I. A Convenção de Extradição entre Estados Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (Convenção da CPLP) não permite ao Estado requerido controlar a proporcionalidade do impulso extradicional formulado pelo Estado requerente, ou avaliar a suficiência dos indícios colhidos na investigação pendente no Brasil sobre os factos que fundaram a emissão do mandado de prisão, comuns ao pedido de extradição.
II. A obrigação de extraditar que resulta do artigo 1.º para os Estados contratantes da Convenção da CPLP apenas pode ser recusada quando ocorrem os motivos de inadmissibilidade previstos no seu artigo 3.º ou os de recusa facultativa previstos no artigo 4.º, que constituem um regime próprio e taxativo em matéria de causas de recusa de extradição no âmbito da referida Convenção.
III. O estabelecido no artigo 56.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, permite ao juiz o indeferimento de diligências inúteis que tenham sido requeridas pelo extraditando, não constituindo tal decisão qualquer violação das garantias de defesa e, muito menos, qualquer nulidade, entendimento seguido constantemente neste STJ, que sufragamos e é aplicável ao caso em apreço.
IV. Tratando-se de extradição com vista a procedimento criminal, não é expectável que exista uma descrição exaustiva e circunstanciada dos factos imputados, exatamente porque os mesmos ainda se encontram em investigação e não estão consolidados. A lei não exige sequer, um juízo qualificado de indiciação, importando, essencialmente, a indicação das informações necessárias a possibilitar a invocação de circunstâncias que possam integrar motivo de inadmissibilidade ou de exercício do direito de recusa da extradição, e bem assim para efeitos de ponderação pelo extraditando da renúncia ou não ao benefício da regra da especialidade.
V. Sendo o Brasil um Estado democrático, subscritor de inúmeras convenções internacionais respeitantes aos direitos humanos e à Cooperação Judiciária Internacional, temos de partir do pressuposto de que as autoridades brasileiras não deixarão de assegurar, de forma integral, o respeito pelos direitos fundamentais da extraditanda e, nomeadamente, a sua própria vida e integridade física.
VI. As autoridades brasileiras estão cientes das deficiências do seu sistema prisional e têm vindo a tomar medidas, como o recente plano lançado pelo Governo Federal, elaborado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), homologado em dezembro de 2024 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), assinalando o Ministério Público o compromisso do Estado brasileiro em não submeter a extraditanda a tortura ou a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
VII. O alegado risco de vida, para si e para os seus filhos, fundamentado na grande virulência e perigosidade da organização criminosa em causa, não tem o potencial sugerido de prenúncio de mal ou de aviso de mal para a recorrente e para os seus, sendo certo que o dito mal tanto pode concretizar-se no Brasil como em Portugal. Não tem fundamento partir da assunção do princípio de que as autoridades da República Federativa do Brasil serão incapazes de providenciarem o que se mostrar necessário para a proteção da recorrente e da sua família próxima.
VIII. As condições das prisões brasileiras genericamente invocadas e hipotéticos perigos para a recorrente e os seus mais próximos, além da integração social em Portugal, não constituem causa de inadmissibilidade ou recusa facultativa da extradição, sendo que as normas Convencionais contêm uma enumeração taxativa dessas causas, não havendo lugar à aplicação subsidiária da Lei n.º 144/99, dado que se trata de matéria expressamente regulada na Convenção.
IX. As razões que foram invocadas não integram quaisquer questões de segurança, ordem pública ou de outros interesses fundamentais do Estado português que permitam a recusa, com base no artigo 22.º da Convenção.
I – RELATÓRIO
1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães foi autorizada a extradição para o Brasil da cidadã de nacionalidade brasileira de AA “para fins de procedimento criminal na ....ª Vara Criminal da Comarca de ..., Tribunal de Justiça do Estado de ..., Brasil, no processo com o n.º .......................39, com observância da regra da especialidade a que aquela não renunciou”.
2. Do acórdão da Relação recorre para este Supremo Tribunal de Justiça a referida AA, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
«A) No dia 26.02.2025 foi a Requerida, ora Recorrente, notificada - refª ......57 - do seguinte:
“De todo o conteúdo do despacho proferido, que se anexa, ou seja, para em 8 (oito) dias, deduzir por escrito oposição fundamentada ao pedido de extradição e indicar meios de prova admitidos pela lei portuguesa, sendo, porém, o número de testemunhas limitado a 10.”
B) E ainda da leitura do douto despacho com a refª. ......69 resulta que:
“Refªs. ....40 e ....91: dê conhecimento do pedido do Ministério Público à defensora da requerida; concede-se o prazo de 8 dias para que a requerida deduzir, querendo, oposição fundamentada ao pedido de extradição, indicando os respectivos meios de prova (art. 55.º, nºs. 1 e 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto).”
C) A Recorrente deduziu oposição escrita (refª ....12) à extradição e arrolou prova testemunhal.
D) No dia 17.03.2025 foi proferido douto despacho com a refª ......94 que indeferiu a audição das testemunhas arroladas pela Recorrente.
E) Vem tal decisão estribada nas seguintes razões:
“(…)
Relativamente aos demais fundamentos da oposição, a prova testemunhal arrolada só poderia servir para a integração em Portugal da requerida (já que o restante é matéria de direito, a apreciar a final); porém, e também com fundamento no teor dos citados arts. 3.º e 4.º da Convenção, aquela integração – que não deixou de ser relevante no momento da aplicação da medida de coacção nestes autos – não é causa de inadmissibilidade ou recusa facultativa da extradição, pelo que a audição das testemunhas a esse propósito configuraria a prática de um acto inútil: “É admissível o indeferimento de diligências de prova indicadas pelo extraditando em sede de oposição, que sejam inúteis, impertinentes ou dilatórias, em obediência ao princípio da não realização de atos inúteis no processo, e à sua adequação ao fim daquele.”3” – negrito e sublinhado nosso;
F) Resulta assim que a decisão de indeferimento da prova testemunhal arrolada pela Recorrente deve-se ao facto de que tal meio de prova, no entender do Tribunal a quo “só poderia servir para a integração em Portugal da requerida”. Não é verdade.
G) A Recorrente apresentou tempestivamente a oposição e arrolou testemunhas.
H) Sendo este meio de prova admissível.
I) A Recorrente arrolou a prova testemunhal e pretendia a sua inquirição para prova de outros factos por si alegados em sede de oposição, para além dos factos comprovativos da sua integração em Portugal.
J) Designadamente, também para prova da composição do seu agregado familiar, das condições pessoais da Recorrente, das consequências para Recorrente e para os filhos desta se esta fosse extraditada, das condições de segurança do Brasil e ainda das condições de segurança dos estabelecimentos prisionais do Estado requerente.
K) Ao não aceitar tal meio de prova, o Tribunal a quo pôs em causa o legitimo exercício dos direitos de defesa da Recorrente, impedindo-a de fazer valer em juízo todos os seus legítimos direitos de pessoa, o que consubstancia uma NULIDADE, nulidade que aqui e desde já se invoca para todos os efeitos legais.
L) Consequentemente, requer-se a declaração de nulidade do acórdão em recurso, com as legais consequências – art. 118.º, 120.º, n.º 2, al. d) e 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal (doravante CPP), subsidiariamente aplicável ao presente caso concreto - devendo ordenar-se a audição das testemunhas arroladas pela Recorrente, nos termos do disposto no art. 56.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto.
M) Na sua oposição escrita datada do dia 10.03.2025 e com a refª ....12, a Recorrente invocou a existência de uma nulidade por não estar junto aos autos o mandado de prisão emitido pelas autoridades judiciárias do Brasil.
N) Os Venerandos Juízes Desembargadores, no ponto 2 do douto Acórdão agora em recurso, julgaram improcedente a invocada nulidade.
O) A Recorrente quando notificada para deduzir oposição (despacho no dia 26.02.2025 e com refª ......57) foi, também, notificada de dois requerimentos do Douto Ministério Público (do dia 24.02.2025 e com a refª ....40 e a rectificação do dia 25.02.2025 com a refª ....91) por via dos quais foi junto aos autos o pedido de formalização da extradição apresentado pelo Estado requerente.
P) Ora quer do requerimento com a refª ....40, quer do requerimento de rectificação com a refª ....91 não consta o mandado de prisão emitido pelas autoridades judiciárias do Brasil.
Q) Foi de acordo com a documentação existente no processo que a Recorrente analisou quer a factualidade quer os documentos existentes, e apresentou a sua oposição.
R) A Recorrente no dia 10.03.2025 deduziu oposição escrita à extradição.
S) No dia 13.03.2025, face à oposição à extradição manifestada pela Recorrente, o digno Ministério Público apresentou o seu requerimento com a refª .....9.
T) Assim, não é verdade o que consta do segmento do douto acórdão agora em recurso: “[o]ra, ao contrário do que defende a requerida, tal mandado encontra-se junto aos autos, devidamente assinado e publicado digitalmente, estando-lhe até aposto um código QR para confirmação da sua autenticidade (págs. 5 e 6 da ref.ª ....49).” negrito e sublinhado nosso;
U) Resulta pois, evidente, que quando a Recorrente deduziu oposição à extradição não constava dos autos o referido mandado de prisão,
V) Ainda no ponto 2. do douto Acórdão, tomou o Tribunal a quo posição sobre outra deficiência sinalizada pela Recorrente em sede de oposição.
W) Na sua oposição escrita a Recorrente alegou que não constavam dos autos documentos comprovativos das alegadas 20 (vinte) movimentações bancárias e que estes documentos deveriam ser pedidos ao Estado requerente para serem juntos aos autos.
X) Também, nesta parte, entendeu o Tribunal a quo que não assiste razão à Recorrente. Não podemos concordar, pelo menos em parte!
Y) É verdade que ao abrigo da Convenção de Extradição subscrita entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na cidade da Praia, em 23 de Novembro de 2005 (doravante designada apenas por Convenção) não é exigível ao Estado requerente o envio dos meios de prova.
Z) Contudo, nos termos do disposto na alínea a) do nº 3 do art. 10º da Convenção deverão ainda acompanhar o pedido: - “[d]escrição dos factos pelos quais se requer a extradição, indicando o lugar e a data de ocorrência, sua qualificação legal e fazendo referência às disposições legais aplicáveis.” – negrito e sublinhado nosso;
AA) Da leitura do citado comando normativo, resulta que do processo de formalização da extradição deve constar a descrição dos factos pelos quais se requer a extradição com indicação do lugar e data da ocorrência.
BB) Do processo de formalização de extradição apresentado pelo Estado requerente não constam tais elementos e/ou informações.
CC) Elementos e/ou informações que devem – obrigatoriamente - constar do processo.
DD) Urge pois, concluir, que deveria o Tribunal a quo - nos termos do disposto no nº 1 do art. 12º da Convenção - ter requerido ao Estado requerente tais elementos e/ou informações.
EE) Deste modo, por não constarem dos autos tais elementos e/ou informações enfermam os autos de NULIDADE, nulidade que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
Ainda,
FF) Constam do elenco dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, alguns factos que não foram devida ou completamente avaliados.
GG) Desde logo, do facto provado nº 2 consta:
“2. Correm na República Federativa do Brasil, na ....ª Vara Criminal da Comarca de ..., Tribunal de Justiça do Estado de ..., os autos de investigação criminal n.º .......................39, em que a extraditanda é suspeita da prática de um crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 2.º da Lei n.º 12850/2013 e pelos artigos 33.º e 35.º da Lei n.º 11343/06.”
HH) Este facto não está correctamente apreciado. De facto, a Recorrente está indiciada pela eventual prática de dois crimes, a saber:
- Crime de associação criminosa para o trafico de estupefacientes – previsto e punido pelos artigos 33º e 35º da Lei nº 11343/06; e
- Crime de organização criminosa – previsto e punido pelo art. 2º da Lei nº 12850/2013.
II) Conforme resulta da leitura do mandado de prisão (pág. 5 e 6 da refª ....49) a tipificação Penal prevista é a seguinte:
- Lei: 11343 - artigos 33º e 35º
-Lei: 12850 – artigo 2º
JJ) Da leitura dos diplomas legais do Estado Requerente e supra citados resulta que a Recorrente vem indiciada pela prática de dois crimes: i) - associação criminosa para tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo e pelos artigos 33º e 35º da Lei n.º 11343/2006, e ii) - organização criminosa, previsto e punido pelo artigo 2º da Lei n.º 12850/2013, sendo a pena máxima aplicável de 15 anos e 8 anos de prisão, respectivamente.
KK) Deste modo, o facto provado nº 2 não está correcta ou devidamente apreciado, devendo proceder-se à sua correcção em conformidade.
LL) Do facto provado nº 6 consta:
“6. A extraditanda saiu do Brasil a 30 de Setembro de 2022, juntamente com o seu companheiro BB e com o filho, CC, com destino a Portugal, onde chegou a 1 de Outubro do mesmo ano.”
MM) Também este facto foi indevidamente apreciado.
NN) A Recorrente quando viajou do Brasil para Portugal, viajou acompanhada do companheiro e dos dois filhos menores de ambos: CC e DD;
OO) Assim, e de igual modo, importa proceder-se à correcção do facto provado nº 6 em conformidade.
Ainda,
PP) Invocou a Recorrente que, caso a extradição fosse decretada, tal poderia gerar consequências graves e irreparáveis quer para a vida da Recorrente, quer para a vida dos seus filhos.
QQ) O Tribunal a quo pronunciou-se sobre esta questão no ponto 6. do douto Acórdão ora em recurso, pugnando que esta matéria não é fundamento para recusar a extradição da Recorrente. Não se concorda,
RR) Ora, quanto às consequências na vida dos filhos da Recorrente, decorrentes da eventual extradição desta, refere-se: “[r]elativamente à primeira questão, e às consequências, para os menores, da eventual reclusão da mãe, a sua falta de acolhimento tem os mesmos fundamentos do ponto anterior deste acórdão: desde logo, a Convenção não estabelece quaisquer motivos de ordem pessoal – nem relacionados com o extraditando, quanto mais com a sua família próxima – como causa de recusa de extradição; por outro lado, é da natureza das coisas que o percurso de vida de uma mãe (ou de um pai) sempre condiciona o dos filhos, mas nem por isso o interesse destes (não estando, aliás, sequer demonstrado que os menores, mesmo na eventual reclusão da mãe, não poderiam encontrar segurança, em Portugal ou no Brasil…) se sobrepõe ao da realização da justiça, procurado pelo instituto da extradição.” – negrito e sublinhado nosso.
SS) Sem dúvida que a eventual extradição da Recorrente irá colocar em risco a segurança e a vida dos dois filhos menores desta.
TT) A Recorrente é a única responsável pelos dois menores de três e seis anos de idade.
UU) Da leitura do processo de formalização do pedido de extradição resulta que: “[e]m um dos áudios relacionados ao contexto da disputa de facções por pontos de drogas, “EE” determina a FF execução de pessoas e, inclusive, solicita a ela que forneça o veículo para auxiliar nas execuções” – negrito e sublinhado nosso.
VV) Que “[t]rata-se de integrantes de organização criminosa de ..., que estavam em ... a mando de vulgo EE, para realização de tráfico de drogas e de homicídios, a fim de conquistar a hegemonia territorial na cidade.” ,
WW) E ainda que “[a] atuação sanguinária dessa organização criminosa (envolvida em 05 crimes de homicídio e tentativa de homicídio apenas na Comarca de ...) pela hegemonia territorial do tráfico de drogas, revela uma periculosidade acentuada dos integrantes e o alto poder de intimidação.”
XX) Ora, resulta à saciedade que os membros destas organizações criminosas não têm qualquer respeito pela vida humana,
YY) Que não olham a meios para alcançar os seus propósitos, nem que para alcançar os seus fins seja necessário ceifar vidas humanas!
ZZ) Ora, regressando os dois filhos menores da Recorrente ao Brasil, os membros desta organização criminosa não teriam qualquer problema em mandá-los executar, até como meio de persuasão e de pressão da Recorrente.
AAA) Ao contrário do que vem referido no douto acórdão em recurso, não é pretensão da Recorrente furtar-se à realização da justiça.
BBB) Conforme resulta dos autos, antes mesmo de ter sido requerida a extradição da Recorrente pelo Estado requerente, esta já havia constituído mandatários nos autos a correr termos no Estado requerente, para se inteirar do que se estava a passar, para preparar a sua defesa e para colaborar com as autoridades judiciárias na descoberta da verdade.
CCC) A Recorrente está disponível para colaborar com a justiça do Brasil e prestar todos os esclarecimentos solicitados.
DDD) O processo-crime ainda está a correr seus termos, não tendo sido proferida qualquer sentença.
EEE) Para a eventualidade - o que não se concebe e somente por mera questão de raciocínio se conjetura – de a Recorrente vir a ser condenada no Estado requerente, com sentença transitada em julgado, é vontade da Recorrente solicitar que a pena seja cumprida no Estado requerido.
FFF) A Recorrente não pretende furtar-se à realização da justiça mas apenas, garantir a sua segurança e a vida, bem como, a dos seus dois filhos menores.
GGG) Neste momento quer a Recorrente, quer os seus dois filhos estão em território nacional, estando a Recorrente à guarda do Estado Português.
HHH) Sendo, por isso, o Estado Português responsável quer pela Recorrente, quer pelos dois filhos menores desta.
III) É referido, e bem, no acórdão em recurso que nos presentes autos não é aplicável o disposto no nº 2 do art. 18º da Lei nº 144/99 em que se refere: “[p]ode ainda ser negada a cooperação quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal.”
JJJ) No entanto, nos termos do disposto no artigo 22º da Convenção “[o] Estado requerido pode recusar, com a devida fundamentação, o pedido de extradição quando o seu cumprimento for contrário à segurança, à ordem pública ou a outros interesses fundamentais.”
KKK) Embora a Convenção não contenha disposição que explicitamente contemple a recusa da extradição com base nas condições pessoais, ou nas condições desumanas dos estabelecimentos prisionais do Estado requerente, esta prevê, no seu artigo 22º, uma cláusula geral de subordinação, da obrigação de extraditar, à tutela de interesses fundamentais do Estado Português.
LLL) Sendo o princípio da preservação e da protecção de qualquer ser humano, contra tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, independentemente da nacionalidade, um interesse fundamental do Estado Português, tal como resulta do disposto no nº 2 do artigo 25º da CRP.
MMM) Deste modo, no caso de as condições prisionais do Estado requerente não garantirem a inviolabilidade física e moral dos cidadãos reclusos não poderá, a ausência ou falta de tais condições, deixar de considerar-se um tratamento cruel, desumano ou degradante legitimadora da recusa de extradição, à luz do artigo 22º da referida Convenção.
NNN) Importa relembrar que estão em causa a vida e segurança de três pessoas e que estas três vidas estão à guarda do Estado Português.
OOO) O direito à vida é um direito fundamental que o Estado requerido tem a obrigação de assegurar e proteger.
PPP) O Povo Português não iria compreender que o Estado Português decidisse colocar em risco três vidas humanas com base em alegadas transferências bancária no montante global de R$ 13.430 e que tem a sua compartida em Euro de € 2.167,60 (dois mil, cento e sessenta e sete euros e sessenta cêntimos).
Ainda,
QQQ) De acordo com o disposto no n.º 6 do art.º 33.º da Constituição da República Portuguesa “não é admitida a extradição, nem a entrega a qualquer título, por motivos políticos ou por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física”,
RRR) Consideramos, infelizmente, que ao ser extraditada tal venha a ocorrer, não pela longa manus directa do Estado, mas pelo que ocorre dentro dos estabelecimentos prisionais brasileiros – não só no que toca à sua sobrelotação, mas também no que se refere aos castigos corporais sofridos e, em muitos casos, à perda da vida intencional de reclusos, pela mão de outros reclusos.
SSS) A questão da relevância, no âmbito da extradição, das más condições das prisões no Estado requerente, atentatórias da dignidade humana, nomeadamente por sobrelotação e pelas graves deficiências de organização e funcionamento, pondo em risco a saúde, a segurança, a integridade física ou psicológica ou a vida dos reclusos, situa-se a um nível diverso, nas relações entre Estados, reguladas por normas de direito internacional público que vinculam os Estados ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, na medida em que constituam ou apresentem sério risco de constituírem tortura ou tratamento desumano ou degradante.
TTT) A proteção da pessoa contra estas formas de tratamento, quer internamente, quer nas relações com outros Estados, no âmbito da extradição, encontra-se especificamente garantida no artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966), no artigo 5.º da Convenção Americana dos Direitos Humanos (San José, 1969), no artigo 3.º na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 16.º da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984) e no respetivo Protocolo Facultativo, na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985) e na Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes (1987), bem como por soft law como as Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Prisioneiros (1995) e as “Regras de Nelson Mandela” (2015), das Nações Unidas.
UUU) A interdição da tortura e das penas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes contém uma proibição absoluta, insuscetível de restrições e derrogações, o que confere às normas de proteção contra estas formas de tratamento a natureza de normas imperativas de direito internacional geral, normas de jus cogens, consagrando valores absolutos que não admitem desvio, cuja derrogação não é permitida, a que são reconhecidos efeitos supralegais, com a força que lhe confere o artigo 53.º da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969).
VVV) De acordo com a jurisprudência bem estabelecida do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), a partir do caso Soering c. Reino Unido (n.º 14038/88, de 7.7.1989), a proteção contra o tratamento proibido pelo artigo 3.º da CEDH é absoluta.
WWW) Como resultado, a extradição de uma pessoa por um Estado Contratante pode, sob esta disposição, envolver a responsabilidade do Estado em questão, nos termos da Convenção, quando houver motivos sérios para acreditar que, se a pessoa for extraditada, corre o risco real de ser submetida a tratamento contrário ao artigo 3.º da CEDH.
XXX) O risco de tratamento da pessoa em violação do artigo 3.º da CEDH obriga o Estado requerido a fazer uma “avaliação adequada” desse risco e a adotar as medidas ao seu alcance necessárias à sua prevenção – nomeadamente solicitando ao Estado requerente a prestação de garantias de que a pessoa requerida não será sujeita a este tipo de tratamentos, não sendo suficiente uma declaração genérica de que o sistema legal, a ratificação dos instrumentos internacionais relevantes e a legislação em vigor asseguram a proteção da pessoa – e a não extraditar em caso de não prestação de garantias ou insuficiência das garantais prestadas e de subsistência daquele risco.
YYY) Como tem sido reconhecido na jurisprudência e nas instâncias internacionais, a avaliação do risco deve levar em conta os relatórios e avaliações de organismos internacionais criados pelos Estados no âmbito das organizações internacionais, nos quais se incluem os do Comité contra a Tortura (Nações Unidas), de organizações não governamentais de reconhecida credibilidade e de organismos nacionais com intervenção neste domínio.
ZZZ) As recentes observações e recomendações do Comité contra a Tortura, produzidas na sequência da avaliação (2020-2023) do segundo relatório do Brasil sobre a aplicação da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes são, neste contexto, de atual e decisiva importância.
AAAA) Apesar de notarem aspetos positivos na situação das prisões e os esforços que estão a ser feitos nesse sentido, nomeadamente através da promoção das “Regras de Nelson Mandela”, as observações dão nota de que o sistema penitenciário brasileiro enfrenta sérios desafios, em particular no que se refere a sobrelotação e violência física e sexual no interior da maioria dos estabelecimentos prisionais, com riscos para a vida dos reclusos, condições de detenção com falta de condições sanitárias e de higiene, de acesso a água potável, a alimentos, a cuidados de saúde, e de ventilação e luz natural, tendo o Comité produzido um conjunto considerável de recomendações para se ultrapassarem essas dificuldades.
BBBB) Este relatório, pela caraterização que faz das condições das prisões no Estado requerente, constituiria motivo suficiente para que se solicitassem garantias – que, na sua dimensão jurídica, devendo ser tidas em devida conta, relevam do princípio da boa fé, que preside à aplicação e observância dos tratados (artigo 26.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados), podendo constituir fundamento de responsabilização dos Estados – de que a pessoa procurada, uma vez entregue, não será sujeita nem correrá o risco real de ser sujeita a esse tipo de tratamento no interior da prisão, para cumprimento da pena.
Acresce que,
CCCC) Da leitura dos autos - na pág. 31 do Requerimento com a Refª ....40 - resulta que das comunicações intercetadas pelo Estado Requerente indicam uma suposta ligação da rede criminosa com as “facções Primeiro Comando da Capital (PCC) e Amigos do Estado (ADE)”. – negrito e sublinhado nosso;
DDDD) Tais organizações criminosas são amplamente conhecidas pelas suas práticas violentas, incluindo, extorsão, raptos, execuções e tortura utilizados muitas vezes como forma de silenciar indivíduos.
EEEE) Sendo também sabido que tais organizações detêm o domínio/controlo da quase totalidade do sistema penitenciário Brasileiro.
Isto Posto,
FFFF) O deferimento da requerida extradição, in casu, no nosso modesto parecer e sem prejuízo de opinião mais válida, faria perigar os direitos fundamentais da cidadã AA, ora Recorrente.
GGGG) Deter uma pessoa e entregá-la a outro Estado é um acto de elevada repercussão jurídica.
HHHH) Não se entregam cidadãos sem a garantia de que os seus direitos fundamentais serão respeitados, isto, para obstar a que se conclua que os Tribunais Portugueses não protegem os cidadãos (em nome de quem é exercido o seu soberano poder jurisdicional) contra a violação dos seus direitos humanos (e não se diga também, que os nossos tribunais se limitam a aplicar a lei, pois, a mesma só é válida se respeitar a Constituição da República Portuguesa).
IIII) A realização da justiça não se compadece, nem se compagina, com a violação de direitos e liberdades fundamentais em geral, nem com a agressão desnecessária e excessiva das garantias processuais, sob pena de se gerar uma não-aceitação pela comunidade da acção punitiva e uma não asserção plena da paz jurídica.
JJJJ) A razão de ser de um Tribunal Superior ser chamado a intervir na decisão de extradição reside justamente em dar corpo às garantias formais e substanciais postuladas pela lei, nomeadamente, assegurar o respeito pelos direitos fundamentais da Recorrente, o que é uma das tarefas fundacionais do Estado (cfr. alínea b), do artigo 9º, da Constituição da República Portuguesa).
KKKK) Ora, os Tribunais Portugueses, sob pena de violação da Constituição da República Portuguesa da qual são o seu máximo garante, não podem entregar um cidadão a um outro Estado sem sindicarem se serão respeitados os seus direitos fundamentais.
LLLL) Nenhum Tribunal Português pode tomar uma decisão com incidência penal sem ter presente na mesma os direitos fundamentais consagrados na Constituição Portuguesa, máxime quando está em causa um direito fundamental estrutural como é o direito à vida e à liberdade.
MMMM) Não se pode deter uma pessoa e tratá-la como se fosse um simples objecto que é apreendido e entregue sem nada se questionar, respeitando apenas as questões de forma.
NNNN) Não é suficiente a existência da letra da Lei para assegurar as garantias por parte do Estado Requerente, é necessário assegurar que as garantias prestadas não sejam letra morta.
OOOO) Relativamente à inconstitucionalidade invocada pela Recorrente, considerou o Tribunal a quo no ponto 7 do douto acórdão em recurso, não haver qualquer violação da Constituição da República Portuguesa.
PPPP) Referimos a este respeito que, nos termos do disposto na alínea b) do nº 3 do art. 27º da Constituição se permite a privação de liberdade, através de prisão preventiva, quando há “fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos” – negrito e sublinhado nosso,
QQQQ) Da leitura do processo de Extradição resulta que o único elemento probatório apresentado são registos de transferências bancárias, associadas à chave PIX registada em nome da Recorrente, que correspondem a:
- Uma transferência da quantia de R$ 2.000,00 (que tem a sua contrapartida em Euros de € 322,80) em 17.04.2024 - página 23 da Refª ....40;
- Vinte movimentos alegadamente realizados entre o dia 01.12.2023 e o dia 31.07.2024, de uma conta bancária em nome de GG para a referida chave PIX, perfazendo a quantia de R$ 11.270,00 (que tem a sua contrapartida em Euros de € 1.818,98) - página 27 da Refª ....40;
- Um pagamento da quantia de R$ 160,00 (que tem a sua contrapartida em Euros de € 25,82) através da mesma chave PIX para pagamento parcial, alegadamente, de uma renda de uma residência e que supostamente seria utilizada como ponto de apoio da alegada rede - página 28 da Refª ....40.
RRRR) Sendo certo e conforme referido no ponto W) a EE). supra, relativamente às alegadas 20 (vinte) movimentações bancárias não se encontram devidamente concretizadas.
SSSS) Para além destas alegadas movimentações bancárias, não existe qualquer outro facto ou elemento probatório, como comunicações, áudios ou outros indícios concretos, que liguem a Recorrente à alegada associação de tráfico de estupefacientes e/ ou organização criminosa.
TTTT) Assim, é manifesta a inexistência de elementos probatórios suficientes para estabelecer qualquer ligação / envolvimento da Recorrente na suposta prática dos aludidos crimes,
UUUU) Deveria o Tribunal a quo ter rejeitado o pedido de extradição por inexistência de indícios suficientes da prática, pela Recorrente, dos alegados crimes.
VVVV) A simples titularidade de um número de telemóvel associado a uma chave PIX que se encontra em nome da Recorrente e a existência de movimentos bancários pontuais e esporádicos não configuram, por si só, a existência da prática de qualquer crime e tampouco podem ser indícios suficientes, sem qualquer outra prova adicional que o corrobore, para imputar à Recorrente, ainda que indiciariamente, a prática do crime de associação para o tráfico de estupefacientes e, muito menos, para lhe ser imputada a prática do crime de organização criminosa.
WWWW) O douto acórdão em recurso fez in casu uma interpretação inconstitucional do artigo 22º da Convenção por violar os direitos fundamentais da Recorrente, consagrados no artigo 24º, no artigo 25º, no nº 2 e na al. b) do n.º 3, do artigo 27.º, no artigo 33º e ainda no artigo 67º todos da Constituição da República Portuguesa.»
3. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
«1. O acórdão recorrido encontra-se a coberto de qualquer censura pois que a matéria de facto relevante que nele aportou, após a dedução de oposição por parte da extraditanda, não evidencia uma qualquer causa de recusa à extradição ou que a torne inadmissível, nos termos dos artigos 3 e 4 da Convenção de Extradição da CPLP, quando é certo que as alegadas condições desumanas dos estabelecimentos prisionais do Estado brasileiro, o Estado requerente, e que aquela exibiu, não se assumem como razão de recusa;
2. A concretizada rejeição de produção da prova testemunhal oferecida pela extraditanda na sua oposição justificou-se plenamente perante a sua completa inutilidade, tendo em vista o previsto no n.º 3 do art.º 46 da Lei 144/99 ao prever que não é “admitida prova alguma sobre os factos imputados ao extraditando”, não relevando, pois, a situação pessoal, social e familiar da extraditanda em território nacional;
3. Inexiste qualquer nulidade de procedimento, já que a documentação do pedido de extradição apresentado pelo Estado brasileiro se apresenta completo, indicando nomeadamente, e com precisão, os factos e o seu tempo, e também as infracções penais imputadas à extraditanda e as garantias formais dadas pelo Estado requerente;
4. O ponto de facto provado n.º 2 deve ser corrigido conformando-o com o que no pedido de extradição é apresentado, ou seja, que a extraditanda é suspeita da prática de “dois crimes: i) - associação criminosa para tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo e pelos artigos 33º e 35º da Lei n.º 11343/2006, e ii) - organização criminosa, previsto e punido pelo artigo 2º da Lei n.º 12850/2013, sendo a pena máxima aplicável de 15 anos e 8 anos de prisão, respectivamente”.
5. O acórdão recorrido dever, pois, ser integralmente confirmado.»
4. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e, no exame preliminar, o Relator ordenou que os autos fossem aos vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Do acórdão recorrido
1.1. No acórdão recorrido foram dados como assentes os seguintes factos e ocorrências processuais relevantes:
1. A requerida AA é cidadã brasileira.
2. Correm na República Federativa do Brasil, na ....ª Vara Criminal da Comarca de ..., Tribunal de Justiça do Estado de ..., os autos de investigação criminal n.º .......................39, em que a extraditanda é suspeita da prática de um crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 2.º da Lei n.º 12850/2013 e pelos artigos 33.º e 35.º da Lei n.º 11343/06.
3. Tal imputação alicerça-se nos seguintes factos indiciários, entre 1 de Outubro de 2023 e 30 de Setembro de 2024:
- HH foi investigada por homicídio qualificado ocorrido em ... a 4/7/24, sendo a vítima II;
- HH é também investigada por associação para o tráfico de estupefacientes e organização criminosa, juntamente com outros investigados, sendo que através da quebra de sigilo telefónico existem relatos de que um “EE” informouHH sobre o número de uma chave PIX, ou seja, .........99 para transferência do pagamento do tráfico de estupefacientes em nome de AA e BB, sócio de AA;
- após a quebra de sigilo bancário autorizada judicialmente, foram verificadas diversas movimentações financeiras avultadas que indicam a participação de AA na organização criminosa centrada para o tráfico de estupefacientes.
4. Foi decretada a prisão preventiva da extraditanda pelo citado Tribunal brasileiro, por despacho de 22 de Outubro de 2024.
5. A 28 de Outubro de 2024, foi emitido mandado de prisão preventiva contra a extraditanda, no âmbito do processo referido em 2., assinado pelo Magistrado JJ
6. A extraditanda saiu do Brasil a 30 de Setembro de 2022, juntamente com o seu companheiro BB e com o filho, CC, com destino a Portugal, onde chegou a 1 de Outubro do mesmo ano.
7. Quando foi detida, a 4 de Fevereiro de 2025, a extraditanda residia com o seu companheiro e dois filhos menores no concelho de ....
8. Por despacho de 20 de Fevereiro de 2025, a Senhora Ministra da Justiça declarou admissível o pedido de extradição apresentado pela República Federativa do Brasil respeitante a AA, por estar conforme aos requisitos dos arts. 1.º e 2.º da Convenção de Extradição entre os Estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e do art. 31.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto.
9. A extraditanda não tem antecedentes criminais.
10. Com data de 28 de Janeiro de 2025, a extraditanda outorgou procuração forense a dois advogados de ..., ..., Brasil, para um processo de habeas corpus.
1.2. Mais se consignou no acórdão:
«São irrelevantes os factos alegados pela extraditanda relativos à matéria do processo criminal referido em 1., e não se provou que corra processo de habeas corpus relativo à extraditanda no Brasil.
O demais alegado pela requerida na sua oposição é matéria de Direito, inexistindo outros factos pertinentes para a causa.»
1.3. A título de motivação de facto, consta do acórdão recorrido:
«A convicção deste Tribunal assentou na análise crítica dos documentos juntos aos autos: os emitidos pelas autoridades judiciárias brasileiras – requerimento do Ministério Público e subsequente despacho (págs. 17 a 122 da ref.ª ....40), bem como o mandado de prisão preventiva (págs. 5 e 6 da ref.ª ....49) –, o emitido pela Interpol (ref.ª ....10), o despacho ministerial (ref.ª ....23 e págs. 11 e 12 da ref.ª ....91) e o passaporte da requerida, apreendido nos autos.
Foram ainda úteis o primeiro e terceiro documentos juntos pela extraditanda (ref.ª ....12), e as declarações desta na sua audição dos autos, quanto às condições pessoais.»
1.4. Como enquadramento-geral, diz-se no acórdão recorrido:
«Nos termos do art. 229.º do Código de Processo Penal, a extradição é regulada “pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial e ainda pelas disposições deste livro” (o V da Parte I daquele Código).
Meio privilegiado da cooperação internacional, a extradição (no caso, passiva) é susceptível de aplicação quando um Estado (o requerente) solicita a outro Estado (o requerido) a entrega de uma pessoa “para efeitos de procedimento penal ou para cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas de liberdade, por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.” (art. 31.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto).
Esta Lei diz respeito à cooperação judiciária internacional em matéria penal, estabelecendo, logo no seu art. 3.º, n.º 1, que as formas dessa cooperação se regem “pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma”, sendo ainda subsidiariamente aplicável o Código de Processo Penal, na esteira do previsto no citado art. 229.º (n.º 2 do mesmo artigo).
Nestes autos, o Estado requerente é a República Federativa do Brasil e o requerido a República Portuguesa, pelo que prevalece a aplicação da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (assinada na Cidade da Praia a 23 de Novembro de 2005), aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008, de 15 de Setembro ; tal Convenção entrou em vigor, em Portugal, a 1 de Março de 2010, e no Brasil a 20 de Fevereiro de 2013.
Aliás, o art. 25.º, n.º 1, da Convenção estabelece que esta “substitui, no que respeita aos Estados aos quais se aplica, as disposições de tratados, convenções ou acordos bilaterais que, entre dois Estados Contratantes, regulem a matéria da extradição.”
No seu art. 1.º, sob a epígrafe “obrigação de extraditar”, prevê-se: “Os Estados Contratantes obrigam-se a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições estabelecidas na presente Convenção, as pessoas que se encontrem nos seus respectivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.”
No caso, a requerida é cidadã brasileira, encontra-se em Portugal e um tribunal brasileiro determinou a sua prisão preventiva ao abrigo de um processo crime aí pendente.
Nos termos do art. 2.º, n.º 1, da mesma Convenção, dão “causa à extradição os factos tipificados como crime segundo as leis do Estado requerente e do Estado requerido, independentemente da denominação dada ao crime, os quais sejam puníveis em ambos os Estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a um ano.”
Nos autos que correm na 2.ª Vara Criminal da Comarca de Rubiataba, no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, a requerida é suspeita da prática de um crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes; ora, o art. 2.º da Lei n.º 12850/2013 vigente no Brasil prevê uma pena de reclusão de 3 a 8 anos, “sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações praticadas”, para quem “Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa”; o art. 35.º da Lei n.º 11343/06, estabelece a pena de reclusão de 3 a 10 anos (além de multa) para casos em que se associem “duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º (…) desta Lei”, ou seja, tráfico de estupefacientes, e a este, nos termos do art. 33.º, é aplicável a pena de reclusão de 5 a 15 anos.
O crime pelo qual a requerida está indiciada no seu país de origem é também punível em Portugal, nos termos dos arts. 21.º, n.º 1, e 28.º, n.º 2, da Lei n.º 15/93, de 23 de Janeiro, com pena de prisão de 5 a 15 anos.
Estão, por isso, verificados os requisitos do citado art. 2.º, n.º 1, da Convenção.
A situação da requerida não se enquadra em nenhuma das alíneas do art. 3.º, n.º 1, da Convenção, que prevêem casos de inadmissibilidade da extradição: não é aplicável ao crime pena de morte ou de que resulte lesão irreversível da integridade física – alínea a); não se trata de um crime político nem militar – alíneas b) e c); a requerida não foi julgada, indultada, beneficiada por amnistia ou objecto de perdão em Portugal (os factos estão a ser apreciados pelo Estado requerente e sob sua jurisdição) – alínea d); a autoridade judiciária do Estado requerente não é um tribunal de excepção, mas um tribunal comum – alínea e); e o crime em causa, indiciariamente praticado entre 1 de Outubro de 2023 e 30 de Setembro de 2024, não se encontra prescrito, quer face à legislação brasileira – art. 109.º, I, do respectivo Código Penal, que fixa o prazo de vinte anos para a prescrição se o máximo da pena for superior a doze anos – quer perante o nosso Código Penal – art. 118.º, n.º 1, a), i), que estabelece o prazo de 15 anos quando o crime é punível com pena de prisão cujo limite máximo for superior a dez anos – alínea f).
Há ainda a considerar as causas de recusa facultativa de extradição, previstas no art. 4.º da Convenção; porém, são de afastar liminarmente: a requerida não tem nacionalidade portuguesa – alínea a); a pena aplicável ao crime não tem carácter perpétuo ou duração indefinida – alínea b); não há notícia de investigação dos factos em Portugal – alínea c); a requerida é criminalmente imputável em razão da idade (22 anos) – alínea d); e não se trata de um caso de condenação à revelia, uma vez que os factos se encontram em investigação – alínea e).»
*
2. Direito
2.1. A motivação do recurso é constituída por duas partes: a) o corpo da motivação, em que o recorrente expõe as suas razões, os fundamentos de facto e de direito do seu inconformismo com a decisão recorrida; b) as conclusões, onde se resumem as razões do pedido, ou seja, onde se indicam, por artigos, proposições sintéticas que decorrem do que se expôs ao longo do corpo da motivação, apresentando-se um enunciado conciso, enxuto, essencial daquela exposição, que delimita as questões que o recorrente quer ver discutidas no tribunal superior.
Como é sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação que apresentou (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – doravante CPP).
Dizendo-se que as conclusões resumem as razões do pedido, nada pode ser resumido que não se contenha no arrazoado da motivação, de que as conclusões devem emergir logicamente (já assim ensinava o prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, 1984, reimpressão, p. 359).
A parte do recurso que se apresenta como sendo conclusiva quase que se limita a reproduzir o corpo da motivação, agora com subordinação às letras do abecedário, em quatro voltas, pelo que merece reparo tal procedimento, que manifestamente não constitui a forma adequada de dar cumprimento ao ónus de formular conclusões.
As questões que delimitam o objeto do recurso, tal como a recorrente as apresenta, são:
a) Da nulidade alegadamente resultante do indeferimento de prova testemunhal;
b) Da nulidade alegadamente resultante de não constarem os elementos e/ou informações relativas à “descrição dos factos pelos quais se requer a extradição com indicação do lugar e data da ocorrência”, como exige a alínea a), do n.º 3, do artigo 10.º da Convenção de Extradição subscrita entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa;
c) Das alegadas imprecisões da matéria de facto assente, no tocante aos pontos n.ºs 2 e 6;
d) Da inexistência de elementos probatórios suficientes para estabelecer qualquer ligação / envolvimento da recorrente na suposta prática dos aludidos crimes;
e) Dos alegados perigos para a segurança e vida dos filhos menores da recorrente que resultarão da eventual extradição desta, e bem assim dos perigos para os direitos fundamentais da recorrente, em razão das condições prisionais no Estado requerente.
2.2. O presente recurso tem por objeto um acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em 1.ª instância – artigos 12.º, n.º 3, al. c), do CPP e 73.º, al. d), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
Nos termos do artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.
Por conseguinte, exorbita os poderes de cognição do Supremo a sindicância da decisão sobre a matéria de facto, para além do que possa integrar os vícios da decisão previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, que a recorrente, pelo menos expressamente, não invoca.
2.3. No presente caso, rege a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (doravante referida abreviadamente por "Convenção CPLP" ou "Convenção"), assinada na Cidade da Praia, em 23 de novembro de 2015, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008, de 15 de setembro, publicada no Diário da República n.º 178, 1.ª Série, de 15 de setembro de 2008, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 67/2008, da mesma data, que entrou em vigor, para a República Portuguesa, no dia 1 de março de 2010, nos termos do artigo 24.° da Convenção, conforme Aviso n.º 183/2011, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 11 de agosto de 2011.
Na República Federativa do Brasil, a Convenção CPLP foi aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 45, de 2009, vigorando nesse Estado, no plano jurídico externo, desde 1 de junho de 2009 (cf. Aviso n.º 183/2011). Foi promulgada pelo Decreto Presidencial n.º 7.935, de 19 de fevereiro de 2013, entrando em vigor no plano jurídico interno brasileiro na data da publicação desse Decreto, em 20 de fevereiro de 2013 (Diário Oficial da União, Secção 1, n.º 34, p. 28).
É no quadro da referida Convenção que o pedido de extradição deve ser apreciado, estabelecendo o artigo 3.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto (sobre cooperação judiciária internacional em matéria penal) a prevalência das normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português. Só na sua falta ou insuficiência é aplicável a Lei n.º 144/99 e, subsidiariamente, o CPP.
Por sua vez, dispõe o artigo 25.º, n.º 1, da Convenção CPLP, que a mesma substitui, no que respeita aos Estados aos quais se aplica, as disposições de tratados, convenções, ou acordos bilaterais que, entre Estados Contratantes, regulem a matéria da extradição.
2.3.1. Passamos a analisar as questões colocadas no recurso.
2.3.1.1. Da alegada nulidade em razão do indeferimento de prova testemunhal requerida na oposição.
Em momento anterior à prolação do acórdão recorrido, a extraditanda apresentou a sua oposição à pretensão formulada, indicando, além de prova documental, duas testemunhas, o que foi objeto de despacho, em 17.03.2025 (referência ......94), com o seguinte teor (transcrição sem notas de rodapé):
«Ref.ª ....12: notificada nos termos do art. 55.º, nºs. 1 e 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, veio a requerida veio deduzir oposição à sua extradição para o Brasil, invocando argumentos de ordem formal (nulidade por não estar junto aos autos o mandado de detenção emitido; ausência dos documentos comprovativos das alegadas movimentações bancárias) e substancial (ter saído legalmente do Brasil, sem haver contra si qualquer processo crime à data; não ter realizado os movimentos da conta bancária mencionada pela autoridade judiciária do Brasil; correr riscos de segurança caso seja extraditada, quer em liberdade – face à criminalidade violenta – quer em reclusão – pelas condições desumanas dos estabelecimentos prisionais do Brasil –, o que se reflectirá nos seus filhos menores; a inconstitucionalidade da sua extradição, por violar os seus direitos fundamentais; estar integrada em Portugal, carecendo de antecedentes criminais). Alega ainda ter apresentado no Brasil pedido de habeas corpus.
Pede a junção aos autos de três documentos: uma procuração forense por si passada a advogados brasileiros, uma declaração alegadamente assinada pelo seu companheiro BB (na qual este diz assumir “a total responsabilidade pelas transações efectuadas, isentando AA de qualquer participação ou culpa nos fatos apurados”) e uma “certidão de antecedentes criminais” (datada de 6.3.2025). Solicita a inquirição de duas testemunhas, o aludido BB eKK.
O Ministério Público veio juntar a cópia do mandado de detenção e do despacho ministerial que admite a extradição (ref.ª ....49) e, quanto à actividade probatória, entende que a prova documental deve ficar nos autos mas que não há lugar à audição das testemunhas, por desnecessária: não é admissível prova sobre os factos imputados à requerida, a sua situação em Portugal não releva para a extradição e a documentação oferecida pelo Brasil é suficiente e regular (ref.ª ......95).
Cumpre apreciar a questão da prova oferecida pela requerida.
Quanto à prova documental, inexistem motivos para a sua não admissão, independentemente da sua (ir)relevância para o acórdão que virá a ser proferido nestes autos.
Relativamente à prova testemunhal, importa considerar, desde logo, as normas aplicáveis.
Nos termos do art. 3.º da Lei n.º 144/99, as formas de cooperação internacional em matéria penal regem-se, primacialmente, “pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português”, apenas na insuficiência destes se recorrendo àquela Lei.
Tendo o pedido de extradição sido formulado pela República Federativa do Brasil, enquadra-se no âmbito da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (assinada na Cidade da Praia a 23 de Novembro de 2005), aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008, de 15 de Setembro ; tal Convenção entrou em vigor, em Portugal, a 1 de Março de 2010, e no Brasil a 20 de Fevereiro de 2013.
Esta Convenção define as situações entre a extradição é inadmissível – art. 3.º –, bem como os casos de recusa facultativa da extradição, previstos no art. 4.º.
Ora, da respectiva leitura resulta claro que não cabe às autoridades judiciais do Estado requerido “controlar ou sindicar os indícios ou factos imputados ao extraditando no pedido de extradição contra ele formulado” (no caso, se foi ou não a requerida a realizar os aludidos movimentos bancários, pelo que a prova testemunhal oferecida não pode servir para apreciar essa matéria). Aliás, se dúvidas houvesse, no mesmo sentido vai o regime do art. 46.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99, relativa à fase judicial do processo de extradição (“não sendo admitida prova alguma sobre os factos imputados ao extraditando”).
Relativamente aos demais fundamentos da oposição, a prova testemunhal arrolada só poderia servir para a integração em Portugal da requerida (já que o restante é matéria de direito, a apreciar a final); porém, e também com fundamento no teor dos citados arts. 3.º e 4.º da Convenção, aquela integração – que não deixou de ser relevante no momento da aplicação da medida de coacção nestes autos – não é causa de inadmissibilidade ou recusa facultativa da extradição, pelo que a audição das testemunhas a esse propósito configuraria a prática de um acto inútil: “É admissível o indeferimento de diligências de prova indicadas pelo extraditando em sede de oposição, que sejam inúteis, impertinentes ou dilatórias, em obediência ao princípio da não realização de atos inúteis no processo, e à sua adequação ao fim daquele.”
Pelo exposto, indefere-se a audição das testemunhas supra referidas e determina-se o cumprimento do art. 56.º, n.º 2, da citada Lei n.º 144/99.
D.N.»
Em contraposição, alega a recorrente que, ao não aceitar a prova testemunhal indicada, o tribunal a quo “pôs em causa o legitimo exercício dos direitos de defesa da Recorrente, impedindo-a de fazer valer em juízo todos os seus legítimos direitos de pessoa, o que consubstancia uma NULIDADE, nulidade que aqui e desde já se invoca para todos os efeitos legais” – vício que integra nos artigos118.º, 120.º, n.º 2, al. d) e 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.
Vejamos.
Dispõe o n.º 1, do artigo 56.º, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto:
«As diligências que tiverem sido requeridas e as que o juiz relator entender necessárias, designadamente para decidir sobre o destino de coisas apreendidas, devem ser efetivadas no prazo máximo de 15 dias, com a presença do extraditando, do defensor ou advogado constituído e do intérprete, se necessário, bem como do Ministério Público.»
A formulação normativa reproduz o que se estabelecia no artigo 58.º do anterior diploma, que regulava a cooperação judiciária internacional, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de janeiro, já nesse âmbito se tendo debatido os poderes do juiz na condução do processo, e decidido que «[e]ste poder de direção do processo, (…) é, aliás, co-natural à própria natureza e exercício da função jurisdicional constitucionalmente consagrada no artigo 205.º [da Constituição da República Portuguesa], por se afigurar de todo indispensável à administração da justiça e à efetiva realização dos fins constantes daquele preceito constitucional», e que «a atribuição ao juiz da causa de um poder de direção do processo, que lhe permita indeferir diligências inúteis, impertinentes ou dilatórias, aferidas estas em vista da realização dos fins do respetivo processo, não representa violação das garantias de defesa do arguido em processo criminal» (Acórdão do TC n.º 113/95, de 23.02.1995).
Neste STJ tem-se entendido uniformemente ser admissível o indeferimento de diligências de prova indicadas pelo extraditando em sede de oposição (Acórdãos de 3.05.2012, processo n.º 205/11.9YRCBR; de 09.07.2015, processo n.º 65/14.8YREVR.S1; de 11.10.2023, processo n.º 1669/23.3YRLSB.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt, como outros citados no presente acórdão sem outra indicação).
Lê-se no acórdão de 11.10.2023, deste STJ, a propósito do indeferimento de diligências de prova:
«Com efeito, a extradição foi pedida pelo Brasil ao abrigo da Convenção de Extradição entre os Estados-Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CEEMCPLP), a qual tem primazia e prevalece sobre as normas da legislação ordinária interna, como acontece, nomeadamente com a Lei n.º 144/99 (cf. art. 8.º, n.º 2, da CRP).
A obrigação de extraditar que resulta do art. 1.º para os Estados contratantes da referida Convenção (CEEMCPLP) apenas pode ser recusada quando ocorrem os motivos de inadmissibilidade previstos no seu art. 3.º ou os de recusa facultativa previstos no seu art. 4.º.
Trata-se, pois, de um regime próprio e taxativo em matéria de causas de recusa de extradição no âmbito da referida Convenção de Extradição entre os Estados-Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, que delimita em conformidade a soberania dos Estados Contratantes, inexistindo lacuna a preencher nesse domínio, pelo que não faz sentido recorrer às normas da Lei n.° 144/1991.
(…)
E, tão pouco incumbe ao tribunal português controlar ou sindicar os indícios ou factos imputados ao extraditando no pedido de extradição contra ele formulado.
Além de que, perante os motivos taxativos previstos nos arts. 3.º e 4.º da Convenção, nem sequer era aplicável o disposto no art. 18.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, cujos pressupostos nem se verificavam.
Portanto, essa argumentação do requerido era inócua para afastar a extradição.
O outro fundamento invocado pelo requerido na oposição relacionava-se com as suas condições pessoais, familiares e sociais em Portugal, onde se considerava integrado, sendo pai de um menor de um ano e meio, cujo crescimento estava a perder, numa fase crucial, deixando de prestar o apoio familiar que esta fase requer.
Porém, também essa argumentação não pode ser atendida pois não preenche nenhum dos motivos taxativos previstos nos arts. 3.º e 4.º da CEEMCPLP, não sendo aqui aplicável o disposto no artigo 18º da Lei n.º 144/99, de 31.08.
O facto de o recorrente, cidadão brasileiro, ir para o Brasil para fins de procedimento criminal e, ficar nesse período afastado de Portugal, onde se inseriu profissionalmente e está integrado familiarmente, mesmo interrompendo temporariamente o seu projeto de vida, não ofende os seus direitos fundamentais, antes é uma consequência normal de quem é extraditado para esse efeito, não se vendo que haja qualquer desproporção entre as suas condições de vida em Portugal por um lado e a importância do ato de cooperação aqui em causa por outro lado (que foi deferido, por se verificarem os pressupostos legais para o efeito).
Como já foi explicado não há motivos de inadmissibilidade de extradição ou da sua recusa obrigatória ou facultativa.
Ora não se verificando, por serem infundados, os motivos apresentados na oposição, para ser recusada a extradição (importando ter presente o disposto no art. 3.º da Lei n.º 144/99, que dá prevalência nomeadamente às Convenções que vinculem o Estado Português), era inútil ouvir as testemunhas arroladas sobre essa matéria, que tinham sido oferecidas na mesma peça (oposição), tal como também sustentou o MP na sua resposta, quando teve vista nos termos do art. 55.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99.
Por isso, se compreende, o despacho proferido em 30.08.2023, acima transcrito, que indeferiu a produção de prova testemunhal, por manifesta desnecessidade, seguindo os autos para os vistos e à conferência nos termos do art. 57.º, da Lei n.º 144/99.
Com efeito, o que o extraditando pretendia provar estava em parte provado documentalmente e, noutra parte, era perfeitamente inútil, por não ter qualquer influência na decisão da causa, face à legislação aplicável, sendo proibido ao tribunal praticar atos inúteis.
O estabelecido no artigo 56.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31.08, permite ao juiz o indeferimento de diligências inúteis que tenham sido requeridas pelo extraditando, não constituindo tal decisão qualquer violação das garantias de defesa e, muito menos, qualquer nulidade.
Aliás, essa tem sido a jurisprudência deste STJ, já desde pelo menos o ac. de 3.05.2012, proferido no processo n.º 205/11.9YRCBR.
De resto, tal como igualmente se defende no ac. do STJ de 9.07.2015, proferido no processo n.º 65/14.8YREVR.S1 (relator João Silva Miguel), “De facto, a letra da lei, apelando às diligências que tiverem sido requeridas, consente uma interpretação que exclua a realização de diligências que sejam inúteis, impertinentes ou dilatórias, em obediência ao princípio da não realização de atos inúteis no processo, e à sua adequação ao fim daquele.”
E o cumprimento desse princípio não significa abuso de direito do tribunal a quo, como pretende o recorrente de forma gratuita, não havendo qualquer extemporaneidade na decisão, no contexto em que foi proferida.
(…).»
A recorrente não releva o prescrito no n.º 2, do artigo 55.º da Lei n.º 144/99, quando refere que “A oposição só pode fundamentar-se em não ser o detido a pessoa reclamada ou não se verificarem os pressupostos da extradição”. Como não avançou quaisquer factos que tornem a extradição inadmissível, nos termos do artigo 3.º da Convenção CPLP, ou que dela sejam motivo de recusa, nos termos do artigo 4.º da mesma Convenção.
A obrigação de extraditar que resulta do artigo 1.º da Convenção apenas pode ser recusada quando ocorrem os motivos de inadmissibilidade previstos no seu artigo 3.º ou os de recusa facultativa previstos no seu artigo 4.º, o que constitui um regime próprio em matéria de causas de recusa de extradição no âmbito da referida Convenção, ou seja, os motivos de recusa facultativa previstos no artigo 4.º são taxativos, não se podendo invocar, supletivamente, o motivo de denegação facultativa da cooperação previsto no artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99 (acórdãos so STJ, de 30.10.2013. proc. n.º 86/13.8YREVR.S1; de 14.7.2022, proc. 16/22.6YRPRT-A.S1; de 6.9.2022, proc. 181/22.2YRPRT.S1; de 29.12.2022, proc. 254/22.1YRCBR.S1).
Não há razão para não continuar a sustentar a aludida jurisprudência deste STJ, pois a letra da lei, apelando às diligências que tiverem sido requeridas, sufraga a interpretação que exclui a realização de diligências que sejam inúteis, impertinentes ou dilatórias, em obediência ao princípio da não realização de atos inúteis no processo, e à sua adequação ao fim daquele.
Por conseguinte, o estabelecido no artigo 56.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, permite ao juiz o indeferimento de diligências inúteis que tenham sido requeridas pelo extraditando, não constituindo tal decisão qualquer violação das garantias de defesa e, muito menos, qualquer nulidade, entendimento seguido constantemente neste STJ, que sufragamos e é aplicável ao caso em apreço.
Atente-se que, relativamente à testemunha BB (extraditando noutro processo), extrai-se do documento junto com a oposição que a requerida / extraditanda pretendia que o mesmo depusesse sobre os factos em investigação, assumindo a total responsabilidade dos mesmos e isentando-a de qualquer envolvimento.
Não cabendo às autoridades judiciais do Estado requerido controlar ou sindicar os indícios quanto aos factos imputados à extraditanda que estão na base do pedido de extradição, e só podendo a prova testemunhal indicada versar tal matéria indiciária ou questões relativas à integração da requerida em Portugal e situação familiar (já que o restante é matéria de direito), compreende-se o despacho proferido nos autos que indeferiu a produção de prova testemunhal, por manifesta desnecessidade, seguindo os autos, após alegações, para os vistos e à conferência, por ser proibido ao tribunal praticar atos inúteis.
Daí que não se possa concluir no sentido da existência de uma nulidade por omissão de pronúncia e ainda por omissão de diligências, prevista nos artigos 118.º, 120.º, n.º 2, al. d) e 379.º, n.º 1, c), do CPP.
Em suma, carece de qualquer fundamento a invocada invocação de nulidade com base no indeferimento da prova testemunhal.
2.3.1.2. Omissão do original ou cópia do mandado de detenção. Da nulidade alegadamente resultante de “não constarem dos autos” os elementos e/ou informações relativas à “descrição dos factos pelos quais se requer a extradição com indicação do lugar e data da ocorrência”, como exige a alínea a), do n.º 3, do artigo 10.º da Convenção de Extradição subscrita entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Na oposição deduzida, a requerida arguiu uma nulidade do procedimento, por omissão do original ou cópia do mandado de prisão, em conformidade com o previsto no n.º 1, do artigo 10.º, da Convenção CPLP.
O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães, em 13.03.2025 (referência ....49), juntou aos autos cópias do “mandado de prisão preventiva” emitido pelas autoridades brasileiras contra a requerida, e bem assim do despacho ministerial admitindo a sua extradição, que estava em falta, o que foi notificado à defensora da requerida/ora recorrente, conforme referência ......74, com certificação CITIUS em 17.03.2025.
Por sua vez, a requerida, em sede de oposição, alegou que o mandado de detenção “encontra o seu suporte na decisão judicial de 22.10.2024, emanada do Senhor Juiz de Direito, JJ, da....ª Vara Criminal do Distrito de ..., Estado de ..., Brasil que possui, alegadamente, o mandado de detenção judicial com o n.º ..................................06” e que tal mandado “estará justificado em face dos factos indiciários ocorridos em ..., Estado de ..., Brasil, entre os dias 01.10.2023 e os dias 30.09.2024”, donde resulta que a requerida “está a ser investigada (juntamente com outros) por associação para o tráfico de estupefacientes e organização criminosa relacionados com o número de uma Chave PIX .........99, em nome da AA e BB (seu companheiro), onde alegadamente terá sido recebida uma transferência bancária proveniente do pagamento da venda de produtos estupefacientes”.
Finalmente, em alegações escritas, a requerida diz, além do mais:
- está indiciada como autora dos crimes de associação criminosa e de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 2.º da Lei n.º 12850/2013, e pelos artigos 33.º e 35.º da Lei n.º 11343/2006, sendo a pena máxima aplicável de 8 anos e 15 anos de prisão, respectivamente;
- o mandado de detenção internacional emitido visa o procedimento criminal contra a requerida;
- o Estado Brasileiro procedeu à formalização do pedido de extradição, onde expôs a factualidade e as imputações penais supra referidas;
- a requerida “saiu do Brasil em 30 de setembro de 2022 no voo TP..58 com destino a PORTUGAL e nunca mais voltou. Viajou com o marido, BB
(também fugitivo) e o filho, CC (nascido a ... de ... de 2018).”
- embora tal não resulte do mandado de detenção internacional, a Requerida também se fazia acompanhar, para além do filho supra referido, do seu filho mais novo DD (nascido a ........2021);
- da factualidade constante da formalização do pedido de extradição resulta que os factos indiciários ocorreram em ..., Estado de ..., Brasil, entre o dia 01.10.2023 e o dia 30.09.2024, período em que se encontrava em Portugal;
- no final do ano de 2024, estando em Portugal, a requerida teve conhecimento da existência dum procedimento criminal que estará a correr termos contra si no Brasil, tendo contratado advogado com escritório profissional no Brasil para em sua representação poder consultar o respectivo processo e assegurar a sua defesa;
- foi nessa altura que a requerida tomou conhecimento de que a conta bancária com o número de uma Chave PIX .........99 - que esta não movimentava desde que veio residir para Portugal e que não sabia que pudesse estar a ser movimentada para fins ilícitos - apresentava diversos movimentos, que não foram realizados por si, e que desconhecia a sua origem, destino ou proveniência;
- da leitura do processo de Extradição resulta que o único elemento probatório apresentado são registos de transferências bancárias, associadas à chave PIX registada em nome da requerida.
O que se extrai das alegações da requerida /extraditanda é que a mesma, em data anterior ao acórdão recorrido, teve conhecimento da cópia do “mandado de prisão preventiva” contra si emitido pelas autoridades brasileiras, e bem assim de que está ciente da factualidade imputada, inclusivamente quanto ao seu enquadramento espacial e temporal.
O acórdão recorrido deu como provado, além do mais:
«2. Correm na República Federativa do Brasil, na ....ª Vara Criminal da Comarca de ..., Tribunal de Justiça do Estado de ..., os autos de investigação criminal n.º .......................39, em que a extraditanda é suspeita da prática de um crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 2.º da Lei n.º 12850/2013 e pelos artigos 33.º e 35.º da Lei n.º 11343/06.
3. Tal imputação alicerça-se nos seguintes factos indiciários, entre 1 de Outubro de 2023 e 30 de Setembro de 2024:
- HH foi investigada por homicídio qualificado ocorrido em ... a 4/7/24, sendo a vítima II;
- HH é também investigada por associação para o tráfico de estupefacientes e organização criminosa, juntamente com outros investigados, sendo que através da quebra de sigilo telefónico existem relatos de que um “EE” informouHH sobre o número de uma chave PIX, ou seja, .........99 para transferência do pagamento do tráfico de estupefacientes em nome de AA e BB, sócio de AA;
- após a quebra de sigilo bancário autorizada judicialmente, foram verificadas diversas movimentações financeiras avultadas que indicam a participação de AA na organização criminosa centrada para o tráfico de estupefacientes.
4. Foi decretada a prisão preventiva da extraditanda pelo citado Tribunal brasileiro, por despacho de 22 de Outubro de 2024.
5. A 28 de Outubro de 2024, foi emitido mandado de prisão preventiva contra a extraditanda, no âmbito do processo referido em 2., assinado pelo MagistradoJJ.»
Admite-se que, no respeitante à exigência do artigo 10.º, n.º3, al. a), da Convenção, quanto à descrição dos factos com indicação do lugar e data de sua ocorrência, sua qualificação legal e fazendo-se referência às disposições legais aplicáveis, a matéria provada tem algum nível de “generalidade”. A nosso ver, a descrição que se exige, releva, essencialmente, para fins de verificação do princípio ne bis in idem, do decurso dos prazos de prescrição, da renúncia ao princípio da especialidade, etc, devendo, no entanto, ser tão sucinta quanto possível e consignar apenas os elementos indispensáveis para a sua apreensão, não sendo de exigir uma descrição detalhada ao nível da imposta na acusação no processo, que define o seu objeto, com as consequências daí decorrentes quanto à definição do thema decidendum e dos poderes de cognição do tribunal.
Tratando-se, aliás, de extradição com vista a procedimento criminal, não é expectável que exista uma descrição exaustiva e circunstanciada dos factos imputados, exatamente porque os mesmos ainda se encontram em investigação e não estão consolidados. A lei não exige sequer, um juízo qualificado de indiciação, importando, essencialmente, a indicação das informações necessárias a possibilitar a invocação de circunstâncias que possam integrar motivo de inadmissibilidade ou de exercício do direito de recusa da extradição, e bem assim para efeitos de ponderação pelo extraditando da renúncia ou não ao benefício da regra da especialidade.
Alegou a requerida, na sua oposição, não constarem dos autos documentos comprovativos das alegadas movimentações bancárias e que estes deveriam ser pedidos ao Estado requerente para serem juntos aos autos.
Lê-se no acórdão recorrido:
«Por outro lado, aponta a requerida uma insuficiência ao pedido de extradição, por não se encontrarem no processo os documentos que comprovam as alegadas movimentações bancárias, que deveriam ser pedidos ao Estado requerente nos termos do art. 12.º, n.º 1, da Convenção.
Esquece-se, porém, a requerida do teor do citado art. 10.º, n.º 3, que não contempla os meios de prova como elementos que devam instruir o pedido de extradição; deste consta a descrição dos factos pelos quais se requer a extradição (lugar e data da ocorrência, qualificação legal e identificação das normas aplicáveis), no despacho que determinou a prisão preventiva da requerida (págs. 88 a 122 da ref.ª 268040); no mandado de prisão preventiva, consta o extracto deste despacho, a incriminação das condutas indiciadas da requerida e os dados conhecidos relativamente à identidade (nome, naturalidade, filiação e data de nascimento – que já constavam do citado despacho), sendo desconhecido, à data, o endereço.
Acresce que, no mandado da Interpol (“Red Notice”), com base no qual a requerida foi detida em Portugal, constam ainda a fotografia da requerida – que não veio invocar qualquer erro na sua identificação – e as suas impressões digitais, também referidas no art. 10.º, n.º 3, b), da Convenção.
Não assiste, assim, razão à requerida no que se refere à forma do pedido de extradição, que respeita as exigências de forma da Convenção: tal pedido não sofre de nulidade nem se torna necessário solicitar qualquer elemento adicional às autoridades judiciais brasileiras, nos termos do art. 12.º, n.º 1, da Convenção (apenas aplicável se “os dados ou documentos enviados com o pedido de extradição forem insuficientes ou irregulares”).»
Não podemos deixar de concordar com a apreciação da Relação: não tinha de ser pedida ao Estado requerente a apresentação de prova documental a sustentar o juízo indiciário.
Aliás, temos como claro e inequívoco estar vedado ao Estado português, através da Relação, no âmbito do processo de extradição, sindicar/averiguar a existência de indícios, analisar a prova, pronunciar-se sobre a tramitação processual do processo brasileiro, sobre a legalidade das investigações, ou, ainda, emitir pronúncia acerca dos fundamentos do despacho que aí decretou a prisão preventiva.
A entender-se de outro modo, estaria o tribunal português a ingerir-se de forma intolerável na investigação criminal e na administração da justiça de um Estado estrangeiro, sem respaldo no direito aplicável e em violação da obrigação de extraditar a que Portugal e Brasil se comprometeram nos termos do artigo 1.º da Convenção da CPLP.
A referida Convenção não contém norma que permita ao Estado requerido controlar a proporcionalidade do impulso extradicional formulado pelo Estado requerente, ou avaliar a suficiência dos indícios colhidos na investigação pendente no Brasil sobre os factos que fundaram a emissão do mandado de prisão, comuns ao pedido de extradição, questões que se postulam como alheias ao objeto dos presentes autos que apenas cuida dos requisitos da extradição (com interesse, o acórdão do STJ, de 01.08.2022, processo 1113/22.3YRLSB.S1).
2.3.1.3. Das alegadas imprecisões da matéria de facto assente, no tocante aos pontos n.ºs 2 e 6.
Como já se disse, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, recorre-se para o STJ de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.
Em primeiro lugar, a recorrente refere-se ao ponto de facto provado n.º 2 afirmando não estar devidamente apreciado, por forma a dele constar que a extraditanda é suspeita da prática de “dois crimes: i) - associação criminosa para tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo e pelos artigos 33.º e 35.º da Lei n.º 11343/2006, e ii) - organização criminosa, previsto e punido pelo artigo 2.º da Lei n.º 12850/2013, sendo a pena máxima aplicável de 15 anos e 8 anos de prisão, respectivamente”, em vez de “um crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 2.º da Lei n.º 12850/2013 e pelos artigos 33.º e 35.º da Lei n.º 11343/06.”.
O Ministério Público concorda com a redação proposta pela recorrente que, clarifica a denominação, a designação da concreta imputação realizada, especificando-a.
Assim, a redação do ponto de facto n.º2 será clarificada nos termos propostos.
Já quanto à pretendida modificação do facto provado n.º6, de modo a que dele conste que a recorrente, quando viajou do Brasil para Portugal, “viajou acompanhada do companheiro e dos dois filhos menores de ambos: CC eDD”, não se vislumbra qualquer vício decisório, que se evidencie a partir do texto da decisão de facto e da respetiva motivação - texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, não sendo de recorrer a elementos que lhe sejam estranhos, tendo em vista os limites da sindicância por este STJ -, pelo que nada há que deva ser modificado.
2.3.1.4. Da inexistência de elementos probatórios suficientes para estabelecer qualquer ligação / envolvimento da recorrente na suposta prática dos aludidos crimes.
Alega a recorrente que, da leitura do processo de Extradição, resulta que o único elemento probatório apresentado são registos de transferências bancárias, associadas à chave PIX registada em nome da recorrente, que correspondem a 20 (vinte) movimentações bancárias que não se encontram devidamente concretizadas, inexistindo “qualquer outro facto ou elemento probatório, como comunicações, áudios ou outros indícios concretos, que liguem a Recorrente à alegada associação de tráfico de estupefacientes e/ ou organização criminosa”, razão por que o tribunal recorrido deveria “ter rejeitado o pedido de extradição por inexistência de indícios suficientes da prática, pela Recorrente, dos alegados crimes”.
É manifesta a falta de razão da recorrente.
Disse o acórdão recorrido:
«Nesta matéria, escuda-se a requerida de já estar em Portugal à data dos factos que lhe são imputados, não ter movimentado a conta bancária em causa no período daqueles e ter o seu companheiro assumido, junto do processo que fundamenta o pedido de extradição, ser ele o único utilizador daquela conta, sem conhecimento ou participação da requerida.
Como resulta da análise supra efectuada aos arts. 3.º e 4.º da Convenção, não cabe às autoridades judiciais do Estado requerido “controlar ou sindicar os indícios ou factos imputados ao extraditando no pedido de extradição contra ele formulado” .
Os tratados internacionais visam, nas matérias que contemplam, agilizar procedimentos; por outro lado, a sua celebração entre Estados – e, no caso, Estados que têm vários laços comuns, sendo a língua um dos mais marcantes – pressupõe que há vínculos de confiança mútua, de tal forma que é do interesse de todos firmar uma Convenção à parte (aqui, no âmbito dos países da CPLP).
Ora, a sindicância, por parte de um Tribunal do Estado requerido, dos termos do processo que corre no Estado requerente seria absolutamente contrária a essa relação de confiança, além de claramente violadora não só da letra e do espírito da Convenção, mas também da competência territorial e material das leis penais do Estado requerente.
É, por isso, a matéria do processo crime sob a égide do qual foi pedida a extradição absolutamente subtraída a qualquer apreciação por parte deste Tribunal , a não ser que esteja verificada – o que, como se analisou supra em C.1., não é o caso – qualquer das situações dos arts. 3.º e 4.º da Convenção.
Aliás, ainda que houvesse lacuna neste instrumento internacional relativamente a tal matéria – que não se descortina –, no mesmo sentido (restritivo) vai o art. 55.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99: “A oposição só pode fundamentar-se em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição.”
Também carece de relevância o facto (aliás, não demonstrado) de a requerida ter apresentado pedido de habeas corpus no Brasil: essa matéria é da exclusiva competência das autoridades judiciárias do Estado requerente, em nada podendo influir na apreciação deste pedido de extradição.
Portanto, não assiste razão à requerida nesta parte.»
Como já se disse supra (em 2.2.1.2.), está vedado ao Estado português, através da Relação, no âmbito do processo de extradição, sindicar/averiguar a existência de indícios, analisar a prova, pronunciar-se sobre a tramitação processual do processo brasileiro, sobre a legalidade das investigações, ou, ainda, emitir pronúncia acerca dos fundamentos do despacho que aí decretou a prisão preventiva.
A Convenção CPLP não contém norma que permita ao Estado requerido controlar a proporcionalidade do impulso extradicional formulado pelo Estado requerente, ou avaliar a suficiência dos indícios colhidos na investigação pendente sobre os factos que fundaram a emissão do mandado de prisão (acórdão do STJ, de 01.08.2022, processo 1113/22.3YRLSB.S1), questões que se postulam como alheias ao processo de extradição.
Quer isto dizer, em suma, que não incumbe ao tribunal português controlar ou sindicar os indícios ou factos imputados ao extraditando – no caso, extraditanda (acórdão do STJ, de 11.10.2023, supra citado).
Também nesta parte não colhe a pretensão da recorrente.
2.3.1.5. Dos alegados perigos para a segurança e vida dos filhos menores da recorrente que resultarão da eventual extradição desta, e bem assim dos perigos para os direitos fundamentais da recorrente, em razão das condições prisionais no Estado requerente.
Lê-se no acórdão recorrido:
«Invoca a requerida que vive no nosso país desde o princípio de Outubro de 2022, estando social, familiar e emocionalmente integrada em ..., com o companheiro e dois filhos menores, e a procurar emprego.
Provou-se a chegada a Portugal da requerida no início daquele mês e a circunstância de viver, à data da detenção, no concelho de ... com o citado agregado familiar.
Porém, e mais uma vez à luz dos arts. 3.º e 4.º da Convenção supra analisados, é evidente que a integração da requerida neste país, por melhor que seja, não constitui motivo de recusa da extradição.
Repare-se que este instrumento de cooperação internacional tem por função primordial a realização da justiça no Estado requerente, sendo indiferente o percurso pessoal posterior do visado; aliás – e sem que tal afirmação implique qualquer juízo de valor sobre o caso concreto, subtraído, como se viu, a este Tribunal –, o mais comum é precisamente que o indivíduo objecto de procedimento criminal (com ou sem condenação) procure guarida noutro Estado, de forma a subtrair-se à justiça do seu país natal.
Portanto, admitir que bastaria a sua inserção na sociedade do Estado requerido – por mais plena que ela seja – para afastar a possibilidade de extradição equivaleria a esvaziar de sentido este instituto. Seria fazer letra morta dos tratados e convenções internacionais, e do subjacente pressuposto de encontrar no estrangeiro pessoa que interessa ao sistema penal do Estado requerente, o que evidentemente não se pode aceitar.
Há um interesse – superior ao da requerida – da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça. Acresce que, como decorre da análise supra (C.1.), a Convenção “não consagra motivos de caráter pessoal como causa possível de recusa de extradição” , resultando claro não ser de aplicar ao caso – por inexistência de lacuna na Convenção , dado a natureza taxativa dos fundamentos de recusa (citados arts. 3.º e 4.º) –, o art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99 .
E no mesmo sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça: “O facto de o recorrente, cidadão brasileiro, ir para o Brasil para fins de procedimento criminal e, ficar nesse período afastado de Portugal, onde se inseriu profissionalmente e está integrado familiarmente, mesmo interrompendo temporariamente o seu projeto de vida, não ofende os seus direitos fundamentais, antes é uma consequência normal de quem é extraditado para esse efeito, não se vendo que haja qualquer desproporção entre as suas condições de vida em Portugal por um lado e a importância do ato de cooperação aqui em causa por outro lado (…)” .
Isto posto, mostra-se irrelevante, para efeitos do pedido de extradição, a invocação da situação familiar e pessoal da requerida em Portugal.
6. Consequências da extradição para a segurança da requerida e filhos
A este respeito, alega a requerida que a sua opção por viver em Portugal se deveu à circunstância de, no Brasil, haver falta de segurança e criminalidade violenta, e que, a ser extraditada e ficar em reclusão, serão postas em causa a sua segurança (falta de garantias da sua inviolabilidade física e moral) e o bem estar dos filhos, privados da mãe.
Relativamente à primeira questão, e às consequências, para os menores, da eventual reclusão da mãe, a sua falta de acolhimento tem os mesmos fundamentos do ponto anterior deste acórdão: desde logo, a Convenção não estabelece quaisquer motivos de ordem pessoal – nem relacionados com o extraditando, quanto mais com a sua família próxima – como causa de recusa de extradição; por outro lado, é da natureza das coisas que o percurso de vida de uma mãe (ou de um pai) sempre condiciona o dos filhos, mas nem por isso o interesse destes (não estando, aliás, sequer demonstrado que os menores, mesmo na eventual reclusão da mãe, não poderiam encontrar segurança, em Portugal ou no Brasil…) se sobrepõe ao da realização da justiça, procurado pelo instituto da extradição.
Quanto à falta de condições de segurança das prisões no Brasil, por várias vezes se tem pronunciado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça:
- “A Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP não prevê a possibilidade de recusa de extradição com fundamento no alegado funcionamento deficiente do sistema de justiça e do sistema prisional do Estado emissor do pedido de cooperação.” ; como no mesmo local se escreveu, a esta Convenção “encontra-se subjacente a ideia de cooperação judiciária internacional em matéria penal, tendo em vista o combate célere e eficaz da criminalidade, na base da confiança recíproca entre os Estados contratantes e do reconhecimento mútuo, princípios através dos quais se garante que as decisões judiciais de qualquer um dos Estados serão respeitadas e tomadas em consideração por todos os outros Estados nos precisos termos em que foram proferidas”;
- “Considerando a legislação nacional e internacional a que o Brasil está vinculado, pode-se concluir que está garantida a proteção do recorrente em estabelecimento prisional (tanto mais que o próprio Brasil também está vinculado, entre outras, à Convenção Universal dos Direitos do Homem e à própria Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis).” ;
- “As genericamente invocadas, e não demonstradas, condições das prisões Brasileiras – argumentação repetida “ad nauseam usque”, em numerosos casos semelhantes – não constituem causa de inadmissibilidade ou recusa facultativa da extradição, como resulta do regime da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP que contem uma enumeração taxativa dessas causas (não havendo lugar à aplicação subsidiária da lei 144/99 de 31/08, dado que se trata de matéria expressamente regulada na Convenção).”
Cabe ainda lembrar, como já o fez o Supremo Tribunal de Justiça a propósito de assunto colateral (a preocupação do aí extraditando com a sua integridade física, questão aliás também aflorada pela requerida nas suas alegações, a propósito das organizações criminosas brasileiras que, na sua visão, dominam o sistema prisional do Estado requerente), que “o Brasil é um Estado democrático, assente em princípios fundamentais como a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a separação de poderes, regendo-se nas suas relações internacionais pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, sendo certo que subscreveu inúmeras convenções internacionais respeitantes aos direitos humanos e à Cooperação Judiciária Internacional, nomeadamente a Convenção de 1987 contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” , além da Convenção que agora se aplica.
Aliás, a própria Constituição da República Federativa do Brasil (de 1988) garante, além do mais, no seu art. 1.º, a dignidade da pessoa humana e a independência dos poderes legislativo, executivo e judiciário; no seu art. 5.º, destaca-se ainda, para o que aqui releva, que “III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, “XLVII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado” e “XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.
Como se tudo isto não fosse o bastante, é de salientar que, na própria “Red Notice” referente ao pedido de detenção da requerida, no campo “Localização e prisão com vista à extradição”, está escrito, na sequência do determinado pelas autoridades judiciárias brasileiras: “Garante-se que a extradição será solicitada após detenção do indivíduo em causa, em conformidade com a legislação nacional e/ou com os tratados bilaterais e multilaterais aplicáveis.”
Quer dizer, há já uma garantia concreta de salvaguarda dos direitos fundamentais da requerida por parte do Estado requerente.
Portanto, também aqui não há fundamento para a recusa da extradição da requerida.
(…).»
Em primeiro lugar, as circunstâncias invocadas pela recorrente não se enquadram na previsão do regime próprio e taxativo em matéria de causas de recusa de extradição no âmbito da Convenção CPLP.
No que concerne às questões relativas ao sistema prisional brasileiro, permitimo-nos citar o acórdão de 11.10.2023, acima mencionado, referindo-se à Convenção CPLP, cujo entendimento sufragamos:
«De todo o modo, poder-se-á dizer que a CEEMCPLP, nos seus arts. 2.º a 4º não tinha de contemplar qualquer referência à CEDH e/ou a outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados pelo Brasil, como o faz o art. 6.º, al. a), da Lei 144/99, pois os Estados contratantes daquela Convenção, como bem diz o MP na resposta ao recurso, apelando ao ac. do STJ de 7.09.2017, processo n.º 483/16.7YRLSB.S1 (Francisco M. Caetano), são em princípio Estados democráticos, vinculados à defesa e garantia dos direitos humanos, sendo o Brasil “um Estado Parte do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (1966), que ratificou em 1992, bem como da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) e que, à semelhança da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, não deixam de lhe conferir o direito a um processo justo e equitativo, no modo como é consagrado pelo art.º 6.º desta Convenção.”
No mesmo sentido defende-se no ac. do STJ de 22.03.2023, processo n.º 110/23.6YRLSB.S1 (Sénio Alves), que “A verdade é que o Brasil é um Estado democrático, assente em princípios fundamentais como a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a separação de poderes, regendo-se nas suas relações internacionais pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, sendo certo que subscreveu inúmeras convenções internacionais respeitantes aos direitos humanos e à Cooperação Judiciária Internacional, nomeadamente a Convenção de 1987 contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e a Convenção de extradição entre os Estados membros da CPLP, razão pela qual as autoridades brasileiras não deixarão de assegurar, de forma integral, o respeito pelos direitos fundamentais do extraditando e, nomeadamente, a sua própria integridade física.”
Acrescenta-se, neste acórdão de 22.03.2023 que, como se refere no acórdão do STJ, de 30.10.2013, Proc. 86/13.8YREVR.S1, “A Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP não prevê a possibilidade de recusa de extradição com fundamento no alegado funcionamento deficiente do sistema de justiça e do sistema prisional do Estado emissor do pedido de cooperação”. E isto porque à dita Convenção “encontra-se subjacente a ideia de cooperação judiciária internacional em matéria penal, tendo em vista o combate célere e eficaz da criminalidade, na base da confiança recíproca entre os Estados contratantes e do reconhecimento mútuo, princípios através dos quais se garante que as decisões judiciais de qualquer um dos Estados serão respeitadas e tomadas em consideração por todos os outros Estados nos precisos termos em que foram proferidas”. Aliás, apoiando-se no Ac. STJ de 22.04.2020, Proc. 499/18.9YRLSB.S1, refere-se que “O princípio de confiança mútua que subjaz e constitui o cerne da cooperação judiciária internacional funda-se na convicção de que todos os subscritores dos instrumentos daquela cooperação comungam de um conjunto de valores nucleares tributários dos direitos do Homem, estando sujeitos aos mesmos mecanismos específicos e comuns da garantia daqueles valores”.»
Sendo o Brasil um Estado democrático, subscritor de inúmeras convenções internacionais respeitantes aos direitos humanos e à Cooperação Judiciária Internacional, temos de partir do pressuposto de que as autoridades brasileiras não deixarão de assegurar, de forma integral, o respeito pelos direitos fundamentais da extraditanda e, nomeadamente, a sua própria vida e integridade física.
Como, aliás, se refere no acórdão deste STJ, de 7.09.2017, Proc. 483/16.7YRLSB.S1:
«Tendo cada país um regime político-criminal próprio os países subscritores da Convenção da CPLP não deixaram de ter em conta uma comum identidade de princípios e valores de defesa dos direitos humanos quando reciprocamente se obrigaram à extradição enquanto forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal, de forma a combater de forma eficaz a criminalidade.
E no que respeita ao Brasil, que é hoje indiscutivelmente um país democrático, é desde logo a Constituição da República que no seu art.º 1.º garante a dignidade da pessoa humana, a independência dos poderes (legislativo, executivo e judiciário) (art.º 2.º), a regência das suas relações internacionais com prevalência dos direitos humanos (…) e a concessão de asilo político (art.º 4.º).
No art.º 5.º garante que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…) III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
(…) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;
XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLVII – não haverá penas:
a) de morte (…);
b) de carácter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimentos;
e) cruéis.
XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;
(…) LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo penal;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
LVII – ninguém será considerado culpado até ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
(…) LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos caos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
LXII – a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
LXIII – o preso será informado dos seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.
Para além disso, o Brasil é um Estado Parte do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (1966), que ratificou em 1992, bem como da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) e que, à semelhança da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, não deixam de lhe conferir o direito a um processo justo e equitativo, no modo como é consagrado pelo art.º 6.º desta Convenção e acolhido no art.º 20.º da CRP, como, de resto, explanou o acórdão recorrido, do direito à publicidade, direito ao contraditório, direito à igualdade de armas, direito a estar presente, direito ao silêncio e direito a julgamento em prazo razoável.
O requerido dispõe, portanto, de todo um manancial normativo, que lhe permita o julgamento no Estado requerente sem receio de postergação dos seus direitos, além do mais como nacional originário do Brasil e de ampla defesa em termos processuais, mormente sobre a invocada incompetência territorial do tribunal ou independência do juiz do julgamento e as condutas que houverem de ser impugnadas de tal magistrado, que, ainda assim, não vêm concretizadas.
Entre as causa de rejeição obrigatórias enumeradas no art.º 3.º da Convenção da CPLP nenhuma circunstância consta das elencadas pelo recorrente, mormente o alegado funcionamento deficiente do sistema prisional (sobre o que não vem alegado qualquer risco sério quanto à pessoa do extraditando), excepto o julgamento no Estado requerente por tribunal de excepção.»
Como se sublinha em acórdão recente deste STJ (de 27.02.2025, Proc. 3473/24.2YRLSB.S1), a argumentação com base nas condições dos estabelecimentos prisionais brasileiros tem sido repetida “ad nauseam usque”, em numerosos casos semelhantes.
As autoridades brasileiras estão cientes das deficiências do seu sistema prisional e têm vindo a tomar medidas, como o recente plano lançado pelo Governo Federal, elaborado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), homologado em dezembro de 2024 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Também outros Estados, inclusivamente europeus, reconhecem que, no seu seio, nem sempre são asseguradas as devidas condições prisionais, verificando-se que o Estado português já sofreu diversas condenações do TEDH em razão das condições de reclusão em estabelecimentos prisionais portugueses.
Assinala o Ministério Público o compromisso do Estado brasileiro em não submeter a extraditanda a tortura ou a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Daí que haja que concluir pela inexistência desse perigo para a vida ou integridade física da recorrente, em razão das condições prisionais no Estado requerente.
A ora recorrente, inclusivamente, indicou ter constituído mandatários no Brasil para lhe prestarem a devida assistência jurídica, que não deixarão de tomar todas as medidas legalmente cabíveis no quadro do sistema processual penal brasileiro para velar pelo respeito dos direitos fundamentais da recorrente e dos seus filhos.
O alegado risco de vida, para si e para os seus filhos, fundamentado na grande virulência e perigosidade da organização criminosa em causa, não tem o potencial sugerido de prenúncio de mal ou de aviso de mal para a recorrente e para os seus, sendo certo que o dito mal tanto pode concretizar-se no Brasil como em Portugal.
Admitindo-se que a recorrente pretenda afirmar que a extradição facilitará a concretização desses alegados hipotéticos perigos, pelo facto de a mesma ficar reclusa em estabelecimento prisional brasileiro e de os seus filhos se deslocarem para o Brasil, a verdade é que incumbe à recorrente, através dos seus mandatários no Brasil, desencadear junto das autoridades brasileiras todos os mecanismos adequados à prevenção desses perigos, caso os mesmos – perigos, entenda-se - se mostrem minimamente subsistentes. Não tem fundamento, por conseguinte, partir da assunção do princípio de que as autoridades da República Federativa do Brasil serão incapazes de providenciarem o que se mostrar necessário para a proteção da recorrente e da sua família próxima.
Assim, pelas razões sobreditas, as condições das prisões brasileiras genericamente invocadas e hipotéticos perigos para a recorrente e os seus mais próximos, além da integração social em Portugal, não constituem causa de inadmissibilidade ou recusa facultativa da extradição, sendo que as normas Convencionais contêm uma enumeração taxativa dessas causas, não havendo lugar à aplicação subsidiária da Lei n.º 144/99, dado que se trata de matéria expressamente regulada na Convenção.
Ao Estado requerido apenas incumbe verificar da inexistência dessas causas, e, em consequência, dar execução à extradição, tal como se encontra obrigado pela Convenção celebrada.
Manifestamente, as razões que foram invocadas não integram quaisquer questões de segurança, ordem pública ou de outros interesses fundamentais do Estado português que permitam a recusa, com base no artigo 22.º da Convenção.
Lê-se no acórdão recorrido, a propósito de matéria constitucional invocada pela recorrente:
«Invoca a requerida que é caso de recusa de extradição nos termos do art. 22.º da citada Convenção, por ser interesse fundamental do Estado português que ninguém seja sujeito a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, pelo que a extradição viola o art. 25.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Entende ainda que o mesmo acontece em relação aos arts. 27.º, n.º 2 e n.º 3, b), e 33.º da Lei Fundamental, por não existirem fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos.
Prevê o art. 22.º da Convenção: “O Estado requerido pode recusar, com a devida fundamentação, o pedido de extradição quando o seu cumprimento for contrário à segurança, à ordem pública ou a outros seus interesses fundamentais.”
Ora, o citado art. 25.º, n.º 2, da nossa Constituição estabelece: “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos.”
Porém, remete-se aqui para as considerações tecidas no ponto anterior: o Estado requerente, integrante do universo dos Estados democráticos e subscritores de tratados internacionais (como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção de 1987 Contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, promulgada na República Federativa do Brasil pelo Decreto n.º 40, de 15 de Fevereiro de 1991) prestou a devida garantia quanto ao tratamento a conferir à requerida no caso de extradição; assim, com base na mesma confiança mútua que levou os Estados da CPLP a subscrever a Convenção da Praia, impõe-se “dar crédito àquela garantia e a que, honrando-a, o Estado requerente assegurará ao menos quanto à requerida” a não aplicação de tratamento degradante, desde logo em sede de prisão preventiva.
Assim, não há, deferindo-se a extradição da requerida, qualquer violação do art. 25.º, n.º 2, da Constituição.
Idêntica conclusão é de retirar quanto às demais normas da Lei Fundamental invocadas pela requerida:
- perante o crime pelo qual está indiciada a requerida, punível com a pena máxima de 15 anos, o art. 27.º, n.º 3, b), da Constituição permite a privação de liberdade, através de prisão preventiva, quando há “fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos”, assim se excepcionando a regra do n.º 2 do mesmo artigo;
- quanto ao art. 33.º, relativo, além do mais, à extradição, a requerida não é cidadã portuguesa (casos em que só excepcionalmente se permite a extradição, de acordo com os nºs. 1 e 3) e, como se escreveu a propósito do direito aplicável (C.1.), o crime em causa não é punível como prisão perpétua ou duração indefinida (n.º 4), não tem carácter político nem prevê pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física (n.º 6); os outros números do art. 33.º não têm aplicação ao caso da requerida, por se reportarem a convenções europeias (n.º 5), a estrangeiros e apátridas a quem é garantido direito de asilo (n.º 8) e a refugiados políticos (n.º 9).
(…)
Aqui chegados, é evidente que as razões invocadas pela requerida não integram, de acordo com a citada Convenção, nenhuma das circunstâncias que permitam a recusa – obrigatória ou facultativa – da extradição pedida pelo Estado requerente.
É que, reiterando o supra referido, a “obrigação de extraditar que resulta do artigo 1.º para os Estados contratantes da Convenção da CPLP apenas pode ser recusada quando ocorrem os motivos de inadmissibilidade previstos no seu artigo 3.º ou os de recusa facultativa previstos no artigo 4.º, que constituem um regime próprio e taxativo em matéria de causas de recusa de extradição no âmbito da referida Convenção, inexistindo lacuna a preencher nesse domínio com recurso às normas da Lei n.º 144/99, de 31.08.”
Impõe-se, assim, determinar a extradição solicitada.»
Não vislumbramos razão para entender de outro modo, pelo que se sufraga o entendimento adotado no acórdão recorrido, não se identificando como sua ratio decidendi qualquer interpretação do artigo 22.º da Convenção em violação dos artigos 24.º, 25.º, n.º 2, 27.º, n.º3, al. b), 33.º e 67.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Não está em causa a violação do direito à vida ou a possibilidade de imposição de pena de morte; não se vislumbra a submissão da recorrente pelo Estado requerente a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos; quanto à convocação do artigo 27.º, n.º3, al. b), da CRP, na parte relativa à extradição, a recorrente não é cidadã portuguesa, os crime em causa não são puníveis com prisão perpétua ou pena (ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade) de duração indefinida (n.º 4), não têm carácter político, nem contemplam pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física (n.º 6); os outros números do artigo 33.º não têm, manifestamente, aplicação ao caso da recorrente. Finalmente, também não se alcança qualquer interpretação normativa contrária ao artigo 67.º da CRP, que, como é sabido, consagra um típico direito social.
Em conclusão, não é indicado no recurso qualquer fundamento legal para a não execução da ordenada extradição.
*
III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:
A) Determinar a correção do texto do ponto 2 dos factos assentes, que passará a ter o seguinte teor: « Correm na República Federativa do Brasil, na ....ª Vara Criminal da Comarca de ..., Tribunal de Justiça do Estado de ..., os autos de investigação criminal n.º .......................39, em que a extraditanda é suspeita da prática de dois crimes: i) - associação criminosa para tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo e pelos artigos 33.º e 35.º da Lei n.º 11343/2006, e ii) - organização criminosa, previsto e punido pelo artigo 2.º da Lei n.º 12850/2013, sendo a pena máxima aplicável de 15 anos e 8 anos de prisão, respetivamente».
B) Negam no mais provimento.
Sem custas, nos termos do artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31.08.
Dê imediato conhecimento ao tribunal recorrido e à Procuradoria-Geral da República.
Supremo Tribunal de Justiça, 5 de junho de 2025
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Jorge Gonçalves (Relator)
Ernesto Nascimento (1.º Adjunto)
José Piedade (2.º Adjunto)