HABEAS CORPUS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
SUBSTITUIÇÃO
PRISÃO ILEGAL
PRISÃO PREVENTIVA
INADMISSIBILIDADE
Sumário


I. A natureza excepcional da providência de habeas corpus implica que a ela apenas se deve recorrer quando falham as demais garantias de defesa da regra do direito à liberdade.
II. A providência de habeas corpus não constitui, em tese, nem pode ser transformada, na prática um recurso do despacho que decretou a prisão preventiva.
III. Tão pouco, constitui um sucedâneo, uma alternativa, ou uma via mais, a acrescer ao recurso.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

Em requerimento, que deu entrada em Juízo a 23.5.2025, dirigido aos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, subscrito por advogado, AA, preso preventivamente, apresentou petição de Habeas Corpus, ao abrigo do artigo 222.º alínea b) CPPenal, pretendendo se declare ilegal, a detenção por falta de indícios da prática do crime e a aplicação da prisão preventiva, por não respeitar os princípios de adequação e de proporcionalidade e, por existir motivação imprópria por falta de argumentos legais que justificam ou fundamentam a prisão preventiva, devendo a prisão preventiva ser declarada ilegal e ser restituído à liberdade, alegando o seguinte:

1. O requerente foi detido no dia 8 de Maio de 2025 e foi presente a juiz de instrução nesse dia que lhe foi decretada a prisão preventiva.

2. O requerente está indiciado do crime de violência doméstica

3. Ora, convém referir que não existe nenhum indício nos autos que indicie a prática do crime bem pelo contrário existem fortes indícios que o crime não foi praticado.

4. lnclusivamente, neste tipo de casos mas o depoimento por parte da ofendida não é corroborado por mais nenhum tipo de prova.

5. Convém referir também que, não foram realizados exames médicos à alegada vítima, nem foi feita perícia psicológica para determinar se a vítima está a mentir, existindo fortes possibilidades que esta a mentir, que só está a inventar esta história para que a filha de ambos deixe de ter pai,

6. Ora, em sede de primeiro interrogatório judicial o arguido negou os factos e desconhece sobre o que está a ser acusado,

7. No entanto, o despacho que aplicou prisão preventiva aderiu integralmente à promoção do Ministério Público que está errada e é contraditória por si só.

8. No entanto, convém referir que a prisão preventiva no CPPenal é considerada a “ultima ratio” das medidas de coacção só devem ser aplicadas quando as outras medidas de coacção não asseguraram as finalidades do inquérito, o que neste caso não acontece.

9. Porém, neste caso não existe fuga ou perigo de fuga, uma vez que o requerente é pai de 1 filho e está a espera do 2.º filho, já que a companheira se encontra grávida e está quase a ter bebé e antes de ser preso estava a trabalhar.

10. lnclusivamente, não existe perigo de perturbação de inquérito, uma vez que o requerente apenas pretendia saber da sua filha de ambos, mas perante este processo quer apenas paz e sossego e que seja aplicada a pulseira de afastamento que é o que acontece neste tipo de situações e proibição de contactar a vítima.

11. Ora, o requerente não está referenciado nem tem antecedentes criminais que justifiquem perigo pela natureza e personalidade do arguido, o mesmo não é considerado perigoso e que iria continuar a praticar actos ilícitos, se inclusivamente perante a juíza de instrução referiu que há muitos anos não fala com a mãe da sua filha.

12. O Tribunal " a quo" não teve em consideração que o requerente vai ser pai em breve, a sua esposa necessita da ajuda do pai, tem gravidez de alto risco e por força desta situação corre o risco de abortar espontaneamente e tal situação deve ser evitado ao máximo a colocação de arguidos em prisão preventiva.

13. lnclusivamente, a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva violou de forma grosseira os princípios da adequação e proporcionalidade, nos termos do artigo 193.º/1 CPPenal.

14. No entanto, no caso em concreto dos presentes autos justifica-se perfeitamente a medida de coação proibição de contacto e aproximação de vítima, sendo tal situação controlada por pulseira de afastamento e o respectivo TIR.

15. Ora, face ao exposto e perante a total ausência de fundamentação do despacho que fundamenta a prisão preventiva, jamais ao arguido poderia ter sido aplicada prisão preventiva, por inexistirem indícios do crime ter sido praticado e por existirem outras medidas de coacção nomeadamente proibição de contacto e aproximação de vítima, que são adequadas e proporcionais para o requerente aguardar o processo até ao inquérito que provavelmente irá levar ao arquivamento ou em julgamento à absolvição do requerente, sendo que a motivação imprópria nos termos 222.º/1 alínea b), é o fundamento bastante para afirmar que a referida de coacção de prisão preventiva é claramente ilegal e o procedimento de habeas corpus serve para proteger o requerente da utilização abusiva da medida de coacção de prisão preventiva.

16. Inclusivamente, mais grave ainda é a inércia da secretaria de instrução criminal da ..., que marca de forma célere uma inquirição para memória futura mas não faz despacho e não aprecia a alteração da medida de coacção e de despacho de admissão ou não de recurso quando ambos deram entrada no dia 13 de Maio de 2025, o que configura uma violação grave dos direitos liberdades e garantias.

2. A 28.5.2025 foi prestada a seguinte informação:

“Requerimento de habeas corpus:

A presente providência foi requerida ao abrigo do disposto no artigo 222.º alínea b) do Código de Processo Penal, tendo sido correctamente dirigida ao Supremo Tribunal de Justiça.

No cumprimento do disposto no artigo 223.º/1 Código de Processo Penal passa-se a analisar o requerido.

No dia 06.05.2025, o arguido foi detido e apresentado a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva.

Interpôs recurso.

Simultaneamente, deu início à presente providência de habeas corpus, por entender que inexistem indícios da prática do crime e, bem ainda, que a decisão que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva não respeitou os princípios de adequação e de proporcionalidade.

"A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcion4l para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente "medida expedita" com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei (cf. artigos 220.º/1 e 222.º/2 CPPenal).

O artigo 222.º/2 CPPenal constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa" (cfr. acórdão do STJ de 21.09.2011, proc. N.º 96/11.0YFLSB, disponível nas bases de dados da dgsi).

Salvo melhor entendimento, os motivos de discordância do arguido não se enquadram nas circunstâncias elencadas no artigo 222.º/2 CPPenal, sendo antes fundamento de recurso.

No fundo, o que o arguido pretende, à semelhança do que fez no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, é que o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncie sobre o mérito da decisão, isto é, se os factos se encontram fortemente indiciados e se o Tribunal aplicou correctamente a prisão preventiva ao arguido.

Nesta medida, é entendimento deste Tribunal que inexiste fundamento legal para a providência de habeas corpus”.

3. Da certidão junta consta,

- o auto de 1.º interrogatório de arguido detido, artigo 141.º CPPenal, levado a cabo a 6.5.2025, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal da ..., que culminou com a prolação de despacho,

- a julgar a detenção do arguido, efectuada a coberto de mandado emitido pela competente autoridade judicial, em situação estabelecida legalmente e tempestiva a sua apresentação, nos termos do disposto nos artigos 254.º/1 alínea a) e 257.º/1 CPPenal;

- a considerar que dos autos constam fortes indícios da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º/1 alíneas b) e c) CPenal;

- a aplicar a medida de coacção de prisão preventiva, ao abrigo dos artigos 191.º a 194.º, 200.º/1 alínea d), 201.º a contraio sensu, 202.º/1 alínea b) e 204.º alíneas b) e c) CPPenal e,

- ainda os seguintes despachos:

- na mesma data da informação dada ao abrigo do artigo 223.º/1 CPPenal, a admitir o recurso interposto pelo arguido do despacho que decretou a prisão preventiva;

- e, ainda na mesma data, a indeferir o requerimento, por si apresentado, a 13.5.2025, a solicitar a alteração da medida de coacção para a de proibição de contactos entre arguido e vítima e proibição de aproximação entre ambos, tendo-se entendido que, “não resulta dos autos que os referidos perigos desvaneceram ou sofreram qualquer diminuição sensível que, nos termos prevenidos pelo n.º 3 do artigo 212.º C P penal, justifique a substituição pretendida.

Saliente-se que a mera discordância face à medida de coacção aplicada que é patenteada no requerimento deve ser exposta em sede de recurso, já que, nesta sede apenas se cuida da cessação ou atenuação das circunstâncias que determinaram a sua aplicação.

Acresce, ainda, que a inserção familiar do arguido não se revelou contentora, não se vislumbrando a aplicação de outra medida de coacção mais adequada em face dos perigos já assinados.

Assim sendo, não se vislumbrando que as exigências cautelares subjacentes à aplicação da medida de prisão preventiva tenham cessado ou sofrido qualquer atenuação, cumpre concluir pela necessidade da sua subsistência (alínea b) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 212.º CPPenal a contrario, razão pela qual se indefere o antecedente requerimento”.

4. Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário/defensor do arguido, procedeu-se à realização da audiência, com o formalismo legal e em conformidade com o disposto nos artigos 11.º/4 alínea c), 223.º/1, 2 e 3 e 435.º CPPenal.

Cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. O circunstancialismo factual relevante para o julgamento resulta da petição de habeas corpus, da informação e da certidão que a acompanha é a seguinte:

- o arguido, detido fora de flagrante delito, foi presente ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal da ... e aí submetido a 1.º interrogatório de arguido detido, a 6.5.2025, nos termos do artigo 141.º CPPenal, que culminou com a prolação de despacho,

- a julgar a detenção do arguido, efectuada a coberto de mandado emitido pela competente autoridade judicial, em situação estabelecida legalmente e tempestiva a sua apresentação, nos termos do disposto nos artigos 254.º/1 alínea a) e 257.º/1 CPPenal;

- a considerar que dos autos constam fortes indícios da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º/1 alíneas b) e c) CPenal;

- a aplicar a medida de coacção de prisão preventiva, ao abrigo dos artigos 191.º a 194.º, 200.º/1 alínea d), 201.º a contraio sensu, 202.º/1 alínea b) e 204.º alíneas b) e c) CPPenal.

2. O Direito

1. As razões do requerente.

Invocando a alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal, pretende o peticionante se declare ilegal a prisão preventiva e, que por isso, seja restituído à liberdade. Estrutura esta sua pretensão nos seguintes fundamentos:

- na sequência de 1.º Interrogatório de arguido detido foi-lhe aplicada a medida de prisão preventiva, indiciado pela prática de um crime de violência doméstica;

- não existe nenhum indício que o possa afirmar, bem pelo contrário existem fortes indícios que o crime não foi praticado;

- o depoimento da ofendida não é corroborado por mais nenhum tipo de prova;

- não foram realizados exames médicos à alegada vítima, nem foi feita perícia psicológica para determinar se a vítima está a mentir, existindo fortes possibilidades que esta a mentir, que só está a inventar esta história para que a filha de ambos deixe de ter pai;

- o arguido negou os factos e desconhece sobre o que está a ser acusado;

- o despacho que decretou a prisão preventiva aderiu integralmente à promoção do Ministério Público que está errada e é contraditória por si só;

- a prisão preventiva no CPPenal é considerada a última ratio das medidas de coacção só devem ser aplicadas quando as outras medidas de coacção não asseguraram as finalidades do inquérito, o que neste caso não acontece;

- não existe fuga ou perigo de fuga, uma vez que o requerente é pai de 1 filho e está a espera do 2.º filho, já que a companheira se encontra grávida e está quase a ter bebé e antes de ser preso estava a trabalhar;

- não existe perigo de perturbação de inquérito, uma vez que o requerente apenas pretendia saber da filha de ambos, mas perante este processo quer apenas paz e sossego e que seja aplicada a pulseira de afastamento que é o que acontece neste tipo de situações e proibição de contactar a vítima;

- não está referenciado nem tem antecedentes criminais que justifiquem perigo pela natureza e personalidade do arguido, não é considerado perigoso e que iria continuar a praticar actos ilícitos, se inclusivamente perante a juíza de instrução referiu que há muitos anos não fala com a mãe da sua filha;

- a decisão recorrida não teve em consideração que vai ser pai em breve, a sua esposa necessita da ajuda do pai, tem gravidez de alto risco e por força desta situação corre o risco de abortar espontaneamente e, perante tal situação deve ser evitado ao máximo a colocação de arguidos em prisão preventiva;

- a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva violou de forma grosseira os princípios da adequação e proporcionalidade, nos termos do artigo 193.º/1 CPPenal;

- no caso justificar-se-á perfeitamente a medida de coação proibição de contacto e aproximação de vítima, sendo tal situação controlada por pulseira de afastamento e o respectivo TIR.

Concluindo, assim, que,

- perante a total ausência de fundamentação do despacho que fundamenta a prisão preventiva, jamais poderia ter sido aplicada prisão preventiva, por inexistirem indícios do crime ter sido praticado e por existirem outras medidas de coacção nomeadamente proibição de contacto e aproximação de vítima, que são adequadas e proporcionais para aguardar o processo até ao inquérito que provavelmente irá levar ao arquivamento ou em julgamento à sua absolvição;

- a referida medida de coacção de prisão preventiva é claramente ilegal e o procedimento de habeas corpus serve para proteger o requerente da utilização abusiva da medida de coacção de prisão preventiva;

- mais grave ainda é a inércia da secretaria de instrução criminal da ..., que marca de forma célere uma inquirição para memória futura mas não faz despacho e não aprecia a alteração da medida de coacção e de despacho de admissão ou não de recurso quando ambos deram entrada no dia 13 de Maio de 2025, o que configura uma violação grave dos direitos liberdades e garantias.

2. O texto legal.

O habeas corpus é um meio, procedimento, de afirmação e garantia do direito à liberdade, cfr. artigos 27.º e 31.º da CRP, constituindo uma providência expedita e excecional – a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória, cfr. Artigo 31.º/3 da CRP – para fazer cessar privações da liberdade ilegais, isto é, não fundadas na lei, sendo a ilegalidade da prisão verificável a partir dos factos documentados no processo.
Sobre o pedido de habeas corpus por prisão ilegal, dispõe o artigo 222.º CPPenal que,

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

São taxativos os pressupostos do habeas corpus - que também tem consagração constitucional, cfr. artigo 31.º da CRP.

Enquanto no Decreto Lei 35.043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus é um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», hoje, e mais nitidamente após as alterações de 2007, com o aditamento do n.º 2 ao artigo 219.º do CPPenal, o instituto não deixou de ser um remédio excecional, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso.

A providência de habeas corpus que não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Editorial Verbo, 1993, 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.

Convém ter presente, como se refere no artigo 31.º/1 CRP, que “haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Ou seja, esta providência, que inclusivamente pode ser interposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, artigo 31.º/2 CRP, tem apenas por finalidade libertar quem está preso ou detido ilegalmente e, por isso, é uma medida excecional e muito célere.

De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no artigo 222.º/2 CPPenal.

O habeas corpus não serve para discutir decisões proferidas em outros Tribunais, mormente nos Tribunais de 1.ª instância, que aplicaram pena de prisão ao peticionante.

Irregularidades que aí possam ter sido praticadas, verificando-se os respectivos pressupostos deverão ser impugnadas pelos meios próprios.

E, naturalmente, como, de resto, é jurisprudência constante e pacífica deste Tribunal, para que possa merecer acolhimento o pedido de habeas corpus é ainda necessário que a ilegalidade da prisão seja actual - actualidade reportada ao momento em que é apreciado o pedido.

E, assim, a questão a decidir, nesta sede, reporta-se, tão só, à legalidade da prisão do requerente.

3. Baixando ao caso concreto.

Dado que o peticionante começa por abordar a questão de estar a deduzir pedido de Habeas Corpus, depois de ter interposto recurso do despacho que decretou a prisão preventiva – e, já agora depois de ter requerido a alteração da medida de coacção, pretensão, entretanto, negada - começarmos por dizer o seguinte, a este propósito.

Já decidiu este Supremo Tribunal no acórdão de 30.4.2008, processo 08P1504, consultado no site da dgsi, que “é verdade que a providência de habeas corpus não pressupõe o prévio esgotamento dos recursos que possam caber da decisão de onde promana a prisão dita ilegal, sendo compatível com a possibilidade de recurso de tal decisão, exactamente pela necessidade de pôr imediatamente cobro a uma situação de patente ilegalidade, também é verdade que só em casos extremos de claro abuso de poder ou de erro grosseiro na aplicação do direito, se admite a providência de habeas corpus como forma de fazer cessar a prisão ilegal, quando ela tenha sido determinada por decisão judicial”, isto porque “a providência de habeas corpus não almeja a reanálise do caso; almeja a constatação da ilegalidade, que, por isso mesmo, tem de ser patente”, destinando-se a “apreciar situações de flagrante ilegalidade da prisão, resultantes de notório abuso de poder, artigo 31.º da CRP, não a decidir questões de nulidades ou irregularidades processuais, e muito menos a impugnar decisões judiciais”.

Está em causa, nas palavras do texto legal a prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

Este pressuposto centra-se no motivo da prisão.

Se o facto que motivou a prisão não tem respaldo legal procederá o Habeas Corpus.

Sem que, contudo, no âmbito desta providência este Supremo Tribunal possa abordar a questão processual, a tramitação do processo, a interpretação do Direito aplicado e o acerto, ou falta dele, da decisão que decretou a prisão.

Se este é o fundamento do Habeas Corpus estará votado ao insucesso.

A ilegalidade da prisão, tal como o peticionante a equaciona, teria de resultar da circunstância de a mesma ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

O peticionante não coloca, de todo, em causa a possibilidade legal de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva – para utilizar a sua expressão - neste tipo de situações.

Estrutura a sua pretensão – recorde-se, em termos jurídicos, no facto de a prisão ser motivada por facto qua a lei não permite – nos seguintes fundamentos de facto:

- a decisão que decretou a prisão preventiva carece, de todo, de fundamentação, não existem indícios da prática do imputado crime de violência doméstica e não se verificam os pressupostos de que depende a aplicação da prisão preventiva - não existe fuga ou perigo de fuga – que não foi invocado na decisão recorrida, recorde-se - não existe perigo de perturbação do inquérito, nem iria continuar a praticar actos ilícitos, uma vez que há muitos anos não fala com a mãe da filha e apenas pretendia saber dela;

- a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva violou de forma grosseira os princípios da adequação e proporcionalidade, previstos no artigo 193.º/1 CPPenal;

- no caso justificar-se-á perfeitamente a medida de coação proibição de contacto e aproximação de vítima, sendo tal situação controlada por pulseira de afastamento e o respectivo TIR – que é o que acontece neste tipo de situações;

São estas as vertentes invocadas pelo peticionante, alegadamente integradoras da previsão legal – prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

Todas elas, seguramente invocadas no recurso que acabou de interpor. Todas elas presentes, seguramente, na formulação do requerimento que fez para alteração da medida de coacção – que já foi decidida e indeferida.

Para si a invocação do requisito de que a prisão foi motivada por facto que a lei não permite, tem subjacente a linha de orientação de um normal, corrente e habitual, recurso, neste tipo de situações.

E, já vimos que esta não é a sede para esgrimir esta argumentação.

Com efeito, no âmbito do habeas corpus não cabe apreciar a natureza, de “ultima ratio”, da prisão preventiva. Não cabe apreciar da verificação, ou não, de fortes indícios. Não cabe apreciar da verificação, ou não, dos pressupostos de que depende a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.

O lugar processualmente idóneo para o fazer é no próprio processo e através da impugnação por via de recurso – que, o arguido já interpôs, de resto.

A providência de habeas corpus não constitui, em tese, nem pode ser transformada, na prática um recurso do despacho que decretou a prisão preventiva – como, manifestamente o peticionante pretende fazer.

A providência de habeas corpus não versa sobre a legalidade do despacho que decretou a prisão preventiva.

Tão pouco, constitui um sucedâneo, uma alternativa, ou uma via mais, a acrescer ao recurso.

A natureza excepcional da providência de habeas corpus implica que a ela apenas se deve recorrer quando falham as demais garantias de defesa da regra do direito à liberdade.

Para dessa forma expedita, em muito curto espaço de tempo, se colocar termo a situações de detenção ou de prisão ilegais.

Em suma.

O habeas corpus não pode servir para conhecer da bondade da decisão que aplica a prisão preventiva.

É o recurso a sede própria para a sua reapreciação.

No habeas corpus apenas há a decidir sobre uma prisão que se possa acolher aos fundamentos previstos no referido artigo 222.º/2 CPPenal.

4. Conclusão.

No âmbito da providência e habeas corpus não incumbe, nem cabe nos seus poderes de cognição do STJ analisar questões que extravasam os fundamentos previstos no artigo 222.º/2 CPPenal.

Tendo em atenção o alegado no requerimento de habeas corpus, a materialidade apurada e o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal, manifestamente, que não ocorre fundamento para o deferimento do habeas corpus.

Com efeito, a prisão do requerente não se mostra ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

E, assim, dado que não se evidencia - muito longe disso - uma violação directa, patente, ostensiva e grosseira dos pressupostos e das condições de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, deve o Habeas Corpus ser indeferido, por manifesta falta de fundamento legal, nos termos do artigo 223.º/4 CPPenal.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a presente providência de habeas corpus apresentada pelo peticionante AA, por manifesta falta de fundamento legal.

Custas pelo requerente, fixando-se em 4 UC, a taxa de justiça, cfr. n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa.

Nos termos do artigo 223.º/6 CPPenal, o peticionante vai também condenado em 8 UC’s.

Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94.º/2 CPPenal), sendo assinado pelo próprio, pelos dois Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pela Senhora Juíza Conselheira Presidente.

Supremo Tribunal de Justiça, 5.6.2025

Ernesto Nascimento - Relator

Jorge Jacob – Juiz Conselheiro Adjunto

Vasques Osório – Juiz Conselheiro Adjunto

Maria Helena Moniz – Juíza Conselheira Presidente