª requerida “A...”.
Nos termos do citado n.º 2 do art.º 691.º do C.C., assiste ao requerente o direito a requerer o arresto de bens daquele ou daquela a favor do qual a “B...” transferiu a garantia patrimonial do seu crédito. Segundo o requerente, trata-se da “J..., S.A.”.
Entendendo-se que a garantia patrimonial do crédito do requerente consiste nas quotas da “A...” por si cedidas, estas foram cedidas à “J...”. Ora esta não é parte no procedimento - e estará insolvente.
O requerente não pede o arresto de bens da devedora, nem sequer do adquirente da garantia patrimonial do seu crédito.
O requerente aduz pretender vir a pôr em causa a venda pela “B...” das quotas da “A...” à “J...”. Mais alegou que irá penhorar as ações e o património da primeira requerida “A...”.
De acordo com o citado art.º 391.º/1 do C.P.C., o fundado receio de perda da garantia patrimonial autoriza o credor a requerer o arresto de bens do devedor. A finalidade do procedimento cautelar de arresto consiste precisamente em evitar que se concretize o risco de perda de garantia do crédito. Tal garantia é constituída por todos os bens do devedor suscetíveis de penhora (art.º 601.º do C.C.). Apenas a título excecional é autorizado o arresto/penhora de bens de terceiro, designadamente do adquirente dos bens do devedor, sobre o qual o requerente não titula um direito de crédito.
Assim mesmo, a lei civil autoriza o credor a requerer o arresto contra o adquirente dos bens do devedor - art.º 619.º/2 do Código Civil. É mister, porém, que comprove que impugnou judicialmente a transmissão, o que não se verifica.
Dos factos alegados resulta ainda ser intenção do requerente, não impugnar judicialmente a aquisição por parte da “J...”, no sentido de poder executar o crédito no património da requerida “B...”, a devedora, mas sim obter a reversão do negócio celebrado entre a requerida “B...” e a “J...”. Ora o que o art.º 619.º/2 do C.C. autoriza é o arresto contra o adquirente dos bens do devedor. No caso concreto, o que, em tese, seria possível é o arresto contra a “J...”.
Sendo embora a requerida “B...” a alegada devedora, o requerente não indica bens desta última que possam assegurar a efetividade do seu crédito, ou sequer um fundado receio de perda da garantia patrimonial relativamente à mesma.
Em súmula, como configurada a providência pelo credor, a devedora da parte do preço das quotas da “A...” é a segunda requerida “B...” e não a primeira requerida “A...”. Será o património da segunda requerida “B...” a responder e não o património da primeira requerida “A...”. Ainda que o credor/requerente possa requerer o arresto contra o adquirente dos bens da devedora “B...”, a adquirente é a “J...”, que não foi demandada. Apenas os bens da transmissária das quotas da “I.../A...” respondem pela satisfação do invocado crédito.
Assim, como bem explicita a decisão de indeferimento liminar, ainda que o requerente lograsse provar tudo quanto alega, nem por isso a sua pretensão poderia vir a merecer acolhimento. É de indeferir liminarmente, por insuscetível de vir a ser decretado, o procedimento cautelar em que é pedido o arresto de bens que não são, nem do devedor, nem do adquirente dos bens do devedor.
Bem andou, por conseguinte, o tribunal de 1.ª instância em atalhar um procedimento inútil.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar a apelação totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, por fundamentos que desta em nada dissentem.
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Custas pelo apelante por ter soçobrado integralmente na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 4-6-2025
Teresa Fonseca
Miguel Baldaia de Morais
Manuel Domingos Fernandes